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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO CAMPUS BAIXADA SANTISTA INSTITUTO SAÚDE E SOCIEDADE CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL Fernanda Soncini DA PROIBIÇÃO AOS USOS TERAPÊUTICOS DA MACONHA: UM DIÁLOGO LIVRE ENTRE A LITERATURA CONVENCIONAL E NÃO-CONVENCIONAL SOBRE O TEMA SANTOS 2020 I UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO CAMPUS BAIXADA SANTISTA INSTITUTO SAÚDE E SOCIEDADE CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL Fernanda Soncini DA PROIBIÇÃO AOS USOS TERAPÊUTICOS DA MACONHA: UM DIÁLOGO LIVRE ENTRE A LITERATURA CONVENCIONAL E NÃO-CONVENCIONAL SOBRE O TEMA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de Graduação em Terapia Ocupacional do Instituto Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo. Orientadora: Profª. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus SANTOS 2020 II Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. SONCINI, Fernanda. Da proibição aos usos terapêuticos da maconha: um diálogo livre entre a literatura convencional e não-convencional sobre o tema. 76p. Trabalho de Conclusão de Curso Graduação em Terapia Ocupacional. Instituto Saúde e Sociedade Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Santos/SP. Agosto/2020 Orientadora: Profª. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus Referencial bibliográfico. p. 56. Palavras-chave: maconha; uso terapêutico; racismo; proibição. III AGRADECIMENTOS À minha orientadora Luciana Surjus, por ser esse fenômeno da natureza! Uma mulher que admiro por andar aquilo que fala, por pôr em prática o acolhimento, a generosidade e o trabalho sobre o qual tanto falamos. Pela sua doçura firme, sua maternagem, assertividade, cuidado e pela orientação tão atenciosa, a melhor que já tive. Me ensina e inspira muito. Aos pesquisadores, artistas, usuários, colegas, todos que acumularam conhecimento científico e empírico, que me ensinam e me possibilitam entregar um trabalho com tantas experiências acumuladas. A todas as pessoas que passaram pela minha vida e me ensinaram tanto, dentro e fora da academia. Impossível citar nomes sem ser injusta, mas aos amigos que se foram, àqueles que resistiram e tomaram seus destinos pelas mãos, contrariando as estatísticas e aos amigos que continuam topando as nossas partilhas cotidianas, meu muitíssimo obrigada! Aos meus pais, que acertaram mesmo pensando que estavam errando e que tanto se culparam por não poderem pagar pela minha educação ou para que vivêssemos em um lugar melhor. Pois vos digo que foi ali que me forjei atenta e sensível às desigualdades sociais e à importância de construir uma democracia real, solidária, universal, de valorização do público e da garantia de direitos. Pela possibilidade de me tornar o que sou hoje, me protegendo, mas não me privando de ver e viver a vida como ela é, lhes saúdo e agradeço. Ao meu companheiro e amigo Rodrigo Silva, que há me ensina a lidar com as coisas normais da vida, os altos e baixos, os dias mornos, as eventuais sensações de vazio e tudo isso que para mim sempre foi difícil. Você diz que admira minha inteligência, mas ela tem sido muito melhorada pela sua sabedoria. Amo a sua generosidade sincera, a maneira como me apoia e me escuta e como está sempre e cada vez mais disposto a IV se rever. Amo a nossa família nada tradicional e a paciência que tem comigo toda vez que mudo de planos do nada e te carrego nas minhas loucuras. Obrigada por tanto! À minha querida amiga e presente deste século, Patrícia Carvalho, que me ofereceu o abrigo necessário para que eu pudesse concluir com saúde mais essa etapa da minha vida, meu eterno agradecimento. Você foi e é parte fundamental para tudo isso! À Giovana Zanchetta e Gabi Andrade, pelo acolhimento e apoio e ao parceiro de quarentena Fábio Ribeiro, pelas longas conversas no café da manhã com cuscuz, ovos e consciência de classe. Um agradecimento muito especial aos meus colegas do grupo Div3rso, especialmente Angelo, Otaviano, Helena, Danilo e Jardim por sempre permitirem uma troca de saberes honesta e afetuosa. À minha amiga Lena, que mesmo em época de quarentena, longe geograficamente, não esqueceu de mim nem por uma semana sequer. Que se preocupou e acompanhou todo esse processo com afeto, verdade e paciência. Que surpresa boa a sua existência interferindo na minha! À Unifesp e a todo seu corpo de trabalhadores, terceirizados, concursados, contratados, convidados… todos e todas que têm segurado na unha a excelência da universidade pública. E ao grupo de estudo, pesquisa e extensão Div3rso, que me concedeu bolsas de estudo para o desenvolvimento de projetos que além de me enriquecerem muitíssimo profissionalmente, também possibilitaram materialmente a minha permanência e finalização deste curso, em pleno período de desmonte das universidades públicas e de tudo que a humanidade construiu de bom até agora. Em defesa de um SUS e de uma universidade pública de qualidade, AVANTE! V LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Breve histórico dos registros de uso da Cannabis em todo o mundo. Imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. …………………………….………….... p. 03 Figura 2 - Breve histórico dos avanços na investigação sobre os mecanismos de ação dos canabinóides. Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. … p. 06 Figura 3: Usos e aplicações da maconha. Fonte: Google Imagens, 2019 ……….…… p. 13 Figura 4: Mecanismo de ação dos endocanabinóides …………………………………... p. 44 VI LISTA DE QUADROS Quadro 1: Letra da música Legalize it (Peter Tosh, 1976). Versão em inglês e tradução em português ….………………………………………………………………………………..… p. 18 Quadro 2: Letras de músicas de Bezerra da Silva ………………………………………. p. 19 Quadro 3: Músicas do Planet Hemp no disco Usuário, 1995 …………………………… p. 21 VII LISTA DE TABELAS Tabela 1: Panorama das legislações e movimentos sociais internacionais no século XXI …………………………………………………………………………………………….. p. 37 Tabela 2: Histórico das legislações de drogas nos séculos XIX e XX no Brasil ……… p. 38 VIII SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO …………………………………………………………….………………….. p. 02 2. OBJETIVOS …………………………………………………………………………………… p. 07 II.i. GERAL …………………………………………………………………………………….. p. 07 II.ii. ESPECÍFICOS …………………………………………………………………………… p. 07 3. METODOLOGIA ………………………………………………………………………………. p. 08 III.i. PERCURSO METODOLÓGICO ……………………………………………………….. p. 10 III.ii. NOTA SOBRE A BUSCA NA LITERATURA CONVENCIONAL …….………………. p. 11 4. RESULTADOS ………………………………………………………………….……………. p. 13 1. A maconha na sociedade ……………………………………………………………. p. 13 2. Histórico e motivações para a proibição da maconha …………………………… p. 27 2.1. Um adendo sobre o contexto estadunidense ……………..…………………. p. 27 2.2. Racismo e proibicionismo: uma relação bilateral de sustentação? ……….. p. 29 3. A proibição das drogas e as ofertas de cuidado: uma política promotora de danos ………………………………………………………………………………….. p. 34 3.1. A política proibicionista …………………………………………………………. p. 35 4. A maconha na ciência ……………………………………………………………….. p. 40 4.1. O sistema endocanabinoide ………………………………………………….... p. 42 4.1.1. Ligantes endocanabinoides ………………………………………… p. 43 4.1.2. Mecanismo de ação e síntese ……………………….………..…… p. 44 4.1.3. Funções biológicas …………………………………………………... p. 45 4.2. Potencialidades terapêuticas da maconha …………………………………... p. 46 4.2.1. Efeito comitiva? ……………………........................................................... p. 48 V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………………………………….. p. 51 VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ……………………………………………………………..p. 56 1 RESUMO Este trabalho se propôs a fazer uma revisão bibliográfica da literatura convencional e não convencional acerca dos interesses e motivações que levaram à proibição dos usos da maconha e tambèm à retomada do debate e das pesquisas dos usos e potenciais terapêuticos da planta. O uso da literatura convencional e não convencional buscou a tessitura de um diálogo livre e diverso das perspectivas históricas, sociais, culturais, econômicas, políticas, jurídicas e biomédicas sobre os diversos usos da maconha pelas populações. Palavras-chave: maconha; uso terapêutico; racismo; proibição. 