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®® https://t.me/PDFs_Brasil 2 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 ELEIÇÕES 2022 Calmaria na França? POR SERGE HALIMI* O s próximos dez meses da vida po- lítica francesa serão marcados por uma avalanche de notícias alarmantes, que provocarão pâ- nico na segurança1 e injunções dramá- ticas para “conter” uma extrema direita impulsionada por esse clima de medo? Esse encadeamento não é uma fatali- dade, pois a eleição presidencial de 2022 não está decidida antecipada- mente. Seus dois prováveis finalistas, Marine Le Pen e Emmanuel Macron, com efeito, saem muito debilitados dos escrutínios regionais concluídos há pouco. Seu fracasso contundente sur- preendeu pela amplitude. Sem dúvida, as taxas de abstenção excepcional (66,72% no fim do primei- ro turno) equivalem a uma condenação do recorte territorial, tão arbitrário quanto incompreensível. Mas a greve dos eleitores exprime também o des- gosto por uma campanha política que chapinhou na lama da demagogia de extrema direita, a ponto de levar a pen- sar que os grandes problemas do mo- mento eram a segurança, a delinquên- cia e a imigração, três áreas que, de resto, escapam largamente à compe- tência das regiões. A despeito desse condicionamento alimentado pela mí- dia e suscetível de inflar as velas do Rassemblement National a fim de fes- tejar seu adversário do segundo turno na próxima primavera, o partido de Le Pen perdeu mais da metade de seus su- frágios em comparação com o escrutí- nio análogo anterior (2.632.000 votos contra 6.019.000 em dezembro de 2015). Semelhante resultado não revela, é cla- ro, um avanço fascista na França capaz de induzir as pessoas a buscar, como carneirinhos assustados, a proteção do bom pastor do Élysée. O fracasso – provisório? – da mano- bra imaginada por Macron é tão retum- bante quanto a queda de vários de seus ministros de prestígio, e os resultados obtidos pelas formações que o apoiam (11% em média, ou seja, 3,66% dos elei- tores inscritos!) beiram a catástrofe, sobretudo em se tratando de partidos que contam com a maioria das cadeiras na Assembleia Nacional. Para um pre- sidente que gosta do exercício solitário do poder – a ponto de adiar excepcio- nalmente um toque de recolher sanitá- rio a fim de garantir que a semifinal de um torneio de tênis fosse jogada... –, es- sa desaprovação é impactante. A taxa de abstenção e a força da inércia, que beneficiam quem quer que esteja de saída, impedem que se tirem outros ensinamentos de um escrutínio caracterizado, além do mais, por jogos de alianças sem coerência nacional. Assim, tudo está por fazer. Mas só a ideia de não estar antecipadamente condenado a escolher sempre entre o mal e o pior lembra, apesar de tudo, uma pequena calmaria. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 Segundo as estatísticas oficiais, o número de homicídios oscilou, nestes últimos dez anos na França, entre 784 e 866 por ano, ou seja, de dois a três por dia. Isso basta para alimen- tar permanentemente as cadeias de informa- ção ávidas por catástrofes e fantasias. • Aprenda com professores especialistas • Aulas on-line e ao vivo pela plataforma Zoom + Plataformas on-line para imersão no idioma • Aprenda com professores especialistas • Aulas on-line e ao vivo pela plataforma Zoom + Plataformas on-line para imersão no idioma ®® https://t.me/PDFs_Brasil 3JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL © Claudius A hora e a vez dos deputados federais POR SILVIO CACCIA BAVA A crise política se precipita com as 500 mil mortes e números assus- tadores de contaminação e óbi- tos diários; a saturação dos hos- pitais e a sabotagem da campanha de vacinação pelo governo demonstrada pela CPI da Covid-19; a falta de vacinas, de oxigênio, de respiradores; e agora os fortes indícios de corrupção na compra de vacinas pelo governo. Tudo envol- vendo diretamente a família Bolsonaro e seus seguidores negacionistas. Os responsáveis por esse genocídio já es- tão identificados. A avaliação que vai se generalizan- do de que Bolsonaro é responsável pelo genocídio – não o único, mas o princi- pal responsável – fez despencar a popu- laridade do presidente. O fim do auxílio emergencial e depois sua tardia reto- mada com menos da metade do valor anterior, e somente para uma parte dos que dele precisam, provocaram o afas- tamento político de importantes parce- las dessa população que antes aderira ao governo em razão do apoio que rece- bera. Outro elemento a considerar: vá- rias igrejas evangélicas neopentecos- tais se afastaram de Bolsonaro. Pesquisas recentes indicam que hoje Lula tem a preferência de 41% dos evan- gélicos. Ele perdeu uma grande base de apoio nesse mundo evangélico.1 As manifestações do dia 19 de ju- nho trazem com força um novo ele- mento para a cena pública. Trazem de volta a pressão da sociedade por mu- danças. Maior, ocorrendo em muitas cidades, com uma grande presença de jovens, e contando com a participação de muitas instituições, partidos políti- cos, centrais sindicais, entidades, re- des, movimentos sociais e coletivos, que, nesse dia de protesto e mobiliza- ção, se reapropriaram das ruas da cida- de. Na prática criou-se uma frente am- pla de defesa da democracia e pelo impeachment de Bolsonaro. Essa frente apresentou um novo pe- dido de impeachment, consolidando uma centena de pedidos anteriores. Com um ato no Congresso, esse pedido foi entregue ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que até há pouco declarava que não via “circuns- tância” para o impeachment prosperar. Essas manifestações dão um recado para o Congresso: chega! Não podemos continuar com esse governo que não combate a pandemia e desconhece a urgência de enfrentar a fome de mi- lhões de brasileiros e brasileiras. Fora, Bolsonaro! Mas qual é o plano B? Se sai Bolsonaro, quem vai assumir a Presi- dência? Mourão? E o que muda? A pressão da sociedade vai crescen- do, e os parlamentares são sensíveis a essas pressões. Dia 24 de julho está marcada nova manifestação. Eles vão enfrentar eleições no ano que vem e não querem afundar com o governo Bolso- naro. A depender da situação, o centrão pode se dividir, ou mesmo retirar seu apoio a esse governo. Fica aberta a por- ta do impeachment. A questão é urgen- te. Não dá para esperar as eleições. Há muitos interesses em jogo. Mui- tos militares não querem voltar para a caserna. Os magistrados resolveram influir na governança e querem preser- vados seus privilégios; o Executivo foi capturado por milicianos; o Congresso é composto, em sua maioria, por ban- cadas corporativas que não se interes- sam pelo bem comum. E agora, com a crise de energia que se anuncia, o po- der econômico percebeu que precisa do Estado, do investimento público em infraestrutura, dos recursos públicos para a produção das condições em que prosperam seus negócios. A turma do Guedes já não conta mais com o apoio que tinha junto ao poder econômico. O governo Bolsonaro vive seu mo- mento de maior fragilidade, e estão na mesa alternativas como o impeach- ment e a renúncia. Há quem proponha uma negociação: Bolsonaro renuncia, e ele e sua família não vão para a ca- deia. Um governo interino, com Mou- rão, assumiria até a posse dos novos eleitos, e os militares escalariam um de seus quadros – fala-se no próprio Mourão ou no general Santos Cruz – para disputar com Lula.2 Mas é bom que se diga: esse governo interino terá todo o processo eleitoral em suas mãos e nenhuma disposição dos militares de voltar para a caserna. Acuado, Bolsonaro pode tentar o golpe buscando mobilizar as PMs e as milícias. Mas as Forças Armadas, de- pois de receberem duros golpes do ca- pitão, como a demissão do ministro da Defesa e dos chefes do Exército, Mari- nha e Aeronáutica, podem não querer embarcar nessa tentativa. O que vão ganhar, se podem continuar no poder sem Bolsonaro, apresentando-se na próxima eleição como alternativa a um novo governo do PT? A oportunidadede impedir Bolso- naro é agora, em seu momento mais frágil, acusado de corrupção com as va- cinas. Cabe à sociedade civil uma mo- bilização maciça, uma campanha diri- gida aos deputados federais que os pressione para abrir o processo de im- peachment e julgar Bolsonaro. Sem Bolsonaro, o cenário político se abre para a disputa eleitoral, e será uma no- va página de nossa história. 1 Pesquisa IPEC, UOL, 25 jun. 21. 