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Da Proibição aos Usos Terapêuticos da Maconha - Um Diálogo Livre entre a Literatura Convencional e Não-Convencional sobre o Tema - Fernanda Soncini

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO 
CAMPUS BAIXADA SANTISTA 
INSTITUTO SAÚDE E SOCIEDADE 
CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL 
 
 
 
Fernanda Soncini 
 
 
 
 
 
 
DA PROIBIÇÃO AOS USOS TERAPÊUTICOS DA MACONHA: 
UM DIÁLOGO LIVRE ENTRE A LITERATURA CONVENCIONAL 
E NÃO-CONVENCIONAL SOBRE O TEMA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SANTOS 
2020 
I 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO 
CAMPUS BAIXADA SANTISTA 
INSTITUTO SAÚDE E SOCIEDADE 
CURSO DE TERAPIA OCUPACIONAL 
 
Fernanda Soncini 
 
 
 
DA PROIBIÇÃO AOS USOS TERAPÊUTICOS DA MACONHA: 
UM DIÁLOGO LIVRE ENTRE A LITERATURA CONVENCIONAL 
E NÃO-CONVENCIONAL SOBRE O TEMA 
 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado 
para obtenção do título de Graduação em 
Terapia Ocupacional do Instituto Saúde e 
Sociedade da Universidade Federal de São 
Paulo. 
Orientadora: Profª. Dra. Luciana Togni de 
Lima e Silva Surjus 
 
 
 
 
 
SANTOS 
2020 
 
 
II 
 
 
 
 
 
 
 
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio 
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. 
 
 
 
 
 
 SONCINI, Fernanda. 
 
Da proibição aos usos terapêuticos da maconha: um diálogo livre entre 
a literatura convencional e não-convencional sobre o tema. 
76p. Trabalho de Conclusão de Curso 
 
Graduação em Terapia Ocupacional. Instituto Saúde e Sociedade 
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 
 
Santos/SP. Agosto/2020 
 
Orientadora: Profª. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus 
 
Referencial bibliográfico. p. 56. 
 
Palavras-chave: maconha; uso terapêutico; racismo; proibição. 
 
 
III 
AGRADECIMENTOS 
 
 À minha orientadora Luciana Surjus, por ser esse fenômeno da natureza! Uma 
mulher que admiro por andar aquilo que fala, por pôr em prática o acolhimento, a 
generosidade e o trabalho sobre o qual tanto falamos. Pela sua doçura firme, sua 
maternagem, assertividade, cuidado e pela orientação tão atenciosa, a melhor que já tive. 
Me ensina e inspira muito. 
 Aos pesquisadores, artistas, usuários, colegas, todos que acumularam 
conhecimento científico e empírico, que me ensinam e me possibilitam entregar um 
trabalho com tantas experiências acumuladas. 
A todas as pessoas que passaram pela minha vida e me ensinaram tanto, dentro e 
fora da academia. Impossível citar nomes sem ser injusta, mas aos amigos que se foram, 
àqueles que resistiram e tomaram seus destinos pelas mãos, contrariando as estatísticas 
e aos amigos que continuam topando as nossas partilhas cotidianas, meu muitíssimo 
obrigada! 
Aos meus pais, que acertaram mesmo pensando que estavam errando e que tanto 
se culparam por não poderem pagar pela minha educação ou para que vivêssemos em 
um lugar melhor. Pois vos digo que foi ali que me forjei atenta e sensível às 
desigualdades sociais e à importância de construir uma democracia real, solidária, 
universal, de valorização do público e da garantia de direitos. Pela possibilidade de me 
tornar o que sou hoje, me protegendo, mas não me privando de ver e viver a vida como 
ela é, lhes saúdo e agradeço. 
Ao meu companheiro e amigo Rodrigo Silva, que há me ensina a lidar com as 
coisas normais da vida, os altos e baixos, os dias mornos, as eventuais sensações de 
vazio e tudo isso que para mim sempre foi difícil. Você diz que admira minha inteligência, 
mas ela tem sido muito melhorada pela sua sabedoria. Amo a sua generosidade sincera, 
a maneira como me apoia e me escuta e como está sempre e cada vez mais disposto a 
IV 
se rever. Amo a nossa família nada tradicional e a paciência que tem comigo toda vez que 
mudo de planos do nada e te carrego nas minhas loucuras. Obrigada por tanto! 
À minha querida amiga e presente deste século, Patrícia Carvalho, que me 
ofereceu o abrigo necessário para que eu pudesse concluir com saúde mais essa etapa 
da minha vida, meu eterno agradecimento. Você foi e é parte fundamental para tudo isso! 
À Giovana Zanchetta e Gabi Andrade, pelo acolhimento e apoio e ao parceiro de 
quarentena Fábio Ribeiro, pelas longas conversas no café da manhã com cuscuz, ovos e 
consciência de classe. 
Um agradecimento muito especial aos meus colegas do grupo Div3rso, 
especialmente Angelo, Otaviano, Helena, Danilo e Jardim por sempre permitirem uma 
troca de saberes honesta e afetuosa. À minha amiga Lena, que mesmo em época de 
quarentena, longe geograficamente, não esqueceu de mim nem por uma semana sequer. 
Que se preocupou e acompanhou todo esse processo com afeto, verdade e paciência. 
Que surpresa boa a sua existência interferindo na minha! 
À Unifesp e a todo seu corpo de trabalhadores, terceirizados, concursados, 
contratados, convidados… todos e todas que têm segurado na unha a excelência da 
universidade pública. E ao grupo de estudo, pesquisa e extensão Div3rso, que me 
concedeu bolsas de estudo para o desenvolvimento de projetos que além de me 
enriquecerem muitíssimo profissionalmente, também possibilitaram materialmente a 
minha permanência e finalização deste curso, em pleno período de desmonte das 
universidades públicas e de tudo que a humanidade construiu de bom até agora. Em 
defesa de um SUS e de uma universidade pública de qualidade, AVANTE! 
 
 
 
 
 
 
 
V 
LISTA DE FIGURAS 
 
Figura 1 - Breve histórico dos registros de uso da Cannabis em todo o mundo. Imagem 
gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. …………………………….………….... p. 03 
 
Figura 2 - Breve histórico dos avanços na investigação sobre os mecanismos de ação 
dos canabinóides. Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. … p. 06 
 
Figura 3: Usos e aplicações da maconha. Fonte: Google Imagens, 2019 ……….…… p. 13 
 
Figura 4: Mecanismo de ação dos endocanabinóides …………………………………... p. 44 
 
 
VI 
LISTA DE QUADROS 
 
Quadro 1: Letra da música Legalize it (Peter Tosh, 1976). Versão em inglês e tradução em 
português ….………………………………………………………………………………..… p. 18 
 
Quadro 2: Letras de músicas de Bezerra da Silva ………………………………………. p. 19 
 
Quadro 3: Músicas do Planet Hemp no disco Usuário, 1995 …………………………… p. 21 
 
 
VII 
LISTA DE TABELAS 
 
Tabela 1: Panorama das legislações e movimentos sociais internacionais no século 
XXI …………………………………………………………………………………………….. p. 37 
 
Tabela 2: Histórico das legislações de drogas nos séculos XIX e XX no Brasil ……… p. 38 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VIII 
SUMÁRIO 
 
1. INTRODUÇÃO …………………………………………………………….………………….. p. 02 
2. OBJETIVOS …………………………………………………………………………………… p. 07 
II.i. GERAL …………………………………………………………………………………….. p. 07 
II.ii. ESPECÍFICOS …………………………………………………………………………… p. 07 
3. METODOLOGIA ………………………………………………………………………………. p. 08 
III.i. PERCURSO METODOLÓGICO ……………………………………………………….. p. 10 
III.ii. NOTA SOBRE A BUSCA NA LITERATURA CONVENCIONAL …….………………. p. 11 
4. RESULTADOS ………………………………………………………………….……………. p. 13 
1. A maconha na sociedade ……………………………………………………………. p. 13 
2. Histórico e motivações para a proibição da maconha …………………………… p. 27 
2.1. Um adendo sobre o contexto estadunidense ……………..…………………. p. 27 
2.2. Racismo e proibicionismo: uma relação bilateral de sustentação? ……….. p. 29 
3. A proibição das drogas e as ofertas de cuidado: uma política promotora de 
danos ………………………………………………………………………………….. p. 34 
3.1. A política proibicionista …………………………………………………………. p. 35 
4. A maconha na ciência ……………………………………………………………….. p. 40 
4.1. O sistema endocanabinoide ………………………………………………….... p. 42 
4.1.1. Ligantes endocanabinoides ………………………………………… p. 43 
4.1.2. Mecanismo de ação e síntese ……………………….………..…… p. 44 
4.1.3. Funções biológicas …………………………………………………... p. 45 
4.2. Potencialidades terapêuticas da maconha …………………………………... p. 46 
4.2.1. Efeito comitiva? ……………………........................................................... p. 48 
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………………………………….. p. 51 
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ……………………………………………………………..p. 56 
 
 
1 
RESUMO 
 
Este trabalho se propôs a fazer uma revisão bibliográfica da literatura 
convencional e não convencional acerca dos interesses e motivações que 
levaram à proibição dos usos da maconha e tambèm à retomada do debate e 
das pesquisas dos usos e potenciais terapêuticos da planta. O uso da literatura 
convencional e não convencional buscou a tessitura de um diálogo livre e 
diverso das perspectivas históricas, sociais, culturais, econômicas, políticas, 
jurídicas e biomédicas sobre os diversos usos da maconha pelas populações. 
 