2 I. INTRODUÇÃO “El cañamo es el “dador de alegria”, el “navegante celestial”, el “mitigador del duelo”. Ningún dios, ningúm hombre es tan bueno como el libador del cañamo.” (Schultes and Hoffman, 1982) Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde? Então, por que o bacon não é proibido? Ou o açúcar? Ou o tabaco? O que motiva essa proibição e como ela impacta a sociedade? Muitas dessas perguntas mobilizaram e mobilizam a comunidade científica, movimentos e grupos sociais interessados ou atravessados pelo tema, sendo essa a motivação para a reflexão aqui realizada. Ilícita no Brasil, a Cannabis sp., popularmente conhecida como maconha é a “droga ” mais conhecida e utilizada pelos diferentes grupos humanos, 1 desde sempre, ao redor do mundo. Essa e outras plantas psicoativas, cada uma com uma propriedade distinta - como a folha de coca, o ópio, o tabaco - fazem parte da cultura humana de consumo de substâncias, estando presentes em todos momentos da história, ainda que tradicionalmente regionalizados (Boiteux, 2006). Podemos dizer que cada agrupamento humano, em cada parte do mundo descobriu espécies psicoativas e com elas cultivou seus rituais de cura, alimentação e entorpecimento, sem inclusive, que tais sentidos fossem separados entre si, já que a concepção de corpo e mente era integrada e havia uma cosmovisão no entendimento da relação entre homem e natureza (Torcato, 2016). A maconha é possivelmente a primeira planta cultivada e domesticada pelo homem não apenas para fins alimentícios, sendo inclusive, uma das primeiras plantas incorporadas ao sistema que hoje chamamos de agricultura (Fiore, 2019) 1 Antes do estabelecimento dos controles políticos, a palavra “droga” não significava necessariamente algo ruim, mas também como algo que podia ter efeitos positivos a partir de aplicações alimentares, terapêuticas e lúdicas, contribuindo para controlar as dores, os desconfortos decorrentes das enfermidades e as emoções indesejadas. Podiam trazer paz, fortalecer a cognição e os limites da vontade. Eram usadas também como forma de exploração psíquica de caráter laico ou com fortes significados espirituais (Torcato, 2016). 3 Achados arqueológicos datam de mais de 10.000 anos, quando a planta era utilizada para a obtenção de fibras (Fig. 1). Os primeiros registros de uso terapêutico da maconha se dão na China, por volta de 2700 a. C., descritas por Shen Nun na Pen-T'sao Ching, a mais antiga farmacopeia existente. Fazia-se uso da planta para tratar dores reumáticas, constipação, transtornos reprodutivos femininos (como cólicas e endometriose) e malária. Considerado o pai da cirurgia chinesa, Hua Tuo, desenvolveu um componente anestésico a base de vinho e maconha durante o século I a.C. (Abel, 1980; Mechoulan, 1986; Childers and Breivogel, 1998) Na Índia, o uso religioso foi descrito por volta de 2000 a.C., quando se acreditava que a planta era um presente dos deuses aos homens, capaz de provê-los de prazer e coragem. Registros semelhantes são encontrados em relatos no Oriente Médio, África, Eurásia e até na Europa, onde em 1838, William Brooke O'Shaughnessy, um médico irlandês, publicou – após experimentos com animais e humanos – um livro intitulado On the Preparations of the Indian Hemp, or Gunjan. No Tibet, no século VI a.C., a maconha era usada em rituais budistas e tântricos para "facilitar a meditação", enquanto assírios a usavam como incenso. No Oriente Médio o uso da Cannabis ainda é aceito e considerado sagrado (Abel, 1980; Mechoulan, 1986; Fiore, 2019). Figura 1 - Breve histórico dos registros de uso da Cannabis em todo o mundo Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. Embora os fitocanabinoides sejam lipossolúveis, seu uso na forma de chá é popular na Índia (“bhang”) e entre alguns povos amazônicos do Brasil. 4 Na Índia o chá era oferecido - entre outros usos - à noiva, no dia do casamento, para promover relaxamento, desinibição e melhorar a noite de núpcias. Os povos amazônicos relatam que antes da proibição, plantavam em seus territórios como qualquer outra planta e faziam o uso do chá - feito por infusão - para fastio, banzo, congestão, gases ou falta de apetite (Abel, 1980; Mechoulan, 1986; Tovar, 2016; Dirijo, 2008) Na Renascença, a maconha era um dos principais produtos agrícolas da Europa. Além das páginas de papel de cânhamo dos primeiros livros impressos - inclusive a Bíblia - artistas plásticos pintavam em telas feitas com fibras de cânhamo. A palavra Canvas (de “oil on canvas”, que hoje é traduzida como “óleo sobre tela”), é uma variação holandesa do latim 'cannabis' (Barros e Peres, sd). O cultivo de cânhamo era uma política de Estado massiva em Portugal durante o período das Grandes Navegações, pois ele fornecia boa parte do material das embarcações portuguesas (Robinson, 1999). O produto obtido das fibras do cânhamo, dotado de rigidez e elasticidade, proporcionava às caravelas uma enorme velocidade. Incluindo velame, cordas e outros materiais, estima-se que havia cerca de 80 toneladas de cânhamo no barco comandado por Cristóvão Colombo na invasão das Américas, em 1496. Foi inclusive através dessa expansão ultramarina que se deu a globalização das drogas (Robinson, 1999, Carneiro, 2019). A partir do século XV foi que drogas utilizadas localmente, por determinados povos, em determinados contextos, com determinados propósitos passaram a ser conhecidas e utilizadas por outros grupos, das mais diversas formas. Nessa época, substâncias que hoje conhecemos como drogas eram comercializadas como especiarias, sem distinção ou julgamento moral sobre elas: açúcar, café, canela, cravo, tabaco, maconha, coca, noz moscada, pau-brasil, pimenta e outras (Carneiro, 2005 In: Venâncio e Carneiro, 2005). Inclusive, foi em torno do comércio desses “produtos exóticos”, convertidos em itens da dieta cotidiana de inúmeras populações, que se desenvolveu o moderno mercado mundial. - o Brasil, por exemplo, continua sendo até hoje um 5 dos maiores produtores e exportadores mundiais de álcool de cana (Labate et al., 2008) Foram vários os acontecimentos que marcaram o advento da modernidade – o absolutismo europeu, o renascimento cultural, a reforma e a contrarreforma religiosa, a revolução científica e o comércio transoceânico ampliado. Nesse período,plantas, microorganismos, animais e até seres humanos foram transportados de um lado a outro. A batata, o trigo e o milho deram a base material para a multiplicação da população mundial. Um fenômeno igualmente importante, mas não tão considerado foi a ampliação da possibilidade das populações em todo o mundo de alterarem suas consciências com substâncias até então utilizadas apenas regionalmente. A intensificação das trocas comerciais e culturais entre os povos teve como uma das consequências a mundialização de alguns psicoativos, fenômeno que ficou conhecido como Revolução Psicoativa (Courtwright, 2001). É preciso lembrar também que existe uma relação intrínseca entre as drogas e o capitalismo moderno, em vários aspectos: desde os processos que levaram e ainda levam à sua regulamentação ou criminalização, até a sua capilaridade e aplicações, ou seja, que tipo de substâncias serão regulamentadas, quais terão seu uso até mesmo incentivados e quais serão criminalizadas; quem usará quais substâncias e de que forma (Carneiro, 2019). Desde a época da acumulação primitiva de capital as drogas já eram uma importante “commodity”, seguindo assim a medida em que o capitalismo moderno e a Revolução Industrial avançaram (Souza, 2015). Nesse período houve a transformação do trabalho e passou-se a exigir-se do trabalhador que ele passasse a maior parte de seu dia exercendo, geralmente, esforços repetitivos por longas horas seguidas, o que era exaustivo e insalubre. Também passou-se a exigir o aumento crescente da produtividade em nome do lucro. Para tanto, o uso de drogas pelos trabalhadores passou a ser “selecionado” de acordo com os interesse do capital, que agora é quem decide quais substâncias serão regulamentadas e quais serão proscritas. (Souza, 2015; Carneiro, 2019). 6 Nutt et al. (2010) publicaram um complexo estudo onde avaliaram a periculosidade de diversas substâncias consideradas drogas a partir da análise dos riscos físicos, psicológicos e sociais causados para o usuário e/ou sociedade. Os resultados apontaram não existir necessariamente uma relação entre os riscos oferecidos pelo uso das substâncias e as leis que a regulamentam ou proíbem, uma vez que o álcool foi, de longe, a substância que mostrou trazer mais riscos para o usuário, as pessoas ao redor e a sociedade (num score de 0 a 80, o álcool apresentou score 72 para riscos ao usuários e à sociedade). A maconha, por sua vez, aparece próxima ao tabaco - outra substância lícita - apresentando, respectivamente, scores de risco para o usuário e a sociedade de 20 e 26. Tais resultados nos levam a refletir, portanto, quais seriam os critérios considerados ao legalizar e regulamentar uma substância em detrimento da criminalização de outra? Este trabalho buscou compreender, através de uma revisão na literatura convencional e não convencional, alguns dos fatores que motivaram a proibição e a difamação da maconha - a despeito de todo seu histórico de uso industrial, terapêutico, espiritual e hedonístico - sobretudo no Brasil e nos EUA a partir do início do século XX, bem como a retomada das pesquisas sobre seus potenciais e aplicações terapêuticas a partir do final do século XX (Fig. 2). Figura 2 - Breve histórico dos avanços na investigação sobre os mecanismos de ação dos canabinóides. Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. 7 II. OBJETIVOS II.i. GERAL Compreender o processo de proibição do consumo da maconha e de sua retomada para a finalidade terapêutica. II.ii. ESPECÍFICOS ● Mapear a literatura científica e não convencional acerca da história do uso da maconha na humanidade; ● Identificar as peculiaridades históricas e possíveis interesses na sua proibição; ● Verificar as principais indicações contemporâneas que têm sustentado o reconhecimento de seu potencial terapêutico. 8 III. METODOLOGIA As pesquisas científicas de revisão bibliográfica geralmente contam com o uso de artigos científicos indexados - a chamada literatura branca ou convencional (Côrtes, 2006) - ou seja, aqueles que são aprovados previamente por pareceristas pesquisadores e publicados em revistas certificadas. Por outro lado, é crescente o movimento que reconhece e valida o uso de outros tipos de produções - chamadas de literatura cinzenta ou não convencional (Población et al., 1995), que podem ser entendidas como o conjunto de documentos técnicos ou científicos, dos mais variados tipos, tais como: relatórios, manuais, atas de reunião, apostilas, resumos, sites, produções audiovisuais e outros produtos que fazem parte de uma enorme gama de materiais que não estão indexados nos canais de pesquisa e divulgação científica, embora possa conter conteúdo científico, mas também relatos, registros, vivências, etc (Côrtes, 2006). O reconhecimento deste tipo de literatura vem crescendo desde o final do século XIX, devido ao seu grande poder de comunicação e propagação do conteúdo (Población, 1992) - características importantes a serem reconhecidas e estudadas, o que contribui para o crescimento e validação do uso desse tipo de material nas revisões científicas (Población et al., 1995). Outro importante fator relacionado a esse tipo de literatura diz respeito a ela ser, na maioria das vezes, a fonte primária de informações disponíveis, envolvendo pesquisas interdisciplinares – e também por esse motivo vem sendo mais aceita pelos pesquisadores (Côrtes, 2006). Muitas pesquisas, ao serem divulgadas em eventos ou publicações científicas, perdem o caráter multi ou interdisciplinar, porque não há nos meios indexados - onde publicamos e divulgamos a literatura convencional - um formato de publicação que permita envolver todas essas informações (Correia e Neto, 2001) Algumas das características da literatura não convencional foram sintetizadas por Côrtes (2006), como: maior velocidade de difusão da informação, diferentes suportes físicos (meios eletrônicos, audiovisuais, materiais impressos e outros); a autoria, que pode ser individual, de um grupo, 9 de uma instituição, organização ou evento; a dificuldade de catalogação deste material, por não haver um sistema de busca específica (controle bibliográfico); a baixa perenidade, sendo seu uso justificado pelo aumento de acessibilidade às publicações, o que possibilita uma ampliação na multiplicação de ideias, conceitos, proposições entre outros indicadores. Como este trabalho se voltou a reunir informações sobre as motivações que levariam tanto à proibição da maconha, quanto o seu posterior ressurgimento na ciência e na mídia, o uso da literatura não convencional foi sendo considerado fundamental para que se construísse um diálogo entre as informações produzidas e disponibilizadas nas bases científicas - literatura convencional - e o que está disponível na literatura não convencional, sobre aquilo que está acontecendo simultaneamente nesses momentos históricos. Como critério de seleção dessa literatura, optou-se por utilizar principalmente revistas, documentários,músicas, jornais, relatórios institucionais e produções de movimentos sociais autônomos. A partir desse critério, foram excluídas produções audiovisuais ou impressas voltadas ao entretenimento e cultura canábica. Essa escolha foi feita por avaliarmos que muitos desses materiais estigmatizam a figura do “maconheiro” e muitas vezes desinformam, reforçam preconceitos, glamourizam ou banalizam a questão. Embora a análise deste material seja algo que mereça profunda e urgente atenção, não era esse o escopo desta revisão. Essa pesquisa foi realizada ao longo de 2019 e 2020. A princípio foram selecionados materiais em espaços de conhecimento prévio das autoras, e posteriormente em demais sítios identificados a partir dos primeiros materiais consultados. Priorizamos a análise de materiais sobre diferentes aspectos envolvendo o uso, a proibição e os potenciais terapêuticos da maconha desde o início do século XX até meados de 2019, principalmente no Brasil e nos EUA, já que este último segue exercendo grande influência sobre a formulação de políticas públicas em todo o mundo. Optamos por realizar um estudo exploratório descritivo, começando pelo processo de escolha da bibliografia, observando os possíveis atravessamentos na compreensão e no debate sobre o tema a partir do tabu que o cerca, 10 considerando diversos olhares, perspectivas, saberes e posições ético-políticas. Através de um diálogo entre a produção convencional e não-convencional, buscamos incentivar e ampliar o livre debate de ideias que são geralmente estereotipadas. Os resultados serão apresentados através de capítulos formulados a partir das categorias de análise da bibliografia selecionada. Fundamentada essa escolha, vale salientar que a academia e sua produção ainda está, muitas vezes, afastada da comunidade - existe dificuldade de acessar os artigos e quando não, a linguagem, na maioria das vezes permanece inacessível. Entretanto, é preciso compreender melhor as questões que atravessam a população mais diretamente envolvida com a temática das drogas, sobretudo da maconha, que é hoje a substância proscrita mais consumida no Brasil e no mundo (Cebrid, 2004), com as mais diversas finalidades (MacRae, 2016), bem como levar adiante esse debate de maneira descolonizada. “A maconha é um mito que precisamos acabar com ele” (Lobo, 1954 Apud MacRae e Alves, 2016) III.i. PERCURSO METODOLÓGICO A busca pelo material de referência foi realizada primeiramente nas bases de dados científicas: Scielo, Pub Med e Google Scholar. Também foram selecionados artigos e livros disponíveis nas páginas dos seguintes grupos de pesquisa: Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos), Lehda-FFLCH/USP (Laboratório de Estudos Históricos das drogas e da Alimentação) e CETAD/UFBA (Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia). Como bases para busca do material não convencional, incluímos o YoutubeⓇ, a partir do qual foram selecionados vídeos da websérie Crack Repensar, a série Drauzio Dichava (do canal do Dr. Drauzio Varella, sobre uso adulto de maconha), as palestras em vídeo do Fórum “Além da Guerra às Drogas”, realizado na Unicamp em 2014, análise de livros do professor Henrique Carneiro no canal da editora Autonomia Literária e o curta-metragem 11 “Dirijo”, que fala sobre uso de maconha entre indígenas da Amazônia, por eles mesmos. No canal de streaming NetflixⓇ, utilizamos o documentário original Grass is Greener (port. Baseado em Fatos Raciais), produzido em 2019 e trazendo importantes registros de articulações políticas dos EUA no processo de proibição da maconha e a criminalização do povo negro. A escolha desse documentário se deu por ele contextualizar o período histórico de interesse para esta revisão, sob o ponto de vista cultural, político e racial, o que, para nós, amplia o debate e até mesmo o olhar sobre como a formulação de políticas públicas pode promover a saúde, a qualidade de vida, o enriquecimento ambiental ou o adoecimento de uma população. Também foram utilizadas revistas não indexadas de conteúdo científico e/ou cultural como: Superinteressante, Galileu, Rolling Stones, além de materiais produzidos e divulgados previamente pela autora - Em Surjus et al.