2 Rafael Barifouse, “Militares planejam se manter no poder ‘com ou sem Bolsonaro’, diz coronel da reserva”, BBC News Brasil, 12 jun. 2021. ®® https://t.me/PDFs_Brasil 4 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 CAPA O Brasil no redemoinho: o governo Bolsonaro e o butim da burguesia P arafraseando Guimarães Rosa, o Brasil está na rua, no meio do re- demoinho,1 que é “a briga de ven- tos. Quando um esbarra com ou- tro, e se enrolam, o doido espetáculo”. Desde 2015, a “briga de ventos” provo- cou a destruição de empresas e empre- gos, a deterioração das instituições (Executivo, Legislativo e sistema políti- co, Judiciário e Forças Armadas) e a for- te redução da autonomia nacional. Esse “doido espetáculo”, em que permanecemos até hoje, sob o governo Bolsonaro, foi formado por vários ven- tos, vindos de diversas direções e in- tensidades. O vento que veio dos quar- téis, trazendo o capitão Bolsonaro, somente apareceu no final de 2017 e não pode ser responsabilizado exclusi- vamente pela profunda crise (em suas múltiplas dimensões: econômica, polí- tica, social, institucional e democrática e sanitária) que o Brasil atravessa. As bandeiras, levantadas em 2018 pelo candidato Bolsonaro e pelos mili- tares, do restabelecimento da ordem econômica, política, moral e psicosso- cial brasileira vêm caindo uma a uma: desde a posse em 2019 até a não puni- ção do general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que participou de manifestação política com o presidente, ato proibido pelo re- gimento do Exército. Apesar de não ser sua causa, a forma de governar de Bolsonaro amplia a cri- se na medida em que, por um lado, mi- na as instituições (sistema político, STF etc.) que já estavam fragilizadas e, por outro, concede benesses, em troca de apoio, para os militares, tais como tra- tamento especial no quadro da reforma da Previdência, ampliação dos cargos ocupados no governo, reestruturação da carreira militar (que implicou au- mento salarial nos níveis hierárquicos mais altos) e ampliação dos gastos e in- vestimentos do Ministério da Defesa, mesmo com o teto de gastos. Bolsonaro e os militares hoje no go- verno não são o fato gerador da crise brasileira, e sim uma infecção oportu- nista que se apropria de um corpo doente. O Brasil já se encontrava no meio do redemoinho, lançado em vá- rias direções, retorcido e deslegitimado pelos ventos que sopravam de outras paragens. Esse novo vento, na verdade, ampliou o redemoinho que já tinha ga- nhado forma em 2015. Esse “doido espetáculo” foi impul- sionado pelo vento vindo dos Estados Unidos, que trouxe a bactéria perigosa geradora da instabilidade para o corpo brasileiro. Após a descoberta do pré-sal, os órgãos de inteligência norte-ameri- canos, sobretudo a Agência Nacional de Segurança (NSA), vinham espionando a Petrobras e a presidenta Dilma Rous- seff, conforme arquivos obtidos com o ex-analista da NSA Edward Snowden, em 2013. Mais recentemente, com o ca- so da Vaza Jato, ficou explícito que o De- partamento de Justiça dos Estados Uni- dos passou informações, de forma ilegal, para a Operação Lava Jato. Para muitos analistas, as primeiras informa- ções sobre a corrupção na Petrobras e suas conexões com as empresas líderes da construção civil nacional, obtidas pela Lava Jato em Curitiba, teriam vin- do do Departamento de Justiça, repas- sadas provavelmente pela NSA. Com essas informações, a força-ta- refa de Curitiba passou a utilizar meca- nismos de flexibilização e/ou quebra do regramento jurídico para alcançar seus fins por meio da geração de insta- bilidade política (um dos elementos centrais de sua estratégia) e de vaza- mentos ilegais para a imprensa, para pressionar os agentes políticos e as ins- tâncias superiores do Judiciário a pros- seguir no combate à corrupção. Os fins (combate à corrupção e refundação do Brasil) justificariam os meios. Esse vento norte-americano, que se tornou devastador, provavelmente po- deria ter sido contido por mecanismos institucionais básicos em sua fase inicial de expansão. No entanto, ele ganhou força e foi alimentado por diversas for- ças sociais nacionais (frações da bur- guesia, políticos, burocracia estatal, classes médias, STF etc.) que procura- vam alcançar seus interesses num con- texto de crise econômica e política. Es- sas forças sociais achavam que, cada uma isoladamente, poderiam conter o vento ou direcioná-lo para destruir seus competidores, adversários e desafetos. Com isso, o redemoinho se formou e ga- nhou uma força inimaginável, e segue deixando um rastro de golpes institucio- nais (impeachment de Dilma, em 2016, e exclusão da candidatura de Lula, em 2018), de desestruturação de bases pro- dutivas2 e de degradação institucional. Desde 2015, o Brasil vive uma traje- tória caótica, sem rumo, com a deterio- ração e a perda de legitimidade das ins- tituições, que continuam existindo materialmente, mas perderam a capaci- dade de reduzir incertezas e incentivar os avanços das ações humanas econô- micas, sociais e políticas coordenadas. Com isso, impede-se qualquer padrão de formação de expectativas econômi- cas e políticas a respeito do devir, crian- do-se um encurtamento das decisões e dificultando-se os investimentos, a for- mação de consensos políticos mínimos e a configuração de um padrão de de- senvolvimento inclusivo socialmente e sustentável ambientalmente. Se por um lado essa crise impede o devir, por outro ela vem possibilitando uma profunda reconfiguração do capi- talismo brasileiro, capitaneado, em boa parte, pela burguesia em seu proje- to de desmanche da Constituição de 1988 e das capacidades governamen- tais (empresas e bancos estatais, ins- trumentos de intervenção direta do Es- tado na economia e criminalização das políticas públicas verticais), para abrir novos espaços de acumulação e recu- O novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder econômico e político dos segmentos primários, intensivos em commodities, e bancário-financeiro, abrindo espaços para a intensificação da exploração dos recursos naturais e da força de trabalho POR EDUARDO COSTA PINTO* Gráfico 1 TAXA DE LUCRO DAS 500 MAIORES EMPRESAS PRIVADAS DE CAPITAL ABERTO 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 Total Geral 13,6% 12,4% 7,8% 7,7% 7,0% 1,2% 7,2% 8,6% 13,4% 11,7% 9,2% Não financeiras - privada 16,3% 14,0% 8,3% 6,4% 8,6% -0,9% 7,4% 8,9% 13,9% 8,0% 8,8% Bancos - privados 15,4% 15,1% 13,1% 13,7% 15,4% 18,8% 15,0% 15,0% 16,9% 18,4% 13,5% 0,0% -5,0% 10,0% 5,0% 20,0% 15,0% ®® https://t.me/PDFs_Brasil 5JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil perar as taxas de lucro das quinhentas maiores empresas não financeiras pri- vadas de capital aberto que caíram en- tre 2011 e 2015 (Gráfico 1). Para isso, os setores dominantes brasileiros se unificaram, desde o golpe parlamentar de 2016, passando pelo go- verno Temer, até o governo Bolsonaro, com seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em torno do juízo de que a úni- ca alternativa para destravar a acumu- lação seriam as reformas neoliberais (previdenciária, trabalhista, adminis- trativa, teto de gastos) e as privatiza- ções (Eletrobras, venda de ativos da Pe- trobras etc.), que repassavam o ajuste dos custos da crise de acumulação para os trabalhadores, pois, para eles, os en- traves ao crescimento seriam fruto das políticas de ganhos reais do salário, da ampliação das políticas de proteção e dos gastos públicos com as políticas universalizantes (saúde e educação), decorrentes da Constituição de 1988. Nãopor acaso, a burguesia brasilei- ra apoiou fortemente o candidato Bol- sonaro e seu ministro da Economia neoliberal, defensor das privatizações e das reformas pró-mercado. Nesse sen- tido, a redução da atuação do Estado brasileiro na economia, por meio da venda de ativos públicos e das privati- zações de suas empresas, tem sido alar- deada pelo governo Bolsonaro, pelos setores dominantes brasileiros e pelos economistas de mercado como o cami- nho do nirvana para o crescimento econômico e o desenvolvimento social. O problema é que o nirvana nunca chega para todos. Pelo contrário, o Bra- sil permanece no redemoinho, numa profunda crise econômica, social e ins- titucional. A questão é que esse rede- moinho tem sido funcional para a mega e a grande burguesia brasileira (maiores empresas) aumentarem seus lucros desde 2016, conforme visto no Gráfico 1. Cabe observar que o bloco no poder do capitalismo brasileiro (frações da adota uma resistência “ultraintensa à mudança social”, voltando-se de forma “sociopática” para “a preservação pura e simples do status quo [defesa de privi- légios e do lucro a qualquer custo]”.4 Esse novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder eco- nômico e político dos segmentos pri- mários, intensivos em commodities e bancário-financeiro, abrindo espaços para a intensificação da exploração dos recursos naturais e da força de traba- lho. Setores dominantes brasileiros não recuaram em seu projeto de des- manche, o que impede a construção de uma conciliação política entre setores sociais amplos. Nesse sentido, o campo progressista tem de construir um programa mais ou- sado (o caso do Plano Biden), que foque os investimentos públicos em infraes- trutura urbana, em educação e saúde (bens públicos) e em desenvolvimento ambientalmente sustentável, que deve- rão, em parte, ser financiados por forte elevação dos impostos sobre o 1% mais rico (aumento do IPTU, do ITR, dos divi- dendos, das heranças etc.). O 1% mais rico deve ser nosso foco político – so- mente assim a esquerda vai se conectar com a demanda eleitoral antissistema da população. E não adianta fazer um programa ousado e depois girar com- pletamente, como Dilma em 2015. Sem o apoio da população, o campo progressista pode até ganhar a próxima eleição em 2022, mas não conseguirá governar nem levar o jogo até o fim do tempo determinado institucionalmen- te. Em outras palavras, não conseguirá tirar o Brasil do redemoinho, para que seja possível uma nova travessia, que incorpore socialmente a população e construa um desenvolvimento susten- tável ambientalmente. *Eduardo Costa Pinto é professor do Instituto de Economia da Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro (UFRJ). 1 Ao longo do livro Grande sertão: veredas, Gui- marães Rosa utiliza uma frase emblemática e cheia de simbolismo que vai nortear essa grande obra: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”. 2 A desestruturação das bases produtivas e institucionais brasileiras interessa, sim, aos agentes externos, especialmente aos norte- -americanos e seu Estado nacional, pois isso (i) possibilitou a abertura da exploração do pré-sal para as empresas estrangeiras; (ii) contribuiu para a ampliação de vendas de equipamentos para essa exploração por em- presas estrangeiras, como a norte-america- na Halliburton; (iii) desestabilizou o engaja- mento do Brasil nos arranjos configurados pelos Brics; (iv) desestabilizou a presença das empresas de construção civil nacional (Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa) na América Latina e África, abrindo espaços para novos entrantes; (v) permitiu a compra da Embraer pela empresa norte-americana Boeing; e (vi) possibilitou o acordo de uso da base de Alcântara pelos Estados Unidos. 