 
Palavras-chave: maconha; uso terapêutico; racismo; proibição. 
 
 
2 
 
I. INTRODUÇÃO 
 
“El cañamo es el “dador de alegria”, el “navegante 
celestial”, el “mitigador del duelo”. Ningún dios, ningúm hombre 
es tan bueno como el libador del cañamo.” (Schultes and 
Hoffman, 1982) 
 
Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde? Então, por que 
o bacon não é proibido? Ou o açúcar? Ou o tabaco? O que motiva essa 
proibição e como ela impacta a sociedade? Muitas dessas perguntas 
mobilizaram e mobilizam a comunidade científica, movimentos e grupos sociais 
interessados ou atravessados pelo tema, sendo essa a motivação para a 
reflexão aqui realizada. 
Ilícita no Brasil, a ​Cannabis sp.​, popularmente conhecida como maconha 
é a “droga ” mais conhecida e utilizada pelos diferentes grupos humanos, 1
desde sempre, ao redor do mundo. Essa e outras plantas psicoativas, cada 
uma com uma propriedade distinta - como a folha de coca, o ópio, o tabaco - 
fazem parte da cultura humana de consumo de substâncias, estando presentes 
em todos momentos da história, ainda que tradicionalmente regionalizados 
(Boiteux, 2006). Podemos dizer que cada agrupamento humano, em cada parte 
do mundo descobriu espécies psicoativas e com elas cultivou seus rituais de 
cura, alimentação e entorpecimento, sem inclusive, que tais sentidos fossem 
separados entre si, já que a concepção de corpo e mente era integrada e havia 
uma cosmovisão no entendimento da relação entre homem e natureza 
(Torcato, 2016). 
A maconha é possivelmente a primeira planta cultivada e domesticada 
pelo homem não apenas para fins alimentícios, sendo inclusive, uma das 
primeiras plantas incorporadas ao sistema que hoje chamamos de agricultura 
(Fiore, 2019) 
1 Antes do estabelecimento dos controles políticos, a palavra “droga” não significava necessariamente 
algo ruim, mas também como algo que podia ter efeitos positivos a partir de aplicações alimentares, 
terapêuticas e lúdicas, contribuindo para controlar as dores, os desconfortos decorrentes das 
enfermidades e as emoções indesejadas. Podiam trazer paz, fortalecer a cognição e os limites da 
vontade. Eram usadas também como forma de exploração psíquica de caráter laico ou com fortes 
significados espirituais (Torcato, 2016). 
3 
 
Achados arqueológicos datam de mais de 10.000 anos, quando a planta 
era utilizada para a obtenção de fibras (Fig. 1). Os primeiros registros de uso 
terapêutico da maconha se dão na China, por volta de 2700 a. C., descritas por 
Shen Nun na ​Pen-T'sao Ching, a mais antiga farmacopeia existente. Fazia-se 
uso da planta para tratar dores reumáticas, constipação, transtornos 
reprodutivos femininos (como cólicas e endometriose) e malária. Considerado 
o pai da cirurgia chinesa, Hua Tuo, desenvolveu um componente anestésico a 
base de vinho e maconha durante o século I a.C. (Abel, 1980; Mechoulan, 
1986; Childers and Breivogel, 1998) 
Na Índia, o uso religioso foi descrito por volta de 2000 a.C., quando se 
acreditava que a planta era um presente dos deuses aos homens, capaz de 
provê-los de prazer e coragem. ​Registros semelhantes são encontrados em 
relatos no Oriente Médio, África, Eurásia e até na Europa, onde em 1838, 
William Brooke O'Shaughnessy, um médico irlandês, publicou – após 
experimentos com animais e humanos – um livro intitulado ​On the Preparations 
of the Indian Hemp, or Gunjan​. No Tibet, no século VI a.C., a maconha era 
usada em rituais budistas e tântricos para "facilitar a meditação", enquanto 
assírios a usavam como incenso. ​No Oriente Médio o uso da Cannabis ainda é 
aceito e considerado sagrado ​(Abel, 1980; Mechoulan, 1986; ​Fiore, 2019​). 
 
 
Figura 1 - Breve histórico dos registros de uso da Cannabis em todo o mundo 
Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. 
 
Embora os fitocanabinoides sejam lipossolúveis, seu uso na forma de 
chá é popular na Índia (​“bhang”​) e entre alguns povos amazônicos do Brasil. 
4 
 
Na Índia o chá era oferecido - entre outros usos - à noiva, no dia do casamento, 
para promover relaxamento, desinibição e melhorar a noite de núpcias. Os 
povos amazônicos relatam que antes da proibição, plantavam em seus 
territórios como qualquer outra planta e faziam o uso do chá - feito por infusão - 
para fastio, banzo, congestão, gases ou falta de apetite ​(​Abel, 1980; 
Mechoulan, 1986; Tovar, 201​6; Dirijo, 2008) 
Na Renascença, a maconha era um dos principais produtos agrícolas da 
Europa. Além das páginas de papel de cânhamo dos primeiros livros impressos 
- inclusive a Bíblia - artistas plásticos pintavam em telas feitas com fibras de 
cânhamo. A palavra Canvas (de ​“oil on canvas”, que hoje é traduzida como 
“óleo sobre tela”), é uma variação holandesa do latim 'cannabis' (Barros e 
Peres, sd). 
O cultivo de cânhamo era uma política de Estado massiva em Portugal 
durante o período das Grandes Navegações, pois ele fornecia boa parte do 
material das embarcações portuguesas (Robinson, 1999). O produto obtido das 
fibras do cânhamo, dotado de rigidez e elasticidade, proporcionava às 
caravelas uma enorme velocidade. Incluindo velame, cordas e outros materiais, 
estima-se que havia cerca de 80 toneladas de cânhamo no barco comandado 
por Cristóvão Colombo na invasão das Américas, em 1496. Foi inclusive 
através dessa expansão ultramarina que se deu a globalização das drogas 
(Robinson, 1999, Carneiro, 2019). 
A partir do século XV foi que drogas utilizadas localmente, por 
determinados povos, em determinados contextos, com determinados 
propósitos passaram a ser conhecidas e utilizadas por outros grupos, das mais 
diversas formas. Nessa época, substâncias que hoje conhecemos como drogas 
eram comercializadas como especiarias, sem distinção ou julgamento moral 
sobre elas: açúcar, café, canela, cravo, tabaco, maconha, coca, noz moscada, 
pau-brasil, pimenta e outras (Carneiro, 2005 In: Venâncio e Carneiro, 2005). 
Inclusive, foi em torno do comércio desses “produtos exóticos”, convertidos em 
itens da dieta cotidiana de inúmeras populações, que se desenvolveu o 
moderno mercado mundial. - o Brasil, por exemplo, continua sendo até hoje um 
5 
 
dos maiores produtores e exportadores mundiais de álcool de cana (Labate et 
al., 2008) 
Foram vários os acontecimentos que marcaram o advento da 
modernidade – o absolutismo europeu, o renascimento cultural, a reforma e a 
contrarreforma religiosa, a revolução científica e o comércio transoceânico 
ampliado. Nesse período,plantas, microorganismos, animais e até seres 
humanos foram transportados de um lado a outro. A batata, o trigo e o milho 
deram a base material para a multiplicação da população mundial. Um 
fenômeno igualmente importante, mas não tão considerado foi a ampliação da 
possibilidade das populações em todo o mundo de alterarem suas consciências 
com substâncias até então utilizadas apenas regionalmente. A intensificação 
das trocas comerciais e culturais entre os povos teve como uma das 
consequências a mundialização de alguns psicoativos, fenômeno que ficou 
conhecido como Revolução Psicoativa (Courtwright, 2001). 
É preciso lembrar também que existe uma relação intrínseca entre as 
drogas e o capitalismo moderno, em vários aspectos: desde os processos que 
levaram e ainda levam à sua regulamentação ou criminalização, até a sua 
capilaridade e aplicações, ou seja, que tipo de substâncias serão 
regulamentadas, quais terão seu uso até mesmo incentivados e quais serão 
criminalizadas; quem usará quais substâncias e de que forma (Carneiro, 2019). 
Desde a época da acumulação primitiva de capital as drogas já eram 
uma importante “commodity”, seguindo assim a medida em que o capitalismo 
moderno e a Revolução Industrial avançaram (Souza, 2015). Nesse período 
houve a transformação do trabalho e passou-se a exigir-se do trabalhador que 
ele passasse a maior parte de seu dia exercendo, geralmente, esforços 
repetitivos por longas horas seguidas, o que era exaustivo e insalubre. 
Também passou-se a exigir o aumento crescente da produtividade em nome 
do lucro. Para tanto, o uso de drogas pelos trabalhadores passou a ser 
“selecionado” de acordo com os interesse do capital, que agora é quem decide 
quais substâncias serão regulamentadas e quais serão proscritas. (Souza, 
2015; Carneiro, 2019). 
6 
 
Nutt et al. (2010) publicaram um complexo estudo onde avaliaram a 
periculosidade de diversas substâncias consideradas drogas a partir da análise 
dos riscos físicos, psicológicos e sociais causados para o usuário e/ou 
sociedade. Os resultados apontaram não existir necessariamente uma relação 
entre os riscos oferecidos pelo uso das substâncias e as leis que a 
regulamentam ou proíbem, uma vez que o álcool foi, de longe, a substância 
que mostrou trazer mais riscos para o usuário, as pessoas ao redor e a 
sociedade (num score de 0 a 80, o álcool apresentou score 72 para riscos ao 
usuários e à sociedade). A maconha, por sua vez, aparece próxima ao tabaco - 
outra substância lícita - apresentando, respectivamente, scores de risco para o 
usuário e a sociedade de 20 e 26. Tais resultados nos levam a refletir, portanto, 
quais seriam os critérios considerados ao legalizar e regulamentar uma 
substância em detrimento da criminalização de outra? 
Este trabalho buscou compreender, através de uma revisão na literatura 
convencional e não convencional, alguns dos fatores que motivaram a 
proibição e a difamação da maconha - a despeito de todo seu histórico de uso 
industrial, terapêutico, espiritual e hedonístico - sobretudo no Brasil e nos EUA 
a partir do início do século XX, bem como a retomada das pesquisas sobre 
seus potenciais e aplicações terapêuticas a partir do final do século XX (Fig. 2). 
 
