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® Le Monde Diplomatique Brasil ed 168 [Riva] Julho 2021

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2 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
ELEIÇÕES 2022
Calmaria 
na França?
POR SERGE HALIMI*
O
s próximos dez meses da vida po-
lítica francesa serão marcados 
por uma avalanche de notícias 
alarmantes, que provocarão pâ-
nico na segurança1 e injunções dramá-
ticas para “conter” uma extrema direita 
impulsionada por esse clima de medo? 
Esse encadeamento não é uma fatali-
dade, pois a eleição presidencial de 
2022 não está decidida antecipada-
mente. Seus dois prováveis finalistas, 
Marine Le Pen e Emmanuel Macron, 
com efeito, saem muito debilitados dos 
escrutínios regionais concluídos há 
pouco. Seu fracasso contundente sur-
preendeu pela amplitude.
Sem dúvida, as taxas de abstenção 
excepcional (66,72% no fim do primei-
ro turno) equivalem a uma condenação 
do recorte territorial, tão arbitrário 
quanto incompreensível. Mas a greve 
dos eleitores exprime também o des-
gosto por uma campanha política que 
chapinhou na lama da demagogia de 
extrema direita, a ponto de levar a pen-
sar que os grandes problemas do mo-
mento eram a segurança, a delinquên-
cia e a imigração, três áreas que, de 
resto, escapam largamente à compe-
tência das regiões. A despeito desse 
condicionamento alimentado pela mí-
dia e suscetível de inflar as velas do 
Rassemblement National a fim de fes-
tejar seu adversário do segundo turno 
na próxima primavera, o partido de Le 
Pen perdeu mais da metade de seus su-
frágios em comparação com o escrutí-
nio análogo anterior (2.632.000 votos 
contra 6.019.000 em dezembro de 2015). 
Semelhante resultado não revela, é cla-
ro, um avanço fascista na França capaz 
de induzir as pessoas a buscar, como 
carneirinhos assustados, a proteção do 
bom pastor do Élysée.
O fracasso – provisório? – da mano-
bra imaginada por Macron é tão retum-
bante quanto a queda de vários de seus 
ministros de prestígio, e os resultados 
obtidos pelas formações que o apoiam 
(11% em média, ou seja, 3,66% dos elei-
tores inscritos!) beiram a catástrofe, 
sobretudo em se tratando de partidos 
que contam com a maioria das cadeiras 
na Assembleia Nacional. Para um pre-
sidente que gosta do exercício solitário 
do poder – a ponto de adiar excepcio-
nalmente um toque de recolher sanitá-
rio a fim de garantir que a semifinal de 
um torneio de tênis fosse jogada... –, es-
sa desaprovação é impactante.
A taxa de abstenção e a força da 
inércia, que beneficiam quem quer que 
esteja de saída, impedem que se tirem 
outros ensinamentos de um escrutínio 
caracterizado, além do mais, por jogos 
de alianças sem coerência nacional. 
Assim, tudo está por fazer. Mas só a 
ideia de não estar antecipadamente 
condenado a escolher sempre entre o 
mal e o pior lembra, apesar de tudo, 
uma pequena calmaria. 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
1 Segundo as estatísticas oficiais, o número de 
homicídios oscilou, nestes últimos dez anos 
na França, entre 784 e 866 por ano, ou seja, 
de dois a três por dia. Isso basta para alimen-
tar permanentemente as cadeias de informa-
ção ávidas por catástrofes e fantasias.
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3JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
EDITORIAL
© Claudius
A hora e a vez dos deputados federais
POR SILVIO CACCIA BAVA
A 
crise política se precipita com as 
500 mil mortes e números assus-
tadores de contaminação e óbi-
tos diários; a saturação dos hos-
pitais e a sabotagem da campanha de 
vacinação pelo governo demonstrada 
pela CPI da Covid-19; a falta de vacinas, 
de oxigênio, de respiradores; e agora os 
fortes indícios de corrupção na compra 
de vacinas pelo governo. Tudo envol-
vendo diretamente a família Bolsonaro 
e seus seguidores negacionistas. Os 
responsáveis por esse genocídio já es-
tão identificados.
A avaliação que vai se generalizan-
do de que Bolsonaro é responsável pelo 
genocídio – não o único, mas o princi-
pal responsável – fez despencar a popu-
laridade do presidente. O fim do auxílio 
emergencial e depois sua tardia reto-
mada com menos da metade do valor 
anterior, e somente para uma parte dos 
que dele precisam, provocaram o afas-
tamento político de importantes parce-
las dessa população que antes aderira 
ao governo em razão do apoio que rece-
bera. Outro elemento a considerar: vá-
rias igrejas evangélicas neopentecos-
tais se afastaram de Bolsonaro. 