3 Francisco de Oliveira, “Jeitinho e jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasilei- ro”, Piauí, out. 2012, p.10. 4 Florestan Fernandes, A sociologia numa era de revolução social, Zahar, Rio de Janeiro, 1962, p.211. mega e da grande burguesia), com a cri- se de 2015 e 2016 e com os efeitos destru- tivos da Lava Jato, passou por importan- tes modificações, com o aumento do poder dos segmentos comerciais (varejo e serviços, sobretudo os médicos), com a manutenção do poder dos segmentos bancário-financeiro, com a forte redu- ção dos segmentos industriais, exceto aqueles intensivos em capital baseado em commodities (petróleo e gás, side- rurgia, papel e celulose, mineração, produtos alimentares etc.), e com o au- mento do poder da burguesia agrope- cuária, que sempre teve um papel so- bredeterminado no que diz respeito à sua participação política no Congresso. Esse aumento no poder das empre- sas (capital) diante dos trabalhadores, com a mudança do padrão de acumula- ção em curso, sob patrocínio da bur- guesia brasileira, tem sido funcional para a grande e a megaburguesia brasi- leira (maiores empresas) em recuperar sua lucratividade e criar espaços de acumulação. Como isso foi possível, mesmo com o PIB crescendo muito pouco entre 2016 e 2020? Isso aconte- ceu em virtude: 1) de um profundo pro- cesso de concentração e centralização de capital, sobretudo no setor de co- mércio e serviços. Ou seja, as grandes empresas estão comprando ou ga- nhando mercado das pequenas e mé- dias empresas; 2) da redução do custo da força de trabalho (direto e indireto, vinculado à reforma trabalhista), que tem implicado na redução dos salários diretos e indiretos dos trabalhadores; 3) da elevação dos preços das commo- dities desde 2017; 4) da desregulamen- tação ambiental e trabalhista, para fa- cilitar a expansão da agropecuária e do extrativismo em novas fronteiras; e 5) do processo de privatização, que está abrindo novos espaços de acumulação. No que tange à fração da burguesia agropecuária, chama atenção a trajetó- ria de crescimento das taxas de lucro das quarenta maiores empresas do se- tor (com dados disponíveis) desde 2015, sobretudo em 2020, quando a taxa al- cançou o patamar de 21% (Gráfico 2), muito superior às taxas do setor bancá- rio-financeiro, que foi de 13,5% (Gráfi- co 1), sendo as mega e as grandes em- presas as que obtiveram as maiores taxas de lucro. Esses resultados das taxas de lucro da mega e da grande burguesia e suas frações (agropecuária, industrial inten- siva em commodities, comercial e de serviços) reforçam o apoio dos setores dominantes brasileiros às medidas de reformas pró-mercado, mesmo que isso implique apoiar o governo Bolsonaro com todos os seus problemas e a dificul- dade de ser controlado pela burguesia. Com Bolsonaro, a burguesia per- manece no mando (projeto de deses- truturação dos direitos sociais, de des- manche da Constituição de 1988, de privatizações e da constitucionaliza- ção do neoliberalismo), mas sem co- mando, em virtude do aumento dos conflitos num contexto de crise institu- cional em curso. Ou seja, as reformas e as privatizações seguem como rolo compressor, mas sem o controle de parte da burguesia, como visto no pro- cesso de privatização da Eletrobras. Cabe observar que a adoção desse projeto da burguesia dificilmente seria viável politicamente, da forma como vem sendo realizado, em condições institucionais normais. Portanto, os golpes foram funcionais para mudar o padrão de acumulação. Nesse sentido, o vento mais intenso do redemoinho em que o Brasil se encontra é provoca- do pela sanha dos setores dominantes brasileiros, sobretudo das frações vin- culadas ao agronegócio e à finança. Assim como em outros momentos históricos, a classe dominante brasileira “burlou [e burla] de maneira permanen- te e recorrente as leis vigentes, sacadas a fórceps de outros quadros históricos”3 e Gráfico 2 TAXA DE LUCRO DE 40 EMPRESAS DO SETOR AGROPECUÁRIO: 2015-2020 (%) 15% 10% 25% 20% 0% 5% 2015 2016 2017 2018 2019 2020 Grande (R$ 0,3 bilhão < Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 9% 15% 14% 20% 19% 30% Médio (R$ 5 milhões < Receita Líquida > R$ 300 milhões) 2% 1% 7% 9% 3% -1%Mega (Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 8% 13% 15% 15% 13% 21% Total 8% 13% 14% 15% 13% 21% 2015 2016 2017 2018 2019 2020 30% -5% ®® https://t.me/PDFs_Brasil 6 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 O modelo de inserção internacional do Brasil cria vulnerabilidades e compromete o desenvolvimento. Ele promove desindustrialização, desemprego, acentuação das desigualdades e degradação ambiental. exportação de commodities altera a distribuição espacial das atividades extrativas, reforça corredores exportadores e expande as fronteiras extrativas POR KARINA KATO, SOCORRO LIMA, ANDRÉA LEÃO, SANDRO LEÃO, VALDEMAR WESZ JUNIOR, GRACIANE SIMONE LEITE BARBOSA* ENTRE CONTINUIDADES E RECONFIGURAÇÕES NO OESTE DO PARÁ N a virada do século XXI, impul- sionada pelo boom das commo- dities, a economia brasileira pas- sou por um processo de reprimarização (Lamoso, 2020) de sua pauta exportadora, quando os produ- tos primários passaram a ter mais peso nas exportações do que os industriali- zados. Esse fenômeno deixa marcas profundas no território, fomentando estruturas logísticas, impulsionando a exploração de recursos naturais e re- configurando disputas territoriais. Ao chegar à Amazônia, em estados ou regiões tradicionalmente exporta- dores de matérias-primas e produtos agrícolas, a reprimarização acentua dinâmicas extrativas e amplia as dis- putas por recursos naturais. Olhare- mos para o oeste do Pará, na Amazônia Legal, para investigar como a inserção de uma commodity que é alvo de inte- resses globais, a soja, altera as dinâmi- cas territoriais. Os resultados da pes- quisa1 indicam os ritmos, atores e drivers do avanço da soja no Planalto Santareno. A recente corrida por recur- sos naturais transforma o território na- cional, acentua dinâmicas históricas de exploração de recursos naturais amazônicos e reproduz (e aprofunda) desigualdades fundiárias. A REPRIMARIZAÇÃO E SEUS REBATIMENTOS NO TERRITÓRIO A recente valorização das commodities agrícolas e minerais teve importantes desdobramentos na economia brasilei- ra. A escalada nos preços de 2003 a 2011 deveu-se a uma combinação de fatores: efeitos de mudanças climáticas, desva- lorização do dólar, aumento no preço do petróleo, acentuação da crise energética com a maior atratividade dos agrocom- bustíveis, estagnação das taxas de pro- dutividade agrícola, aumento da de- manda por matérias-primas por países emergentes (China e Índia). Destaca-se a dimensão financeira, pois a busca por alternativas aos investimentos finan- ceiros na crise de 2008 fortaleceu estra- tégias lastreadas em commodities e re- cursos naturais. Em consequência, ampliou-se a demanda global por pro- dutos primários, acentuando-se a de- pendência de boa parte dos países da América Latina desses produtos.2 Não é possível compreender esse quadro sem fazer referência ao “efeito China”. No Brasil, a participação da agropecuária e da indústria extrativa nas exportações passou de 15% em 2000 para 45% em 2020. O comércio com a China cresceu significativamente: em 2000, era o destino de 2% das exporta- ções; em 2020, de 32% (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comér- cio). Os produtos exportados para o país asiático, em 2020, foram soja, minério de ferro, óleos brutos de petróleo, celu- lose e carnes bovina, suína e de aves. O modelo de inserção do Brasil no sistema internacional cria vulnerabili- dades e compromete alternativas futu- ras de desenvolvimento. Ele tem levado à desindustrialização, ao desemprego, à acentuação das desigualdades sociais e econômicas e à degradação ambien- tal. A exportação de commodities altera a distribuição espacial das atividades extrativas no território brasileiro, refor- ça corredores exportadores e expande as fronteiras extrativas. O oeste do Pará se consolida como uma das novas e mais movimentadas “fronteiras agrí- colas e de estruturação de corredores logísticos”. Os produtores do norte de Mato Grosso (principal zona produto- ra) têm buscado novas rotas logísticas: entre 2013 e 2017, as exportações de Mato Grosso via Arco Norte saltaram de 13% para 43% (Confederação Nacio- nal de Transportes, 2018). O OESTE DO PARÁ E SUAS RECONFIGURAÇÕES O oeste do Pará tem 732.509,5 km2 e corresponde a 59% da área do estado, com população de 1.159.000 habitantes (IBGE, 2010). Sua economia consiste na exploração dos recursos naturais, agro- pecuária, comércio, serviços e agricul- tura de autoconsumo. No passado, sua economia se baseou no extrativismo vegetal (drogas do sertão), na agricul- tura de pequena escala (séculos XVIII- -XIX) e na exploração da borracha (sé- culos XIX-XX). Esta última possibilitou transformações socioespaciais impor- tantes (Oliveira, 1983). A concorrência com a borracha asiática, contudo, im- pactou as exportações, levando a re- gião a uma longa estagnação, que foi interrompida em dois momentos do sé- culo XX: 1) na década de 1920, com a ex- periência malsucedida de Henry Ford em Fordlândia e depois em Belterra, no oeste paraense (Santos, 1980; Oliveira, 1983); e 2) na Segunda Guerra Mundial, quando o governo brasileiro, via Acor- do de Washington, incentivou a produ- ção da “borracha natural”. As políticas públicas para a Ama- zônia se renovaram com as políticas desenvolvimentistas do governo mili- tar (1960). Novamente, interesses na- cionais e internacionais se materiali- zaram em complexos minerais e energéticos, no avanço da fronteira agropecuária (expansão da soja e da pecuária de corte) e no comércio de madeira, sem considerar