 
Figura 2 - Breve histórico dos avanços na investigação sobre os mecanismos de ação dos 
canabinóides. Fonte: imagem gentilmente cedida por Bittencourt, RM, UFSC. 
 
 
 
7 
 
II. OBJETIVOS 
 
 
II.i. GERAL 
C​ompreender o processo de proibição do consumo da maconha e de 
sua retomada para a finalidade terapêutica. 
 
 
II.ii. ESPECÍFICOS 
● Mapear a literatura científica e não convencional acerca da história do 
uso da maconha na humanidade; 
● Identificar as peculiaridades históricas e possíveis interesses na sua 
proibição; 
● Verificar as principais indicações contemporâneas que têm sustentado o 
reconhecimento de seu potencial terapêutico. 
 
 
 
8 
 
III. METODOLOGIA 
 
As pesquisas científicas de revisão bibliográfica geralmente contam com 
o uso de artigos científicos indexados - a chamada literatura branca ou 
convencional (Côrtes, 2006) - ou seja, aqueles que são aprovados previamente 
por pareceristas pesquisadores e publicados em revistas certificadas. 
Por outro lado, é crescente o movimento que reconhece e valida o uso 
de outros tipos de produções - chamadas de literatura cinzenta ou não 
convencional (Población et al., 1995), que podem ser entendidas como o 
conjunto de documentos técnicos ou científicos, dos mais variados tipos, tais 
como: relatórios, manuais, atas de reunião, apostilas, resumos, sites, 
produções audiovisuais e outros produtos que fazem parte de uma enorme 
gama de materiais que não estão indexados nos canais de pesquisa e 
divulgação científica, embora possa conter conteúdo científico, mas também 
relatos, registros, vivências, etc (Côrtes, 2006). 
O reconhecimento deste tipo de literatura vem crescendo desde o final 
do século XIX, devido ao seu grande poder de comunicação e propagação do 
conteúdo (Población, 1992) - características importantes a serem reconhecidas 
e estudadas, o que contribui para o crescimento e validação do uso desse tipo 
de material nas revisões científicas (Población et al., 1995). 
Outro importante fator relacionado a esse tipo de literatura diz respeito a 
ela ser, na maioria das vezes, a fonte primária de informações disponíveis, 
envolvendo pesquisas interdisciplinares – e também por esse motivo vem 
sendo mais aceita pelos pesquisadores (Côrtes, 2006). Muitas pesquisas, ao 
serem divulgadas em eventos ou publicações científicas, perdem o caráter 
multi ou interdisciplinar, porque não há nos meios indexados - onde publicamos 
e divulgamos a literatura convencional - um formato de publicação que permita 
envolver todas essas informações (Correia e Neto, 2001) 
Algumas das características da literatura não convencional foram 
sintetizadas por Côrtes (2006), como: maior velocidade de difusão da 
informação, diferentes suportes físicos (meios eletrônicos, audiovisuais, 
materiais impressos e outros); a autoria, que pode ser individual, de um grupo, 
9 
 
de uma instituição, organização ou evento; a dificuldade de catalogação deste 
material, por não haver um sistema de busca específica (controle bibliográfico); 
a baixa perenidade, sendo seu uso justificado pelo aumento de acessibilidade 
às publicações, o que possibilita uma ampliação na multiplicação de ideias, 
conceitos, proposições entre outros indicadores. 
Como este trabalho se voltou a reunir informações sobre as motivações 
que levariam tanto à proibição da maconha, quanto o seu posterior 
ressurgimento na ciência e na mídia, o uso da literatura não convencional foi 
sendo considerado fundamental para que se construísse um diálogo entre as 
informações produzidas e disponibilizadas nas bases científicas - literatura 
convencional - e o que está disponível na literatura não convencional, sobre 
aquilo que está acontecendo simultaneamente nesses momentos históricos. 
Como critério de seleção dessa literatura, optou-se por utilizar 
principalmente revistas, documentários,músicas, jornais, relatórios 
institucionais e produções de movimentos sociais autônomos. A partir desse 
critério, foram excluídas produções audiovisuais ou impressas voltadas ao 
entretenimento e cultura canábica. Essa escolha foi feita por avaliarmos que 
muitos desses materiais estigmatizam a figura do “maconheiro” e muitas vezes 
desinformam, reforçam preconceitos, glamourizam ou banalizam a questão. 
Embora a análise deste material seja algo que mereça profunda e urgente 
atenção, não era esse o escopo desta revisão. 
Essa pesquisa foi realizada ao longo de 2019 e 2020. A princípio foram 
selecionados m​ateriais em espaços de conhecimento prévio das autoras, e 
posteriormente em demais sítios identificados a partir dos primeiros materiais 
consultados. Priorizamos a análise de materiais sobre diferentes aspectos 
envolvendo o uso, a proibição e os potenciais terapêuticos da maconha desde 
o início do século XX até meados de 2019, ​principalmente no Brasil e nos EUA, 
já que este último segue exercendo grande influência sobre a formulação de 
políticas públicas em todo o mundo. 
Optamos por realizar ​um estudo exploratório descritivo, começando pelo 
processo de escolha da bibliografia, observando os possíveis atravessamentos 
na compreensão e no debate sobre o tema a partir do tabu que o cerca, 
10 
 
considerando diversos olhares, perspectivas, saberes e posições 
ético-políticas. 
Através de um diálogo entre a produção convencional e 
não-convencional, buscamos incentivar e ampliar o livre debate de ideias que 
são geralmente estereotipadas. Os resultados serão apresentados através de 
capítulos formulados a partir das categorias de análise da bibliografia 
selecionada. 
Fundamentada essa escolha, vale salientar que a academia e sua 
produção ainda está, muitas vezes, afastada da comunidade - existe 
dificuldade de acessar os artigos e quando não, a linguagem, na maioria das 
vezes permanece inacessível. Entretanto, é preciso compreender melhor as 
questões que atravessam a população mais diretamente envolvida com a 
temática das drogas, sobretudo da maconha, que é hoje a substância proscrita 
mais consumida no Brasil e no mundo (Cebrid, 2004), com as mais diversas 
finalidades (MacRae, 2016), bem como levar adiante esse debate de maneira 
descolonizada. 
“A maconha é um mito que precisamos acabar com ele” 
(Lobo, 1954 Apud MacRae e Alves, 2016) 
 
III.i. PERCURSO METODOLÓGICO 
A busca pelo material de referência foi realizada primeiramente nas 
bases de dados científicas: Scielo, Pub Med e ​Google Scholar​. Também foram 
selecionados artigos e livros disponíveis nas páginas dos seguintes grupos de 
pesquisa: Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos), 
Lehda-FFLCH/USP (Laboratório de Estudos Históricos das drogas e da 
Alimentação) e CETAD/UFBA (Centro de Estudos e Terapia de Abuso de 
Drogas da Universidade Federal da Bahia). 
Como bases para busca do material não convencional, incluímos o 
Youtube​Ⓡ​, a partir do qual foram selecionados vídeos da websérie ​Crack 
Repensar​, a série ​Drauzio Dichava (do canal do Dr. Drauzio Varella, sobre uso 
adulto de maconha), as palestras em vídeo do Fórum ​“Além da Guerra às 
Drogas”​, realizado na Unicamp em 2014, análise de livros do professor 
Henrique Carneiro no canal da editora Autonomia Literária e o curta-metragem 
11 
 
“​Dirijo”​, que fala sobre uso de maconha entre indígenas da Amazônia, por eles 
mesmos. 
No canal de streaming Netflix​Ⓡ​, utilizamos o documentário original ​Grass 
is Greener (port. Baseado em Fatos Raciais), produzido em 2019 e trazendo 
importantes registros de articulações políticas dos EUA no processo de 
proibição da maconha e a criminalização do povo negro. A escolha desse 
documentário se deu por ele contextualizar o período histórico de interesse 
para esta revisão, sob o ponto de vista cultural, político e racial, o que, para 
nós, amplia o debate e até mesmo o olhar sobre como a formulação de 
políticas públicas pode promover a saúde, a qualidade de vida, o 
enriquecimento ambiental ou o adoecimento de uma população. 
Também foram utilizadas revistas não indexadas de conteúdo científico 
e/ou cultural como: ​Superinteressante​, ​Galileu​, ​Rolling Stones​, além de 
materiais produzidos e divulgados previamente pela autora - Em Surjus et 
al.(Orgs), 2018; Soncini, 2011 (dissertação mestrado); matérias produzidas 
para o Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas; materiais do 
acervo pessoal, revistas, artigos e jornais gentilmente cedidos pelo Prof. Dr. 
Elisaldo Carlini (Unifesp). 
Com relação ao conteúdo relacionado ao uso cultural da maconha, 
foram adicionadas letras de músicas que trouxeram, ao longo da história, a 
questão da maconha para o debate público, conforme referências sobre essas 
músicas e/ou seus artistas eram encontradas na literatura convencional e não 
convencional. 
 