(Orgs), 2018; Soncini, 2011 (dissertação mestrado); matérias produzidas para o Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas; materiais do acervo pessoal, revistas, artigos e jornais gentilmente cedidos pelo Prof. Dr. Elisaldo Carlini (Unifesp). Com relação ao conteúdo relacionado ao uso cultural da maconha, foram adicionadas letras de músicas que trouxeram, ao longo da história, a questão da maconha para o debate público, conforme referências sobre essas músicas e/ou seus artistas eram encontradas na literatura convencional e não convencional. III.ii. NOTA SOBRE A BUSCA NA LITERATURA CONVENCIONAL Sobre a varredura da literatura convencional sobre o tema nos portais eletrônicos de busca, de modo geral, o número de artigos sobre os efeitos terapêuticos da planta são maiores do que sobre a proibição. Vale lembrar que não foram feitas pesquisas em portais estritamente de cunho jurídico, o que pode se configurar como um dos limites da pesquisa. Ainda assim, a maioria dos artigos sobre proibição vêm de trabalhos do Direito, Antropologia ou História. Estes artigos já não aparecem quando a busca é feita nos portais 12 Scielo ou PubMed que são reconhecidamente mais utilizados para as produções das respectivas áreas da saúde e da medicina (Tabela 1). Numa busca feita posteriormente a partir do Portal de Periódicos Capes, no intuito de visualizar, de maneira geral e interdisciplinar, o que tem sido pesquisado sobre o tema atualmente, fizemos a seguinte composição de termos: ((“cannabis” OR “maconha”) AND (“medicinal” OR “terapêutica), aplicando ainda para fins de critério de inclusão o recurso de refinamento “apenas revisados por pares”, tipo de produção “artigos” e os trabalhos em português e inglês. 13 IV. RESULTADOS 1. A maconha na sociedade: Como já vimos na introdução deste trabalho, a maconha possui diversas aplicações (Fig. 3) e seu uso data de 10.000 anos. É originária da Eurásia e espalhou-se pelo mundo através das migrações e do advento da agricultura (Venâncio e Carneiro, 2005). Aqui, vamos nos ater ao uso da maconha nas Américas, sobretudo Brasil e EUA, ao longo do século XX e início do século XXI. Figura 3: Usos e aplicações da maconha. Fonte: Google Imagens, 2019. Também já vimos que a maconha chegou às Américas na época das Grandes Navegações, tanto pelas mãos dos invasores europeus - que utilizavam o cânhamo como matéria-prima para a produção das velas, velames, cordas, resinas, tecidos e combustíveis, como pelas pessoas que 14 chegaram aqui traficadas do continente africano e que já utilizavam cepas menos irrigáveis de maconha (com mais lipídios) para uso fumado, em rituais hedonísticos, terapêuticos ou de lazer(Venâncio e Carneiro, 2005; Ribeiro, 2014). No Brasil, o cânhamo era cultivado pela Coroa Portuguesa, pois sua venda era bastante lucrativa. Da planta eram extraídos fibras, resinas e azeites – matérias-primas para a fabricação de tecidos (roupas, velas de embarcações), cordas, medicamentos, de uso tópico e oral, lâmpadas (o óleo da cannabis era utilizado nas lâmpadas que chegaram a iluminar algumas cidades do Brasil), combustível, etc. Há relatos de que Carlota Joaquina também gostava de consumir o chá do cânhamo, hábito que não era usual entre os europeus (Carlini, 2005). Os povos indígenas do Brasil e das Américas também incorporaram seu uso - em chás ou fumado - às diversas espécies vegetais já empregadas em seu ritos e medicinas (Carlini, 2005; Dirijo, 2016; Carneiro, 2019). No século XVIII o cultivo e a venda do cânhamo eram considerados um grande negócio, muito lucrativo – enormes quantidades de sementes eram exportadas pelo Porto de Santos. No entanto, ao mesmo tempo, crescia a preocupação com o uso da maconha entre indígenas e africanos escravizados (Carlini, 2005). No início da República no Brasil (1889), as classes dominantes reforçam e começam a expressar mais claramente essa preocupação e a necessidade de controlar principalmente a cultura e os hábitos dos negros que haviam sido recém libertos da escravidão , como a maconha, o samba, a capoeira e o 2 candomblé (Lunardon, 2014). Nessa época, cigarros de maconha eram vendidos em lojas e tabacarias, também no centro, mas principalmente nas periferias das cidades. Seu uso crescia entre os brancos pobres, fazendo-se notar nas elites abastadas. Nas primeiras décadas dos 1900 isso já era evidente. Clubes de diambistas 2 Preocupação esta que se deve muito ao fato de que a abolição no Brasil se deu apenas para que se pudesse instaurar a República no país, porém sem contemplar essas populações com nenhum tipo de reparação - muito pelo contrário, foram os donos das terras quem receberam indenizações por terem ficado sem seus escravos, enquanto a população negra foi relegada às ruas e ao desemprego (Souza, 2015). 15 eram frequentes entre as comunidades negras, músicas exaltando a erva tornavam-se populares e o folclore com relação à cultura da maconha crescia. É interessante notar que o hábito coletivo do fumo da erva e o processo de folclorização da prática eram preocupações constantes para sociólogos e políticos da época, principalmente a partir dos anos 1930, quando o discurso do proibicionismo se tornou mais intenso. Muitas vezes, mas não somente, ligado a rituais religiosos das populações negras, os sentidos e significados dessa coletividade reunida a partir do consumo da maconha era de interesse e preocupação das elites e serviram como ferramenta para o processo de estigmatização da própria cultura negra (Lunardon, 2014). Diferente do Brasil, que a partir da abolição da escravatura e início da República passou a adotar políticas eugenistas, usando da miscigenação como forma de tentar embranquecer a população até o extermínio total da população negra no país, os EUA adotaram políticas de segregação racial, onde negros e brancos não podiam morar nos mesmos bairros, usar os mesmos banheiros ou bebedouros ou frequentar os mesmos espaços, exceto pela manutenção da “criadagem” (Lopes, 2019). Porém, tanto no Brasil quanto nos EUA, a partir da segunda metade do século XIX, percebe-se um aumento dos usos hedonistas e medicinais também pelos “brancos progressistas” da época: poetas, artistas, cientistas e amantes das músicas que vinham dos guetos - no Brasil, o samba; nos EUA, o jazz. A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas, intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna... inoculou também o mal nos que a afastaram da terra querida. (Rodrigues Doria, 1916 Apud Silvestrim, 2008) Para contribuir e ampliar os conhecimentos sobre o uso da maconha nos EUA, compartilharemos a narrativa trazida pelo documentário Grass is Green, que, entre outros, traz a perspectiva cultural do uso da planta e sua relação com importantes movimentos musicais e culturais do século. No filme, Larry Slomann, (Autor do livro Reefer Madness: A history of marijuana) conta que a maconha foi fundamental para o surgimento e ascensão do jazz nos EUA, já que produzia nos músicos as sensações de euforia e relaxamento que culminaram na criação dos clássicos tons mais 16 baixos e compassados da música. Usada desde o início da invasão européia, a maconha só passa a ser considerada um perigo quando surgem as primeiras denúncias de que em El Paso e New Orleans, haveriam “minorias” fumando a erva - negros e mexicanos. Mas foi a partir da década de 20, quando os jovens brancos de classe média passam a frequentar os bares de New Orleans , que 3 alguns estados começam a proibir a maconha nos EUA, inclusive a California. É importante lembrar que nessa época os EUA ainda viviam sob a Lei de Segregação Racial, que separava cultural, física e geograficamente negros e brancos. Sendo assim, a chegada dessas pessoas brancas nos bares de jazz eram, até então, a primeira experiência de integração desses povos. Louis Armstrong, bem como boa parte dos maiores cantores e instrumentistas do jazz, era um usuário contumaz de maconha. Muitos cantores e compositores da época cantavam sobre os efeitos da planta e com ela embalavam as noites nos clubes de jazz de New Orleans. Mas Armstrong foi pioneiro na defesa pública pela legalização da erva. Em 1930, Armstrong é preso no intervalo de um show, fumando na porta do Cotton Club - um famoso clube de jazz - no intervalo de um show. Da prisão, escreve para seu empresário: “Eu não faço questão de ter um porte de armas, eu só quero poder portar a minha erva. Você deve providenciar uma permissão especial para eu fumar a erva que eu quiser, onde eu quiser. Caso contrário, vou parar de tocar. Eu não posso viver tenso, com medo de ser preso a qualquer momento, ser colocado na cadeia por causa de uma coisa boba como a maconha” (Louis Armstrong In: Netflix, 2019) Embora Armstrong não tenha tido seu pedido atendido, sua atitude foi bastante progressista e corajosa para a época, sobretudo vindo de um homem negro. “Sabemos que Louis Armstrong começou a fumar maconha muito cedo e fumou todos os dias de sua vida. Louis foi um dos nossos primeiros grandes maconheiros. E se você ouvir sua música percebe que isso teve um efeito positivo nela”. (Larry Sloman In: Netflix, 2019) 3 New Orleans, considerado o berço do jazz, era um bairro essencialmente negro, localizado numa cidade portuária que abrigava diversas culturas. 