Pesquisas recentes indicam que hoje 
Lula tem a preferência de 41% dos evan-
gélicos. Ele perdeu uma grande base de 
apoio nesse mundo evangélico.1
As manifestações do dia 19 de ju-
nho trazem com força um novo ele-
mento para a cena pública. Trazem de 
volta a pressão da sociedade por mu-
danças. Maior, ocorrendo em muitas 
cidades, com uma grande presença de 
jovens, e contando com a participação 
de muitas instituições, partidos políti-
cos, centrais sindicais, entidades, re-
des, movimentos sociais e coletivos, 
que, nesse dia de protesto e mobiliza-
ção, se reapropriaram das ruas da cida-
de. Na prática criou-se uma frente am-
pla de defesa da democracia e pelo 
impeachment de Bolsonaro.
Essa frente apresentou um novo pe-
dido de impeachment, consolidando 
uma centena de pedidos anteriores. 
Com um ato no Congresso, esse pedido 
foi entregue ao presidente da Câmara 
dos Deputados, Arthur Lira, que até há 
pouco declarava que não via “circuns-
tância” para o impeachment prosperar. 
Essas manifestações dão um recado 
para o Congresso: chega! Não podemos 
continuar com esse governo que não 
combate a pandemia e desconhece a 
urgência de enfrentar a fome de mi-
lhões de brasileiros e brasileiras. Fora, 
Bolsonaro! Mas qual é o plano B? Se sai 
Bolsonaro, quem vai assumir a Presi-
dência? Mourão? E o que muda? 
A pressão da sociedade vai crescen-
do, e os parlamentares são sensíveis a 
essas pressões. Dia 24 de julho está 
marcada nova manifestação. Eles vão 
enfrentar eleições no ano que vem e não 
querem afundar com o governo Bolso-
naro. A depender da situação, o centrão 
pode se dividir, ou mesmo retirar seu 
apoio a esse governo. Fica aberta a por-
ta do impeachment. A questão é urgen-
te. Não dá para esperar as eleições. 
Há muitos interesses em jogo. Mui-
tos militares não querem voltar para a 
caserna. Os magistrados resolveram 
influir na governança e querem preser-
vados seus privilégios; o Executivo foi 
capturado por milicianos; o Congresso 
é composto, em sua maioria, por ban-
cadas corporativas que não se interes-
sam pelo bem comum. E agora, com a 
crise de energia que se anuncia, o po-
der econômico percebeu que precisa 
do Estado, do investimento público em 
infraestrutura, dos recursos públicos 
para a produção das condições em que 
prosperam seus negócios. A turma do 
Guedes já não conta mais com o apoio 
que tinha junto ao poder econômico.
O governo Bolsonaro vive seu mo-
mento de maior fragilidade, e estão na 
mesa alternativas como o impeach-
ment e a renúncia. Há quem proponha 
uma negociação: Bolsonaro renuncia, 
e ele e sua família não vão para a ca-
deia. Um governo interino, com Mou-
rão, assumiria até a posse dos novos 
eleitos, e os militares escalariam um 
de seus quadros – fala-se no próprio 
Mourão ou no general Santos Cruz – 
para disputar com Lula.2 Mas é bom 
que se diga: esse governo interino terá 
todo o processo eleitoral em suas mãos 
e nenhuma disposição dos militares de 
voltar para a caserna. 
Acuado, Bolsonaro pode tentar o 
golpe buscando mobilizar as PMs e as 
milícias. Mas as Forças Armadas, de-
pois de receberem duros golpes do ca-
pitão, como a demissão do ministro da 
Defesa e dos chefes do Exército, Mari-
nha e Aeronáutica, podem não querer 
embarcar nessa tentativa. O que vão 
ganhar, se podem continuar no poder 
sem Bolsonaro, apresentando-se na 
próxima eleição como alternativa a um 
novo governo do PT? 
A oportunidadede impedir Bolso-
naro é agora, em seu momento mais 
frágil, acusado de corrupção com as va-
cinas. Cabe à sociedade civil uma mo-
bilização maciça, uma campanha diri-
gida aos deputados federais que os 
pressione para abrir o processo de im-
peachment e julgar Bolsonaro. Sem 
Bolsonaro, o cenário político se abre 
para a disputa eleitoral, e será uma no-
va página de nossa história. 
1 Pesquisa IPEC, UOL, 25 jun. 21.
2 Rafael Barifouse, “Militares planejam se manter 
no poder ‘com ou sem Bolsonaro’, diz coronel 
da reserva”, BBC News Brasil, 12 jun. 2021.
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4 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
CAPA
O Brasil no redemoinho: o governo 
Bolsonaro e o butim da burguesia
P
arafraseando Guimarães Rosa, o 
Brasil está na rua, no meio do re-
demoinho,1 que é “a briga de ven-
tos. Quando um esbarra com ou-
tro, e se enrolam, o doido espetáculo”. 