III.ii. NOTA SOBRE A BUSCA NA LITERATURA CONVENCIONAL 
Sobre a varredura da literatura convencional sobre o tema nos portais 
eletrônicos de busca, de modo geral, o número de artigos sobre os efeitos 
terapêuticos da planta são maiores do que sobre a proibição. Vale lembrar que 
não foram feitas pesquisas em portais estritamente de cunho jurídico, o que 
pode se configurar como um dos limites da pesquisa. Ainda assim, a maioria 
dos artigos sobre proibição vêm de trabalhos do Direito, Antropologia ou 
História. Estes artigos já não aparecem quando a busca é feita nos portais 
12 
 
Scielo ou PubMed que são reconhecidamente mais utilizados para as 
produções das respectivas áreas da saúde e da medicina (Tabela 1). 
Numa busca feita posteriormente a partir do Portal de Periódicos Capes, 
no intuito de visualizar, de maneira geral e interdisciplinar, o que tem sido 
pesquisado sobre o tema atualmente, fizemos a seguinte composição de 
termos: ((“cannabis” OR “maconha”) AND (“medicinal” OR “terapêutica), 
aplicando ainda para fins de critério de inclusão o recurso de refinamento 
“apenas revisados por pares”, tipo de produção “artigos” e os trabalhos em 
português e inglês. 
 
13 
 
IV. RESULTADOS 
 
1. A maconha na sociedade: 
Como já vimos na introdução deste trabalho, a maconha possui diversas 
aplicações (Fig. 3) e seu uso data de 10.000 anos. É originária da Eurásia e 
espalhou-se pelo mundo através das migrações e do advento da agricultura 
(Venâncio e Carneiro, 2005). Aqui, vamos nos ater ao uso da maconha nas 
Américas, sobretudo Brasil e EUA, ao longo do século XX e início do século 
XXI. 
Figura 3: Usos e aplicações da maconha. Fonte: Google Imagens, 2019. 
 
Também já vimos que a maconha chegou às Américas na época das 
Grandes Navegações, tanto pelas mãos dos invasores europeus - que 
utilizavam o cânhamo como matéria-prima para a produção das velas, 
velames, cordas, resinas, tecidos e combustíveis, como pelas pessoas que 
14 
 
chegaram aqui traficadas do continente africano e que já utilizavam cepas 
menos irrigáveis de maconha (com mais lipídios) para uso fumado, em rituais 
hedonísticos, terapêuticos ou de lazer(Venâncio e Carneiro, 2005; Ribeiro, 
2014). 
No Brasil, o cânhamo era cultivado pela Coroa Portuguesa, pois sua 
venda era bastante lucrativa. Da planta eram extraídos fibras, resinas e azeites 
– matérias-primas para a fabricação de tecidos (roupas, velas de 
embarcações), cordas, medicamentos, de uso tópico e oral, lâmpadas (o óleo 
da cannabis era utilizado nas lâmpadas que chegaram a iluminar algumas 
cidades do Brasil), combustível, etc. Há relatos de que Carlota Joaquina 
também gostava de consumir o chá do cânhamo, hábito que não era usual 
entre os europeus (Carlini, 2005). 
Os povos indígenas do Brasil e das Américas também incorporaram seu 
uso - em chás ou fumado - às diversas espécies vegetais já empregadas em 
seu ritos e medicinas (Carlini, 2005; Dirijo, 2016; Carneiro, 2019). 
No século XVIII o cultivo e a venda do cânhamo eram considerados um 
grande negócio, muito lucrativo – enormes quantidades de sementes eram 
exportadas pelo Porto de Santos. No entanto, ao mesmo tempo, crescia a 
preocupação com o uso da maconha entre indígenas e africanos escravizados 
(Carlini, 2005). 
No início da República no Brasil (1889), as classes dominantes reforçam 
e começam a expressar mais claramente essa preocupação e a necessidade 
de controlar principalmente a cultura e os hábitos dos negros que haviam sido 
recém libertos da escravidão , como a maconha, o samba, a capoeira e o 2
candomblé​ ​(Lunardon, 2014). 
 
Nessa época, cigarros de maconha eram vendidos em 
lojas e tabacarias, também no centro, mas principalmente nas 
periferias das cidades. Seu uso crescia entre os brancos 
pobres, fazendo-se notar nas elites abastadas. Nas primeiras 
décadas dos 1900 isso já era evidente. Clubes de diambistas 
2 Preocupação esta que se deve muito ao fato de que a abolição no Brasil se deu apenas para que se 
pudesse instaurar a República no país, porém sem contemplar essas populações com nenhum tipo de 
reparação - muito pelo contrário, foram os donos das terras quem receberam indenizações por terem 
ficado sem seus escravos, enquanto a população negra foi relegada às ruas e ao desemprego (Souza, 
2015). 
15 
 
eram frequentes entre as comunidades negras, músicas 
exaltando a erva tornavam-se populares e o folclore com 
relação à cultura da maconha crescia. É interessante notar que 
o hábito coletivo do fumo da erva e o processo de folclorização 
da prática eram preocupações constantes para sociólogos e 
políticos da época, principalmente a partir dos anos 1930, 
quando o discurso do proibicionismo se tornou mais intenso. 
Muitas vezes, mas não somente, ligado a rituais religiosos das 
populações negras, os sentidos e significados dessa 
coletividade reunida a partir do consumo da maconha era de 
interesse e preocupação das elites e serviram como ferramenta 
para o processo de estigmatização da própria cultura negra 
(Lunardon, 2014). 
 
Diferente do Brasil, que a partir da abolição da escravatura e início da 
República passou a adotar políticas eugenistas, usando da miscigenação como 
forma de tentar embranquecer a população até o extermínio total da população 
negra no país, os EUA adotaram políticas de segregação racial, onde negros e 
brancos não podiam morar nos mesmos bairros, usar os mesmos banheiros ou 
bebedouros ou frequentar os mesmos espaços, exceto pela manutenção da 
“criadagem” (Lopes, 2019). Porém, tanto no Brasil quanto nos EUA, a partir da 
segunda metade do século XIX, percebe-se um aumento dos usos hedonistas 
e medicinais também pelos “brancos progressistas” da época: poetas, artistas, 
cientistas e amantes das músicas que vinham dos guetos - no Brasil, o samba; 
nos EUA, o jazz. 
 
A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas, 
intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou 
grandes serviços aos brancos, dando-lhes, pelo seu trabalho 
corporal, fortuna... inoculou também o mal nos que a afastaram 
da terra querida. (Rodrigues Doria, 1916 Apud Silvestrim, 2008) 
 
Para contribuir e ampliar os conhecimentos sobre o uso da maconha nos 
EUA, compartilharemos a narrativa trazida pelo documentário ​Grass is Green​, 
que, entre outros, traz a perspectiva cultural do uso da planta e sua relação 
com importantes movimentos musicais e culturais do século. 
No filme, Larry Slomann, (Autor do livro Reefer Madness: A history of 
marijuana) conta que a maconha foi fundamental para o surgimento e 
ascensão do jazz nos EUA, já que produzia nos músicos as sensações de 
euforia e relaxamento que culminaram na criação dos clássicos tons mais 
16 
 
baixos e compassados da música. Usada desde o início da invasão européia, a 
maconha só passa a ser considerada um perigo quando surgem as primeiras 
denúncias de que em El Paso e New Orleans, haveriam “minorias” fumando a 
erva - negros e mexicanos. Mas foi a partir da década de 20, quando os jovens 
brancos de classe média passam a frequentar os bares de New Orleans , que 3
alguns estados começam a proibir a maconha nos EUA, inclusive a California. 
É importante lembrar que nessa época os EUA ainda viviam sob a Lei de 
Segregação Racial, que separava cultural, física e geograficamente negros e 
brancos. Sendo assim, a chegada dessas pessoas brancas nos bares de jazz 
eram, até então, a primeira experiência de integração desses povos. 
Louis Armstrong, bem como boa parte dos maiores cantores e 
instrumentistas do jazz, era um usuário contumaz de maconha. Muitos cantores 
e compositores da época cantavam sobre os efeitos da planta e com ela 
embalavam as noites nos clubes de jazz de New Orleans. Mas Armstrong foi 
pioneiro na defesa pública pela legalização da erva. Em 1930, Armstrong é 
preso no intervalo de um show, fumando na porta do Cotton Club - um famoso 
clube de jazz - no intervalo de um show. Da prisão, escreve para seu 
empresário: 
 
“Eu não faço questão de ter um porte de armas, eu só 
quero poder portar a minha erva. Você deve providenciar uma 
permissão especial para eu fumar a erva que eu quiser, onde 
eu quiser. Caso contrário, vou parar de tocar. Eu não posso 
viver tenso, com medo de ser preso a qualquer momento, ser 
colocado na cadeia por causa de uma coisa boba como a 
maconha” (Louis Armstrong In: Netflix, 2019) 
 
 
Embora Armstrong não tenha tido seu pedido atendido, sua atitude foi 
bastante progressista e corajosa para a época, sobretudo vindo de um homem 
negro. 
“Sabemos que Louis Armstrong começou a fumar 
maconha muito cedo e fumou todos os dias de sua vida. Louis 
foi um dos nossos primeiros grandes maconheiros. E se você 
ouvir sua música percebe que isso teve um efeito positivo 
nela”. (Larry Sloman In: Netflix, 2019) 
3 ​New Orleans, considerado o berço do jazz, era um bairro essencialmente negro, localizado 
numa cidade portuária que abrigava diversas culturas. 
17 
 
 
No Brasil, o uso medicinal da planta teve maior destaque. Diversos 
compêndios médicos a receitavam para usos como: 
 
“Hypnotico, antispasmódico; dyspepsias (...), no 
cancro e úlcera gástrica (...) na insomnia, nevralgias, nas 
perturbações mentais (...) dysenteria chronica, asthma, (...)asua má administração dá às vezes em resultados, franco delírio 
e allucinações.”​ (Araújo & Lucas, 1930 Apud Silvestrim, 2008). 
 