17 No Brasil, o uso medicinal da planta teve maior destaque. Diversos compêndios médicos a receitavam para usos como: “Hypnotico, antispasmódico; dyspepsias (...), no cancro e úlcera gástrica (...) na insomnia, nevralgias, nas perturbações mentais (...) dysenteria chronica, asthma, (...)asua má administração dá às vezes em resultados, franco delírio e allucinações.” (Araújo & Lucas, 1930 Apud Silvestrim, 2008). Igualmente aos EUA, a repressão ao uso da maconha também ganha força no Brasil a partir da década de 30 – embora o Brasil tenha sido pioneiro nas políticas de repressão ao elaborar a primeira lei de prisão para fumadores da erva ainda no final do século XIX, a Lei do Pito de Pango (MacRae, 2016; Carneiro, 2019). Mesmo assim, ao longo dos anos, outros movimentos musicais e culturais foram influenciados e influenciaram o uso da maconha em todo o mundo. Nos anos 50, nos EUA, em meio à guerra, um novo movimento de resistência e contracultura surge: os beatniks - movimento que antecedeu e deu origem ao movimento hippie dos anos 60. Formado em sua maioria por jovens brancos, universitários, de classe média, eles pregavam o pacifismo em oposição às guerras que, na época levavam muitos jovens americanos ao Vietnã. Um dos expoentes do movimento beatnik, o poeta Allen Grinsberg, escreveu em 1965: “Ninguém disse ainda que a supressão dos direitos dos negros, da sua cultura e sensibilidade dos EUA foi complicada pelas leis da maconha. O uso da maconha sempre foi bem difundido na população negra deste país. A supressão de seu uso com constantes atritos e ameaças da lei, foi em grande parte um método inconsciente de agressão às pessoas negras” Nos anos 60, a contracultura começa a invadir também o Brasil. Com ela, o uso da maconha deixa de ser fenômeno restrito às classes socioeconômicas mais desprivilegiadas e alcança a classe média e alta. O que era – e ainda é – motivo de prisão e atitudes coercitivas para os mais pobres se transforma em inspiração para boa parte da elite, que tinha suas experiências como a maconha como transcendentais. Em 1976, duas personalidades 18 musicais brasileiras de enorme relevância na época foram presas por porte de maconha, causando enorme repercussão sobre o assunto: os tropicalistas/rockeiros/psicodélicos Rita Lee e Gilberto Gil (Silvestrim, 2008). Ainda nos anos 70, com a ascenção do jazz jamaicano, o uso religioso e medicinal, além de protestos políticos pela legalização da maconha se popularizaram através da cultura rastafari e de versos contundentes cantados pelos expoentes do movimento, como Bob Marley e Peter Tosh. Tosh, em sua famosa música Legalize it, traz de forma brilhante alguns dos efeitos terapêuticos da plantas e porque ela deveria ser legalizada (Quadro 1). De acordo com o editor chefe da revista High Times, Steve Hager, a música de Tosh surgiu logo após a divulgação de um estudo do governo americano que estava tratando pessoas que sofriam de glaucoma com maconha. Nesse sentido, ainda no mesmo filme, Carl Hart (neuropsicofarmacologista da Universidade de Columbia) afirma que por isso mesmo é uma hipocrisia que um mesmo governo crie leis e dispositivos para reprimir e banir o uso da maconha no país ao mesmo tempo que mantém um departamento para estudos sobre seus efeitos terapêuticos. Quadro 1: Legalize it (Peter Tosh, 1976). Versão em inglês e tradução em português. Legalize It Legalize it - don't criticize it Legalize it and i will advertise it [...] Singer smoke it And players of instruments too Legalize it, yeah, yeah That's the best thing you can do Doctors smoke it Nurses smoke it Judges smoke it Even the lawyers too [...] It's good for the flu It's good for asthma Good for tuberculosis Even umara composis [...] Bird eat it And they leave it Fowls eat it Goats love to play with it Legalize Legalize-a - Não critique-a Legalize-a e eu anunciarei [...] Cantores a fumam E tocadores de instrumentos também Legalize-a, yeah, yeah Essa é a melhor coisa a fazer Doutores a fumam Enfermeiras a fumam Juízes a fumam Até os advogados também [...] É bom para a gripe Bom para Asma Bom para Tuberculose Como também para Trombose de Numara [...] Pássaros a comem E eles a deixam Aves a comem Cabras adoram brincar com ela 19 É neste contexto que no Brasil, Bezerra da Silva (1927-2005) começa a gravar, entre o final dos anos 70 e início dos 80, suas músicas mais contundentes, cantando a realidade do morro (Quadro 2). Artista que nasceu em Pernambuco e veio para o Rio de Janeiro atrás do pai, por quem foi rejeitado pela segunda vez, Bezerra foi pedreiro, pintor, mendigo, músico, umbandista, maconheiro. Conta sua biografia que foram seus amigos vizinhos, pedreiros, eletricistas que compuseram quase todas as músicas de sua obra . 4 Em 1984, embora Bezerra tivesse passado por diversas categorias dentro do mundo musical – instrumentista de rádio, orquestra, estúdio, parceiro, compositor – era na carreira de intérprete que iria focar atenções. Mas, devido aos problemas de distribuição da sua gravadora, criou estratégias próprias de comunicação e divulgação de seus trabalhos, e começou também a criar polêmicas. Tais estratégias, que incluíam shows nas comunidades pobres e distribuição de discos nas rádios comunitárias das favelas, frutificaram polêmicas sobre a forma de financiamento destes shows, uma vez a entrada era franca e geralmente ocorriam em praças da própria comunidade. Muitos destes shows eram patrocinados por traficantes do já estabelecido comércio ilegal de drogas dos morros cariocas e por bicheiros, muitos deles intimamente ligados com as Escolas de Samba do carnaval carioca. Se esta estratégia tornou Bezerra conhecido em todos os morros do Rio de Janeiro, reciprocamente lhe fez conhecer muitas destas comunidades e com elas estabelecer laços de parceria e afeto. Logo foi empossado embaixador das favelas e porta voz dos morros, criando para si um nicho mercadológico próprio nada desprezível (Silvestrim, 2008). Quadro 2: Letras de músicas de Bezerra: Música: Garrafada do Norte Doutor, Deus criou a natureza E também as belezas dessa vida Então me explique doutor Por que é essa erva é proibida? E tem gente que diz todo prosa "esta planta é maneira e medicinal Só um chá da raiz faz milagre e quem bebe fica livre do mal" Ela alegra, ela inspira, ela acalma Deixa a moçada de cuca legal E aquele que perde a cabeça É porque já tem parte com o espírito mal Música: Malandragem Dá um Tempo Vou apertar, mas não vou acender agora Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora É que você não está vendo Que a boca tá assim de corujão Tem dedo de seta adoidado Todos eles afim de entregar os irmãos Malandragem dá um tempo Deixa essa pá de sujeira ir embora É por isso que eu vou apertar Mas não vou acender agora 4 Para saber mais sobre Bezerra da Silva e sua obra vale a pena ler o Trabalho de Conclusão de Curso de Silvestrin, 2008: Fumaça e Feitiço: Maconha e Umbanda em Bezerra da Silva e o documentário Onde a Coruja Dorme, 2012. 20 Sim... Preste atenção, essa erva é a que faz garrafada no Norte Manga rosa controla a pressão, Agrião e saião deixa o pulmão forte... O progresso está se alastrando E o vegetal vai sumindo da praça Com a natureza estão acabando A cada dia que passa E esse papo de caõ-caô, seu doutor, Me dá um nó na garganta Do jeito que o senhor está fazendo Fica difícil arranjar uma muda da planta É que o 281 foi afastado5 O 16 e o 12 no lugar ficou E uma muvuca de espertos demais Deu mole e o bicho pegou Quando os homens da lei grampeiam O coro come a toda hora É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora Em 1987, um acontecimento marcaria para sempre a história da maconha no Brasil. O navio australiano Solana Star - após uma estratégica parada no Panamá, onde seus porões foram recheados de latas com maconha conservada no mel – é perseguido pela marinha brasileira, já avisada pela agência americana antidrogas (DEA) do conteúdo da carga do navio (Silvestrim, 2008; documentário Verão da Lata). Na época, Herbert Vianna e os Paralamas do Sucesso terminavam o disco Selvagem, que protestava contra o governo. Herbert pediu que Gilberto Gil compusesse uma música para fechar o disco e Gil escreveu A Novidade (Abreu, 2017): A novidade veio dar à praia Na qualidade rara de sereia Metade um busto de uma deusa maia Metade um grande rabo de baleia A novidade era o máximo Um paradoxo estendido na areia Alguns a desejar seus beijos de deusa Outros a desejar seu rabo pra ceia Oh, mundo tão desigual Tudo é tão desigual Ô ô ô ô ô… De um lado esse carnaval De outro a fome total Ô ô ô ô ô… E a novidade que seria um sonho 5 Aqui, 281 corresponde ao artigo que trata da posse de maconha, segundo o Código de 1935. Em 1974, ocorre uma reformulação nesta lei, e o artigo 16 passa a reger a conduta jurídica com relação ao tráfico de drogas, e o 12 de sua utilização (Silvestrim, 2008). 