as popula- ções locais e seus modos de vida ou a imensa riqueza representada por sua biodiversidade. OS CORREDORES QUE TRAZEM A SOJA É nesta conjuntura que a soja ganha peso no oeste do Pará: de um lado, com a expansão das áreas produtivas; de outro, com portos, estradas, hidro- vias e ferrovias. O setor produtivo tem apostado em corredores logísticos pe- lo Arco Norte (ferrovia, hidrovia, por- tos), região estratégica no escoamento do grão. São duas as rotas: a primeira, via transporte rodoviário (BR-163), li- ga o norte de Mato Grosso até Itaituba, onde estações de transbordo de car- gas (ETCs) privadas embarcam a soja em barcaças (até 30 mil ton.) até o porto de Barcarena ou de Santarém. Várias empresas se instalaram: Bun- ge/Amaggi, Companhia Norte de Na- vegação e Portos (Cianport), Hidro- vias do Brasil, ADM, Caramuru, Cargill e Louis Dreyfus. Essa rota é 34% mais barata que o trajeto até San- tos (SP). Os planos da ferrovia Ferro- grão renovam essas esperanças. A se- gunda, que passa pelo porto da Cargill, em Santarém, impulsiona a soja no Planalto Santareno. Diante de mar- gens de lucro cada vez mais espremi- das, produtores têm reivindicado a construção de um segundo porto em Santarém (em Maicá), o que gerou mobilização social sobre os impactos negativos para a área urbana afetada. Vale enfatizar que a ampliação de rotas de escoamento se dá no bojo de uma acelerada expansão da produção de soja no território brasileiro. A área plantada saltou de 1,3 milhão para 36,9 milhões de hectares entre 1970 e 2020, correspondendo a mais de 50% dos cul- tivos temporários (Conab, 2020). A soja avança em direção aos Cerrados e à Amazônia. A região Norte, onde se lo- caliza o oeste do Pará, foi a que apre- sentou a maior ampliação da área: de 2000 a 2018, 2.385% (de 73 mil para 1,9 milhão de hectares)! Segundo a Embrapa (2004), desde 1990 se conformaram três grandes áreas de produção de soja no Pará: 1) Polo Nordeste (Paragominas, Ipixuna, Ulianópolis e Dom Elizeu); 2) Polo Sul/ Sudeste (Redenção, Marabá, Conceição do Araguaia, Santa Maria das Barreiras e Pau d’Arco); e 3) Polo Oeste (Santa- rém, Mojuí do Campos, Belterra, Ruró- polis, Itaituba, Novo Progresso, Trai- rão, Aveiro, Placas, Uruará). A soja chegou ao oeste do Pará em 1997 com produtores “sulistas” vindos de Mato Grosso (Rondonópolis/Campo Verde, Primavera do Leste/Lucas do Rio Ver- de, Nova Mutum e Sorriso). Em 2005,alcançou 35 mil hectares. Entre 2006 e 2013 a área com soja manteve-se entre 30 mil e 40 mil ha. A estagnação se de- veu à descapitalização dos produtores e ao aumento da pressão ambiental (desmatamento). Em 2006, a Moratória da Soja determinou que empresas do setor não comprassem ou financias- Reprimarização, corredores logísticos e dinâmicas da soja ®® https://t.me/PDFs_Brasil 7JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil Gráfico 1 ÁREA PLANTADA COM SOJA EM BELTERRA, SANTARÉM E MOJUÍ DOS CAMPOS1 sem soja de terra desmatada da Amazô- nia, levando os produtores a buscar so- luções para o passivo ambiental. Como exemplo citamos o projeto Soja Mais Sustentável (2004), parceria da Cargill com a The Nature Conservancy (TNC), que ampliou o monitoramento da pro- dução. A partir de 2014, a área com soja voltou a crescer, dando um salto em 2017, quando chegou a um patamar de 55 mil ha (Gráfico 1).3 Na Figura 1 (virando a página) é possível perceber as transformações no uso do solo no Planalto Santareno: em 1985 predominavam áreas de floresta (verde); em 1995 houve a ampliação da pastagem (amarelo) em áreas de vege- tação nativa; em 2005 aumentaram as áreas de pastagem e proliferaram la- vouras temporárias (rosa), ausentes até o início dos anos 2000. A instalação do porto da Cargill, em 2003, marcou o “arranque”. Posteriormente, os planos em torno do Corredor Tapajós, com a retomada do debate do asfaltamento e duplicação da BR-163, em 2013, e a ins- talação de mais de quinze portos priva- dos em Itaituba fomentaram o cresci- mento da produção. CONTINUIDADES E RECONFIGURAÇÕES NAS ÁREAS RURAIS DO OESTE DO PARÁ a) A substituição da agricultura de pequena escala por monoculturas e a concentração de terras Ao longo dos anos, o Planalto Santare- no sofreu um processo de concentra- ção: dos 300 a 400 produtores de soja observados entre 2003 e 2005 restaram 120 em 2017, segundo o sindicato local. A área com soja, contudo, aumentou. Estudos apontam que, além da ocupa- ção das áreas de pecuária, a soja avan- çou em zonas anteriormente ocupadas pela pequena produção familiar (Val- buena e Cohenca, 2006; Carvalho e Tu- ra, 2006). Contribui com esse quadro o recente desmonte e esvaziamento de importantes políticas públicas volta- das para esse grupo. A maior vulnera- bilidade dos pequenos produtores, as- sociada a um maior aquecimento do mercado de terras na região, leva esses agricultores familiares a vender suas terras e sair do campo. b) A apropriação do discurso ambien- tal pelo setor produtivo e a substitui- ção de matas por lavouras de soja A questão ambiental tem papel central ao frear ou acelerar a expansão da soja no oeste paraense. O discurso dos pro- dutores combina produtividade e mo- dernização com sustentabilidade. Eles defendem que a tecnologia permitiria o uso racional dos recursos e menor im- pacto ambiental. Assim, esses produto- res se projetam como os agentes da pre- servação ambiental e se contrapõem à agricultura mais tradicional, “menos sustentável”. c) A valorização das terras e o jogo especulativo Avança a corrida por terras na re- gião, seja para fins produtivos (frontei- ra agrícola), logísticos ou para a espe- culação (sobretudo a partir de 2010). O mercado de terras, impulsionado pelo Estado, incentiva a crescente privati- zação e mercantilização das terras pú- blicas. Avança também a profissionali- zação na identificação e regularização Gráfico 2 VARIAÇÃO DOS PREÇOS DE TERRAS EM BELTERRA E SANTARÉM (2001-2020) (R$/ha) Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal (2020). 1 Mojuí dos Campos, antes distrito de Santarém, foi emancipado em 2012. Por isso, temos dados do município apenas a partir de 2013. Fonte: Elaborado pelo Gemap (pesquisador Junior Aleixo) com dados do Instituto FNP. de terras, com imobiliárias que che- gam antes e negociam as terras em blo- co, preparando o terreno para os inves- tidores. Tudo isso se reflete num intenso aumento do preço das terras na região (Gráfico 2). Diante de um mercado que se aquece, os posseiros, pequenos produtores e povos e comu- nidades tradicionais são pressionados a deixar suas terras ou vender suas propriedades. d) Facilitação da regularização fundiária O Programa Terra Legal e as recen- tes mudanças nos marcos da regulari- zação fundiária impulsionam a expan- são da soja ao facilitarem a regularização fundiária de terras públicas federais na Amazônia Legal. Nosso campo indica que os produtores têm adotado a estra- tégia de fragmentação de propriedades para facilitar a regularização. Só em 60.000 50.000 40.000 30.000 20.000 10.000 0 9.000 8.000 7.000 6.000 5.000 4.000 3.000 2.000 1.000 0 19 97 19 98 19 99 20 00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16 20 17 20 18 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16 20 17 20 18 Beterra (PA) Satarém (PA) Mojuí dos Campos (PA) Floresta Amazônica (Difícil acesso à BR) Pastagem Formada (1,5 UA/ha) Pastagem Formada Terra Agrícula/Grãos Diversos (55 sc soja/ha) 20 19 20 20 ®® https://t.me/PDFs_Brasil 8 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 2014 foram destinados 9.928.655 hecta- res no oeste do Pará, glebas públicas fe- derais próximas à área da BR-163. A maior parte dos imóveis regularizados se localizava no Planalto Santareno, em áreas propícias à produção de soja. A reprimarização da economia bra- sileira acentua o que David Harvey (2011) aponta como a “complexa dinâ- mica do desenvolvimento das desi- gualdades da acumulação do capital”. O oeste do Pará, desde o início de sua ocupação, foi marcado pela dinâmica de exploração dos recursos naturais. A exploração mineral e, recentemente, o cultivo da soja assinalam essa conti- nuidade e reconectam essa região com as dinâmicas globais de corrida por re- cursos. A atual dinâmica de reprimari- zação imprime mudanças não apenas no território, mas também na vida con- creta de populações que são desterrito- rializadas e afetadas em seus modos de vida e nas formas com que se relacio- nam com os territórios e os recursos naturais. Por isso, cada vez mais os mo- vimentos sociais do campo e da cidade vêm questionando as dimensões desse modelo econômico que espolia recur- sos e não atende aos princípios da equi- dade e da justiça social e ambiental. *Karina Kato, Socorro Lima, Andréa Leão, Sandro Leão, Valdemar Wesz Ju- nior e Graciane Simone Leite Barbosa são pesquisadores e colaboradores do Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap), coordenado pelo professor Sergio Leite (CPDA) e vinculado ao Programa de Pós- -Graduação de Ciências Sociais em De- senvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Ja- neiro (CPDA-UFRRJ). A pesquisa na qual este artigo está embasado foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico (Bolsa de Produtividade e Edital Universal) e pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). 1 Trabalho de campo (novembro de 2017) nos municípios paraenses de Santarém, Belterra, Mojuí dos Campos e Itaituba, com realização de entrevistas com atores locais chave. 