Igualmente aos EUA, a repressão ao uso da maconha também ganha 
força no Brasil a partir da década de 30 – embora o Brasil tenha sido pioneiro 
nas políticas de repressão ao elaborar a primeira lei de prisão para fumadores 
da erva ainda no final do século XIX, a Lei do Pito de Pango (MacRae, 2016; 
Carneiro, 2019). 
Mesmo assim, ao longo dos anos, outros movimentos musicais e 
culturais foram influenciados e influenciaram o uso da maconha em todo o 
mundo. Nos anos 50, nos EUA, em meio à guerra, um novo movimento de 
resistência e contracultura surge: os beatniks - movimento que antecedeu e 
deu origem ao movimento hippie dos anos 60. Formado em sua maioria por 
jovens brancos, universitários, de classe média, eles pregavam o pacifismo em 
oposição às guerras que, na época levavam muitos jovens americanos ao 
Vietnã. Um dos expoentes do movimento beatnik, o poeta Allen Grinsberg, 
escreveu em 1965: 
“Ninguém disse ainda que a supressão dos direitos dos 
negros, da sua cultura e sensibilidade dos EUA foi complicada 
pelas leis da maconha. O uso da maconha sempre foi bem 
difundido na população negra deste país. A supressão de seu 
uso com constantes atritos e ameaças da lei, foi em grande 
parte um método inconsciente de agressão às pessoas negras” 
 
Nos anos 60, a contracultura começa a invadir também o Brasil. Com 
ela, o uso da maconha deixa de ser fenômeno restrito às classes 
socioeconômicas mais desprivilegiadas e alcança a classe média e alta. O que 
era – e ainda é – motivo de prisão e atitudes coercitivas para os mais pobres se 
transforma em inspiração para boa parte da elite, que tinha suas experiências 
como a maconha como transcendentais. Em 1976, duas personalidades 
18 
 
musicais brasileiras de enorme relevância na época foram presas por porte de 
maconha, causando enorme repercussão sobre o assunto: os 
tropicalistas/rockeiros/psicodélicos Rita Lee e Gilberto Gil (Silvestrim, 2008). 
Ainda nos anos 70, com a ascenção do jazz jamaicano, o uso religioso e 
medicinal, além de protestos políticos pela legalização da maconha se 
popularizaram através da cultura rastafari e de versos contundentes cantados 
pelos expoentes do movimento, como Bob Marley e Peter Tosh. Tosh, em sua 
famosa música ​Legalize it, traz de forma brilhante alguns dos efeitos 
terapêuticos da plantas e porque ela deveria ser legalizada (Quadro 1). De 
acordo com o editor chefe da revista High Times, Steve Hager, a música de 
Tosh surgiu logo após a divulgação de um estudo do governo americano que 
estava tratando pessoas que sofriam de glaucoma com maconha. Nesse 
sentido, ainda no mesmo filme, Carl Hart (neuropsicofarmacologista da 
Universidade de Columbia) afirma que por isso mesmo é uma hipocrisia que 
um mesmo governo crie leis e dispositivos para reprimir e banir o uso da 
maconha no país ao mesmo tempo que mantém um departamento para 
estudos sobre seus efeitos terapêuticos. 
 
Quadro 1: Legalize it (Peter Tosh, 1976). Versão em inglês e tradução em português. 
Legalize It 
Legalize it - don't criticize it 
Legalize it and i will advertise it 
[...] 
Singer smoke it 
And players of instruments too 
Legalize it, yeah, yeah 
That's the best thing you can do 
Doctors smoke it 
Nurses smoke it 
Judges smoke it 
Even the lawyers too 
[...] 
It's good for the flu 
It's good for asthma 
Good for tuberculosis 
Even umara composis 
[...] 
Bird eat it 
And they leave it 
Fowls eat it 
Goats love to play with it 
Legalize 
Legalize-a - Não critique-a 
Legalize-a e eu anunciarei 
[...] 
Cantores a fumam 
E tocadores de instrumentos também 
Legalize-a, yeah, yeah 
Essa é a melhor coisa a fazer 
Doutores a fumam 
Enfermeiras a fumam 
Juízes a fumam 
Até os advogados também 
[...] 
É bom para a gripe 
Bom para Asma 
Bom para Tuberculose 
Como também para Trombose de Numara 
[...] 
Pássaros a comem 
E eles a deixam 
Aves a comem 
Cabras adoram brincar com ela 
19 
 
É neste contexto que no Brasil, Bezerra da Silva (1927-2005) começa a 
gravar, entre o final dos anos 70 e início dos 80, suas músicas mais 
contundentes, cantando a realidade do morro (Quadro 2). Artista que nasceu 
em Pernambuco e veio para o Rio de Janeiro atrás do pai, por quem foi 
rejeitado pela segunda vez, Bezerra foi pedreiro, pintor, mendigo, músico, 
umbandista, maconheiro. Conta sua biografia que foram seus amigos vizinhos, 
pedreiros, eletricistas que compuseram quase todas as músicas de sua obra . 4
 
Em 1984, embora Bezerra tivesse passado por 
diversas categorias dentro do mundo musical – instrumentista 
de rádio, orquestra, estúdio, parceiro, compositor – era na 
carreira de intérprete que iria focar atenções. Mas, devido aos 
problemas de distribuição da sua gravadora, criou estratégias 
próprias de comunicação e divulgação de seus trabalhos, e 
começou também a criar polêmicas. Tais estratégias, que 
incluíam shows nas comunidades pobres e distribuição de 
discos nas rádios comunitárias das favelas, frutificaram 
polêmicas sobre a forma de financiamento destes shows, uma 
vez a entrada era franca e geralmente ocorriam em praças da 
própria comunidade. Muitos destes shows eram patrocinados 
por traficantes do já estabelecido comércio ilegal de drogas dos 
morros cariocas e por bicheiros, muitos deles intimamente 
ligados com as Escolas de Samba do carnaval carioca. Se esta 
estratégia tornou Bezerra conhecido em todos os morros do 
Rio de Janeiro, reciprocamente lhe fez conhecer muitas destas 
comunidades e com elas estabelecer laços de parceria e afeto. 
Logo foi empossado embaixador das favelas e porta voz dos 
morros, criando para si um nicho mercadológico próprio nada 
desprezível (Silvestrim, 2008). 
 
Quadro 2: Letras de músicas de Bezerra: 
Música: Garrafada do Norte 
 
Doutor, Deus criou a natureza 
E também as belezas dessa vida 
Então me explique doutor 
Por que é essa erva é proibida? 
 
E tem gente que diz todo prosa 
"esta planta é maneira e medicinal 
Só um chá da raiz faz milagre 
e quem bebe fica livre do mal" 
Ela alegra, ela inspira, ela acalma 
Deixa a moçada de cuca legal 
E aquele que perde a cabeça 
É porque já tem parte com o espírito mal 
Música: Malandragem Dá um Tempo 
 
Vou apertar, mas não vou acender agora 
Se segura malandro, pra fazer a cabeça 
tem hora 
 
É que você não está vendo 
Que a boca tá assim de corujão 
Tem dedo de seta adoidado 
Todos eles afim de entregar os irmãos 
Malandragem dá um tempo 
Deixa essa pá de sujeira ir embora 
É por isso que eu vou apertar 
Mas não vou acender agora 
 
4 Para saber mais sobre Bezerra da Silva e sua obra vale a pena ler o Trabalho de Conclusão de Curso de 
Silvestrin, 2008: Fumaça e Feitiço: Maconha e Umbanda em Bezerra da Silva e o documentário Onde a 
Coruja Dorme, 2012. 
20 
 
Sim... 
 
Preste atenção, essa erva é a que faz garrafada 
no Norte 
Manga rosa controla a pressão, 
Agrião e saião deixa o pulmão forte... 
 
O progresso está se alastrando 
E o vegetal vai sumindo da praça 
Com a natureza estão acabando 
A cada dia que passa 
E esse papo de caõ-caô, seu doutor, 
Me dá um nó na garganta 
Do jeito que o senhor está fazendo 
Fica difícil arranjar uma muda da planta 
É que o 281 foi afastado5
O 16 e o 12 no lugar ficou 
E uma muvuca de espertos demais 
Deu mole e o bicho pegou 
Quando os homens da lei grampeiam 
O coro come a toda hora 
 
É por isso que eu vou apertar, mas não 
vou acender agora 
 
Em 1987, um acontecimento marcaria para sempre a história da 
maconha no Brasil. O navio australiano Solana Star - após uma estratégica 
parada no Panamá, onde seus porões foram recheados de latas com maconha 
conservada no mel – é perseguido pela marinha brasileira, já avisada pela 
agência americana antidrogas (DEA) do conteúdo da carga do navio 
(Silvestrim, 2008; documentário Verão da Lata). Na época, Herbert Vianna e os 
Paralamas do Sucesso terminavam o disco Selvagem, que protestava contra o 
governo. Herbert pediu que Gilberto Gil compusesse uma música para fechar o 
disco e Gil escreveu A Novidade (Abreu, 2017): 
 
A novidade veio dar à praia 
Na qualidade rara de sereia 
Metade um busto de uma deusa maia 
Metade um grande rabo de baleia 
 
A novidade era o máximo 
Um paradoxo estendido na areia 
Alguns a desejar seus beijos de deusa 
Outros a desejar seu rabo pra ceia 
 
Oh, mundo tão desigual 
Tudo é tão desigual 
Ô ô ô ô ô… 
De um lado esse carnaval 
De outro a fome total 
Ô ô ô ô ô… 
 
E a novidade que seria um sonho 
5 Aqui, 281 corresponde ao artigo que trata da posse de maconha, segundo o Código de 1935. Em 1974, 
ocorre uma reformulação nesta lei, e o artigo 16 passa a reger a conduta jurídica com relação ao tráfico 
de drogas, e o 12 de sua utilização (Silvestrim, 2008). 
21 
 
O milagre risonho da sereia 
Virava um pesadelo tão medonho 
Ali naquela praia! Ali na areia. 
 
