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A Oficina de Paleografia - UFMG, em uma iniciativa conjunta com a Imprensa Oficial de Minas Gerais, traz ao público este audacioso projeto, que revela os enlaces entre três diferentes dimensões — manuscrito, transcrição e narrativa histórica — caminhos estes que nem sempre estão claros no fazer historiográfico. O principal objetivo da Oficina é reunir subsídios para a leitura de fontes manuscritas pertinentes à História luso-brasileira. Pretendemos, então, consolidar um espaço permanente de estudo, discussão, exercício e troca de experiências no trabalho em arquivos e na leitura e transcrição dessas fontes. Todos(as) os(as) interessados(as) são convidados(as) a participar, independentemente de experiência prévia. Acreditamos que o desenvolvimento da habilidade de ler e compreender os manuscritos importa, primei- ramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto a fontes de pesquisa, sem depender da publicação de transcrições e/ou comentários. Além disso, a leitura e transcrição paleográfica podem se constituir como campo de atuação profissional e como fonte de renda para aqueles que as dominam. Nossas atividades se iniciaram com uma aula inaugural em 9 de abril de 2012. No dia 16 de abril, iniciamos os nossos encontros semanais, ao longo dos quais pudemos repensar e aprimorar nossa metodologia de trabalho. Hoje contamos com a participação de alunos(as) e egressos(as) do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG partilhando suas experiências de pesquisa em fontes manuscritas. Essa metodologia, consolidada a partir do 2º semestre de 2012 e em constante revisão, tem por objetivo, ainda, promover a integração entre os diferentes níveis de formação, graduação, mestrado e doutorado. Desde a nossa fundação, realizamos quatro aulas inaugurais, com público de até 80 participantes, dois Seminários interdisciplinares e mais de 60 encontros semanais, contando com uma média de 30 participantes de diferentes cursos da UFMG e de outras instituições de ensino. A Oficina de Paleografia - UFMG é um projeto parceiro da Oficina de Paleografia - UFJF e da Oficina de Paleografia - UFOP. Contamos com o apoio do Centro Acadêmico de História (CAHIS - UFMG), do Colegiado de Graduação, do Programa de Pós-Graduação, do Departamento de História e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. A presente obra conta com os textos de André Cabral Honor, Carmem Marques Rodrigues, Mateus Frizzone, Emilly J. O. Lopes Silva, Marileide Lázara Cassoli, Carlos O. Malaquias, Gusthavo Lemos, Cássio Bruno de Araujo Rocha e Marcus Vinícius Duque Neves e prefácio do professor do Departamento de História da UFMG José Newton Coelho Meneses. Essa realização não seria possível sem o inestimável apoio da Imprensa Oficial de Minas Gerais, que gene- rosamente acolheu nossa proposta de publicação, inserindo-a como mais uma iniciativa de democratização da informação e difusão da história e cultura de Minas Gerais, projetos levados a cabo por esse órgão desde a sua fundação, em 1891. A equipe da Oficina agradece imensamente pela grandiosa oportunidade viabilizada por essa parceria. Cadernos de Paleografia Número I Organizadores: Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Rocha, Leandro Rezende, Ludmila Torres, Luíza Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira, Mateus Frizzone, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli Cadernos de Paleografia Número I iª edição [versão eletrônica] ISBN: 978-85-68687-01-7 ISBN da Edição Impressa: 978-85-68687-00-0 Imprensa Oficial de Minas Gerais Belo Horizonte, 2014 Governo do Estado de Minas Gerais Governador: Alberto Pinto Coelho Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais Secretária: Maria Coeli Simões Pires Imprensa Oficial de Minas Gerais Diretor-Geral: Eugênio Ferraz Chefe de Gabinete: Antonio Carlos Teixeira Naback Cadernos de Paleografia: Número I Coordenação Editorial e Revisão dos Textos: Douglas Lima de Jesus Fabiana Léo Pereira Nascimento Gabriel Afonso Vieira Chagas Gislaine Gonçalves Dias Pinto Igor Tadeu Camilo Rocha Leandro Gonçalves de Rezende Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres Luíza Rabelo Parreira Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Mateus Rezende de Andrade Maria Clara Caldas Soares Ferreira Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa Transcrição Paleográfica e Revisão das Transcrições: André Cabral Honor Cássio Bruno de Araujo Rocha Douglas Lima de Jesus Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva Fabiana Léo Pereira Nascimento Gabriel Afonso Vieira Chagas Gislaine Gonçalves Dias Pinto Igor Tadeu Camilo Rocha Leandro Gonçalves de Rezende Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres Luíza Rabelo Parreira Marcus Vinícius Duque Neves Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Mateus Rezende de Andrade Maria Clara Caldas Soares Ferreira Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa Apresentação: Eugênio Ferraz Prefácio: José Newton Coelho Meneses Projeto gráfico, diagramação, tratamento de imagens e capa Daniel Dutra Finalização Editorial (IOMG) Fabiana Tinoco, com a colaboração de Joicely Agenor Os textos e transcrições paleográficas contidos nesta obra estão licenciados sob uma Licença Creative Commons Atribuição - Não Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional. É permitido copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para uso não-comercial, desde que se atribua explicitamente a autoria e se indique os termos desta licença. Para ver uma cópia da licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/. Os direitos de uso das imagens aqui reproduzidas devem ser verificados junto às respectivas instituições de guarda. H897 Cadernos de Paleografia, Número 1 — Belo Horizonte : Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2014. 264 p. ISBN: 978-85-68687-01-7 Vários autores. 1. Paleografia — Discursos, ensaios, conferências. 2. Brasil — História. 3. Portugal - História. CDD 417.7 “Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade” Raul Seixas Dedicamos este livro ao Felipe Damasceno, que teria sonhado todos esses sonhos conosco. Agradecimentos Agradecer é uma tarefa difícil, especialmente quando podemos contar com con- tribuições de tantas pessoas e em tão variadas formas. Primeiramente, gostaríamos de agradecer àqueles que nos apoiaram desde o engatinhar do nosso projeto, quando tínhamos mais sonhos do que realidades: Centro Acadêmico de História (CaHis), Colegiado de Graduação, Programa de Pós-Graduação e Departamento de História e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FaFiCH) da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como o seu corpo docente, discente e técnico-administrativo. Fundamentais na gestação dessa iniciativa foram o Prof. Dr. Eduardo França Paiva e os colegas Douglas Lima e Felipe Damasceno (in memoriam), que no segundo semestre de 2009 iniciaram o grupo de estudos então denominado Paleografia e Análise Crítica de Documentos Manuscritos, que tanto nos inspirou. Foram também muito importantes no decorrer de nossa caminhada o Prof. Dr. José Newton Coelho Meneses, que coordenou o PPGHis durante a maior parte desse tempo e tanto nos estimulou em todos os nossos anseios e até no que nem ousávamos imaginar, de modo que não poderia ser outra pessoa a prefaciar este livro, o Prof. João Euripedes Franklin Leal e a Prof.ª Dr.ª Maria Helena Ochi Flexor, referências no campo da Paleografia no Brasil, que tão carinhosamente nos acolhe- ram e encorajaram a voar mais alto. Não podemos nos esquecer da equipe que orga- nizou o II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática — CBPD, momento a partir do qual a Oficina teve a oportunidade de ser conhecida para além do que nós, coordenadores, poderíamos imaginar naquela tarde de verão numa mesa da cantina em que nos reconhecemos como samideanos. Foram imprescindíveis no dia-a-dia da Oficina os frequentadores das nossas atividades, razão da nossa existência, bem como os convidados a partilhar suasexperiências nos nossos encontros, alguns dos quais nos brindaram com as reflexões encontradas neste livro. Somos igualmente gratos aos convidados e participantes dos eventos que promovemos e que tanto enriqueceram nosso aprendizado, assim como aos que nos proporcionaram a possibilidade de estender nossos diálogos na academia e fora dela. Muito nos alegra, ainda, ver florescerem e darem frutos outras iniciativas discen- tes com quem compartilhamos um ideal de construção solidária do conhecimento, dentre elas as Oficinas de Paleografia da UFJF e da UFOP, a Revista Temporalidades, o Encontro de Pesquisa em História da UFMG — EPHIS e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos — NIET, aos quais desejamos sempre sucesso e longa vida. Não seria possível concretizar este e outros sonhos sem a amistosa sintonia entre os membros da coordenação, sem nos esquecermos daqueles que nos deixa- ram para alçar outros voos. É muito recompensador o trabalho coletivo em todas as suas dimensões, aprendendo com cada tropeço e comemorando cada pequena conquista como se fosse a conquista do mundo. Ao nosso diagramador, que fraterna e generosamente nos presenteou com este belíssimo projeto gráfico, só nos resta desejar que ao longo de seu caminho não lhe faltem mãos amigas como as que ele nos estendeu. Registramos nosso agradecimento, ainda, aos arquivos que guardam a docu- mentação aqui reproduzida em fac-símile, a saber: Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Público Mineiro, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Setecentista de Mariana, Arquivo do IPHAN — São João del-Rei e Arquivo Municipal de Santa Bárbara. Finalmente, nosso muito obrigado à Imprensa