2 Para a Unctad (2019), um país é considerado dependente das commodities se estas com- puserem mais de 60% de suas exportações (em valor). Essa dependência tem um efeito negativo no desenvolvimento econômico do respectivo país. 3 O Planalto Santareno envolve os municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, cuja área se caracteriza por solo plano e favo- rável ao plantio com sistema mecanizado, si- tuada às margens das rodovias BR-163 e PA- 370 (Leão, 2017). Referências bibliográficas • ARBACHE, J. O canto da sereia: um estudo so- bre a relação econômica Brasil-China. Artigo pre- parado para o Seminário Internacional Brasil e China no reordenamento das relaçõesinternacio- nais: desafios e oportunidades. Rio de Janeiro: Palácio Itamaraty, 16-17 jun. 2011. • CARVALHO, V.; TURA, L. A expansão do mono- cultivo de soja em Santarém e Belterra: injustiça ambiental e ameaça à segurança alimentar. Fase- -Amazônia, 2006. • CNT. Anuário CNT do Transporte: estatísticas consolidadas, 2018. EMBRAPA. Reunião de pesquisa de soja da re- gião central do Brasil. Londrina: Embrapa 2004. • HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011. IBGE. Banco de dados agregados, 2020. • LAMOSO, S. P. Reprimarização no território bra- sileiro. Espaço e Economia, v.19, 2020. • LEÃO, S. A. V. Agronegócio da soja e dinâmicas regionais no Oeste do Pará. Tese de Doutorado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA, 2017. • OLIVEIRA, A. E. Ocupação humana. In: SALATI, E. et al. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecolo- gia. 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Figura 1 USO DO SOLO NO PLANALTO SANTARENO 1985 1995 2005 2018 ®® https://t.me/PDFs_Brasil 9JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil A esquerda, uma ideia nova nos Bálcãs Desde o fim da Iugoslávia, o debate político nos Bálcãs foi reduzido a um confronto entre nacionalistas e liberais. Atualmente, uma nova esquerda anticapitalista emerge em defesa dos bens comuns e contra as crescentes desigualdades. A coalizão da esquerda verde acaba de ganhar a prefeitura de Zagreb, enquanto uma esquerda soberanista governa o Kosovo POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E LAURENT GESLIN* UMA RECONQUISTA DAS GRANDES CIDADES “A ideia do socialismo demo- crático foi tabu por três dé- cadas na Croácia. Consegui- mos reafirmá-lo no debate político.” Na eleição presidencial de 22 de dezembro de 2019, Katarina Peovic vestiu as cores da Frente dos Trabalha- dores, conquistando apenas 1,12% dos votos. Seis meses depois, contudo, em 5 de julho de 2020, vários partidos, in- cluindo a Frente dos Trabalhadores, unidos em uma coalizão de esquerda ambiental, surpreenderam nas eleições legislativas com 7% dos votos e sete eleitos (de 151 cadeiras). O ensaio ga- nhou corpo nas eleições municipais de maio passado: a coalizão obteve maio- ria absoluta no conselho municipal de Zagreb ainda no primeiro turno, e, duas semanas depois, seu candidato, Tomis- lav Tomaševic, foi triunfantemente elei- to prefeito da capital, com 65% dos vo- tos. A coalizão – da qual a Frente dos Trabalhadores se separou – também te- ve resultados notáveis em Pula, Split e muitas outras cidades do país. A sacudida à esquerda começou na Eslovênia, onde Združena Levica [A Es- querda Unida] colocou seus primeiros membros eleitos no Parlamento em 2014. “Enquanto na Croácia o naciona- lismo e a guerra esmagaram tudo, na Eslovênia sempre se manteve uma tra- dição de esquerda ativa, com jornais como Mladina, espaços de debate, in- telectuais como Slavoj Žižek e muitos outros”, explica o deputado Luka Me- sec. Às vezes referido como “Tsipras es- loveno”, em referência ao ex-primeiro- -ministro grego Alexis Tsipras, esse jovem – com apenas 27 anos quando foi eleito pela primeira vez em 2014 – lide- rou notavelmente a Universidade dos Trabalhadores e dos Punks, um espaço crucial para o rearmamento intelectual da esquerda. “Minha geração sofreu o impacto da crise global de 2008. Enten- demos que não haveria emprego para todos e que as coisas não melhorariam automaticamente. Em suma, devemos não apenas compreender, mas também transformar a sociedade”, afirma. Para a nova geração da esquerda es- lovena, a insurgência “cidadã” de 2012 desempenhou um papel importante. Já primeiro-ministro naquele momento (voltou a ser primeiro-ministro de 2012 a 2013, depois a partir de março de 2020), o conservador Janez Janša, esta- va liderando uma política de austerida- de severa, diminuindo os salários dos funcionários públicos e organizando cortes nos orçamentos de saúde e edu- cação. Envolvido em escândalos de corrupção, foi finalmente demitido do cargo no fim de fevereiro de 2013, após semanas de protestos. “A crise de 2008 embaralhou as car- tas e marcou o surgimento de novas questões. Os estudantes denunciaram o modelo liberal de ensino superior que a União Europeia pretendia impor. A demanda central era a educação gra- tuita, da educação infantil ao doutora- do”, confirma o escritor Igor Štiks, um dos líderes da revolta estudantil croata de 2009. Como na Eslovênia alguns anos depois, esse movimento serviu de escola ativista para toda uma geração. Em fevereiro de 2014, o movimento chamado de plenums [cidadãos articu- lados em assembleias] incendiou a Bós- nia-Herzegovina a partir da grande e adormecida cidade operária de Tuzla, no noroeste do país. Funcionários de fábricas privatizadas que exigiam seus salários não pagos juntaram-se aos ci- dadãos da cidade e assumiram a sede do governo municipal. Denunciando ao mesmo tempo o modelo neoliberal docilmente seguido pela Bósnia-Her- zegovina e as divisões nacionais, os manifestantes recordaram que “a pala- vra ‘fome’ é a mesma em bósnio, croata ou sérvio”. “Esse movimento experi- mentou a democracia direta. Os plenums da cidade reuniram-se em um plenum de plenums, algo como as ‘as- sembleias de assembleias’ dos ‘coletes amarelos’ franceses”, enfatiza Štiks. Nenhuma força política, no entanto, conseguiu prevalecer na Bósnia-Herze- govina. O fracasso desse movimento pode ser explicado, pelo menos em par- te, pelas divisões etnopolíticas no país, mantidas pelos nacionalistas no poder. “As autoridades sérvias da Bósnia esta- beleceram um cordão sanitário para prevenir o contágio, alegando que as demandas sociais constituíam traição nacional”, relata Krunoslav Stojaković, originário de Tuzla e agora diretor do © Možemo Split Tomislav Tomaševic, da coalização de esquerda, foi eleito prefeito da capital Zagreb, com 65% dos votos ®® https://t.me/PDFs_Brasil 10 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 escritório regional para o sudeste da Europa da Fundação Rosa Luxembur- go, politicamente filiada ao partido ale- mão Die Linke [A esquerda]. Hoje, as dinâmicas croata e eslove- na despertam vocações na Sérvia. Um partido da esquerda radical (Partija Ra- dikalne Levice, PRL) foi criado em se- tembro de 2020 sobre os escombros da União Social Democrática (SDU), após uma severa obrigação de inventário. “Estamos orgulhosos do envolvimento da SDU no movimento antiguerra dos anos 1990 e nas lutas contra o regime de [ex-presidente Slobodan] Miloševic. Por outro lado, rejeitamos sua participação nos governos dos anos 2000 e seu apoio às privatizações”, explica Ivan Zlatic, membro da presidência do partido. Zlatic pretende fazer uma avaliação crítica de A Outra Sérvia (Druga Srbija), esse amplo movimento que se opôs, muitas vezes com coragem, ao naciona- lismo e à guerra, e que consegue manter os vínculos entre as repúblicas da anti- ga federação, ao mesmo tempo que de- fende os direitos das mulheres e das mi- norias sexuais. “A experiência iugoslava foi duas coisas: fraternidade e unidade de todos os povos– isto é, internaciona- lismo – e direitos sociais. A tradição li- beral soube salvaguardar o primeiro as- pecto, mas sacrificou o segundo, que devemos recolocar em primeiro plano”. Para Zlatic, essa “outra Sérvia”, que che- gou ao poder após a queda de Miloševic em 5 de outubro de 2000, não estava sa- tisfeita com a adoção de um programa de reformas liberais. “Havia uma vonta- de de punir os trabalhadores por meio das privatizações, de punir esse povo que não se rebelou contra Miloševic, o que, aliás, é falso: esquecemos o papel desempenhado pelas greves operárias de outubro de 2000 na queda do regi- me!”, lembra. A esquerda eslovena de Levica inte- gra o Partido da Esquerda Europeia (PEE), que inclui notadamente o Parti- do Comunista Francês, o Die Linke ale- mão e a coligação grega Syriza. “Opera- mos dentro de um quadro europeu, mas temos relações mais estreitas com os camaradas da Croácia, da Bósnia-Her- zegovina e da Sérvia do que com os da Itália ou da Áustria. Compartilhamos referências comuns”, pontua Mesec. Em Zagreb, Peovic também não nega o refe- rente iugoslavo: “Os nacionalistas rejei- tam tudo o que é iugoslavo, mas, na Croácia, para muitas pessoas, isso assu- me um significado positivo: direitos so- ciais, férias para todos. Pode haver uma dimensão folclórica da ‘iugonostalgia’, enquanto o debate sobre as causas do colapso do Estado comum não acabou. Se as noções de socialismo e Iugoslávia ainda estão ligadas na imaginação de muitos croatas, isso não é mais uma desvantagem para nós”, sugere. A Fundação Rosa Luxemburgo, em um movimento de denunciar as tendên- cias revisionistas em relação à Segunda Guerra Mundial que animam as direitas da Croácia e da Sérvia, desenvolve pro- jetos de memória que favorecem uma reflexão crítica positiva sobre a expe- riência socialista, em particular em sua dimensão de autogestão. “Até a consoli- dação do poder neoliberal autoritário de [Aleksandar] Vucic, em 2012-2014, a Sérvia experimentou muitas formas de resistência dos trabalhadores, como a longa greve de Jugoremedija em Zrenja- nin, de dezembro de 2003 a setembro de 2004. Trabalhadores ocuparam essa fá- brica farmacêutica para protestar con- tra sua privatização e os tribunais aca- baram por outorgar-lhes o controle da maioria do capital”, relata Zlatic, con- vencido de que a experiência de auto- gestão continua ancorada na memória das classes trabalhadoras iugoslavas. A esquerda que tenta crescer e ga- nhar espaço encontra-se na encruzi- lhada de duas tradições: a das lutas operárias e a das experiências munici- palistas, centradas na defesa dos bens comuns. Assim, a coligação da esquer- da verde, que acaba de ganhar a Câ- mara Municipal da capital croata, de- senvolveu-se por meio da experiência da plataforma de Zagreb I NAŠ! [Za- greb é nossa!]