A novidade era a guerra 
Entre o feliz poeta e o esfomeado 
Estraçalhando uma sereia bonita 
Despedaçando sonhos para cada lado 
Oh, mundo tão desigual… 
Nos anos 90, o Planet Hemp estremece a música, a polícia e a mídia 
com o disco Usuário, de 1995. O nome do disco e da banda, por si só, já 
representa uma afronta para a época. Foram várias as tentativas de censurar 
os discos e músicas, e enquanto isso o sucesso da banda aumentava cada vez 
mais. Não demorou para que todos os integrantes fossem presos acusados de 
fazer apologia ao uso de drogas, em 1997 (Mundin, 2004). Algumas letras 
podem ser vistas no Quadro 3. 
 
Quadro 3: Músicas do Planet Hemp no disco Usuário, 1995. 
Música: A culpa é de quem? 
 
Trabalho oito horas por dia, sete dias por 
semana 
Só por fumar uma erva, eu vou entrar em 
cana? 
Deputados cheiram, bebem e não vão para a 
prisão 
Porque é ilegal? 
Eles que lesam a pátria e eu sou o marginal? 
Não, não seja alienado, eles falam que faz 
mal 
E você aceita calado? Procure se informar 
Uma erva natural não pode te prejudicar 
Quem de nós está errado? 
Você consome essas merdas e eu fumo um 
baseado 
No que você pensa então? 
Eles pegam a palmatória e você estende a 
mão 
Desde pequeno você é induzido a fumar 
Induzido a beber, ouvindo a TV falar 
Diga não às drogas, use camisinha e pare de 
brigar 
Mas beba muito álcool até sua barriga inchar 
O que você tem na cabeça? 
Tudo que eles te falam, você acha uma 
beleza 
Aprenda a dizer não, pense um pouco, meu 
Música: Legalize já! 
 
Digo foda-se as leis e todas regras 
Eu não me agrego a nenhuma delas 
Me chamam de marginal só por fumar minha 
erva 
Porque isso tanto os interessa 
Já está provado cientificamente 
O verdadeiro poder que ela age sobre 
a mente 
Querem nos limitar de ir mais além 
É muito fácil criticar sem se informar 
Se informe antes de falar e legalize ganja 
Legalize já, legalize já 
Porque uma erva natural não pode te 
prejudicar 
O álcool mata bancado pelo código penal 
Onde quem fuma maconha é que é o 
marginal 
E por que não legalizar? E por que não 
legalizar? 
Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se 
matar 
Tendo que viver escondido no submundo 
Tratado como pilantra, safado, vagabundo 
Por fumar uma erva fumada em todo mundo 
É mais que seguro proibir que é um absurdo 
Aí provoca um tráfico que te mata em um 
segundo 
A polícia de um lado e o usuário do outro 
22 
 
irmão 
Você tem medo de quem? 
Eu fumo a minha erva e não faço mal a 
ninguém 
A culpa é de quem? A culpa é de quem? 
Portugueses escravizaram e mataram nosso 
irmão 
Militares torturaram e não foram pra prisão 
Eu fumo minha erva, me chamam de ladrão 
Os negros já fumavam a erva antes da África 
deixar 
Mas os senhores proibiram por não querer 
nos libertar 
E os senhores de hoje em dia estão 
proibindo também 
Se o pobre começa a pensar parece que 
incomoda alguém 
Crianças crescem nas ruas, não confiam em 
ninguém 
Escondem nossa cultura, referência ninguém 
tem 
O país tá uma merda e a culpa é de quem? 
A culpa é de quem? A culpa é de quem? 
A culpa é de quem? 
Eles roubam no planalto e não pensam em 
ninguém 
Manipulam as leis e vêm com papo furado 
Tudo que incomoda eles, eles dizem estar 
errado 
Então quem é o marginal? 
Crianças morrem por sua culpa e eu que vivo 
ilegal 
Tenho que me esconder por uma coisa 
natural 
Enquanto eles metem a mão na maior cara 
de pau 
Não vou ficar calado porque está tudo errado 
Políticos cruzam os braços e o país está uma 
merda 
Trabalho pra caralho e fumo a minha erva, aí 
eu te pergunto 
A culpa é de quem? A culpa é de quem? 
Eles vivem numa boa e o povo no esgoto 
E se diga não às drogas, mas saiba o que 
está dizendo 
Eles põe campanha na tevê e por trás vão te 
fudendo 
Este é o Planet Hemp alertando pro chegado 
Pra você tomar cuidado com os porcos 
fardados 
Não falo por falar eu procuro me informar 
É por isso que eu digo legalize ganja 
Legalize já, legalize já 
Porque uma erva natural não pode te 
prejudicar 
 
 
 
As manifestações e movimentos musicais, artísticos e sociais que 
influenciaram e foram influenciados pela maconha foram muitos e seguem 
cada vez mais crescentes, certamente tendo repercutido de diferentes modos a 
opinião pública e até mesmo a retomada do interesse científico e a luta pela 
possibilidade de mais pesquisas nessa área. 
23 
 
Em se tratando de movimento social, um momento importante para o 
Brasil foi a chegada da Marcha da Maconha, em 2007, primeiramente na 
cidade do Rio de Janeiro. Esse movimento, que hoje já mobiliza mais de 50 
cidades e cada vez mais adeptos em todo o país, reúne usuários, pacientes, 
pesquisadores, artistas, profissionais de saúde, ativistas e demais interessados 
no tema, para reivindicar a legalização da maconha para os seus diversos fins 
(Melo, 2018; DAR, 2016). 
Em 2014, a Revista Superinteressante (Editora Abril), lança seu primeiro 
filme, o curta-metragem ​Ilegal (Produzido por Tarso Araujo)​, que conta a 
história de Anny Fisher, uma menina de, na época, 5 anos, com uma síndrome 
que desencadeia um tipo grave e incurável de epilepsia. Desde que nasceu, 
Anny apresentava crises frequentes de convulsões – até 80 por semana. 
Depois de muitas tentativas de tratamento medicamentoso alopático, sem 
sucesso, as convulsões de Anny finalmente foram controladas com a 
administração do óleo de canabidiol - composto extraído da maconha - que os 
pais de Anny passaram a importar ilegalmente. A saga frustrada da família 
contra a burocracia brasileira para a obtenção legal do óleo, as ações contra a 
ANVISA, a impossibilidade de importar a medicação mesmo provando a 
melhora surpreendente no quadro de saúde de Anny - de 40 quase 40 
convulsões por semana, Anny passou a ter 1 a cada 3 ou 4 dias - até a 
iniciativa desses pais de se declararem publicamente como “traficantes”, em 
nome da saúde da filha, foi o tema principal do filme. 
Essa história repercutiuem todas as mídias do país, chegando a 
programas televisivos de grande audiência, como o Fantástico e o Encontro 
(Rede Globo), causando enorme comoção da opinião pública brasileira e 
inspirando a Campanha Repense - Informação e Reflexão Sobre a Maconha 
Medicinal. Essa repercussão mobilizou diversas famílias que passavam pelo 
mesmo drama, tanto que em 2016 o filme Ilegal se transformou em um 
longa-metragem que foi exibido nos cinemas de todo o país. No longa, foram 
apresentadas as histórias de diversas outras famílias na luta contra a 
burocracia brasileira para a obtenção legal desse medicamento 
(Superinteressante, 2014). 
24 
 