Desde 2015, a “briga de ventos” provo-
cou a destruição de empresas e empre-
gos, a deterioração das instituições 
(Executivo, Legislativo e sistema políti-
co, Judiciário e Forças Armadas) e a for-
te redução da autonomia nacional.
Esse “doido espetáculo”, em que 
permanecemos até hoje, sob o governo 
Bolsonaro, foi formado por vários ven-
tos, vindos de diversas direções e in-
tensidades. O vento que veio dos quar-
téis, trazendo o capitão Bolsonaro, 
somente apareceu no final de 2017 e 
não pode ser responsabilizado exclusi-
vamente pela profunda crise (em suas 
múltiplas dimensões: econômica, polí-
tica, social, institucional e democrática 
e sanitária) que o Brasil atravessa. 
As bandeiras, levantadas em 2018 
pelo candidato Bolsonaro e pelos mili-
tares, do restabelecimento da ordem 
econômica, política, moral e psicosso-
cial brasileira vêm caindo uma a uma: 
desde a posse em 2019 até a não puni-
ção do general da ativa Eduardo 
Pazuello, ex-ministro da Saúde, que 
participou de manifestação política 
com o presidente, ato proibido pelo re-
gimento do Exército.
Apesar de não ser sua causa, a forma 
de governar de Bolsonaro amplia a cri-
se na medida em que, por um lado, mi-
na as instituições (sistema político, STF 
etc.) que já estavam fragilizadas e, por 
outro, concede benesses, em troca de 
apoio, para os militares, tais como tra-
tamento especial no quadro da reforma 
da Previdência, ampliação dos cargos 
ocupados no governo, reestruturação 
da carreira militar (que implicou au-
mento salarial nos níveis hierárquicos 
mais altos) e ampliação dos gastos e in-
vestimentos do Ministério da Defesa, 
mesmo com o teto de gastos.
Bolsonaro e os militares hoje no go-
verno não são o fato gerador da crise 
brasileira, e sim uma infecção oportu-
nista que se apropria de um corpo 
doente. O Brasil já se encontrava no 
meio do redemoinho, lançado em vá-
rias direções, retorcido e deslegitimado 
pelos ventos que sopravam de outras 
paragens. Esse novo vento, na verdade, 
ampliou o redemoinho que já tinha ga-
nhado forma em 2015.
Esse “doido espetáculo” foi impul-
sionado pelo vento vindo dos Estados 
Unidos, que trouxe a bactéria perigosa 
geradora da instabilidade para o corpo 
brasileiro. Após a descoberta do pré-sal, 
os órgãos de inteligência norte-ameri-
canos, sobretudo a Agência Nacional de 
Segurança (NSA), vinham espionando 
a Petrobras e a presidenta Dilma Rous-
seff, conforme arquivos obtidos com o 
ex-analista da NSA Edward Snowden, 
em 2013. Mais recentemente, com o ca-
so da Vaza Jato, ficou explícito que o De-
partamento de Justiça dos Estados Uni-
dos passou informações, de forma 
ilegal, para a Operação Lava Jato. Para 
muitos analistas, as primeiras informa-
ções sobre a corrupção na Petrobras e 
suas conexões com as empresas líderes 
da construção civil nacional, obtidas 
pela Lava Jato em Curitiba, teriam vin-
do do Departamento de Justiça, repas-
sadas provavelmente pela NSA. 
Com essas informações, a força-ta-
refa de Curitiba passou a utilizar meca-
nismos de flexibilização e/ou quebra 
do regramento jurídico para alcançar 
seus fins por meio da geração de insta-
bilidade política (um dos elementos 
centrais de sua estratégia) e de vaza-
mentos ilegais para a imprensa, para 
pressionar os agentes políticos e as ins-
tâncias superiores do Judiciário a pros-
seguir no combate à corrupção. Os fins 
(combate à corrupção e refundação do 
Brasil) justificariam os meios.
Esse vento norte-americano, que se 
tornou devastador, provavelmente po-
deria ter sido contido por mecanismos 
institucionais básicos em sua fase inicial 
de expansão. No entanto, ele ganhou 
força e foi alimentado por diversas for-
ças sociais nacionais (frações da bur-
guesia, políticos, burocracia estatal, 
classes médias, STF etc.) que procura-
vam alcançar seus interesses num con-
texto de crise econômica e política. Es-
sas forças sociais achavam que, cada 
uma isoladamente, poderiam conter o 
vento ou direcioná-lo para destruir seus 
competidores, adversários e desafetos. 
Com isso, o redemoinho se formou e ga-
nhou uma força inimaginável, e segue 
deixando um rastro de golpes institucio-
nais (impeachment de Dilma, em 2016, e 
exclusão da candidatura de Lula, em 
2018), de desestruturação de bases pro-
dutivas2 e de degradação institucional.