21 O milagre risonho da sereia Virava um pesadelo tão medonho Ali naquela praia! Ali na areia. A novidade era a guerra Entre o feliz poeta e o esfomeado Estraçalhando uma sereia bonita Despedaçando sonhos para cada lado Oh, mundo tão desigual… Nos anos 90, o Planet Hemp estremece a música, a polícia e a mídia com o disco Usuário, de 1995. O nome do disco e da banda, por si só, já representa uma afronta para a época. Foram várias as tentativas de censurar os discos e músicas, e enquanto isso o sucesso da banda aumentava cada vez mais. Não demorou para que todos os integrantes fossem presos acusados de fazer apologia ao uso de drogas, em 1997 (Mundin, 2004). Algumas letras podem ser vistas no Quadro 3. Quadro 3: Músicas do Planet Hemp no disco Usuário, 1995. Música: A culpa é de quem? Trabalho oito horas por dia, sete dias por semana Só por fumar uma erva, eu vou entrar em cana? Deputados cheiram, bebem e não vão para a prisão Porque é ilegal? Eles que lesam a pátria e eu sou o marginal? Não, não seja alienado, eles falam que faz mal E você aceita calado? Procure se informar Uma erva natural não pode te prejudicar Quem de nós está errado? Você consome essas merdas e eu fumo um baseado No que você pensa então? Eles pegam a palmatória e você estende a mão Desde pequeno você é induzido a fumar Induzido a beber, ouvindo a TV falar Diga não às drogas, use camisinha e pare de brigar Mas beba muito álcool até sua barriga inchar O que você tem na cabeça? Tudo que eles te falam, você acha uma beleza Aprenda a dizer não, pense um pouco, meu Música: Legalize já! Digo foda-se as leis e todas regras Eu não me agrego a nenhuma delas Me chamam de marginal só por fumar minha erva Porque isso tanto os interessa Já está provado cientificamente O verdadeiro poder que ela age sobre a mente Querem nos limitar de ir mais além É muito fácil criticar sem se informar Se informe antes de falar e legalize ganja Legalize já, legalize já Porque uma erva natural não pode te prejudicar O álcool mata bancado pelo código penal Onde quem fuma maconha é que é o marginal E por que não legalizar? E por que não legalizar? Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar Tendo que viver escondido no submundo Tratado como pilantra, safado, vagabundo Por fumar uma erva fumada em todo mundo É mais que seguro proibir que é um absurdo Aí provoca um tráfico que te mata em um segundo A polícia de um lado e o usuário do outro 22 irmão Você tem medo de quem? Eu fumo a minha erva e não faço mal a ninguém A culpa é de quem? A culpa é de quem? Portugueses escravizaram e mataram nosso irmão Militares torturaram e não foram pra prisão Eu fumo minha erva, me chamam de ladrão Os negros já fumavam a erva antes da África deixar Mas os senhores proibiram por não querer nos libertar E os senhores de hoje em dia estão proibindo também Se o pobre começa a pensar parece que incomoda alguém Crianças crescem nas ruas, não confiam em ninguém Escondem nossa cultura, referência ninguém tem O país tá uma merda e a culpa é de quem? A culpa é de quem? A culpa é de quem? A culpa é de quem? Eles roubam no planalto e não pensam em ninguém Manipulam as leis e vêm com papo furado Tudo que incomoda eles, eles dizem estar errado Então quem é o marginal? Crianças morrem por sua culpa e eu que vivo ilegal Tenho que me esconder por uma coisa natural Enquanto eles metem a mão na maior cara de pau Não vou ficar calado porque está tudo errado Políticos cruzam os braços e o país está uma merda Trabalho pra caralho e fumo a minha erva, aí eu te pergunto A culpa é de quem? A culpa é de quem? Eles vivem numa boa e o povo no esgoto E se diga não às drogas, mas saiba o que está dizendo Eles põe campanha na tevê e por trás vão te fudendo Este é o Planet Hemp alertando pro chegado Pra você tomar cuidado com os porcos fardados Não falo por falar eu procuro me informar É por isso que eu digo legalize ganja Legalize já, legalize já Porque uma erva natural não pode te prejudicar As manifestações e movimentos musicais, artísticos e sociais que influenciaram e foram influenciados pela maconha foram muitos e seguem cada vez mais crescentes, certamente tendo repercutido de diferentes modos a opinião pública e até mesmo a retomada do interesse científico e a luta pela possibilidade de mais pesquisas nessa área. 23 Em se tratando de movimento social, um momento importante para o Brasil foi a chegada da Marcha da Maconha, em 2007, primeiramente na cidade do Rio de Janeiro. Esse movimento, que hoje já mobiliza mais de 50 cidades e cada vez mais adeptos em todo o país, reúne usuários, pacientes, pesquisadores, artistas, profissionais de saúde, ativistas e demais interessados no tema, para reivindicar a legalização da maconha para os seus diversos fins (Melo, 2018; DAR, 2016). Em 2014, a Revista Superinteressante (Editora Abril), lança seu primeiro filme, o curta-metragem Ilegal (Produzido por Tarso Araujo), que conta a história de Anny Fisher, uma menina de, na época, 5 anos, com uma síndrome que desencadeia um tipo grave e incurável de epilepsia. Desde que nasceu, Anny apresentava crises frequentes de convulsões – até 80 por semana. Depois de muitas tentativas de tratamento medicamentoso alopático, sem sucesso, as convulsões de Anny finalmente foram controladas com a administração do óleo de canabidiol - composto extraído da maconha - que os pais de Anny passaram a importar ilegalmente. A saga frustrada da família contra a burocracia brasileira para a obtenção legal do óleo, as ações contra a ANVISA, a impossibilidade de importar a medicação mesmo provando a melhora surpreendente no quadro de saúde de Anny - de 40 quase 40 convulsões por semana, Anny passou a ter 1 a cada 3 ou 4 dias - até a iniciativa desses pais de se declararem publicamente como “traficantes”, em nome da saúde da filha, foi o tema principal do filme. Essa história repercutiuem todas as mídias do país, chegando a programas televisivos de grande audiência, como o Fantástico e o Encontro (Rede Globo), causando enorme comoção da opinião pública brasileira e inspirando a Campanha Repense - Informação e Reflexão Sobre a Maconha Medicinal. Essa repercussão mobilizou diversas famílias que passavam pelo mesmo drama, tanto que em 2016 o filme Ilegal se transformou em um longa-metragem que foi exibido nos cinemas de todo o país. No longa, foram apresentadas as histórias de diversas outras famílias na luta contra a burocracia brasileira para a obtenção legal desse medicamento (Superinteressante, 2014). 24 Também foi a partir da repercussão da história de Anny que tantas outras famílias e pacientes passaram a se conhecer, compartilhar suas histórias e unir suas forças, dando início ao movimento de associativismo canábico no Brasil. Desde 2015, em diversas cidades do país, familiares, pacientes, trabalhadores, ativistas e apoiadores da causa tem se organizado associativamente, de modo a coletivizar uma luta que até então vinha sendo travada em âmbito individual. Uma pesquisa realizada recentemente pelo Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas aponta que existem hoje cerca de 40 associações em defesa do uso terapêutico da maconha no Brasil (2020). Julio Americo, fundador da Liga Canábica - em entrevista ao mesmo observatório (2020) - afirma que a organização associativa amplia a força deste movimento, o poder de exercer pressão sobre os órgãos públicos e faz com que as pessoas se sintam menos sozinhas, por criar uma atmosfera comunitária entre os associados. Julio afirma ainda que cada associação tem seus próprios valores e objetivos, mas, ao seu ver, o ideal seria que a maconha pudesse ser cultivada e fornecida através do Programa Farmácias Vivas do SUS, o qual já possui legislação para o cultivo de fitoterápicos, que é como deveria se enquadrar a maconha. Além disso, é preciso aproximar os profissionais do SUS desse debate, de forma que estes saibam como acolher e orientar os pacientes. Sobre o uso recreativo ou adulto da maconha, também devemos considerar o recorte de classe que ainda hoje diferencia subjetivamente o “maconheiro” do “usuário de maconha” (MacRae, 2016). Ainda que a legislação brasileira proíba o cultivo e o uso da maconha em todo o território nacional, é certo que algumas populações estão mais vulneráveis a sofrer “a força da lei” do que outras (Carneiro, 2014). Enquanto alguns “cultivadores/growers” fazem cruzamentos genéticos, misturam diferentes cepas da planta, criando novas cepas que são patenteáveis e