Também foi a partir da repercussão da história de Anny que tantas 
outras famílias e pacientes passaram a se conhecer, compartilhar suas 
histórias e unir suas forças, dando início ao movimento de associativismo 
canábico no Brasil. Desde 2015, em diversas cidades do país, familiares, 
pacientes, trabalhadores, ativistas e apoiadores da causa tem se organizado 
associativamente, de modo a coletivizar uma luta que até então vinha sendo 
travada em âmbito individual. Uma pesquisa realizada recentemente pelo 
Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas aponta que existem 
hoje cerca de 40 associações em defesa do uso terapêutico da maconha no 
Brasil (2020). Julio Americo, fundador da Liga Canábica - em entrevista ao 
mesmo observatório (2020) - afirma que a organização associativa amplia a 
força deste movimento, o poder de exercer pressão sobre os órgãos públicos e 
faz com que as pessoas se sintam menos sozinhas, por criar uma atmosfera 
comunitária entre os associados. Julio afirma ainda que cada associação tem 
seus próprios valores e objetivos, mas, ao seu ver, o ideal seria que a maconha 
pudesse ser cultivada e fornecida através do Programa Farmácias Vivas do 
SUS, o qual já possui legislação para o cultivo de fitoterápicos, que é como 
deveria se enquadrar a maconha. Além disso, é preciso aproximar os 
profissionais do SUS desse debate, de forma que estes saibam como acolher e 
orientar os pacientes. 
Sobre o uso recreativo ou adulto da maconha, também devemos 
considerar o recorte de classe que ainda hoje diferencia subjetivamente o 
“maconheiro” do “usuário de maconha” (MacRae, 2016). Ainda que a legislação 
brasileira proíba o cultivo e o uso da maconha em todo o território nacional, é 
certo que algumas populações estão mais vulneráveis a sofrer “a força da lei” 
do que outras (Carneiro, 2014). 
Enquanto alguns “cultivadores/growers” fazem cruzamentos genéticos, 
misturam diferentes cepas da planta, criando novas cepas que são 
patenteáveis e facilmente encontradas para venda online - fomentando, 
glamourizando, especializando e gourmetizando este mercado e até o uso da 
maconha, em outro extremo temos a guerra às drogas controlando belicamente 
as favelas, os negros e os pobres que, em geral, são os varejistas dessa 
25 
 
grande rede comercial, e que geralmente comercializam a maconha importada 
do Paraguai, prensada, mal armazenada e não raro, adulterada e de péssima 
qualidade (MacRae, 2016; França, 2018). 
Nesse contexto, os apreciadores das cepas especiais da ​cannabis ​não 
são vistos como uma ameaça ou como ​maconheiros , mas como se fossem 6
“cannabiers”​, bem como os sommeliers de vinhos. Existe toda uma cultura de 
degustação e uso em que essas pessoas se encontram para analisar e 
discorrer acerca de fragrâncias e aromas das plantas crescidas de suas 
sementes geralmente importadas e pagas em euros (Mac Rae, 2016). 
 
“... vários cruzamentos e experiências são realizados 
no âmbito destas trocas, econômicas e de saberes, movidas 
em torno da chamada “cultura canábica”. Assim, vão ganhando 
o gosto e sofisticando o barato dos maconheiros. Ganham 
nomes próprios e personalidade, algumas, sabores frutados, 
como os vinhos apreciados em rodas de someliers. As 
sementes são patenteadas e seus criadores assinam suas 
criações através de pseudônimos” (Veríssimo In: MacRae, 
2016) 
 
Da mesma forma, à indústria farmacêutica - segundo segmento lícito 
mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para a indústria bélica (Araujo, 
2012), interessa priorizar a extração do canabidiol e outros compostos 
canabinoides de maneira isolada, ou mesmo a sua produção sintética, já que 
estes são produtos patenteáveis e portanto, passíveis de maior lucro. Enquanto 
isso, os riscos para aqueles que desejam cultivar a planta em casa para uso 
fitoterápico, continuam (Monteiro, 2020). 
O fato é que a despeito de toda a polêmica envolvendo a planta, a 
maconha vem sendo vista mais recentemente, em muitos lugares do mundo e 
também no Brasil, como uma importante commodity financeira, tanto para o 
agronegócio quanto para a indústria farmacêutica, a ponto de, em novembro de 
2019 a planta surgir como capa da Revista Globo Rural, com a seguinte 
manchete: ​“Quem tem medo da cannabis?” A matéria começa com “Será essa 
uma nova commodity do agronegócio?”​ (Blecher, 2019). 
6 termo que remonta a uma imagem pejorativa do usuário de maconha. 
26 
 
Acreditamos ser cada vez mais necessárias a reflexão e o debate 
exaustivo do tema, para que a regulamentação da maconha - que hoje parece 
ser não uma questão de “se”, mas uma questão de “quando e como” - se dê de 
modo a beneficiar também - e porque não principalmente - as populações que 
ainda hoje mais sofrem com a proibição e a Guerra às Drogas, que são as 
comunidades pretas, pobres e periféricas (Ribeiro, 2020) e os pacientes que 
precisam ter o acesso legal e financeiramente acessível, senão gratuito da 
planta para usos terapêuticos. 
Para alimentar essa discussão, traremos nos capítulos que se seguem, 
apontamentos históricos acerca das motivações políticas em torno da proibição 
da maconha, bem como a medicina por trás dessa planta, ou seja, qual o 
acúmulo científico sobre seus potenciais terapêuticos. 
 
“A gente tem, no desafio que está colocado hoje para a 
sociedade brasileira, um papel fundamental para a comunidade 
científica e acadêmica, que é explicar para as pessoas que a 
maconha é uma planta que tem um potencial de nocividade 
inferior ao tabaco e ao álcool, e que tem uma série de 
aplicações medicinais que são milenares e estão sendo usadas 
hoje nos países mais importantes do ponto de vista da 
pesquisa científica. Esse argumento é o que mudou o 
paradigma. A iniciativa do Tarso (Araujo) de fazer o 
documentário com o caso da Katiele e sua filha (Ilegal) é algo 
que comove esse país, mostrando que nós fomos 
deseducados; que houve por parte da mídia e por parte dos 
próprios interessados, uma verdadeira lavagem cerebral para 
dizer que maconha é o demônio. Existem drogas muito 
perigosas, uma delas é o álcool, a outra é o tabaco. A cocaína 
e os opiáceos têm os seus perigos, enfim… A maconha é 
talvez a mais inócua de todas e é a que tem a maior dimensão 
de usuários. Então é hora da gente apresentar propostas para 
um tratado de paz que não se trata apenas do Brasil, mas deum Tratado de Paz Internacional. A gente tem que tirar a 
lucratividade dessa economia da Guerra (às Drogas) para 
reverter a renda social do uso de drogas para finalidades de 
interesse público, Isso é perfeitamente possível e realizável no 
curto prazo. A gente não vai resolver os problemas do mundo, 
mas vai diminuir muito os problemas mais graves que hoje 
escandalizam a sociedade brasileira, como a promiscuidade da 
polícia com o narcotráfico e o uso de meios absolutamente 
desumanos para estigmatizar populações pobres da periferia, 
que ainda são insultadas com o termo ​maconheiro​, como se 
isso fosse algo muito pior do que ser algo como um ​tabagista​.” 
(Carneiro, 2014) 
 
 
 
27 
 
2. Histórico e motivações para a proibição da maconha 
 
A guerra contra a maconha foi motivada muito mais por 
fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por 
argumentos científicos. E algumas dessas razões são 
inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, 
chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de 
maconha no começo do século XX. Deve muito aos interesses 
de indústrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos 
sintéticos e papel e queriam se livrar de seu principal 
concorrente, a indústria do cânhamo. Tem raízes também na 
bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos 
sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo 
judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não 
aceita a idéia do prazer sem merecimento – pelo mesmo 
motivo, no passado, condenou-se a masturbação. (Burgieman 
and Nunes, 2016​)​. 
 
2.1. Um adendo sobre o contexto estadunidense: 
Ao mesmo tempo em que o jazz se universalizava, a partir dos anos 20, 
e começava a ameaçar a segregação racial que organizava a sociedade 
estadunidense na época, surgia no governo do país, Harry Jacob Aslinger que 
enquanto Comissário do Serviço de Narcóticos dos EUA de 1930 a 1962, 
coordenaria o maior programa de combate às drogas já visto na história. 
Aslinger é considerado, ainda hoje, o “pai do proibicionismo”. 
Aslinger foi o principal responsável pela campanha de difamação da 
maconha em nível mundial. Promovida pelo governo, com financiamento e 
apoio do grande empresariado estadunidense, essa campanha midiática de 
difamação da planta foi feita através da produção e veiculação em massa de 
filmes, campanhas publicitárias, programas de TV, movimentos religiosos de 
preservação dos valores da família cristã, além de inúmeras matérias 
jornalísticas e notícias relacionando os mais diversos tipos de crimes e 
transtornos mentais ao uso da maconha. Também foi nessa época que o 
governo estadunidense deixou de usar o termo Cannabis para usar Marijuana, 
que estaria mais facilmente associado aos mexicanos, que na época já 
migravam para os EUA e eram considerados uma ameaça, tanto quanto os 
negros (Burgieman and Nunes, 2016; Baz Dreisinger, Netflix, 2019) 
Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da 
petrolífera Gulf Oil (fundada em 1901) e um dos principais investidores da 
28 
 
indústria têxtil Du Pont. Segundo Herer (1994), nos anos 20, a indústria estava 
desenvolvendo diversos produtos a partir do petróleo: aditivos para 
combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos 
para a fabricação do papel de celulose, tudo isso em meio a grande crise de 
1929. O petróleo, o náilon e a celulose tinham todos uma coisa em comum: 
disputavam o mercado com o cânhamo. Além de cristão metodista, defensor da 
moral, da família, e das leis de segregação racial, Aslinger também possuía, 
portanto, grande interesse econômico em acabar com a maconha nos EUA. 
Para apoiá-lo nessa missão, contaria com um poderoso aliado: seu cunhado 
William Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais dos EUA 
(Klitzke, 2019). 
Hearst era a pessoa mais influente dos Estados Unidos na época. 
Milionário, comandava suas empresas de um castelo considerado monumental, 
na Califórnia. Lá recebia artistas de Hollywood para passear por seu zoológico 
particular e apreciar festas em sua piscina coberta, toda adornada com 
estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o 
protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst odiava publicamente os 
mexicanos. Dizem que parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, 
durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa (que, aliás, 
faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade 
sua. Além disso, Hearst era dono de terras onde plantava eucaliptos para a 
produção de papel. Foi ele o ​principal financiador das campanhas difamatórias 
sobre a maconha dos EUA (Herer, 1994; ​Mazzuco, 2011; ​Burgieman and 
Nunes, 2016; Netflix, 2019) 
 