Desde 2015, o Brasil vive uma traje-
tória caótica, sem rumo, com a deterio-
ração e a perda de legitimidade das ins-
tituições, que continuam existindo 
materialmente, mas perderam a capaci-
dade de reduzir incertezas e incentivar 
os avanços das ações humanas econô-
micas, sociais e políticas coordenadas. 
Com isso, impede-se qualquer padrão 
de formação de expectativas econômi-
cas e políticas a respeito do devir, crian-
do-se um encurtamento das decisões e 
dificultando-se os investimentos, a for-
mação de consensos políticos mínimos 
e a configuração de um padrão de de-
senvolvimento inclusivo socialmente e 
sustentável ambientalmente.
Se por um lado essa crise impede o 
devir, por outro ela vem possibilitando 
uma profunda reconfiguração do capi-
talismo brasileiro, capitaneado, em 
boa parte, pela burguesia em seu proje-
to de desmanche da Constituição de 
1988 e das capacidades governamen-
tais (empresas e bancos estatais, ins-
trumentos de intervenção direta do Es-
tado na economia e criminalização das 
políticas públicas verticais), para abrir 
novos espaços de acumulação e recu-
O novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder econômico e político dos segmentos 
primários, intensivos em commodities, e bancário-financeiro, abrindo espaços para a intensificação da 
exploração dos recursos naturais e da força de trabalho 
POR EDUARDO COSTA PINTO*
Gráfico 1 TAXA DE LUCRO DAS 500 MAIORES EMPRESAS PRIVADAS DE CAPITAL ABERTO
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
Total Geral 13,6% 12,4% 7,8% 7,7% 7,0% 1,2% 7,2% 8,6% 13,4% 11,7% 9,2%
Não financeiras - privada 16,3% 14,0% 8,3% 6,4% 8,6% -0,9% 7,4% 8,9% 13,9% 8,0% 8,8%
Bancos - privados 15,4% 15,1% 13,1% 13,7% 15,4% 18,8% 15,0% 15,0% 16,9% 18,4% 13,5%
0,0%
-5,0%
10,0%
5,0%
20,0%
15,0%
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5JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
perar as taxas de lucro das quinhentas 
maiores empresas não financeiras pri-
vadas de capital aberto que caíram en-
tre 2011 e 2015 (Gráfico 1).
Para isso, os setores dominantes 
brasileiros se unificaram, desde o golpe 
parlamentar de 2016, passando pelo go-
verno Temer, até o governo Bolsonaro, 
com seu ministro da Economia, Paulo 
Guedes, em torno do juízo de que a úni-
ca alternativa para destravar a acumu-
lação seriam as reformas neoliberais 
(previdenciária, trabalhista, adminis-
trativa, teto de gastos) e as privatiza-
ções (Eletrobras, venda de ativos da Pe-
trobras etc.), que repassavam o ajuste 
dos custos da crise de acumulação para 
os trabalhadores, pois, para eles, os en-
traves ao crescimento seriam fruto das 
políticas de ganhos reais do salário, da 
ampliação das políticas de proteção e 
dos gastos públicos com as políticas 
universalizantes (saúde e educação), 
decorrentes da Constituição de 1988.
Nãopor acaso, a burguesia brasilei-
ra apoiou fortemente o candidato Bol-
sonaro e seu ministro da Economia 
neoliberal, defensor das privatizações e 
das reformas pró-mercado. Nesse sen-
tido, a redução da atuação do Estado 
brasileiro na economia, por meio da 
venda de ativos públicos e das privati-
zações de suas empresas, tem sido alar-
deada pelo governo Bolsonaro, pelos 
setores dominantes brasileiros e pelos 
economistas de mercado como o cami-
nho do nirvana para o crescimento 
econômico e o desenvolvimento social.
O problema é que o nirvana nunca 
chega para todos. Pelo contrário, o Bra-
sil permanece no redemoinho, numa 
profunda crise econômica, social e ins-
titucional. A questão é que esse rede-
moinho tem sido funcional para a mega 
e a grande burguesia brasileira (maiores 
empresas) aumentarem seus lucros 
desde 2016, conforme visto no Gráfico 1. 
Cabe observar que o bloco no poder 
do capitalismo brasileiro (frações da 
adota uma resistência “ultraintensa à 
mudança social”, voltando-se de forma 
“sociopática” para “a preservação pura 
e simples do status quo [defesa de privi-
légios e do lucro a qualquer custo]”.4
Esse novo padrão de acumulação 
brasileiro tem reforçado o poder eco-
nômico e político dos segmentos pri-
mários, intensivos em commodities e 
bancário-financeiro, abrindo espaços 
para a intensificação da exploração dos 
recursos naturais e da força de traba-
lho. Setores dominantes brasileiros 
não recuaram em seu projeto de des-
manche, o que impede a construção de 
uma conciliação política entre setores 
sociais amplos. 