facilmente encontradas para venda online - fomentando, glamourizando, especializando e gourmetizando este mercado e até o uso da maconha, em outro extremo temos a guerra às drogas controlando belicamente as favelas, os negros e os pobres que, em geral, são os varejistas dessa 25 grande rede comercial, e que geralmente comercializam a maconha importada do Paraguai, prensada, mal armazenada e não raro, adulterada e de péssima qualidade (MacRae, 2016; França, 2018). Nesse contexto, os apreciadores das cepas especiais da cannabis não são vistos como uma ameaça ou como maconheiros , mas como se fossem 6 “cannabiers”, bem como os sommeliers de vinhos. Existe toda uma cultura de degustação e uso em que essas pessoas se encontram para analisar e discorrer acerca de fragrâncias e aromas das plantas crescidas de suas sementes geralmente importadas e pagas em euros (Mac Rae, 2016). “... vários cruzamentos e experiências são realizados no âmbito destas trocas, econômicas e de saberes, movidas em torno da chamada “cultura canábica”. Assim, vão ganhando o gosto e sofisticando o barato dos maconheiros. Ganham nomes próprios e personalidade, algumas, sabores frutados, como os vinhos apreciados em rodas de someliers. As sementes são patenteadas e seus criadores assinam suas criações através de pseudônimos” (Veríssimo In: MacRae, 2016) Da mesma forma, à indústria farmacêutica - segundo segmento lícito mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para a indústria bélica (Araujo, 2012), interessa priorizar a extração do canabidiol e outros compostos canabinoides de maneira isolada, ou mesmo a sua produção sintética, já que estes são produtos patenteáveis e portanto, passíveis de maior lucro. Enquanto isso, os riscos para aqueles que desejam cultivar a planta em casa para uso fitoterápico, continuam (Monteiro, 2020). O fato é que a despeito de toda a polêmica envolvendo a planta, a maconha vem sendo vista mais recentemente, em muitos lugares do mundo e também no Brasil, como uma importante commodity financeira, tanto para o agronegócio quanto para a indústria farmacêutica, a ponto de, em novembro de 2019 a planta surgir como capa da Revista Globo Rural, com a seguinte manchete: “Quem tem medo da cannabis?” A matéria começa com “Será essa uma nova commodity do agronegócio?” (Blecher, 2019). 6 termo que remonta a uma imagem pejorativa do usuário de maconha. 26 Acreditamos ser cada vez mais necessárias a reflexão e o debate exaustivo do tema, para que a regulamentação da maconha - que hoje parece ser não uma questão de “se”, mas uma questão de “quando e como” - se dê de modo a beneficiar também - e porque não principalmente - as populações que ainda hoje mais sofrem com a proibição e a Guerra às Drogas, que são as comunidades pretas, pobres e periféricas (Ribeiro, 2020) e os pacientes que precisam ter o acesso legal e financeiramente acessível, senão gratuito da planta para usos terapêuticos. Para alimentar essa discussão, traremos nos capítulos que se seguem, apontamentos históricos acerca das motivações políticas em torno da proibição da maconha, bem como a medicina por trás dessa planta, ou seja, qual o acúmulo científico sobre seus potenciais terapêuticos. “A gente tem, no desafio que está colocado hoje para a sociedade brasileira, um papel fundamental para a comunidade científica e acadêmica, que é explicar para as pessoas que a maconha é uma planta que tem um potencial de nocividade inferior ao tabaco e ao álcool, e que tem uma série de aplicações medicinais que são milenares e estão sendo usadas hoje nos países mais importantes do ponto de vista da pesquisa científica. Esse argumento é o que mudou o paradigma. A iniciativa do Tarso (Araujo) de fazer o documentário com o caso da Katiele e sua filha (Ilegal) é algo que comove esse país, mostrando que nós fomos deseducados; que houve por parte da mídia e por parte dos próprios interessados, uma verdadeira lavagem cerebral para dizer que maconha é o demônio. Existem drogas muito perigosas, uma delas é o álcool, a outra é o tabaco. A cocaína e os opiáceos têm os seus perigos, enfim… A maconha é talvez a mais inócua de todas e é a que tem a maior dimensão de usuários. Então é hora da gente apresentar propostas para um tratado de paz que não se trata apenas do Brasil, mas deum Tratado de Paz Internacional. A gente tem que tirar a lucratividade dessa economia da Guerra (às Drogas) para reverter a renda social do uso de drogas para finalidades de interesse público, Isso é perfeitamente possível e realizável no curto prazo. A gente não vai resolver os problemas do mundo, mas vai diminuir muito os problemas mais graves que hoje escandalizam a sociedade brasileira, como a promiscuidade da polícia com o narcotráfico e o uso de meios absolutamente desumanos para estigmatizar populações pobres da periferia, que ainda são insultadas com o termo maconheiro, como se isso fosse algo muito pior do que ser algo como um tabagista.” (Carneiro, 2014) 27 2. Histórico e motivações para a proibição da maconha A guerra contra a maconha foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de maconha no começo do século XX. Deve muito aos interesses de indústrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos sintéticos e papel e queriam se livrar de seu principal concorrente, a indústria do cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer sem merecimento – pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação. (Burgieman and Nunes, 2016). 2.1. Um adendo sobre o contexto estadunidense: Ao mesmo tempo em que o jazz se universalizava, a partir dos anos 20, e começava a ameaçar a segregação racial que organizava a sociedade estadunidense na época, surgia no governo do país, Harry Jacob Aslinger que enquanto Comissário do Serviço de Narcóticos dos EUA de 1930 a 1962, coordenaria o maior programa de combate às drogas já visto na história. Aslinger é considerado, ainda hoje, o “pai do proibicionismo”. Aslinger foi o principal responsável pela campanha de difamação da maconha em nível mundial. Promovida pelo governo, com financiamento e apoio do grande empresariado estadunidense, essa campanha midiática de difamação da planta foi feita através da produção e veiculação em massa de filmes, campanhas publicitárias, programas de TV, movimentos religiosos de preservação dos valores da família cristã, além de inúmeras matérias jornalísticas e notícias relacionando os mais diversos tipos de crimes e transtornos mentais ao uso da maconha. Também foi nessa época que o governo estadunidense deixou de usar o termo Cannabis para usar Marijuana, que estaria mais facilmente associado aos mexicanos, que na época já migravam para os EUA e eram considerados uma ameaça, tanto quanto os negros (Burgieman and Nunes, 2016; Baz Dreisinger, Netflix, 2019) Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da petrolífera Gulf Oil (fundada em 1901) e um dos principais investidores da 28 indústria têxtil Du Pont. Segundo Herer (1994), nos anos 20, a indústria estava desenvolvendo diversos produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação do papel de celulose, tudo isso em meio a grande crise de 1929. O petróleo, o náilon e a celulose tinham todos uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo. Além de cristão metodista, defensor da moral, da família, e das leis de segregação racial, Aslinger também possuía, portanto, grande interesse econômico em acabar com a maconha nos EUA. Para apoiá-lo nessa missão, contaria com um poderoso aliado: seu cunhado William Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais dos EUA (Klitzke, 2019). Hearst era a pessoa mais influente dos Estados Unidos na época. Milionário, comandava suas empresas de um castelo considerado monumental, na Califórnia. Lá recebia artistas de Hollywood para passear por seu zoológico particular e apreciar festas em sua piscina coberta, toda adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst odiava publicamente os mexicanos. Dizem que parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa (que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade sua. Além disso, Hearst era dono de terras onde plantava eucaliptos para a produção de papel. Foi ele o principal financiador das campanhas difamatórias sobre a maconha dos EUA (Herer, 1994; Mazzuco, 2011; Burgieman and Nunes, 2016; Netflix, 2019) A maconha foi proibida nos EUA por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon [...] Mas isso também abriu espaço para intervenções militares americanas [...] Virou um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos (Wálter Maierovitch Apud Burgieman and Nunes, 2016) A proibição das drogas - principalmente da maconha - foi uma importante ferramenta