A maconha foi proibida nos EUA por interesses 
econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras 
naturais para o náilon [...] Mas isso também abriu espaço para 
intervenções militares americanas [...] Virou um pretexto 
oportuno para que os americanos possam entrar em outros 
países e exercer os seus interesses econômicos (Wálter 
Maierovitch Apud Burgieman and Nunes, 2016) 
 
A proibição das drogas - principalmente da maconha - foi uma 
importante ferramenta de controle econômico do mercado, além de legitimar a 
29 
 
perseguição, encarceramento e morte de populações específicas, a quem era 
interessante aos governos reprimir e controlar. ​Além disso, segundo Carneiro 
(2019), a proibição gera um hipervalor, uma inflação sobre o produto “drogas” e 
grande acumulação de capital por quem gerencia sua comercialização 
clandestina. Por outro lado, drogas legalizadas arrecadam boa parte dos 
impostos em diversos países, através da grande indústria farmacêutica (“Big 
Pharma”). Trata-se também, portanto, de escolher qual droga regulamentar ou 
não, numa perspectiva também de controle e criminalização social (Lunardon, 
2014) 
 
2.2. Racismo e proibicionismo: uma relação bilateral de 
sustentação? 
 
“​A proibição de drogas serve aos governos porque é uma 
forma de controle social das minorias [...] como não é possível 
proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico 
dessa etnia” (​Thiago Rodrigues In: Burgieman an​d Nunes, 
2016) 
 
Embora tenha sido a política proibicionista estadunidense dos anos 30 a 
responsável por influenciar e ampliar o proibicionismo de drogas em quase 
todo o mundo, essa onda de proibição já rondava o Brasil desde o final do 
século XIX. 
O Brasil, último país das Américas a abolir a escravatura, foi, por outro 
lado, o pioneiro na proibição da maconha. Com a função de manter a 
tranquilidade da ordem pública e o patrulhamento da cidade, em 1809, foi 
criada a Guarda Real de Polícia. À medida que seus truculentos membros 
passavam paulatinamente a substituir os antigos capitães-do-mato, sua 
atuação relacionava-se à “polícia de costumes”, ou seja, repressão de festas 
com cachaça, música afro-brasileira e, evidentemente, maconha (Barros e 
Peres, sd). 
 
A história da criminalização da maconha no Brasil 
remontaao início do século XX, embora a sua proibição, no 
caso do Rio de Janeiro, venha mais de longe. Em 1830, no 
Império, o código de posturas da Câmara Municipal estabelecia 
30 
 
a proibição da venda e do uso do Pango (Lei do Pito de 
Pango). Uma reportagem do GLOBO, publicada em outubro de 
1930, lembrava que, cem anos antes, a Câmara do Rio já havia 
fixado punições para “os contraventores”. No grupo estavam 
incluídos o vendedor do Pango, que pagaria multa, e “os 
escravos e mais pessoas que delle usarem (sendo punidos) em 
três dias de cadeia”. Mas o código dos primórdios do Império 
parecia letra morta. Segundo a reportagem, a “Diamba” era 
vendida no início dos anos 30 em herbanários da então capital 
da República [...] ​Em 1912, a Convenção Internacional sobre o 
Ópio, em Haia, recomendou aos estados signatários que 
avaliassem tornar crime a posse de ópio, morfina, cocaína e 
seus derivados. Sob inspiração dessa convenção, em 1921, 
entrou em vigor no Brasil o decreto 4.294. Conforme os 
estudos do advogado criminalista André Barros, mestre em 
Ciências Penais, e de Marta Peres, doutora em Sociologia, o 
decreto punia somente o comércio de “substância de qualidade 
entorpecente”. Era a época dos herbanários do “Pito do 
Pango”. Em 1931, foi realizada a Convenção de Genebra, 
regulamentando as convenções anteriores e, no ano seguinte, 
entrou em vigor no Brasil o decreto que passava a penalizar 
também o usuário, diferenciando-o do traficante. Mais tarde, 
decreto-lei de 1938 proibiu a produção, o tráfico e o consumo 
de entorpecentes e estabeleceu a toxicomania como doença 
compulsória, tratando ainda da internação e da interdição dos 
toxicômanos. Em 1940, entrou em vigor o novo Código Penal, 
que fixava pena de reclusão de até cinco anos para a “conduta 
de tráfico”, aplicada também ao usuário. A punição estava 
prevista no artigo 281, citado até em música do sambista 
Bezerra da Silva: “Malandragem dá um tempo”​ (O Globo, 2014) 
 
Em 1924, na II Conferência Internacional do Ópio, ocorrido em Genebra, 
na Suíça, foram as declarações do médico brasileiro Dr. Pernambuco que 
deram força para que, ao final desta Conferência, o uso da maconha fosse 
deliberado como danoso e que, portanto, precisava ser condenado. Na 
ocasião, a pauta da Conferência era a discussão acerca do ópio e da coca, 
mas Pernambuco insistiu em poder falar sobre o uso da maconha. Embora 
soubesse que os participantes da conferência não estavam preparados técnica 
e teoricamente para este debate, apresentou sua tese de que o uso da 
maconha era algo absolutamente prejudicial, que tornava as pessoas violentas 
e colocava sobretudo as mulheres brancas e virgens em risco, uma vez que 
nos “pretos fumadores de maconha” a planta acendia seu instinto violento e 
estuprador (Kendell, 2003; Carlini, 2005). 
Na década de 30, contemporaneamente às primeiras políticas de 
proibição da maconha nos EUA, começam a surgir no Brasil as primeiras 
31 
 
prisões de “fumadores” de maconha, enquanto que os comerciantes da planta 
levavam uma multa. Importante salientar aqui que nessa época os 
comerciantes de maconha eram os brancos de classes ascendentes, donos 
das boticas, enquanto que os usuários eram majoritariamente negros. Os 
estados do Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Alagoas e Bahia 
foram os primeiros atingidos por essa lei. Eram também os Estados em que a 
maioria da população era negra (Carlini, 2005; Carneiro, 2019). 
Em 1937 o governo estadunidense lança o ​Tax Act​, uma lei de taxação 
de impostos altíssimos sobre todo e qualquer uso, cultivo ou venda da 
maconha, ainda que para uso industrial. O governo encomendou também uma 
série de materiais, como artigos em jornal, filmes, comerciais, relatórios e 
outros produtos e argumentos que ligavam a maconha ao aumento da 
criminalidade e da violência (Musto, 1972). 
Em contraponto ao governo federal, La Guardia - prefeito de Nova York 
na época - encomendou um complexo relatório intitulado ​“The Marijuana 
Problem in the NYC: Sociological, Medical, Psychological and Pharmacological 
Studies” (1944). Foram desenvolvidos uma série de estudos, em diversas 
áreas que contribuíram para a produção deste relatório que, ao final, concluiu, 
de forma resumida que: “o uso da maconha não não tem relação direta com a 
violência, não leva a criminalidade, não leva ao vício e possui potenciais 
terapêuticos”. O relatório também afirmava que as informações disseminadas 
por Aslinger no Tax Act não possuíam base científica e que após a aprovação 
dessa lei, pessoas negras passaram a representar 78% das prisões por 
maconha só em Nova York (Musto, 1972; Netflix, 2019). 
A despeito dos estudos encomendados por La Guardia, o Tax Act 
continuou vigente e até legitimado por outras ações, como por exemplo, pela 
Convenção Única de Entorpecentes da ONU (1961), do qual o Brasil é 
signatário. Ela considera a maconha uma droga extremamente prejudicial à 
saúde e à coletividade, comparando-a à heroína – classificada na famosa Lista 
I , onde estão situadas as substâncias consideradas sem nenhuma utilidade e 7
7 Numa lista que divide as substâncias em cinco categorias, sendo a lista I aquela em que as substâncias 
não têm nenhum valor benéfico, até a 5ª lista, onde se encontram as substâncias com maior potencial 
de uso e que portanto merecem ser estudadas. 
32 
 
que portanto devem ser proscritas para todo e qualquer tipo de uso (Kendell, 
2003; Hart, 2014) 
Ao longo dos anos, as leis foram ficando ainda mais severas até 
chegarem à Lei de Substâncias Controladas e à Criação do DEA, entre outras 
ações da lei de drogas de 1970, de Nixon, que logo se tornaria mundialmente 
conhecida e difundida como “War on Drugs” ou Guerra às Drogas (Gomes, 
2012; Netflix, 2019). 
Maurício Fiore, em entrevista para a série Drauzio Dichava (2019) , 8
afirma que tudo isso se deu também porque, após o fracasso da Lei Seca nos 
EUA (1920-1933), o Estado se vê com todo um aparato policial e jurídico 
investido e agora sem uso. Segundo ele, foi esse aparato público que acabou 
dando origem à criação do DEA - especialmente com o objetivo agora de 
perseguir o uso da maconha - a partir do momento que ela entra no 
“mainstream” americano, e que isso também teria sido uma consequência da 
própria Lei Seca já que, quando se proíbe o álcool , a maconha começa a 9
entrar nas casas americanas com mais força. 
Esse fenômeno é uma das primeiras evidências de que o proibicionismo 
não funciona, já que explorar a consciência é parte intrínseca daqueles que a 
têm. Além disso, a classe média acabou descobrindo que a maconha trazia 
bem menos efeitos colaterais que o álcool, o que culminou no seguinte cenário: 
anos depois, quando o álcool é novamente legalizado, a maconha já faz parte 
da vida dos estadunidenses e nela permanece. Isso acaba justificando ainda 
mais o uso do aparato de controle já montado e investido pelo Estado, através 
da proibição e perseguição da maconha, uma vez que era necessário

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