Oficial de Minas Gerais e seu dedicado corpo de funcionários, que deram forma e matéria ao sonho da nossa primeira publicação. Muito nos honra o reconhecimento e apoio de tão prestimosa instituição, pioneira na difusão cultural em nosso estado. A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG Eugênio Ferraz Diretor-Geral da Imprensa Oficial de Minas Gerais Apresentação A Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, além de fomentar a história e a cultura de Minas, também cumpre o papel institucional de apoiar e divulgar o conhecimento em áreas importantes para a preservação de propagação de fazeres (e.g. o reaproveitamento de sobras de sua área industrial) e de saberes. Partindo dessa premissa, a Autarquia — que também construiu objetos para uso contínuo com restos descartáveis de carreteis e pedaços de papelão, sobras de madeira e aparas de papel — participou da produção da altruísta iniciativa intitu- lada Cadernos de Paleografia: Número 1. A obra se articula a partir da apresentação, transcrição e comentário de fontes manuscritas utilizadas pela Oficina de Paleografia, um projeto voluntário, coorde- nado pelos próprios alunos da Universidade Federal de Minas Gerais. Os capítulos que compõem esta publicação se originam de conferências apresentadas por con- vidados da Oficina, criada por alguns estudantes que sentiram a necessidade de buscar mais conhecimentos práticos no estudo de manuscritos antigos, e buscaram uma parceria para publicá-los. A participação da Imprensa Oficial nesta parceria com alunos e egressos da graduação e pós-graduação do Departamento de História da UFMG vem legar para a posteridade uma cultura e uma tradição que estava se perdendo, ficando esque- cida. Com a publicação, resgatamos toda essa bagagem que não pode ser deixada adormecida. Em adição a este trabalho gráfico, oportuno em testes de novos equipamentos, o Grupo propiciará a servidores da Imprensa Oficial curso e oficinas de paleografia, abertos a outros órgãos e a cidadãos interessados, conjugando, assim, a missão da Autarquia com a disseminação cultural, em um encontro de valores em benefício da sociedade. Aos membros do Grupo — e por extensão a seus professores, mestres que neles despertaram a paixão pelo tema — nossos mais efusivos parabéns pela profundi- dade, seriedade e respeito com que tratam a busca e disseminação do conhecimento. À Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, orgulha muito participar de um projeto dessa envergadura. Sumário José Newton Coelho Meneses Prefácio 15 A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG A Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente 21 André Cabral Honor A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas 39 Carmem Marques Rodrigues Os Portugueses e os Mapas: relações histórico- cartográficas 61 Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734) 73 Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva A censura literária em Portugal no Período Pombalino 93 Marileide Lázara Cassoli Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888 117 Carlos de Oliveira Malaquias Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX 145 Gusthavo Lemos Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra 173 Cássio Bruno de Araujo Rocha O estranho sodomita 195 Marcus Vinícius Duque Neves Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX 237 Lista de documentos Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva, ao rei [D. João V], sobre o procedimento dos freis Miguel da Assunção e Manoel de São Gonçalo Disponível no Arquivo Histórico Ultramarino, notação AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164 Data: 24 de setembro de 1726, página 51 Requerimentode José da Silva solicitando liberdade. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 06 Doc. 06 Data: 23 de janeiro de 1734, página 79 Representação da Câmara de Vila Rica informando da dificuldade em conseguir carcereiros. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 05 Data: 31 de julho de 1734, página 83 Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie um médico para pestar assistência aos presos. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 25 Data: 31 de setembro de 1734., página 87 Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, caixa 5, censura nº 55A. Data: 12 de junho de 1770, página 105 Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar, escravo de Affonso Augusto de Oliveira. Disponível no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Ação Cível. Códice: 448. Auto: 9680. Ano: 1883. Iº Ofício. Data: 15 a 25 de maio de 1883, página 131 Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do Nascimento e Antônio de Miranda Magro. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei.PC 28-05, 1835. Data: 6 de maio de 1835, página 157 Trechos do processo-crime de José Antônio Marcelhas e Ana Joaquina de Faria. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei. PC 04-09, 1843. Data: 1843, página 165 Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-160.Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de), Distrito de Calambau. 1856. Data: 1856, página 181 Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-159. Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de). 1855-1856. Data: 1855-1856, página 189 Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso Alvares. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 5846. Código de referência: PT/TT/ TSO-IL/028/05846. Data: 7 de julho a 7 de agosto de 1593, página 215 Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra da Tartaruga entre Capitão José de Aguiar LeiteMendonça Vasconcellos e sua mulher versus Eufrázio Pereira da Silva e outros. Disponível no Arquivo Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 — Embargos — Caethé — Santa Bárbara. Data: 6 de Junho de 1849, página 249 José Newton Coelho Meneses Professor Associado do Departamento de História da UFMG Prefácio Prefaciar este livro é antes de tudo uma alegria, além de uma honra dada a mim pelos alunos da Oficina de Paleografia do Curso de História da FaFiCH-UFMG. Alegria porque a edição é produto denotativo de uma experiência acadêmica dis- cente concreta e rica, em um tempo em que tais iniciativas são pouco estimuladas e, em decorrência, pouco concretizadas. A honra me faz sentir ainda mais feliz, des- tacado que fui entre meus colegas docentes para fazer essa apresentação, mas com a plena consciência de que outros o fariam melhor. No entanto, fui eu, dentre os incentivadores da iniciativa, o premiado com a escolha dos alunos. É, então, como um presente ganho, que assumo essa responsabilidade. A retribuição a ele é meu compromisso com a continuidade de meu estímulo ao trabalho da Oficina. O meu texto será curto. Os que lhe seguem são os que, verdadeiramente, mere- cem e precisam ser lidos. As iniciativas acadêmicas dos discentes são atividades que merecem maior valo- rização no meio universitário. O que dizer, então, de iniciativa discente integradora que se amplia no espectro dos vários cursos (Graduação, Mestrado e Doutorado), incorpora a experiência docente, dialogando com ela e, ainda mais, se estabelece como interdisciplinar? Esse tipo de ação universitária, que integra níveis pouco dis- postos à conjunção do ato cotidiano é, ainda, mais louvável e é dele que falamos nessa apresentação e que este livro apresenta como produto, de forma, a meu ver, original e inédita. É comum em nosso momento, no espaço da Universidade brasileira, uma cor- rida produtivista e, às vezes, tecnicista e competitiva que vem dificultando a valori- zação e a dedicação às iniciativas mais formadoras que, necessariamente, impõem Prefácio [16] necessidades de dedicação mais atentas ao cômputo amplo das partes que fazem a Universidade, seus corpos docente, discente e técnico-administrativo. Vivemos com- partimentadamente esse nosso cotidiano na Universidade e discutir essa questão é, aliás, proposta que não ganha muitos adeptos na academia. Como historiador, tento compreender esse momento e o entendo. Como profes- sor, busco aquilatar as propostas e os caminhos da formação universitária. Como pesquisador, quero dar ênfase às buscas instrumentais da pesquisa. Como cidadão, penso que a Universidade desempenha papel fundamental de aliar teoria e apreen- são do real. Mas não sou um indivíduo partilhado de forma estanque nessas instân- cias e faço escolhas que as tentam conciliar em uma complexa unidade intelectual e em uma difícil ação corriqueira na Escola. É a partir dessa tentativa de compreensão do nosso mundo e do nosso meio que avalio a experiência da Oficina de Paleografia dos estudantes do Curso de História da UFMG (Graduação e Pós-Graduação). Adiantando uma síntese, ela é, para mim, atividade rica para a formação disciplinar, e é ação acadêmica integradora. A Paleografia tem importância fundamental para a pesquisa histórica e, neste sentido, serve a várias disciplinas para além da História. É hoje, penso eu, mais fun- cional e pragmática, sem perder seu caráter teórico e compreensivo acerca da escrita e de sua inserção temporal nos processos sócio-históricos. A função pragmática de avaliação da autenticidade documental e da interpretação-tradução da linguagem antiga constituíram o lugar do paleógrafo e da Paleografia no mundo moderno. Ela, sobretudo, apresenta-se, para os estudiosos que fazem dela uma prática no pro- cesso de compreensão dos escritos antigos e de sua transcrição, um instrumento de memória poderoso e eficaz na guarda do feito original da escrita. Eficaz porque se presta, em sua essência, como instrumento analítico do documento histórico, atento à sua datação, sua procedência, à sua autenticidade e aos aspectos gráficos de sua construção. A leitura