Nesse sentido, o campo progressista 
tem de construir um programa mais ou-
sado (o caso do Plano Biden), que foque 
os investimentos públicos em infraes-
trutura urbana, em educação e saúde 
(bens públicos) e em desenvolvimento 
ambientalmente sustentável, que deve-
rão, em parte, ser financiados por forte 
elevação dos impostos sobre o 1% mais 
rico (aumento do IPTU, do ITR, dos divi-
dendos, das heranças etc.). O 1% mais 
rico deve ser nosso foco político – so-
mente assim a esquerda vai se conectar 
com a demanda eleitoral antissistema 
da população. E não adianta fazer um 
programa ousado e depois girar com-
pletamente, como Dilma em 2015.
Sem o apoio da população, o campo 
progressista pode até ganhar a próxima 
eleição em 2022, mas não conseguirá 
governar nem levar o jogo até o fim do 
tempo determinado institucionalmen-
te. Em outras palavras, não conseguirá 
tirar o Brasil do redemoinho, para que 
seja possível uma nova travessia, que 
incorpore socialmente a população e 
construa um desenvolvimento susten-
tável ambientalmente. 
*Eduardo Costa Pinto é professor do 
Instituto de Economia da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ).
1 Ao longo do livro Grande sertão: veredas, Gui-
marães Rosa utiliza uma frase emblemática e 
cheia de simbolismo que vai nortear essa grande 
obra: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”.
2 A desestruturação das bases produtivas e 
institucionais brasileiras interessa, sim, aos 
agentes externos, especialmente aos norte-
-americanos e seu Estado nacional, pois isso 
(i) possibilitou a abertura da exploração do 
pré-sal para as empresas estrangeiras; (ii) 
contribuiu para a ampliação de vendas de 
equipamentos para essa exploração por em-
presas estrangeiras, como a norte-america-
na Halliburton; (iii) desestabilizou o engaja-
mento do Brasil nos arranjos configurados 
pelos Brics; (iv) desestabilizou a presença 
das empresas de construção civil nacional 
(Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa) na 
América Latina e África, abrindo espaços 
para novos entrantes; (v) permitiu a compra 
da Embraer pela empresa norte-americana 
Boeing; e (vi) possibilitou o acordo de uso 
da base de Alcântara pelos Estados Unidos.
3 Francisco de Oliveira, “Jeitinho e jeitão: uma 
tentativa de interpretação do caráter brasilei-
ro”, Piauí, out. 2012, p.10.
4 Florestan Fernandes, A sociologia numa era 
de revolução social, Zahar, Rio de Janeiro, 
1962, p.211.
mega e da grande burguesia), com a cri-
se de 2015 e 2016 e com os efeitos destru-
tivos da Lava Jato, passou por importan-
tes modificações, com o aumento do 
poder dos segmentos comerciais (varejo 
e serviços, sobretudo os médicos), com 
a manutenção do poder dos segmentos 
bancário-financeiro, com a forte redu-
ção dos segmentos industriais, exceto 
aqueles intensivos em capital baseado 
em commodities (petróleo e gás, side-
rurgia, papel e celulose, mineração, 
produtos alimentares etc.), e com o au-
mento do poder da burguesia agrope-
cuária, que sempre teve um papel so-
bredeterminado no que diz respeito à 
sua participação política no Congresso.
Esse aumento no poder das empre-
sas (capital) diante dos trabalhadores, 
com a mudança do padrão de acumula-
ção em curso, sob patrocínio da bur-
guesia brasileira, tem sido funcional 
para a grande e a megaburguesia brasi-
leira (maiores empresas) em recuperar 
sua lucratividade e criar espaços de 
acumulação. Como isso foi possível, 
mesmo com o PIB crescendo muito 
pouco entre 2016 e 2020? Isso aconte-
ceu em virtude: 1) de um profundo pro-
cesso de concentração e centralização 
de capital, sobretudo no setor de co-
mércio e serviços. Ou seja, as grandes 
empresas estão comprando ou ga-
nhando mercado das pequenas e mé-
dias empresas; 2) da redução do custo 
da força de trabalho (direto e indireto, 
vinculado à reforma trabalhista), que 
tem implicado na redução dos salários 
diretos e indiretos dos trabalhadores; 
3) da elevação dos preços das commo-
dities desde 2017; 4) da desregulamen-
tação ambiental e trabalhista, para fa-
cilitar a expansão da agropecuária e do 
extrativismo em novas fronteiras; e 5) 
do processo de privatização, que está 
abrindo novos espaços de acumulação.