. Seu recente triunfo é motivador para o movimento Ne da(- vi)mo Beograd [Não afoguemos Bel- grado], que desempenha um papel central nas mobilizações contra o sa- que de capital orquestrado por incor- poradores imobiliários próximos ao Partido Progressista Sérvio (SNS), no poder. O centro da cidade foi esvazia- do de sua população e arrasado para dar lugar a um luxuoso complexo às margens do Danúbio, o Belgrade Wa- terfront, supostamente financiado por capital dos Emirados Árabes Unidos, mas que seria em realidade uma enor- me operação de lavagem de dinheiro. “A TRANSIÇÃO TIROU TUDO DE NÓS” Na primavera de 2016, milhares de bel- gradinos marcharam atrás da mascote do movimento, um pato de plástico amarelo gigante. O protesto se esten- deu contra outros projetos imobiliários da capital, como a destruição dos anti- gos estúdios de cinema Avala e dos bos- ques de Košutnjak. A luta contra a gen- trificação de certos bairros envolve também o combate aos despejos, extre- mamente facilitados pela lei sérvia em casos de endividamento, aluguéis não pagos ou devolução de um imóvel a seus proprietários, cujo título datava de antes de 1945. “Alguns ativistas de extrema direita tentaram integrar-se às mobilizações, mas a tentativa falhou”, sorri Isidora Petrovic, ativista do movi- mento Krov nad glavom [Um teto sobre sua cabeça]. “É preciso muita determi- nação diante de oficiais de justiça e po- liciais, sempre em conluio com o poder estabelecido”, completa. Petrovic tem um olhar crítico sobre as manifestações “democráticas” do inverno de 2018-2019: aos seus olhos, representam pouco mais do que uma tentativa da oposição liberal de fazer as pessoas falarem sobre ela, após repeti- dos fracassos eleitorais. A jovem está convencida, contudo, de que o regime de Vucic não está imune a uma explo- são social, como mostrou a revolta es- pontânea dos estudantes que, em julho de 2020, rechaçaram o fechamento de suas residências universitárias por mo- tivos sanitários. Nos Bálcãs, a defesa dos comuns se mobiliza na forma de manifestações, como os grandes desfiles que anima- ram Belgrado no início de abril, ou ações locais. Várias lutas se cristali- zam na oposição a projetos de micro- -hidrelétricas, que se multiplicaram na região e muitas vezes são construí- das por empresas próximas aos regi- mes, com auxílio do Banco Europeu de Desenvolvimento (Berd). “A transição tirou tudo de nós: nossos empregos, nossas fábricas, nosso futuro. Só nos resta água, ar e natureza, e mesmo isso eles querem tirar de nós”, indigna-se Aleksandar Vemic, defensor do Rio Bu- kovica, na província de Montenegro. Essas mobilizações sem precedentes conseguiram transcender as diferen- ças de identidade que estruturam a so- ciedade montenegrina e contribuí- ram, em agosto de 2020, para a queda do regime de Milo Đukanovic.1 Um dos pilares do novo governo, o movi- mento Ação Reformista Unida (Uje- dinjena reformka akcija, URA) juntou- -se ao Partido Verde Europeu e se reivindica parte de uma esquerda ci- dadã e ambientalista. A junção entre as lutas dos trabalha- dores, ambientais e pelos direitos das mulheres e das minorias sexuais per- manece um caminho complexo. Mesec ressalta que, diante do autoritarismo de ultradireita de Janša, homólogo eslove- no do húngaro Viktor Orbán que voltou ao poder em março de 2020, cabe prin- cipalmente à esquerda anticapitalista liderar os combates em defesa dos direi- tos e das liberdades fundamentais. Ro- bert Kozma, do Ne da(vi)mo Beograd, sublinha, por sua vez, que pertencer ou não à União Europeia já não induz dife- renças entre os países da região: “Todos pertencem a uma semiperiferia” *Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin são jornalistas do Courrier des Balkans. 1 Ler “Clientélisme et vertiges identitaires au Monténégro” [Clientelismo e vertigens identi- tárias em Montenegro], Le Monde Diplomati- que, fev. 2021. Ao obter 50,3% dos votos nas elei-ções parlamentares de 14 de fe- vereiro, o movimento soberanista de esquerda no Kosovo esmagou seus ri- vais, em particular os partidos dos ex- -comandantes guerrilheiros do Exérci- to de Libertação do Kosovo (UÇK). Albin Kurti, o carismático líder da Vetë- vendosje (“Autodeterminação”, em al- banês), tornou-se novamente primeiro- -ministro. Ele já ocupava o cargo desde as eleições de outubro de 2019, mas seu gabinete foi derrubado em março de 2020 – em meio à pandemia –, após a saída da Liga Democrática do Kosovo (LDK, centro-direita), por pres- são da administração norte-americana na época. Donald Trump queria chegar rapidamente a um acordo entre Pristi- na e Belgrado, fundamentado em uma possível troca de territórios1 – mas cujos termos a Vetëvendosje recusou. Em setembro de 2020, a Casa Branca obteve um “acordo econômico” sem muito significado.2 Embora o Kosovo cultive, desde o bombardeio à Sérvia em 1999, uma viva americanofilia, seus eleitores votaram a favor de um líder que afirma ter sido vítima de uma ten- tativa de “golpe de Estado” orquestra- da pelos Estados Unidos. Kurti declarou que suas prioridades seriam a luta contra a corrupção e a situação econômica, sanitária e social– e não o diálogo com Belgrado. Mas qual é sua margem de manobra? As forças de esquerda nos Bálcãs ainda cultivam certa reserva em relação a Vetëvendosje, pelo viés nacionalista assumido,3 mas todas observam com interesse a experiência em curso: Kurti demonstrou que uma mudança radical é possível, mesmo sem o apoio dos ocidentais. (J.-A.D. e L.G.) 1 Ler “Dans les Balkans, les frontières bou- gent, les logiques ethniques demeurent” [Nos Bálcãs, as fronteiras se movem, a lógica étnica permanece], Le Monde Di- plomatique, ago. 2019. 2 Ler Serge Halimi, “Fausses indépendan- ces” [Falsas independências], Le Monde Diplomatique, out. 2020. 3 Ler Jean-Arnault Dérens, “Essor d’une gauche souverainiste au Kosovo” [Ascen- são de uma esquerda soberanista no Ko- sovo], Le Monde Diplomatique, dez. 2017. EXPERIÊNCIA SOBERANISTA NO KOSOVO A luta contra a gentrifi- cação de certos bairros envolve também o com- bate aos despejos, extre- mamente facilitados pela lei sérvia ®® https://t.me/PDFs_Brasil 11JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil Cabos submarinos, uma questão de Estado O sonho libertário de uma internet regulamentada apenas por empresas privadas está desaparecendo. Por muito tempo impotentes diante de um fenômeno que não entendiam, os Estados estão reconquistando o front na cena digital e têm um peso cada vez maior na arquitetura física da internet – uma questão de soberania e poder no século XXI, como eram os cabos telegráficos no século XIX POR CHARLES PERRAGIN E GUILLAUME RENOUARD* QUANDO A INFRAESTRUTURA DAS REDES VOLTA A SER GEOPOLÍTICA A Wehrmacht a chamava de Mar- tha. Hoje, um casco cor de ferru- gem esconde o cinza do concreto. Na estrada que segue ao longo do grande porto marítimo de Marselha ru- mo a L’Estaque, a antiga base de sub- marinos nazistas está abandonada há mais de setenta anos. O bunker inaca- bado foi usado como prisão militar pe- los Aliados após o desembarque da Pro- vença. Depois, nada. Até recentemente, alguns iniciados vinham admirar anti- gos desenhos esquecidos nas paredes, provavelmente obra de prisioneiros ale- mães. Agora, eles não estão mais acessí- veis, escondidos desde 2020 por trás das instalações da MRS 3, um dos enormes data centers da companhia Interxion. “Não posso deixá-los entrar. São plataformas de nuvem muito sensíveis e temos cláusulas de confidencialidade do tamanho de um braço”, diz já de saí- da Fabrice Coquio, presidente da em- presa. As instalações são civis, mas a segurança é digna de uma base militar. Aqui está enterrada uma parte dos ca- torze cabos submarinos de fibra óptica que chegam a Marselha. Dados vindo do mundo inteiro, armazenados e tro- cados em centros de dados dos clientes: Google, Amazon, Facebook, um escri- tório de advocacia, a companhia de água local e operadoras de telecomuni- cações. E também o Estado francês. “Não faz muito tempo que os países eu- ropeus se interessaram abertamente pelos atores privados de infraestrutura da internet”, observa Coquio. Secreta- mente, eles fizeram isso nos anos 2000. Com 99% das comunicações eletrôni- cas intercontinentais trafegando pelos cabos submarinos, os serviços de inte- ligência fizeram deles um de seus terre- nos de ação favoritos. Olhando para os grandes prédios reluzentes do terminal de navios de cruzeiro, é difícil imaginar que esta- mos em um ninho de espiões. No en- tanto, de acordo com os documentos fornecidos pelas denúncias de Edward Snowden ao jornal Der Spiegel, a Agên- nal.” E isso sem marco legal claro nem controle. “Os cabos submarinos têm re- lação com as comunicações interna- cionais, portanto são um assunto de Estado. Na França, nunca tivemos a competência para controlar a DGSE a respeito dos cabos, e a lei de inteligên- cia de 2015 não mudou nada”, esclarece Jean-Marie Delarue, ex-presidente da Comissão Nacional para o Controle de Interceptações de Segurança. E a Fran- ça não é exceção. “As leis de inteligên- cia aprovadas nos países da OCDE [Or- ganização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] após o caso Snowden facilitaram a coleta de dados, que, portanto, só aumentou”, conclui Crozier. Dos cabos submarinos dependem as comunicações, os fluxos financeiros, o acesso a dados armazenados remota- mente (a “nuvem”, em inglês cloud). Pa- ra