paleográfica é prática plena e exemplar de uma sabedoria que carac- teriza o saber científico da modernidade. Como ele, é umbilicalmente ligada a uma utilidade humanista precípua: desvelar o mundo através da manipulação cria- tiva e criadora desse próprio mundo, conhecer o homem pelos feitos do próprio homem. Desvendar o humano pela escrita do homem é a raiz da Paleografia. Ela é um dos instrumentos mais poderosos da ciência moderna, ciência essa que trata o aporte instrumental como elemento primordial do próprio saber teórico da ciência. Instrumentalizar para investigar e investigar a instrumentalização são ações distin- tas e diversas, mas se igualam em importância no processo do saber. Prefácio [17] Como utilidade primordial, a Paleografia se apega a objetivos que são, também, específicos. Daí a sua especialidade como “disciplina”: atender, por meio de parâ- metros estudados, aos vários saberes que precisam da escrita antiga e às diversas formas de acessar essa escrita. Neste livro uma das formas possíveis, a fac-similar, que não constrói uma mediação entre o leitor e o texto antigo, é acrescida. No entanto, privilegia-se a transcrição do texto em sua forma estritamente paleográ- fica, onde a intervenção do autor respeita todos os aspectos testemunhais da escrita original. Os autores das transcrições, após apresentá-las, passam ao exercício mais pleno da mediação, viram intérpretes, exercitam a prática historiográfica, mostram- -se historiadores. O livro que o leitor tem em mãos, quando observo sua proposta e procuro entendê-la, busca a técnica paleográfica e a sua compreensão, sua aplicação na interpretação historiográfica. Os textos, ainda, objetivam discutir, mesmo que mini- mamente, os suportes físicos, materiais dos conteúdos textuais antigos. Apresentam a experiência de uma oficina de leitura paleográfica, mesmo que não mostrem todas as atividades da Oficina que compreendem o levantamento, a catalogação, a higie- nização, a microfilmagem, a fotografia, a digitalização, além, é claro, do próprio exercício de transcrição, evidenciado nos “capítulos” que se seguem. O livro, tam- bém, pode denotar pouco atividades como a discussão acerca dos processos de tra- tamento de imagens e de preservação das fontes, mas o essencial é que evidencia as técnicas de transcrição, de acordo com a metodologia da disciplina paleográ- fica. Além disso ele denota claramente a importância da leitura documental para o historiador. Vem de muito tempo o valor da prática paleográfica, mesmo muito antes de a Paleografia ser vista como uma disciplina. A prática de historiar na Idade Média já apresentava transcrições, traduções, interpretações de alfabetos, coleções docu- mentais escritas de tempos anteriores, utilizadas para a compreensão das realidades passadas. O nascimento da Paleografia moderna, no entanto, costuma ter seu marco cronológico plantado no século XVII. Atribui-se esse surgimento a uma necessidade jurídica de diferenciar documentos falsos e verdadeiros, para dirimir as disputas em torno de direitos civis e eclesiásticos, no âmbito dos tribunais de justiça. Seria um tempo onde a Paleografia e a Diplomática se confundiriam e apenas se iniciava uma preocupação em configurá-la como uma disciplina. Neste contexto, o embate religioso entre jesuítas e beneditinos acerca da auten- ticidade documental teria tido importância fundamental e fundadora. Em Antuérpia, os padres da Companhia de Jesus se dedicaram a construir uma coleção de textos sobre as vidas de homens santos, os Acta Sanctoru. O Jesuíta Jean Bolland (1596- 1665) foi o responsável pelos primeiros volumes dessa coleção e os “bollandistas” Prefácio [18] seguiram seus passos. Um deles, o padre holandês Daniele Van Papenbroek (1628- 1714) fez pesquisas em vários mosteiros pela Europa e, preocupado com a auten- ticidadede documentos, publicou, em 1675, como prefácio do segundo volume dos Acta Sanctorum, o texto Propylaeum antiquarium circa verí ac falsi discrimen in vetustis membranis (Princípios introdutórios para a discriminação entre o ver- dadeiro e o falso nos documentos antigos). Essa crítica diplomática colocou em evidência dúvidas sobre a autenticidade de documentos de alguns mosteiros benedi- tinos na França, principalmente os da Abadia de Saint-Germain-des-Près, nos arre- dores de Paris, pondo sob dúvida uma tradição secular beneditina. A resposta desta ordem vem por um de seus membros, Jean Mabillon (1632-1707). Ele publicou, em 1681, De re diplomatica. Tal obra propugna princípios e refuta argumentos de Papenbroek, sendo muito bem aceita e elogiada até pelo próprio padre jesuíta criticado. São princípios básicos da Diplomática que, na sua parte final propõe uma classificação sistemática das escritas, considerado como um primeiro tratado de Paleografia, sem, no entanto, utilizar essa palavra. Ela é introduzida na obra de outro beneditino, Bernard Montfaucon (1655-1741), em seu livro Paleographia Graeca sive de ortu et progressu Litterarum, de1708. Apesar disso, tem-se Mabillon como o pai da Diplomática e da Paleografia modernas. Tal atribuição vem do fato de que sua obra estimulou o aparecimento de vários outros textos que dialogaram com ele e aprimoraram as regras paleográficas na Inglaterra, Espanha, Alemanha e Itália. Na Itália, afinal, é que Scipione Maffei (1675-1755), a partir do estudo de códices de várias épocas da Biblioteca de Verona, publica, em Mântua, em 1727, o livro Istória Diplomática che serve d’introduzione all arte critica en tal matéria, base de uma nova classificação de textos antigos. O final do século XVII e o início do XVIII foi um tempo, portanto, onde se pode sediar o início da Paleografia disciplinar moderna. A partir daí, estudos paleográ- ficos foram feitos e refeitos com uma frequência constante e rica em proposições disciplinares, começando, inclusive, a comporem cátedras nas universidades euro- peias. Em Gottingen, na Alemanha, por exemplo, em 1765, o professor Johann Christophe Gatterer (1727-1799), construiu uma classificação das escritas, inspi- rada em Lineu, onde dispunha uma hierarquia de escritas em regna, classes, ordines, series, partitiones, genera e species. É ao final do século XVIII, ainda, que surgem as Escolas Superiores de Paleografia. São exemplos delas, na Itália (Bolonha, Florença e Milão, em 1765), na França (École Royale des Chartes), na Espanha (Escuela Superior de Paleografia y Diplomática, em 1838), na Áustria (Instituto de Paleografia, em 1854) e na Inglaterra (Paleographical Spciety, em 1873). Neste tempo, assim, a Paleografia é vista como uma ciência. Prefácio [19] No final do século XIX, a fotografia surgiu como novo instrumento importante para a Paleografia e documentos começaram a ter sua reprodução em fac-símiles apresentadas ao público interessado. Nova forma surgiu para servir aos estudiosos e preservadores das escritas, e adquiriu grande importância em todo o século XX. Neste último século, então, a Paleografia, menos disciplinar e mais como técnica popularizada e pragmática, foi se incorporando aos estudos universitários de várias formações e ganhou força nas pesquisas históricas, o que se verifica até nossos dias. Esse comentários contextuais acima, mesmo que superficiais e rápidos, a título de apresentação ao leitor de outros campos que não os da História, nos servem para aquilatar a importância da iniciativa deste livro e sua fundamentação na busca de tratar o documento escrito com uma crítica criteriosa e com rigor investigativo. A complexidade da leitura paleográfica ultrapassa a simplicidade da simples busca pela autenticação. Ela é parte fundamental da crítica ampliada às fontes escritas. É instrumento sem o qual o historiador que utiliza tais fontes não investiga. O conjunto dos documentos e dos textos interpretativos aqui apresentados por graduados, mestrandos e mestres, doutorandos e doutores, nos mostra uma varie- dade documental interessante. Processos crimes ou embargos, acórdãos ou autos de censura, cartas ou processos de liberdade são substratos daquilo que verdadei- ramente tratamos como fontes. Repertórios ricos de dados que permitem aos auto- res uma exploração criativa de informações, para transformá-los em interpretações plausíveis e em compreensões de um real que tenta escapar de nós. De arquivos nacionais ou de acervos arquivísticos locais, são escritas de outros tempos que per- mitem uma história viva, pulsante de presentes e de devires. Os autores dos textos que seguem, André Cabral Honor, Carlos de Oliveira Malaquias, Cássio Bruno de Araujo Rocha, Emilly Joyce de Oliveira Lopes Silva, Gusthavo Lemos, Marcus Vinícius Duque Neves, Marileide Lázara Cassoli e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, atentaram por atender ao objetivo deste livro e foram feli- zes ao construírem interpretações que evocam as possibilidades dos documentos transcritos, optando pela perspectiva e problema definidos. Os textos são claros e sintéticos para atender à demanda da Oficina. A despeito disso, são claramente pro- duzidos com rigor e capricho, com vontade didática e criatividade reflexiva. Precede estes textos, diríamos, analíticos documentais, um necessário capítulo escrito a várias mãos pelos coordenadores da Oficina: Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Vieira Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Camilo Rocha, Leandro Gonçalves de Rezende, Ludmila Torres, Luíza R. Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira, Mateus Frizzone, Mateus Rezende de Andrade e Rodrigo Paulinelli. “A Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente” aponta tudo o que poderíamos relatar sobre a iniciativa dos alunos. Historiam o trabalho da Oficina, justificando Prefácio [20] sua existência, refletem sobre os documentos escritos e seu papel na construção da narrativa histórica e, por fim, apresentam o pensamento do grupo a respeito da Paleografia no ensino de História. A edição deste livro apresenta uma experiência de oficina paleográfica desen- volvida por estudantes que valorizam esse saber-fazer e que o experimentam em seu cotidiano de pesquisa histórica. Saber, prática e uso cotidiano são aliados poderosos na consistência do que vai aqui exposto ao leitor. Ele não mostra tudo que esses estudantes vivenciam na experiência acadêmica da Oficina de Paleografia. Mais que técnicas e pragmatismos, a Oficina exercita o rigor no trabalho investigativo, a capacidade de abstração e as possibilidades problematizadoras dos objetos docu- mentados pela escrita. Ao leitor atento, é salutar ler as páginas que se seguem com a humildade do aprendiz. Verá lições de jovens historiadores. Paris (neste momento fria, mas com céu azul, depois de 24 horas de escuridão e chuva), 13 de outubro de 2014. A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG1 a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente2 Uma iniciativa discente pioneira No ofício do historiador, a leitura e a transcrição paleográfica são fundamentais, primeiramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto às fontes de pesquisa, sem depender da publicação de transcrições e/ou comentários. Essas habilidades podem, ainda, se constituir como fonte de renda adicional ou principal para aqueles que as dominam. No entanto, a leitura paleográfica perma- nece como uma espécie de nicho, e são relativamente poucos os historiadores por formação que se aventuram nesse campo. É muito frequente que o trabalho com as fontes originalmente manuscritas se dê a partir de publicações impressas ou que a fase da pesquisa relativa à consulta às fontes seja “terceirizada”, deixada a cargo de estagiários e bolsistas ou de prestadores de serviço mais ou menos especializados. É difícil não atribuir esse descompasso entre a importância da leitura paleográfica na 1. ANDRADE, M. R.; CAMILO ROCHA,Igor Tadeu; CHAGAS, G. A. V.; COSTA, R. P. A.; FERREIRA, Maria Clara C. S.; FRIZZONE, M. F. R.; LÉO, Fabiana; LIMA, Douglas; PARREIRA, L. R.; PINTO, G. G. D.; REZENDE, L. G.; TORRES, L. M. P. O.. 2. Uma versão estendida deste texto foi submetida ao II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática, ocorrido em junho de 2013, pelos coordenadores Douglas Lima de Jesus, Fabiana Léo Pereira Nascimento, Gabriel Afonso Vieira Chagas, Igor Tadeu Camilo Rocha, Leandro Gonçalves de Rezende e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, com o título “O ensino da leitura paleográfica na Oficina de Paleografia — UFMG: relatos de uma experiência discente”. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [22] pesquisa histórica e o domínio das habilidades a ela relativas pelos historiadores a uma patente lacuna nas grades curriculares dos cursos de graduação, associada à quase inexistência, pelo menos de maneira mais sistemática, de iniciativas extracur- riculares nesse sentido. Em uma breve pesquisa sobre a existência de iniciativas de ensino de paleografia estruturadas nos cursos de História de outras instituições realizada no ano de 2013, buscaram-se informações sobre os cursos de graduação em História oferecidos em Belo Horizonte e nas nove universidades federais existentes no estado de Minas Gerais3. O trabalho se deu, quando possível, através do contato com alunos, ex-alu- nos e docentes; além disso, foram feitas pesquisas nos currículos e nas disciplinas ofertadas, a partir de informações disponíveis nos sites dessas instituições. O fato de não encontrar resultados positivos não significa, necessariamente, a inexistência de tais iniciativas. Porém é possível supor o caráter efêmero e, sobretudo, a baixa divulgação e circulação dessas experiências. Iniciativa de uma dupla de alunos do Departamento de História da UFMG que compartilhavam dificuldades e experiências na transcrição paleográfica entre si, o grupo de estudos então denominado Paleografia e Análise Crítica de Documentos Manuscritos surgiu no segundo semestre de 2009 como um grupo de ajuda mútua entre aqueles que trabalhavam ou pretendiam trabalhar com manuscritos, princi- palmente dos séculos XVIII e XIX, e se viam às voltas com o desafio de se capacitar, de maneira autodidata, para a leitura de suas fontes de pesquisa. Naquele momento, outros 6 alunos tiveram seu primeiro contato com documentação digitalizada, con- tato este que se revelou bastante profícuo, uma vez que a totalidade daqueles alunos de alguma forma passou a se envolver em atividades de pesquisa em manuscritos. Com o fim do semestre letivo, a incompatibilidade de horários e sobrecarga de tare- fas acadêmicas impossibilitou a continuidade do projeto, que, no entanto, permane- ceu vivo como memória de uma experiência modesta, porém bastante frutífera, de aprendizagem construída de maneira colaborativa. No início de 2012, a iniciativa foi retomada. Hoje a coordenação é formada por seis alunos do mestrado, um do doutorado, quatro da graduação e um egresso; desses, cinco são coordenadores desde o início. No seu formato original, ainda que com reuniões abertas ao público, se espe- rava uma participação pequena de novos interessados. O segundo nome do grupo 3. Foram pesquisados os currículos dos cursos de História das seguintes instituições: PUC MG, Uni-BH, Estácio de Sá BH, UFJF, UFSJ, UFV, UFU, UFTM, UNIMONTES, UNIFAL, UFVJM e UFOP. Vale ressaltar que o currículo do curso de História da Uni-BH prevê uma disciplina de paleografia, porém, segundo informações de docentes, tal disciplina já não é ofertada há algum tempo. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [23] corrobora com essa dimensão reduzida que fora planejada: Oficina Permanente de Paleografia. O fato de a palavra “permanente” estar presente na denominação aponta para uma vontade de consolidar o projeto de maneira duradoura — ven- cendo os primeiros encontros e tentando superar a efemeridade de parte conside- rável dos grupos de estudo criados até então — mais do que para o projeto, que acabou se realizando preterintencionalmente, de ampliação do público-alvo e diver- sificação das atividades. É importante ressaltar aqui que o público recebido extrapolou muito as expec- tativas iniciais, não só na quantidade, mas também em sua variedade. Inicialmente essa variedade se deu dentro do próprio curso de História, com participantes de diversos períodos, muitos sem nenhum contato com documentação manuscrita. A grande procura das atividades da Oficina por indivíduos cuja experiência na lei- tura documental e paleográfica tendia a zero exigiu uma contínua reelaboração de metodologia e objetivos. Essa reestruturação ainda não chegava ao oferecimento de um curso de paleografia propriamente dito, mas na inserção desses interessados nos debates do grupo — ainda compreendido como de ajuda mútua, apesar dessa primeira ampliação — dispensando uma parte do tempo das reuniões para discu- tir e trabalhar questões muitas vezes já tidas como conhecimento comum para o grupo fundador. Rediscutir esses aspectos de forma diluída ao logo dos encontros não foi, entretanto, penoso e enfadonho, e sim muito enriquecedor. Resultado disso foi a incorporação, de maneira permanente, dos componentes historiográficos e contextuais relacionados aos manuscritos trabalhados, que foram ganhando, como veremos adiante, um espaço maior nas discussões semanais. A Oficina passou, gradualmente, a se consolidar como um algo a mais do que um grupo de estudos, tornando-se um projeto de atuação cada vez mais multiface- tada e plástica e, talvez por isso, não definível por nenhuma das nomenclaturas tra- dicionais para iniciativas extracurriculares no âmbito da universidade. A coordena- ção se estabeleceu propriamente como um grupo de estudos que planeja, estrutura e oferece um curso com componentes teóricos, historiográficos e práticos, visando promover com seu público treinamento na leitura elementar e crítica e na transcri- ção de fontes manuscritas modernas em língua portuguesa. Ao ampliar as ativida- des de modo a incluir público externo à universidade, de uma maneira inicialmente tímida, mas mais sistemática nos projetos futuros, é possível dizer que a Oficina vem se tornando uma espécie de guarda-chuva de projetos menores, atuando, assim, tanto no nível da pesquisa como do ensino e da extensão4. 