No que tange à fração da burguesia 
agropecuária, chama atenção a trajetó-
ria de crescimento das taxas de lucro 
das quarenta maiores empresas do se-
tor (com dados disponíveis) desde 2015, 
sobretudo em 2020, quando a taxa al-
cançou o patamar de 21% (Gráfico 2), 
muito superior às taxas do setor bancá-
rio-financeiro, que foi de 13,5% (Gráfi-
co 1), sendo as mega e as grandes em-
presas as que obtiveram as maiores 
taxas de lucro.
Esses resultados das taxas de lucro 
da mega e da grande burguesia e suas 
frações (agropecuária, industrial inten-
siva em commodities, comercial e de 
serviços) reforçam o apoio dos setores 
dominantes brasileiros às medidas de 
reformas pró-mercado, mesmo que isso 
implique apoiar o governo Bolsonaro 
com todos os seus problemas e a dificul-
dade de ser controlado pela burguesia. 
Com Bolsonaro, a burguesia per-
manece no mando (projeto de deses-
truturação dos direitos sociais, de des-
manche da Constituição de 1988, de 
privatizações e da constitucionaliza-
ção do neoliberalismo), mas sem co-
mando, em virtude do aumento dos 
conflitos num contexto de crise institu-
cional em curso. Ou seja, as reformas e 
as privatizações seguem como rolo 
compressor, mas sem o controle de 
parte da burguesia, como visto no pro-
cesso de privatização da Eletrobras. 
Cabe observar que a adoção desse 
projeto da burguesia dificilmente seria 
viável politicamente, da forma como 
vem sendo realizado, em condições 
institucionais normais. Portanto, os 
golpes foram funcionais para mudar o 
padrão de acumulação. Nesse sentido, 
o vento mais intenso do redemoinho 
em que o Brasil se encontra é provoca-
do pela sanha dos setores dominantes 
brasileiros, sobretudo das frações vin-
culadas ao agronegócio e à finança. 
Assim como em outros momentos 
históricos, a classe dominante brasileira 
“burlou [e burla] de maneira permanen-
te e recorrente as leis vigentes, sacadas a 
fórceps de outros quadros históricos”3 e 
Gráfico 2 TAXA DE LUCRO DE 40 EMPRESAS DO SETOR AGROPECUÁRIO: 2015-2020 (%)
15%
10%
25%
20%
0%
5%
2015 2016 2017 2018 2019 2020
Grande (R$ 0,3 bilhão < Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 9% 15% 14% 20% 19% 30%
Médio (R$ 5 milhões < Receita Líquida > R$ 300 milhões) 2% 1% 7% 9% 3% -1%Mega (Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 8% 13% 15% 15% 13% 21%
Total 8% 13% 14% 15% 13% 21%
2015 2016 2017 2018 2019 2020
30%
-5%
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6 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
O modelo de inserção internacional do Brasil cria vulnerabilidades e compromete o desenvolvimento. 
Ele promove desindustrialização, desemprego, acentuação das desigualdades e degradação ambiental. 
exportação de commodities altera a distribuição espacial das atividades extrativas, reforça corredores 
exportadores e expande as fronteiras extrativas 
POR KARINA KATO, SOCORRO LIMA, ANDRÉA LEÃO, SANDRO LEÃO, VALDEMAR WESZ JUNIOR, GRACIANE SIMONE LEITE BARBOSA*
ENTRE CONTINUIDADES E RECONFIGURAÇÕES NO OESTE DO PARÁ
N
a virada do século XXI, impul-
sionada pelo boom das commo-
dities, a economia brasileira pas-
sou por um processo de 
reprimarização (Lamoso, 2020) de sua 
pauta exportadora, quando os produ-
tos primários passaram a ter mais peso 
nas exportações do que os industriali-
zados. Esse fenômeno deixa marcas 
profundas no território, fomentando 
estruturas logísticas, impulsionando a 
exploração de recursos naturais e re-
configurando disputas territoriais.
Ao chegar à Amazônia, em estados 
ou regiões tradicionalmente exporta-
dores de matérias-primas e produtos 
agrícolas, a reprimarização acentua 
dinâmicas extrativas e amplia as dis-
putas por recursos naturais. Olhare-
mos para o oeste do Pará, na Amazônia 
Legal, para investigar como a inserção 
de uma commodity que é alvo de inte-
resses globais, a soja, altera as dinâmi-
cas territoriais. Os resultados da pes-
quisa1 indicam os ritmos, atores e 
drivers do avanço da soja no Planalto 
Santareno. A recente corrida por recur-
sos naturais transforma o território na-
cional, acentua dinâmicas históricas 
de exploração de recursos naturais 
amazônicos e reproduz (e aprofunda) 
desigualdades fundiárias.