os Estados, o controle desses fluxos constitui uma imensa alavanca de in- fluência geoeconômica. Outro país en- tendeu isso muito bem: a China. No dia 8 de abril de 2010, segundo um relatório do Congresso dos Estados Unidos, a China desviou para seus servidores, durante 18 minutos, e-mails com ori- gem ou destino no Senado dos Estados Unidos, em seu Ministério da Defesa e do Comércio e na Administração Na- cional da Aeronáutica e Espaço (Nasa). Em junho de 2019, engenheiros da em- presa Oracle descobriram que um gran- de volume de tráfego europeu da Bouy- gues Telecom e da SFR foi redirecionado por duas horas em direção à China. E mais: o país pressionou direta- mente suas empresas públicas a con- trolar a camada física do ciberespaço. “O Estado chinês conquistou um lugar de destaque nos consórcios asiáticos por meio da China Mobile, China Te- lecom e China Unicom. De maneira geral, a grande mudança no tráfego da internet para a Ásia deu aos Estados asiáticos (China, Tailândia, Cingapu- ra) mais peso sobre os cabos: desde 2010, eles forneceram uma média de 9% dos investimentos, contra 1% en- tre 1987 e 2010”, detalha Félix Blanc, doutor em Ciência Política especiali- zado na governança dos cabos sub- marinos. Para além de sua influência regional, a China investe em projetos situados em áreas estratégicas, como o Canal da Nicarágua, cuja concessão também abrange cabos de internet, ou a ligação ao continente europeu via Marselha por meio da primeira liga- ção de fibra óptica chinesa entre a França e a Ásia, chamado Pakistan and East Africa Connecting Europe (Peace – Paquistão e África Oriental Conectando a Europa). Entre 2016 e 2019, as empresas chinesas participa- ram de 20% das construções de cabos, mais da metade delas fora do Mar da China Meridional, sobretudo em paí- ses emergentes.5 cia de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos introduziu, em feverei- ro de 2013, um vírus computacional no núcleo do site de administração e ges- tão do SEA-ME-WE 4, um cabo que leva as comunicações telefônicas e de inter- net de Marselha para o norte da África, Oriente Médio e Sudeste Asiático.1 Para a NSA, Marselha é um dos principais pontos de interceptação do mundo. CLEAN NETWORK, A LIMPEZA NORTE-AMERICANA “No início, a captação de dados de ca- bos submarinos era justificada pelo an- titerrorismo”, explica Dominique Boul- lier, sociólogo do Instituto de Estudos Políticos de Paris. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, “era necessário captar fluxos em massa nos pontos ne- vrálgicos a fim de monitorar e even- tualmente chegar até os culpados em caso de um incidente”. Em vinte anos, os Estados Unidos tornaram-se o maes- tro dos “Five Eyes” [cinco olhos] na captação de comunicações que trafe- gam por cabos – fala-se de “intercepta- ção de cabos” –, efetuada por sondas colocadas nos grandes pontos de ater- ramento de cabos do planeta, com a cumplicidade das operadoras. “Hoje os Estados Unidos bombeiam todos os ca- bos. Na França, testamos seus roteado- res Cisco. Sabemos que parte dos dados que saem vão misteriosamente para os Estados Unidos”, declara, anonima- mente, um alto funcionário de uma operadora francesa de telecomunica- ções. Além da captação em massa, os serviços norte-americanos realizam operações direcionadas de espionagem política (governos, embaixadas) e eco- nômica. Nos últimos anos, por exem- plo, vimos a interceptação em Hondu- ras de um cabo que serve um local turístico onde se reúnem atores econô- micos globais, do setor automotivo ao agronegócio, ou do Centro Internacio- nal de Física Teórica de Trieste, que treina cientistas de todo o mundo na área nuclear.2 Dolado dos parceiros britânicos, as mesmas brigas. Em 2012, o Govern- ment Communications Headquarters (GCHQ), serviço do governo britânico encarregado do monitoramento das te- lecomunicações, utilizou os cabos para recuperar cookies (testemunhas de co- nexão) dos funcionários da operadora belga Belgacom para se infiltrar na re- de da companhia, que presta serviços a governos europeus.3 Em 2014, os fran- ceses souberam que os serviços britâ- nicos acessavam os clientes da Orange desde 2011: “Na época, os serviços bri- tânicos suspeitavam que o grupo Iliad tivesse feito um acordo com o Mossad”, lembra uma fonte interna, que prefere ficar anônima. “O GCHQ, por meio da Orange, podia medir as variações de fluxo nos cabos e determinar se estava acontecendo alguma coisa entre a França e Israel: acordos comerciais, co- laboração, uma operação qualquer... Isso se tornou um procedimento clássi- co para os Estados.” Após as revelações de Snowden, países europeus ficaram indignados, principalmente a França. Mas o Estado francês, que colabora com a NSA, tem desde 2008 um programa de escuta de comunicações internacionais que tra- fegam por cabos submarinos.4 Uma no- ta revelada por Snowden mostra que, em 2009, a Direção-Geral da Segurança Exterior (DGSE) intensificou sua coo- peração com o GCHQ na “busca por in- terceptações maciças por meio da que- bra de sistemas de criptografia entregues por fornecedores privados”. Cinco cabos foram grampeados entre 2008 e 2013 com a cumplicidade da Orange. E isso é só o começo. “Hoje, qual Estado não intervém di- retamente junto a suas empresas de te- lecomunicações?”, pergunta Sébastien Crozier, presidente da Confederação Francesa de Executivos – Confederação Geral de Executivos (CFE-CGC) da Orange. “Ser uma operadora de comu- nicação hoje significa aceitar que se tem uma função na soberania nacio- ®® https://t.me/PDFs_Brasil 12 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021 Washington não gosta nada disso. “Em 2013, os Estados Unidos já haviam provocado o fracasso da implantação de um cabo transatlântico Nova York-Lon- dres, da qual participaria a empresa chi- nesa Huawei Marine”, recorda Blanc. Em 2020, a Comissão Federal de Comu- nicações (FCC) obrigou o Google e o Fa- cebook a não conectar Los Angeles a Hong Kong, conforme previa o projeto inicial. As gigantes da internet se dobra- ram. Oficialmente, o governo dos Esta- dos Unidos acusou o terceiro membro do consórcio, a Pacific Light Data Communication, de Hong Kong, de co- laborar com os serviços de inteligência chineses. Para Crozier, “a operação ser- viu principalmente para enfraquecer a posição financeira de Hong Kong em um contexto no qual ela poderia se aproxi- mar de Xangai e suplantar Londres”. No que diz respeito ao cabo Peace, o governo dos Estados Unidos faz pres- são direta sobre a França. Em outubro de 2020, Peter Berkowitz, diretor do ór- gão de planejamento do Departamento de Estado, reuniu-se com assessores do presidente da República e com repre- sentantes dos ministérios das Relações Exteriores e das Forças Armadas. Ele apresentou um inquietante relatório sobre as ambições globais da China na instalação de cabos e alertou – e alertas são sempre empolgantes – sobre os ris- cos de espionagem. “É normal que haja pressão”, comenta Paul Triolo, membro da consultoria Eurasia Group. “A nu- vem é dos Estados Unidos. Se você é a Microsoft ou a Amazon, contanto que seus concorrentes na Europa sejam empresas como Outscale e OVH, não há muito a temer. Mas Alibaba e Ten- cent são outra história.” “Os Estados Unidos intervêm cada vez mais nos cabos, no contexto de sua guerra comercial com a China”, explica Camille Morel, doutora em Direito e Ciência Política ligada à Universidade Jean-Moulin Lyon III. “Na Europa, isso é muito recente, mas em 2018 eles já pressionaram a Austrália e fizeram o país se recusar a permitir que a Huawei financiasse a instalação de um cabo en- tre Sydney e as Ilhas Salomão.” Essas ingerências colaboram para um vasto programa norte-americano que o ex- -secretário de Estado Mike Pompeo chamou de Clean Network [rede lim- pa]. A “limpeza” norte-americana tinha vários componentes: banir operadoras chinesas (como a China Telecom) ou determinados aplicativos (TikTok, que foi alvo de Donald Trump por algum tempo) no país, reduzir a quantidade de dados armazenados remotamente na China e, claro, “limpar” a rede a ca- bo, excluindo os atores chineses. “É preciso lembrar que a internet é norte-americana desde o início. Endos- samos demais a posição dos Estados Unidos, que exagera a respeito do poder chinês”, lembra Ophélie Coelho, pes- dos nas profundezas abissais: os minis- térios das Forças Armadas, dos Estados Unidos à China, passando pelo Reino Unido e a França, competem em inven- tividade para se proteger contra uma “guerra no fundo do mar” (seabed war- fare), mencionada sobretudo na Atuali- zação Estratégica de 2021. O que o Yan- tar estava realmente fazendo? O que fazem os drones submarinos norte-a- mericanos e chineses? “Não sabemos. Mas, para além de alguns atos de van- dalismo, sabemos que a grande maioria dos cerca de cem cortes por ano tem re- lação com a presença de barcos de pes- ca próximo à costa”, responde Camille Morel. “Os cabos cristalizam tensões diplomáticas, mas estamos longe de ver ações militares. As consequências se- riam pesadas demais. Uma sabotagem por parte de um país seria como uma declaração de guerra.” Esse ressurgimento da questão dos cabos coroa uma longa tendência. A partir da década de 1930, o desenvolvi- mento do rádio marginalizou os cabos, sem, no entanto, fazê-los desaparecer; eles continuam sendo mais difíceis de interceptar do que as ondas de rádio. Mesmo com a chegada dos satélites, os cabos foram usados para a espionagem durante a Guerra Fria.10 No fim dos anos 1980, com o advento da fibra ópti- ca, o aumento da capacidade desses ca- bos inaugurou a era da banda larga, da internet e das grandes operadoras mo- vidas por interesses comerciais. “Du- rante a primeira década de desenvolvi- mento do cabeamento de fibra óptica, a indústria de cabos contou com consór- cios