4. As atividades semanais da Oficina são gratuitas e abertas a todo o público interessado. O grupo também oferece minicursos em eventos acadêmicos, buscando sempre novas parcerias para ofertá- los à comunidade em geral. Atendendo à solicitação de alguns professores do Departamento de a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [24] Vale acrescentar ainda que o alto índice de interessados se deu pelo sucesso da divulgação oral, sendo importantíssima a contribuição de alguns professores do Departamento de História da UFMG. Além disso, a coordenação da Oficina utilizou extensamente as mídias sociais, começando pela internet, com a criação do site e da página na rede social Facebook5 e a maciça divulgação nesses meios, assim como a utilização das mídias institucionais da Universidade Federal de Minas Gerais. Para maximizar o alcance, era necessário simplificar o nome do projeto, buscando o seu enraizamento entre o público alvo. Dessa forma, chegamos à nossa terceira e última designação, Oficina de Paleografia — UFMG. A supressão do termo “per- manente” refletiu a constatação de que a iniciativa havia extrapolado seus objetivos e desafios iniciais, gerando mais confiança quanto à superação do antigo risco de desintegração. A respeito da explicitação do recorte linguístico-temporal da atuação da Oficina (do termo genérico “paleografia”, contido na denominação do projeto, ao um pouco mais específico “paleografia portuguesa moderna”, que passou a constar na descri- ção da iniciativa tanto nos documentos de apresentaçãodo projeto à universidade e seus interlocutores como nos canais de comunicação com o público-alvo) cabe ressaltar que ela é resultado de pelo menos 3 processos: (a) a consciência, cada vez mais clara, da extensão do campo do conhecimento que pode ser denominado Paleografia, em sua abrangência espaço-temporal e cultural, em seu caráter cien- tífico e teórico-metodológico próprio e em seus múltiplos diálogos e interinfluên- cias com os mais variados campos do saber humano; (b) a percepção cada vez mais nítida da limitação da capacitação adquirida até então pelos coordenadores (baseada, como discutiremos adiante, no autodidatismo) combinada a uma limita- ção também da disponibilidade de tempo e materiais de estudo para acelerar essa capacitação, o que levou a definir objetivos diferenciados para o curto, o médio e o longo prazo e (c) a necessidade, diante do aumento e diversificação exponenciais do público interessado, de recortar e explicitar melhor a atuação possível, dentro da disponibilidade de materiais e capacitação da coordenação, no curto e médio prazo. História e da Escola de Belas Artes da UFMG, ministrou aulas de introdução à paleografia em suas respectivas disciplinas de cursos de graduação. Finalmente, em 2014, desenvolveu um projeto paralelo no Colégio Pedro II, em Belo Horizonte, com alunos de Ensino Médio, projeto este que tem a perspectiva de se estender a outras instituições de educação básica da região. 5. Os endereços são: <http://abre.ai/oficinadepaleografia> e <http://facebook.com/ oficinadepaleografia>. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [25] História e documentos6 Pensando a História como uma narrativa que se pretende ao real por uma repre- sentação do acontecido, construída a partir de vestígios do passado7, consideramos então que o “documento” — em uma perspectiva alargada — é fundamental na produção dessa narrativa. A pesquisa documental fornece ao historiador elementos imprescindíveis de fundamentação empírica necessários para que sua pesquisa seja conduzida sem que se perca uma noção do real, separando, dessa forma, a História da narrativa literária. Como nos diz Certeau8, muito além de uma narrativa, a ope- ração historiográfica é também uma prática e uma instituição. O passado não é um dado, mas um produto da História, que depende de uma prática, dos arquivos, da documentação, da fabricação desses documentos e sua constante reorganização, que, por sua vez, possui técnicas específicas e bem definidas. Essa necessidade da prova, de uma ligação com o real, com o acontecido — que, mesmo sendo um objetivo inalcançável, é um objetivo eterno — é suprida pelos vestígios do tempo passado que chegaram ao presente. No entanto, é sabido e muito discutido que se deve considerar todo documento como ao mesmo tempo verdadeiro e falso: verdadeiro enquanto produto de uma época, falso enquanto por- tador de uma intencionalidade que não pode ser deixada de lado. Segundo Carlo Ginzburg, “os historiadores [...] têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício, que é a trama do nosso estar no mundo”9. 6. A nomenclatura “documento” remete, inicialmente, ao escrito produzido pelo poder estabelecido e suas instituições oficiais. Na pesquisa histórica contemporânea, torna-se mais adequada a denominação de “fonte”, que aponta tanto para uma variação do suporte e forma, incluindo os vestígios não escritos em toda a sua multiplicidade (filmes, canções, imagens, novelas, etc.), como para uma extensão, dentro do próprio universo da cultura escrita, daquilo que pode ser considerado como de interesse para os estudos históricos. Dessa forma, também escritos de natureza privada e informal, como cartas, bilhetes, diários, contabilidade de propriedades privadas, dentre outros exemplos, passaram a ser, ao lado dos documentos oficiais, objeto de pesquisa e estudo. “Documento” e “fonte” não se confundem, por serem termos que se referem a compreensões diferentes do fazer histórico. No entanto, por um certo uso consagrado do primeiro termo, ele permanece sendo utilizado de uma maneira ressignificada. No presente texto, exceto quando se referir a contextos anteriores da ciência histórica, os termos “documento” e “manuscrito” deverão ser compreendidos nesse contexto alargado do que seja uma fonte histórica. 7. GAY, Peter. O Estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Cia das Letras, 1990. passim. 8. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2006. 9. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.14. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [26] Atentando-nos mais para a questão do documento, não é possível deixar de mencionar a tão conhecida e importante discussão de Jacques LeGoff10 sobre a necessidade de se tratar o documento como monumento11: O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monu- mento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá- -lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. [...] O documento é uma coisa que dura, que fica, e o testemunho, o ensina- mento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históri- cas para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente — uma imagem de si próprias12. Sendo assim, o documento histórico pode ser lido como um produto de um determinado contexto que o forjou de modo a passar, conscientemente ou não, um rico campo de relações, ideias e representações sobre si à posteridade. Fundamental ao ofício do historiador, o documento é um objeto de disputa em torno de uma ampla e complexa construção de discursos que lhe atribuem sentidos mutáveis ao longo do tempo. É, frequentemente, objeto de polêmicas. Tal questão acerca da natureza monumental dos documentos adquiriu novos contornos na medida em que surgiram correntes que valorizavam a autenticidade dos documentos e desen- volveram mecanismos de verificação da mesma. Uma crítica entre a ligação do discurso ao poder assumiu novas feições na Idade Moderna, sobretudo no contexto das Reformas religiosas ocorridas a partir da pri- meira metade do século XVI. Combater princípios de autoridade defendidos no discurso eclesiástico contrarreformista, reforçado e difundido após o Concílio de Trento (1545-63), tornou-se um desafio em diversos campos do pensamento do período. Propuseram-se a esse combate, por exemplo, Erasmo de Roterdã e Rabelais, precedidos pela perícia filológica dos humanistas italianos desde o século XIV. Um célebre exemplo disso foi o de Lorenzo Valla (1407-57), que examinou documen- tos medievais e desmentiu a versão canônica da doação das terras vaticanas que o Imperador Constantino teria feito ao Bispo de Roma. A sua análise linguística 10. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 2010. 4ª reimpressão. p. 525 — 541. 11. Le Goff, a princípio, caracteriza o monumento como um sinal do passado ligado ao poder de perpetuação das sociedades históricas, que raramente é de papel; enquanto o documento tem um papel justificativo, de prova, muito mais objetivo. 12. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. p.536-538. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [27] demonstrou que o latim do diploma de doação era “bárbaro”; um texto forjado, portanto, cuja língua não correspondia ao estilo oficial romano do século IV13. Uma noção similar de documento como representação fidedigna do passado foireto- mada séculos depois pela História metódica dita positivista, importante no século XIX no sentido da afirmação da História como campo das ciências14. Mudanças nos paradigmas historiográficos ocorridas entre o último quartel do século XIX e o início do século XX alteraram de maneira dramática a crítica do his- toriador em relação às suas fontes, tendo em vista dimensões que não eram aborda- das de maneira muito direta anteriormente. Nota-se que a noção de documento se ampliou muito com a Escola dos Annales15, o que não significou, de forma alguma, o abandono do documento escrito, sequer a perda de importância do mesmo. Mudou-se muito a forma de ver o documento como prova fidedigna do ocorrido no passado. A crítica documental passou da verificação da autenticidade para uma verificação dos explícitos e implícitos, da já mencionada consideração de que todo documento é falso e verdadeiro. A expansão da ideia de documento e a possibili- dade de cruzamento de diversas fontes — escritas ou não — foram fundamentais na reformulação de sua crítica. Considerando os paradigmas atuais da pesquisa histórica, com o surgimento de correntes como as da história das mentalidades e da micro-história, o falso torna-se um objeto de pesquisa e interesse do historiador, na medida em que dialoga com ideias e interesses dos atores envolvidos na produção do documento. Como exemplo, podemos voltar à questão de Valla e a “Doação de Constantino”, da qual Ginzburg destaca que no medievo uma falsificação como esta dialogaria com aquilo que nesse contexto era chamado de piae fraudes, no caso, documentos e relíquias forjadas, com datação falseada de forma a parecer mais antiga, conferindo-lhes uma legitimidade em torno de sua antiguidade. Ainda que 13. Ver o ensaio de Renato Janine Ribeiro, “Lorenzo Valla e os inícios da análise de texto”in.: A última razão dos reis: Ensaios sobre filosofia e política. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Retomando a questão da “doação de Constantino”, refutada por Lorenzo Valla, ver Carlo Ginzburg em History, rhetoric, and proof. Lebanon: University Press of New England, 1999. 14. REIS, José Carlos. A história metódica dita positivista. In: História: entre a filosofia e a ciência. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 15-32. 15. Ocorre uma incorporação dos documentos não escritos, assim como os não oficiais no fazer historiográfico, assim como uma mudança de enfoque do historiador que passa do fato ao contexto, abrindo campos antes não explorados de análises e de objetos de estudo, assim como novas fontes que incluem cartas, crônicas, literatura, entre outros, assim como a possibilidade de serialização das fontes históricas. Ver em REIS, José Carlos. O programa (paradigma?) dos Analles ‘Face aos Eventos’ da História. In: ______. História: entre a filosofia e a ciência. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 67-106. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [28] baseadas em informações falsas, seriam verdadeiras em ideia, pois buscavam inspi- ração na verdadeira religião16. Algo similar encontra-se muito posteriormente, no ocaso do século XIX, acerca da questão dos “Protocolos dos Sábios de Sião” (1897). Tais protocolos teriam sido publicados nesse período em diversos locais da Europa, da França à Rússia, num tom de denúncia sobre uma suposta reunião acontecida em 1807, na Basiléia, em que um grupo de sábios judeus e maçons teriam elaborado um documento deta- lhando um plano de dominação mundial. O mesmo teria sido descoberto pela polí- cia secreta do Czar Nicolau II, da Rússia, em 1897, e fora traduzido para vários idiomas, alcançando grande circulação nesse período apesar de trazer um conteúdo um tanto inverossímil. Analisando as obscuras origens dos protocolos na produção francesa do Diálogo entre Montesquieu e Maquiavel (1864), atribuído a Maurice Joly, Ginzburg atribui a grande difusão dos “Protocolos” ao sentimento antisse- mita que crescia durante esse período no continente europeu e de cujo conspiracio- nismo, mais tarde, o nazifascismo se apropriaria a fim de legitimar suas políticas de segregação17. Torna-se necessário frisar que, embora tenham sido apresentadas diversas mudanças e polêmicas, além da ampliação significativa de objetos que podem ser considerados e analisados como sendo fontes com valor histórico, escritas ou não, os manuscritos ainda ocupam posição de destaque na análise histórica. Isso porque eles foram produzidos por praticamente todas as sociedades humanas e também na maior parte dos períodos históricos, proporcionando, dessa forma, vestígios para que sejam analisados pelos historiadores do presente. A ampliação do acesso às fontes como subsídio à prática historiográfica Ao longo do século XIX houve na Europa a preocupação de reunir e publi- car enormes corpi documentais para subsidiar o estudo de épocas, países, regiões e, até mesmo, instituições. Em um contexto marcado, entre outras características, pela emergência dos nacionalismos, esse tipo de divulgação visava ocupar um papel importante no processo de interpretação e construção das histórias e identi- dades nacionais. Não se deve esquecer, também, que muitas daquelas publicações se inseriam em grandes correntes de pensamento que pregavam a necessidade da 16. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo — Sobre a pré-história francesa dos Protocolos. In: ______. O fio e os rastros: o verdadeiro, o falso e o fictício, p. 202. 17. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo, p. 202-6. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [29] comprovação científica. A produção de conhecimento histórico, como parte inte- grante do seu próprio tempo, não permaneceu incólume diante daquela realidade. Philippe Ariès destaca que, naquele contexto, a publicação e crítica dos docu- mentos era uma atividade desenvolvida paralelamente com a tentativa de produzir uma “história viva”18. Mais do que somente trazer a público a documentação antiga, percebe-se a necessidade de realizar sua contextualização histórica e de explorar suas possibilidades enquanto fontes para o historiador, ainda que tais perspectivas fossem bastante diferenciadas da visão historiográfica atual. Le Goff observa que a maior parte das grandes coleções de documentos do século XIX foi concebida sob o título de Monumenta, denominação associada à ideia de monumento. Em um tempo no qual algumas pessoas entendiam os monumentos como meios para demonstrar “as raízes mais profundas e mais vivas” da ordem social, a documentação antiga passou a ser vista como repositório das memórias históricas19. A Monumenta Germaniae Historica é uma das obras mais emblemáti- cas dessa categoria de publicações. Seu primeiro volume foi lançado em 1826 pela Sociedade Histórica Alemã (Gesellschaft für Deutschlands ältere Geschichtskund). A coleção prossegue suas edições até hoje e já possui mais de 300 volumes lançados20. Embora não possua a designação de Monumenta, a Collection de documents inédits sur l’histoire de France (Coleção de documentos inéditos para a história da França), divulgada inicialmente pelo então ministro da instrução pública, François Guizot, a partir de 1835, também representa uma ideia de monumentalização dos documentos. Na apresentação que fez do projeto ao rei, Guizot ressaltou que durante anos “homens de ciência rara” exploraram vastos conjuntos de manuscri- tos resguardados por arquivos e bibliotecas da França. Com o passar do tempo, a busca, inicialmente aleatória, revelou documentos que eram verdadeiras riquezas históricas esquecidas. A publicação da Collection de documents seria uma forma de integrar os esforços, até então desconectados, em uma grande obra de abran- gência nacional para revelar desde a história das cidades até a história de ideias e costumes21. 18. ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 213. 19. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p. 537. 20.Informações disponíveis em: <http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brepolis_MGH_EN.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. 21. GUIZOT, François. Rapports au Roi et pièces: Collection de documents inédits sur l’histoire de France. Paris: Imprimerie Royale, 1835, p. 3-9. Disponível em: <http://archive.org/details/ collectiondedocu00franuoft>. Acesso em: 28 de abril de 2013.. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [30] Outra coleção que não leva o nome de Monumenta, mas que também se norteia pelo ideal de reunir uma ampla gama de documentos relativos a um período his- tórico e a uma determinada região, foi publicada na Inglaterra entre 1858 e 1911. Os 251 volumes das Chronicles and memorials of Great Britain and Ireland during the Middle Ages (Crônicas e memoriais da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade Média) são frutos do trabalho de arquivistas e historiadores reunidos no Public Record Office. A obra acabou por extrapolar os limites temporais registrados no título e divulgou documentos produzidos durante a Idade Moderna22. Em Portugal, foi publicada a partir de 1856 a Portugaliae Monumenta Historica, dirigida por Alexandre Herculano como representante da Academia das Ciências de Lisboa. A obra seguiu o modelo da Monumenta Germaniae Historica, que foi a grande referência para todos os empreendimentos semelhantes ao longo do século XIX. Na apresentação, Herculano constatou que a preocupação em inventariar e publicar documentos históricos era um esforço perceptível nos ambientes acadêmi- cos de vários países da Europa na época. Ao demonstrar a importância desse tipo de publicação, o organizador da coleção, com uma argumentação que lembra a de Guizot, afirmou que todos os dias eram desenterrados do “pó das bibliothecas e dos archivos monumentos desconhecidos”23. A visão do historiador como um cien- tista que resgata das estantes do esquecimento vestígios do passado e estabelece sua interpretação crítica de modo a modificar, corrigir ou confirmar versões historiográ- ficas foi um elemento presente em quase todas as iniciativas que se dedicaram a levar a cabo as Monumentae. O ponto de vista de Herculano serve ainda para confirmar o quanto era comum o referencial que igualava os documentos aos monumentos. A organização de Monumentae prosseguiu ao longo do século XX. A partir de 1952 foi publicada em Lisboa por António Brásio a Monumenta Missionaria Africana, conjunto de fontes considerado referencial para a pesquisa sobre a atua- ção de missionários católicos nas possessões portuguesas na África entre os sécu- los XV e XVIII. Apesar de se dedicar principalmente a assuntos religiosos, essa Monumenta também possui transcrições de documentos administrativos, relatos de viagem e correspondências24. Em 1960, por ocasião do quinto centenário de morte 22. SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 335-336. 23. COELHO, Maria Helena da Cruz. Alexandre Herculano: a história, os documentos e os arquivos no século XIX. Revista Portuguesa de História, 42, Coimbra, 2011, p. 78-80. Disponível em: <http://www.uc.pt/chsc/recursos/mhcc/mhcc_rph42.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. Toda a trajetória que levou à publicação da Portugaliae Monumenta Historica, assim como o panorama historiográfico da época em Portugal, são muito bem detalhados nesse artigo. 24. CORREIA, Stéphanie Caroline Boechat. O reino do Congo e os miseráveis do mar: O Congo, o sonho e os holandeses no Atlântico (1600-1650). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [31] do Infante Dom Henrique, se iniciou a publicação da Monumenta Henricina. Esta coletânea se estendeu em 15 volumes editados até 1976 e se dedicou a coligir docu- mentos diplomáticos e narrativos de modo a subsidiar as pesquisas em torno de D. Henrique e das navegações portuguesas. A publicação reúne fontes que vão do século XII ao XVII25. No final do último século foi lançada a Portugaliae Monumenta Africana que reuniu documentos custodiados em arquivos em Portugal e Espanha com objetivo de oferecer novas alternativas à história eurocêntrica da África. Seus quatro volu- mes foram publicados entre 1993 e 2002 e representam o grande trabalho cole- tivo desenvolvido por quase trinta anos sob os auspícios de várias instituições. Na apresentação da obra se registram os principais obstáculos enfrentados durante sua execução, como a dispersão das fontes em vários arquivos, transcrições feitas ao longo do tempo sem critérios padronizados, problemas na leitura de documentos microfilmados e dificuldade de acesso a alguns documentos originais26. Nos últimos anos, a emergência dos meios digitais diminuiu a frequência de publicação das Monumentae, embora elas ainda sejam importantes ferramentas de trabalho para o historiador. Desde a década de 1990, os projetos de divulgação de documentos estão focados na produção de CD ROMs e, mais recentemente, na disponibilização das imagens digitalizadas via internet. Essa tarefa tem sido levada a cabo, principalmente, pelos arquivos onde as fontes estão depositadas. A publi- cação de transcrições ainda é uma atividade extremamente relevante para a prática historiográfica; no entanto, tal produção se encontra pulverizada em periódicos que não têm como objetivo principal a divulgação serial e/ou temática de documentos em larga escala. Digitalizar e disponibilizar os documentos via internet tornou-se uma forma de divulgação bem menos dispendiosa do que a produção de Monumentae, tarefa que demandava muitos recursos financeiros e humanos, se arrastava ao longo de vários anos e muitas vezes não era concluída. Ultimamente, as próprias Monumentae têm sido digitalizadas e colocadas à distância de alguns cliques na rede mundial de de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012, p. 11. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1685.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. 25. LIMA, Douglas Mota Xavier de. O Infante D. Pedro e as alianças externas de Portugal (1425- 1449). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012, p. 19. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/ stricto/td/1590.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. 26. ALBUQUERQUE, Luís de; SANTOS, Maria Emília Madeira (Direção). Portugaliae Monumenta Africana. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993. v. 1. p. 5-14. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [32] computadores, o que permite sua utilização por pesquisadores do mundo inteiro, ao contrário do que antes acontecia, quando eram impressos poucos exempla- res das coletâneas de documentos, que ficavam restritos a pequenos círculos de pesquisadores. Essa mudança na forma de acesso às fontes tem servido para aumentar a inte- gração entre os pesquisadores. O que se observa atualmente é uma grande preo- cupação em fazer com que as informações circulem e estejam disponíveis em uma escala cada vez maior. Ainda está longe o dia em que a cultura de ocultação de documentos e fontes será totalmente superada no meio historiográfico, mas o certo é que essa realidade aos poucos se modifica. Um feliz resultado disso é que, além de possibilidades aumentadas de diálogo e da diversificação do repertório de fon- tes à disposição daqueles que já se dedicavam à pesquisa histórica, o contato mais próximo com fontes manuscritas tornou-se viável a um sem número de estudan- tes e profissionais que ficavam alienados dessa importante etapa da pesquisa, seja por incompatibilidade entre suas rotinas de trabalho e o horário de funcionamento dos arquivos, seja pela indisponibilidade de acervos organizados em seus locais de residência. Asignificativa criação de novos arquivos e o investimento na preservação e na restauração de documentos deram novo fôlego a iniciativas voltadas para a valo- rização dos manuscritos na pesquisa histórica em suas mais variadas facetas. São sintomáticos desse momento, por exemplo, o surgimento e a consolidação de cursos superiores como o de Conservação e Restauração de Bens Móveis da UFMG, insti- tuído em 200827, e que conta com um eixo formativo para o restauro e conservação de papel, além de um grande e bem equipado laboratório. No entanto, o que mais parece ter favorecido o acesso a esse tipo de documentação são os inúmeros pro- jetos de digitalização e disponibilização, tanto na internet como em outras mídias. Tais projetos, além de facilitarem e difundirem o acesso à documentação sem que haja um prejuízo aos documentos, tais como extravios ou danos físicos, muitas vezes sistematizam os cuidados para com a documentação no suporte original e sua organização. A organização arquivística é um ponto particularmente delicado para o histo- riador, que muitas vezes se encontra teórica e tecnicamente despreparado para esse trabalho. É uma realidade que tende a gerar conflitos com os profissionais especia- lizados em questões de organização e preservação. Entender as lógicas do arquivo torna-se fundamental para se fazer uma pesquisa histórica, pois elas, em geral, são 27. O curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis foi criado como o primeiro curso do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni na UFMG. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [33] pensadas para facilitar o acesso e a recuperação da informação. Não obstante, os arquivos históricos possuem inúmeras especificidades que se destacam no olhar do historiador. Esse panorama apenas reforça a necessidade de integração entre os diferentes ofícios envolvidos nos processos de organização e gestão dos arquivos. Tal interação profissional e acadêmica se reflete na própria dinâmica de funcio- namento da Oficina, que vem congregando estudantes de História, Arquivologia, Conservação, Museologia, Biblioteconomia, dentre outros. A leitura paleográfica como atividade docente Apesar de a Oficina se dedicar a uma atividade eminentemente prática, os encontros e seu planejamento proporcionam oportunidades de reflexão sobre os aspectos teóricos e metodológicos relacionados à utilização das fontes manuscritas na operação historiográfica e sobre a prática da leitura paleográfica como atividade de docência e de incremento à docência. Enquanto grupo idealizado e composto, em sua maioria, por estudantes de História, a Oficina de Paleografia — UFMG visa aliar a leitura e transcrição de manuscritos a alguns “saberes do arquivo” que facilitam o trabalho de pesquisa do historiador. O já mencionado esforço para o entendimento de uma lógica arquivís- tica se alia ao compartilhamento de experiências individuais de pesquisa em arqui- vos, contando também com os relatos e questões propostas pelos conferencistas. Para aprofundar ainda mais essas discussões, são realizadas visitas técnicas a arqui- vos, abertas a todos os participantes. Outro aspecto, marcadamente influenciado pela origem da Oficina, é o de o estudo não se limitar à pura e simples leitura e transcrição, mas considerar os documentos como fontes. Então, enquanto fontes, esses manuscritos devem ser dis- cutidos, contextualizados, explorados para além do que está escrito, inquiridos e pensados a partir de diversos ângulos de pesquisa. No entanto, qualquer tentativa de contextualização e reflexão histórica sobre uma fonte manuscrita está necessa- riamente impedida, se se pretende como teórica e metodologicamente aceitável, de prescindir de uma análise cuidadosa do conteúdo e forma em si daquele manuscrito. Dito de outra forma, não há leitura crítica sem a leitura elementar — o risco desse divórcio é perder o próprio caráter histórico da análise, que passa a ter o mesmo valor de narrativas não-científicas como a literária. Esse contato mais direto com a fonte, entretanto, é frequentemente substituído por um contato indireto, mediado pela reflexão de outros historiadores, e é frequente que os trabalhos desenvolvi- dos, especialmente durante a graduação, se componham majoritariamente de uma a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [34] revisão bibliográfica em vez de se apoiar mais sistematicamente na consulta e aná- lise das fontes que o sustentaram — ou deveriam ter sustentado. Como observam os participantes do PIBID/FAE/UFMG: É importante destacar que a distância entre o ensino e as fontes não ocorre apenas na educação básica. Muitos alunos dos cursos de gra- duação em História sentem-se distantes desses documentos, ou não sabem que muitos deles podem ser manuseados e pesquisados por qualquer pessoa que se disponha a visitar um arquivo. Portanto, a visita e o estímulo à pesquisa recorrente em arquivos são de grande valia. Identificação, leitura, seleção, transcrições e cópia de documen- tos são atividades que podem ser realizadas articulando-se ensino e pesquisa de História28. Porém, com a forma como vem se estruturando o ensino de História na UFMG e em outras instituições igualmente gabaritadas, torna-se necessário até mesmo para alunos de períodos avançados, ou da pós-graduação, dizer o que parece óbvio: que os manuscritos produzidos em épocas passadas não são automaticamente acessíveis e inteligíveis aos olhos contemporâneos. É de se notar, por exemplo, que o capítulo referido acima, cujo objetivo é incentivar e refletir sobre o uso de manuscritos em sala de aula, sequer menciona os obstáculos relativos à leitura paleográfica, muito embora proponha tarefas que dela dependem diretamente, como a “identificação”, “leitura”, “seleção”e “transcrições” — estas últimas aparecem no texto quase como sinônimo de “cópia”. Muito se enfatiza a necessidade de uma análise contextual e crítica da fonte, e por vezes se esquece de que a habilidade de compreender os carac- teres em que ela foi escrita não é de domínio de todos os que se dedicam a essa aná- lise — arrisca-se dizer que seja, na verdade, de uma pequena parte. É sintomático observar, por exemplo, a queda de público da Oficina entre as aulas introdutórias, nas quais, como se verá adiante, se oferece uma breve iniciação na qual os manuscri- tos aparecem, por assim dizer, como uma ilustração do que está sendo demonstrado, e os encontros práticos, em que a transcrição começa a ser efetivamente realizada. Procura-se suavizar essa transição, explicando pausadamente e com exemplos as normas técnicas, começando com transcrições pequenas, conduzidas com a ajuda dos coordenadores. Ainda assim, é notável que compreender os caracteres grafados e extrair deles alguma informação se constitui como um desafio cuja superação um número significativo de participantes prefere adiar. Como mencionado anteriormente, muito além de uma leitura elementar do documento, que consideramos como um passo primeiro e fundamental, se propõe 28. LIMA, Pablo L. O (Org.). Fontes e reflexões para o ensino de História indígena e afrobrasileira: uma contribuição da área de História do PIBID/FAE/UFMG. Belo Horizonte: UFMG , p. 67. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [35] uma leitura crítica e contextual. Para conseguir trabalhar esses aspectos foi sendo desenvolvida uma metodologia, uma maneira mais ou menos estruturada para que, no desenrolar dos semestres, os encontros semanais refletissem na prática os objeti- vos supracitados. A atual metodologia da Oficina consiste, em um primeiro momento, numa breve exposição de introdução à paleografia, e mais especificamente à paleografia utilizando documentos modernos em língua portuguesa, seguida de atividades ini- ciais de transcrição. A partir de então, os encontros acontecem com a participação de convidados, em sua maioriaalunos e egressos do Programa de Pós-Graduação em História da própria UFMG. Essa metodologia foi construída ao longo do tempo, de acordo com os problemas e as soluções que surgiam e com as opiniões e suges- tões dos participantes durante os semestres. Os gabaritos dessas transcrições, quando necessário, são elaborados pela pró- pria coordenação e disponibilizados no site para conferência pelos participantes. O ensinO de paleOgrafia na Oficina Didaticamente, a coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG buscou apoio em manuais e na bibliografia disponível. Como as primeiras habilidades dos coordenadores se desenvolveram, no momento inicial do grupo, de maneira autodi- data, muito baseada em tentativas e erros e na reunião de dicas e técnicas práticas, sentiu-se a necessidade, com a ampliação do público do grupo, de aprimorar essa capacitação, buscando respaldo na bibliografia técnica especializada. Alguns obstá- culos se colocaram então, uns relacionados à falta de orientação e ao caráter mais ou menos aleatório com que se reuniam materiais e indicações de publicações, e outros advindos de uma disponibilidade restrita e baixa circulação dessas publica- ções, indisponíveis, em sua maioria, na biblioteca da universidade. É possível consi- derar que o pouco investimento na compra e disponibilização aos alunos de obras de referência da área de paleografia seja um reflexo do caráter secundário que ela assume no ensino acadêmico de História, a despeito de sua importância evidente. Há um público, cada vez mais numeroso e sedento de conhecimento, que neces- sita de ferramentas para entender e praticar a transcrição paleográfica. No entanto, o acesso a essas ferramentas se torna, pelos motivos expostos, dificultado. Foi pos- sível perceber uma grande quantidade de apostilas e blogs na internet dedicados ao ensino da leitura paleográfica. Após uma análise mais detida, no entanto, nota-se que o conteúdo mais propriamente teórico é em grande parte redundante: há, entre eles, a repetição quase idêntica de trechos inteiros mostrando a chamada “evolução” a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [36] da escrita e os arquétipos caligráficos, depois se passa para uma listagem das prin- cipais dificuldades encontradas na leitura dos manuscritos, a apresentação das nor- mas técnicas e então para exemplos práticos de documentos. A obra de referência em todos esses matériais é certamente Noções de Paleografia e de Diplomática29 de autoria de Ana Regina Berwanger e João Eurípedes Franklin Leal, arquivista e historiador respectivamente, em sua terceira edição revista e ampliada e publicada pela Editora da UFSM. O texto explora os conceitos de paleografia e de diplomática, mostrando características dos documentos tanto na forma quanto na técnica e nos materiais, tipos de escrita, de números e as dificul- dades ao se lidar com manuscritos antigos. Há também as Normas Técnicas de Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos, conforme a reformulação feita em 1993 durante o II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica e de Ensino de Paleografia, realizado em São Paulo. Por fim, apresentam-se alguns documen- tos transcritos. Como não podia deixar de ser, tanto as aulas introdutórias como as reflexões ao longo dos encontros da Oficina também se basearam fortemente nesse manual, que em muito facilitou o processo de ensino-aprendizagem da leitura paleográfica entre os participantes, melhorou a capacidade de leitura dos próprios coordenadores a partir de um contato mais sistemático com as características dos materiais, suportes e técnicas caligráficas e do desenho dos caracteres ao longo do tempo e enriqueceu bastante as discussões. Considera-se, no entanto, que o incre- mento do acervo de obras de referência é um obstáculo a ser superado pelo menos no médio prazo. Também a elucidação das normas técnicas constitui um momento de desafio. Na experiência da Oficina, elas significam mais do que um simples modo de forma- tação do texto transcrito: são compreendidas como um conjunto de diretrizes para dotar ao máximo possível da lógica do texto manuscrito as informações transferidas a um novo suporte. Embora seja notável a maior adequação das normas brasileiras a esse propósito — uma vez que, ao contrário das portuguesas, elas determinam que se sinalizem todas as interferências do transcritor, incluído aí, por exemplo, o desenvolvimento de abreviações — não deixa de haver situações em que não se sabe ao certo como formatar, na transcrição, uma peculiaridade daquele manuscrito. As soluções encontradas nesse sentido são de natureza inventiva e provisória; embora funcionem no contexto da Oficina, não podem ser empregadas formalmente sem o risco de comprometimento da sua compreensão. 29. BERWANGER, Ana Regina e LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e de diplomática. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2008. a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [37] Outro obstáculo encontrado, como referido anteriormente, é motivar o público a enfrentar o desafio de transcrever, ou de tornar acessíveis a um maior número de pessoas os caracteres paleografados, que parecem inteligíveis apenas a iniciados. Mais um grande desafio da coordenação é conciliar os diversos interesses dos participantes. Quanto mais a Oficina se estabelece e fica conhecida, mais diversos são esses interesses. Esse leque vai desde dispostos a discutir e aprimorar a leitura paleográfica para a própria pesquisa, passando por pessoas que desejam conhecer a Paleografia, até interessados em desenvolver fontes digitais inspiradas em alguma caligrafia antiga. Para tentar atender a um número mais variado possível de interes- ses dentro da História, Arquivologia e Restauração e Conservação de documentos a Oficina realizou o I e o II Seminários da Oficina de Paleografia UFMG, nos finais dos anos de 2012 e 2013, respectivamente. Sendo o primeiro evento de caráter local, com conferencistas convidados da própria UFMG, e o segundo um evento nacional que contou com grandes nomes da paleografia no Brasil. Ainda se deve salientar a diversidade de níveis de experiência com leitura e transcrição de manuscritos dentre os participantes. A Oficina é procurada por mui- tos alunos sem nenhuma experiência paleográfica e também por outros tantos com uma experiência vastíssima. Além disso, o objetivo continua sendo o de uma ofi- cina permanente, portanto, muitos participantes seguem por mais de um semestre, alguns estão desde o início. A metodologia utilizada, convidando conferencistas, aliada aos primeiros encontros introdutórios, tentam unir um curso de iniciação a leitura e transcrição paleográfica com um espaço de discussão constante sem que isso seja repetitivo, enfadonho e maçante. Essa constante retomada das discussões iniciais, além de inserir os novatos na discussão, permite um aprofundamento cada vez maior nos estudos e nos questionamentos, assim como a busca de novas soluções para os problemas que surgem. A referida variação de temas e documentos apresen- tados, acrescida de uma variedade de atividades disponibilizadas nos encontros de exercício, têm permitido conciliar com algum sucesso a diversidade de interesses e de familiaridades com a leitura e a transcrição paleográfica. Espera-se, com a disseminação da iniciativa da Oficina, que já se desdobrou para outras instituições de ensino, a Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal de Ouro Preto, incentivar um maior recurso aos manuscritos e uma maior integração e troca de experiência entre os diversos estudantes e profissionais envol- vidos na leitura e transcrição paleográfica. Dessa forma, será possível resgatar o lugar privilegiado que esse ramo de atuação deveria encontrar no ensino acadêmico e na pesquisa histórica. Como nos instiga Lucien Febvre: a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente [38] O historiador não vai rondando
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