A REPRIMARIZAÇÃO E SEUS 
REBATIMENTOS NO TERRITÓRIO
A recente valorização das commodities 
agrícolas e minerais teve importantes 
desdobramentos na economia brasilei-
ra. A escalada nos preços de 2003 a 2011 
deveu-se a uma combinação de fatores: 
efeitos de mudanças climáticas, desva-
lorização do dólar, aumento no preço do 
petróleo, acentuação da crise energética 
com a maior atratividade dos agrocom-
bustíveis, estagnação das taxas de pro-
dutividade agrícola, aumento da de-
manda por matérias-primas por países 
emergentes (China e Índia). Destaca-se 
a dimensão financeira, pois a busca por 
alternativas aos investimentos finan-
ceiros na crise de 2008 fortaleceu estra-
tégias lastreadas em commodities e re-
cursos naturais. Em consequência, 
ampliou-se a demanda global por pro-
dutos primários, acentuando-se a de-
pendência de boa parte dos países da 
América Latina desses produtos.2
Não é possível compreender esse 
quadro sem fazer referência ao “efeito 
China”. No Brasil, a participação da 
agropecuária e da indústria extrativa 
nas exportações passou de 15% em 2000 
para 45% em 2020. O comércio com a 
China cresceu significativamente: em 
2000, era o destino de 2% das exporta-
ções; em 2020, de 32% (Ministério do 
Desenvolvimento, Indústria e Comér-
cio). Os produtos exportados para o país 
asiático, em 2020, foram soja, minério 
de ferro, óleos brutos de petróleo, celu-
lose e carnes bovina, suína e de aves. 
O modelo de inserção do Brasil no 
sistema internacional cria vulnerabili-
dades e compromete alternativas futu-
ras de desenvolvimento. Ele tem levado 
à desindustrialização, ao desemprego, 
à acentuação das desigualdades sociais 
e econômicas e à degradação ambien-
tal. A exportação de commodities altera 
a distribuição espacial das atividades 
extrativas no território brasileiro, refor-
ça corredores exportadores e expande 
as fronteiras extrativas. O oeste do Pará 
se consolida como uma das novas e 
mais movimentadas “fronteiras agrí-
colas e de estruturação de corredores 
logísticos”. Os produtores do norte de 
Mato Grosso (principal zona produto-
ra) têm buscado novas rotas logísticas: 
entre 2013 e 2017, as exportações de 
Mato Grosso via Arco Norte saltaram 
de 13% para 43% (Confederação Nacio-
nal de Transportes, 2018).
O OESTE DO PARÁ E 
SUAS RECONFIGURAÇÕES
O oeste do Pará tem 732.509,5 km2 e 
corresponde a 59% da área do estado, 
com população de 1.159.000 habitantes 
(IBGE, 2010). Sua economia consiste na 
exploração dos recursos naturais, agro-
pecuária, comércio, serviços e agricul-
tura de autoconsumo. No passado, sua 
economia se baseou no extrativismo 
vegetal (drogas do sertão), na agricul-
tura de pequena escala (séculos XVIII-
-XIX) e na exploração da borracha (sé-
culos XIX-XX). Esta última possibilitou 
transformações socioespaciais impor-
tantes (Oliveira, 1983). A concorrência 
com a borracha asiática, contudo, im-
pactou as exportações, levando a re-
gião a uma longa estagnação, que foi 
interrompida em dois momentos do sé-
culo XX: 1) na década de 1920, com a ex-
periência malsucedida de Henry Ford 
em Fordlândia e depois em Belterra, no 
oeste paraense (Santos, 1980; Oliveira, 
1983); e 2) na Segunda Guerra Mundial, 
quando o governo brasileiro, via Acor-
do de Washington, incentivou a produ-
ção da “borracha natural”.
As políticas públicas para a Ama-
zônia se renovaram com as políticas 
desenvolvimentistas do governo mili-
tar (1960). Novamente, interesses na-
cionais e internacionais se materiali-
zaram em complexos minerais e 
energéticos, no avanço da fronteira 
agropecuária (expansão da soja e da 
pecuária de corte) e no comércio de 
madeira, sem considerar as popula-
ções locais e seus modos de vida ou a 
imensa riqueza representada por sua 
biodiversidade. 
OS CORREDORES 
QUE TRAZEM A SOJA
É nesta conjuntura que a soja ganha 
peso no oeste do Pará: de um lado, 
com a expansão das áreas produtivas; 
de outro, com portos, estradas, hidro-
vias e ferrovias. O setor produtivo tem 
apostado em corredores logísticos pe-
lo Arco Norte (ferrovia, hidrovia, por-
tos), região estratégica no escoamento 
do grão. São duas as rotas: a primeira, 
via transporte rodoviário (BR-163), li-
ga o norte de Mato Grosso até Itaituba, 
onde estações de transbordo de car-
gas (ETCs) privadas embarcam a soja 
em barcaças (até 30 mil ton.) até o 
porto de Barcarena ou de Santarém. 