de controle econômico do mercado, além de legitimar a 29 perseguição, encarceramento e morte de populações específicas, a quem era interessante aos governos reprimir e controlar. Além disso, segundo Carneiro (2019), a proibição gera um hipervalor, uma inflação sobre o produto “drogas” e grande acumulação de capital por quem gerencia sua comercialização clandestina. Por outro lado, drogas legalizadas arrecadam boa parte dos impostos em diversos países, através da grande indústria farmacêutica (“Big Pharma”). Trata-se também, portanto, de escolher qual droga regulamentar ou não, numa perspectiva também de controle e criminalização social (Lunardon, 2014) 2.2. Racismo e proibicionismo: uma relação bilateral de sustentação? “A proibição de drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das minorias [...] como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia” (Thiago Rodrigues In: Burgieman and Nunes, 2016) Embora tenha sido a política proibicionista estadunidense dos anos 30 a responsável por influenciar e ampliar o proibicionismo de drogas em quase todo o mundo, essa onda de proibição já rondava o Brasil desde o final do século XIX. O Brasil, último país das Américas a abolir a escravatura, foi, por outro lado, o pioneiro na proibição da maconha. Com a função de manter a tranquilidade da ordem pública e o patrulhamento da cidade, em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia. À medida que seus truculentos membros passavam paulatinamente a substituir os antigos capitães-do-mato, sua atuação relacionava-se à “polícia de costumes”, ou seja, repressão de festas com cachaça, música afro-brasileira e, evidentemente, maconha (Barros e Peres, sd). A história da criminalização da maconha no Brasil remontaao início do século XX, embora a sua proibição, no caso do Rio de Janeiro, venha mais de longe. Em 1830, no Império, o código de posturas da Câmara Municipal estabelecia 30 a proibição da venda e do uso do Pango (Lei do Pito de Pango). Uma reportagem do GLOBO, publicada em outubro de 1930, lembrava que, cem anos antes, a Câmara do Rio já havia fixado punições para “os contraventores”. No grupo estavam incluídos o vendedor do Pango, que pagaria multa, e “os escravos e mais pessoas que delle usarem (sendo punidos) em três dias de cadeia”. Mas o código dos primórdios do Império parecia letra morta. Segundo a reportagem, a “Diamba” era vendida no início dos anos 30 em herbanários da então capital da República [...] Em 1912, a Convenção Internacional sobre o Ópio, em Haia, recomendou aos estados signatários que avaliassem tornar crime a posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados. Sob inspiração dessa convenção, em 1921, entrou em vigor no Brasil o decreto 4.294. Conforme os estudos do advogado criminalista André Barros, mestre em Ciências Penais, e de Marta Peres, doutora em Sociologia, o decreto punia somente o comércio de “substância de qualidade entorpecente”. Era a época dos herbanários do “Pito do Pango”. Em 1931, foi realizada a Convenção de Genebra, regulamentando as convenções anteriores e, no ano seguinte, entrou em vigor no Brasil o decreto que passava a penalizar também o usuário, diferenciando-o do traficante. Mais tarde, decreto-lei de 1938 proibiu a produção, o tráfico e o consumo de entorpecentes e estabeleceu a toxicomania como doença compulsória, tratando ainda da internação e da interdição dos toxicômanos. Em 1940, entrou em vigor o novo Código Penal, que fixava pena de reclusão de até cinco anos para a “conduta de tráfico”, aplicada também ao usuário. A punição estava prevista no artigo 281, citado até em música do sambista Bezerra da Silva: “Malandragem dá um tempo” (O Globo, 2014) Em 1924, na II Conferência Internacional do Ópio, ocorrido em Genebra, na Suíça, foram as declarações do médico brasileiro Dr. Pernambuco que deram força para que, ao final desta Conferência, o uso da maconha fosse deliberado como danoso e que, portanto, precisava ser condenado. Na ocasião, a pauta da Conferência era a discussão acerca do ópio e da coca, mas Pernambuco insistiu em poder falar sobre o uso da maconha. Embora soubesse que os participantes da conferência não estavam preparados técnica e teoricamente para este debate, apresentou sua tese de que o uso da maconha era algo absolutamente prejudicial, que tornava as pessoas violentas e colocava sobretudo as mulheres brancas e virgens em risco, uma vez que nos “pretos fumadores de maconha” a planta acendia seu instinto violento e estuprador (Kendell, 2003; Carlini, 2005). Na década de 30, contemporaneamente às primeiras políticas de proibição da maconha nos EUA, começam a surgir no Brasil as primeiras 31 prisões de “fumadores” de maconha, enquanto que os comerciantes da planta levavam uma multa. Importante salientar aqui que nessa época os comerciantes de maconha eram os brancos de classes ascendentes, donos das boticas, enquanto que os usuários eram majoritariamente negros. Os estados do Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Alagoas e Bahia foram os primeiros atingidos por essa lei. Eram também os Estados em que a maioria da população era negra (Carlini, 2005; Carneiro, 2019). Em 1937 o governo estadunidense lança o Tax Act, uma lei de taxação de impostos altíssimos sobre todo e qualquer uso, cultivo ou venda da maconha, ainda que para uso industrial. O governo encomendou também uma série de materiais, como artigos em jornal, filmes, comerciais, relatórios e outros produtos e argumentos que ligavam a maconha ao aumento da criminalidade e da violência (Musto, 1972). Em contraponto ao governo federal, La Guardia - prefeito de Nova York na época - encomendou um complexo relatório intitulado “The Marijuana Problem in the NYC: Sociological, Medical, Psychological and Pharmacological Studies” (1944). Foram desenvolvidos uma série de estudos, em diversas áreas que contribuíram para a produção deste relatório que, ao final, concluiu, de forma resumida que: “o uso da maconha não não tem relação direta com a violência, não leva a criminalidade, não leva ao vício e possui potenciais terapêuticos”. O relatório também afirmava que as informações disseminadas por Aslinger no Tax Act não possuíam base científica e que após a aprovação dessa lei, pessoas negras passaram a representar 78% das prisões por maconha só em Nova York (Musto, 1972; Netflix, 2019). A despeito dos estudos encomendados por La Guardia, o Tax Act continuou vigente e até legitimado por outras ações, como por exemplo, pela Convenção Única de Entorpecentes da ONU (1961), do qual o Brasil é signatário. Ela considera a maconha uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, comparando-a à heroína – classificada na famosa Lista I , onde estão situadas as substâncias consideradas sem nenhuma utilidade e 7 7 Numa lista que divide as substâncias em cinco categorias, sendo a lista I aquela em que as substâncias não têm nenhum valor benéfico, até a 5ª lista, onde se encontram as substâncias com maior potencial de uso e que portanto merecem ser estudadas. 32 que portanto devem ser proscritas para todo e qualquer tipo de uso (Kendell, 2003; Hart, 2014) Ao longo dos anos, as leis foram ficando ainda mais severas até chegarem à Lei de Substâncias Controladas e à Criação do DEA, entre outras ações da lei de drogas de 1970, de Nixon, que logo se tornaria mundialmente conhecida e difundida como “War on Drugs” ou Guerra às Drogas (Gomes, 2012; Netflix, 2019). Maurício Fiore, em entrevista para a série Drauzio Dichava (2019) , 8 afirma que tudo isso se deu também porque, após o fracasso da Lei Seca nos EUA (1920-1933), o Estado se vê com todo um aparato policial e jurídico investido e agora sem uso. Segundo ele, foi esse aparato público que acabou dando origem à criação do DEA - especialmente com o objetivo agora de perseguir o uso da maconha - a partir do momento que ela entra no “mainstream” americano, e que isso também teria sido uma consequência da própria Lei Seca já que, quando se proíbe o álcool , a maconha começa a 9 entrar nas casas americanas com mais força. Esse fenômeno é uma das primeiras evidências de que o proibicionismo não funciona, já que explorar a consciência é parte intrínseca daqueles que a têm. Além disso, a classe média acabou descobrindo que a maconha trazia bem menos efeitos colaterais que o álcool, o que culminou no seguinte cenário: anos depois, quando o álcool é novamente legalizado, a maconha já faz parte da vida dos estadunidenses e nela permanece. Isso acaba justificando ainda mais o uso do aparato de controle já montado e investido pelo Estado, através da proibição e perseguição da maconha, uma vez que era necessário
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