de operadoras nacionais, incluin- do muitos monopólios estatais”, expli- ca Nicole Starosielski, professora da Universidade de Nova York e autora de The Undersea Network [A rede subma- rina] (Duke University Press, 2015). “Mas a adoção do princípio da concor- rência por muitos países, seguindo a lei de telecomunicações dos Estados Uni- dos de 1996, confiou o leme aos atores privados.” Em dez anos, a participação de capital das operadoras públicas caiu, passando a representar menos de 1% do investimento total. Na última década, alguns investido- res norte-americanos poderosos o bas- tante para operar sozinhos suplanta- ram os antigos consórcios, que reuniam dezenas de operadoras: Google, Face- book, Amazon e Microsoft. Enquanto a China avança no mercado asiático, es- sas empresas poderiam controlar a grande maioria dos cabos submarinos ocidentais em três anos.11 Em breve, o Google terá cinco. O último a entrar em serviço chama-se Dunant. Quase du- zentas vezes mais poderoso do que os cabos instalados há vinte anos, ele liga Virginia Beach a Saint-Hilaire-de-Riez, na França. “No princípio, nos contentá- vamos em alugar largura de banda das operadoras. Mas, dada a explosão do quisadora do Departamento Intermi- nisterial sobre Questão Digital. Seu ar assustado não impede que os Estados Unidos espionem a China, como quan- do o serviço secreto da Nova Zelândia interceptou, em nome da NSA, um cabo que passa pelo consulado chinês em Auckland.6 Para a China, as infraestru- turas da internet representam um meio de garantir interesses vitais. Com quase 20% da população mundial para 10% das terras aráveis, a China “financia in- fraestrutura tecnológica fora de seu ter- ritório para acessar matérias-primas, sobretudo recursos alimentares”, se- gundo Statia Lee, pesquisadorade Ciên- cia Política da Universidade de Washin- gton. A China Unicom, por exemplo, investiu em um cabo entre Camarões e o Brasil em troca de acesso a zonas de pesca.7 “A estratégia chinesa em relação aos cabos, voltada ao atendimento da demanda doméstica, sustenta cada vez mais uma projeção de sua economia di- gital no estrangeiro, na França, na Áfri- ca e, há mais tempo, na Ásia. É o que foi chamado de ‘rota da seda digital’”, deta- lha Jean-Luc Vuillemin, vice-presidente das redes internacionais da Orange. Se- gundo ele, a China chegou recentemen- te a frustrar a instalação de três cabos parcialmente financiados pelo Google que iriam conectar Hong Kong ao Japão, Cingapura e Filipinas. ÁFRICA, MERCADO CATIVO Outros países também tentam manter os Estados Unidos a distância, como Cuba. Em troca, os norte-americanos proibiram que qualquer cabo que to- casse a Flórida (quase toda a fibra ópti- ca latino-americana) se conectasse à ilha. Poucos meses após as revelações de Snowden, o governo de Dilma Rous- seff apresentou o projeto de cabo Ella- Link, entre Brasil e Portugal, como uma forma de contornar os Estados Unidos e restaurar a soberania digital do Bra- sil. A ambição foi partilhada pela Rús- sia, que, como explica Julien Nocetti, investigador especializado em internet russa do Instituto Francês de Relações Internacionais, “está realocando seus data centers. No fim de 2019, 60% dos dados russos ainda estavam armaze- nados no exterior”. Ferramentas de vigilância e até de opressão – como durante a Primavera Árabe de 2011, quando cabos foram de- liberadamente cortados pelas autori- dades a fim de isolar a população na Sí- ria ou no Egito8 –, as infraestruturas de telecomunicações de fibra óptica são também vetores de influência econô- mica. Esses dois aspectos as colocam no centro de grandes questões geopolí- ticas, como os cabos telegráficos no sé- culo XIX, o primeiro dos quais ligou, em 1852, as Bolsas de Valores de Paris, Londres e Nova York. Nas décadas se- guintes, a Eastern Telegraph Company multiplicou as ligações entre a Grã-Bre- tanha e suas colônias na África, Ásia, América do Sul, Austrália e especial- mente na costa oeste dos Estados Uni- dos. Em 1892, dois terços dos cabos do mundo pertenciam a eles. “Ainda hoje, a rota dos cabos submarinos da inter- net segue as rotas do telégrafo do Impé- rio Britânico”, destaca Jovan Kurbalija, ex-diplomata especializado em gover- nança da internet. Tanto no Reino Unido como na França, a partir de 1870 (quando Mar- selha estava ligada a Argel), “os cabos tornaram-se indispensáveis não ape- nas para o comércio marítimo de todas as grandes potências e suas colônias, mas também para a defesa desse co- mércio e dessas colônias em tempos de guerra”, escreve o historiador Daniel Headrick.9 Já naquela época, o governo britânico incentivava navios estrangei- ros de instalação de cabos a aterrar em suas costas, para que eles pudessem fi- car sob vigilância. “A lição era clara”, continua Headrick: “Em tempos de guerra, a nação que tivesse o maior nú- mero de navios de instalação de cabos e a Marinha mais poderosa, ou seja, a Grã-Bretanha, controlaria também as comunicações de outras nações. O di- reito internacional, o respeito aos direi- tos e à propriedade dos neutros, as pro- messas de paz e amizade perpétuas e os laços de fraternidade entre as nações não se aplicavam mais. O século XX ha- via começado”. Foi em 1898, durante a Guerra Hispano-Americana em Cuba, que os cabos viraram alvo pela primei- ra vez. Depois, no início de cada guerra mundial, o Reino Unido cortaria os ca- bos submarinos alemães. Hoje, como outrora, a importância e a quantidade de dados que trafegam pelos cabos suscitam preocupações. No verão de 2015, bastou que um navio oceanográfico russo, o Yantar, rastreas- se cabos perto da costa dos Estados Unidos para que um think tank britâni- co, o Policy Exchange, publicasse em 2017 um relatório com o evocativo títu- lo “Cabos submarinos: indispensáveis e vulneráveis”. Cerca de quarenta pági- nas redigidas sob a supervisão de um ex-almirante norte-americano expli- cam por que os russos não descartavam a hipótese de cortar cabos submarinos em caso de conflito. O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlânti- co Norte (Otan), Jens Stoltenberg, de- fendeu, no fim de 2020, o desenvolvi- mento de missões de vigilância e proteção de cabos submarinos. Navios de vigilância, drones sub- marinos, sistemas de sonar deposita- “Hoje, qual Estado não intervém diretamente junto a suas empresas de telecomunicações?” ®® https://t.me/PDFs_Brasil 13JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil tráfego, constatada ou prevista, a me- lhor abordagem seria investir em nos- sos próprios cabos”, declara Jayne Sto- well, que negocia contratos para a construção de cabos submarinos no Google. Com o vídeo (YouTube, Netflix, Twitch) e o armazenamento remoto, o consumo de dados explodiu: ele seria 130 vezes maior em 2021 do que em 2005.12 “Quem gere o tráfego é o chama- do Gafam [Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft], do qual a Europa depende maciçamente. Ele já usa meta- de da largura de banda da internet do mundo, e isso pode crescer até 80% em 2027. Para esses atores, controlar sozi- nhos seus fluxos de dados se tornou uma obviedade”, resume Lucie Greene, autora de Silicon States [Estados de Silí- cio] (Counterpoint, 2018). As empresas de telecomunicações estão coléricas. “Há alguns anos, o Google e a Microsoft eram seus clien- tes. Agora, elas estão reduzidas a ge- renciar o aterramento de cabos em ter- ritórios nacionais e a cuidar da papelada e da ligação com os usuários finais. Viraram subcontratadas. E seu modelo de negócio vai depender cada vez mais de infraestruturas que já não lhes pertencem”, analisa Andrew Blum, jornalista e autor de Tubes: A Journey to the Center of the Internet [Tu- bos: uma viagem ao centro da Internet] (Ecco, 2013). Mais ainda, o armazena- mento remoto de dados hospedados em servidores espalhados pelo mundo torna as empresas dependentes do ca- beamento. “A economia da nuvem é hoje o motor da indústria dos cabos. Por razões de custo e eficiência, as grandes empresas europeias confiam seus dados a empresas como a Amazon Web Services”, observa Boullier. Por causa da dependência em relação a gi- gantes norte-americanos da nuvem, como a Amazon (31% do mercado), a Microsoft (20%) e o Google (7%), os da- dos europeus estão à mercê dos servi- ços norte-americanos, graças ao Cloud Act, adotado em maio de 2018 pelo go- verno Trump. Estejam esses dados ar- mazenados em servidores em solo dos Estados Unidos ou no exterior, um simples pedido de um juiz norte-ame- ricano é suficiente para recuperá-los. Auxiliado por um poderoso sistema de lobby dentro da União Europeia,13 o Gafam acumula certificações para a gestão de dados sensíveis. Assim, sem terem planejado, empresas e governos colocam-se à mercê dos cabos norte-a- mericanos. “E, às vezes, sem nem con- frontar a concorrência”, esclarece Ophélie Coelho. “Esse foi o caso do Health Data Hub, plataforma gerencia- da pelo Microsoft Azure que desde 2019 coleta dados médicos de hospitais fran- ceses para fins de pesquisa.” Resulta- do: “Descobrimos que somos depen- dentes da maneira como eles hospedam e controlam os dados e de sua legisla- tipo de contrato é padrão em termos de controle internacional de infraestrutu- ra de telecomunicações. Do lado chi- nês, há muito cuidado para não disper- sar as joias da família: vendida em 2019, a Huawei Marine foi comprada pela compatriota Hengtong, maior fabri- cante mundial de cabos ópticos terres- tres e submarinos, muito próxima do Estado chinês, com o objetivo de racio- nalizar a política de cabos. “Os cabos ligam um território cada vez mais frag- mentado, onde se trava uma guerra po- lítica e econômica de longo prazo. E os dois polos normativos são os Estados Unidos e a China”, conclui Edward J. Malecki, geógrafo
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