Várias empresas se instalaram: Bun-
ge/Amaggi, Companhia Norte de Na-
vegação e Portos (Cianport), Hidro-
vias do Brasil, ADM, Caramuru, 
Cargill e Louis Dreyfus. Essa rota é 
34% mais barata que o trajeto até San-
tos (SP). Os planos da ferrovia Ferro-
grão renovam essas esperanças. A se-
gunda, que passa pelo porto da Cargill, 
em Santarém, impulsiona a soja no 
Planalto Santareno. Diante de mar-
gens de lucro cada vez mais espremi-
das, produtores têm reivindicado a 
construção de um segundo porto em 
Santarém (em Maicá), o que gerou 
mobilização social sobre os impactos 
negativos para a área urbana afetada.
Vale enfatizar que a ampliação de 
rotas de escoamento se dá no bojo de 
uma acelerada expansão da produção 
de soja no território brasileiro. A área 
plantada saltou de 1,3 milhão para 36,9 
milhões de hectares entre 1970 e 2020, 
correspondendo a mais de 50% dos cul-
tivos temporários (Conab, 2020). A soja 
avança em direção aos Cerrados e à 
Amazônia. A região Norte, onde se lo-
caliza o oeste do Pará, foi a que apre-
sentou a maior ampliação da área: de 
2000 a 2018, 2.385% (de 73 mil para 1,9 
milhão de hectares)!
Segundo a Embrapa (2004), desde 
1990 se conformaram três grandes 
áreas de produção de soja no Pará: 1) 
Polo Nordeste (Paragominas, Ipixuna, 
Ulianópolis e Dom Elizeu); 2) Polo Sul/
Sudeste (Redenção, Marabá, Conceição 
do Araguaia, Santa Maria das Barreiras 
e Pau d’Arco); e 3) Polo Oeste (Santa-
rém, Mojuí do Campos, Belterra, Ruró-
polis, Itaituba, Novo Progresso, Trai-
rão, Aveiro, Placas, Uruará). A soja 
chegou ao oeste do Pará em 1997 com 
produtores “sulistas” vindos de Mato 
Grosso (Rondonópolis/Campo Verde, 
Primavera do Leste/Lucas do Rio Ver-
de, Nova Mutum e Sorriso). Em 2005,alcançou 35 mil hectares. Entre 2006 e 
2013 a área com soja manteve-se entre 
30 mil e 40 mil ha. A estagnação se de-
veu à descapitalização dos produtores 
e ao aumento da pressão ambiental 
(desmatamento). Em 2006, a Moratória 
da Soja determinou que empresas do 
setor não comprassem ou financias-
Reprimarização, corredores 
logísticos e dinâmicas da soja
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7JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
Gráfico 1 ÁREA PLANTADA COM SOJA EM BELTERRA, SANTARÉM E MOJUÍ DOS CAMPOS1
sem soja de terra desmatada da Amazô-
nia, levando os produtores a buscar so-
luções para o passivo ambiental. Como 
exemplo citamos o projeto Soja Mais 
Sustentável (2004), parceria da Cargill 
com a The Nature Conservancy (TNC), 
que ampliou o monitoramento da pro-
dução. A partir de 2014, a área com soja 
voltou a crescer, dando um salto em 
2017, quando chegou a um patamar de 
55 mil ha (Gráfico 1).3
Na Figura 1 (virando a página) é 
possível perceber as transformações no 
uso do solo no Planalto Santareno: em 
1985 predominavam áreas de floresta 
(verde); em 1995 houve a ampliação da 
pastagem (amarelo) em áreas de vege-
tação nativa; em 2005 aumentaram as 
áreas de pastagem e proliferaram la-
vouras temporárias (rosa), ausentes até 
o início dos anos 2000. A instalação do 
porto da Cargill, em 2003, marcou o 
“arranque”. Posteriormente, os planos 
em torno do Corredor Tapajós, com a 
retomada do debate do asfaltamento e 
duplicação da BR-163, em 2013, e a ins-
talação de mais de quinze portos priva-
dos em Itaituba fomentaram o cresci-
mento da produção.
CONTINUIDADES E 
RECONFIGURAÇÕES NAS 
ÁREAS RURAIS DO OESTE DO PARÁ
a) A substituição da agricultura de 
pequena escala por monoculturas e a 
concentração de terras
Ao longo dos anos, o Planalto Santare-
no sofreu um processo de concentra-
ção: dos 300 a 400 produtores de soja 
observados entre 2003 e 2005 restaram 
120 em 2017, segundo o sindicato local. 
A área com soja, contudo, aumentou. 
Estudos apontam que, além da ocupa-
ção das áreas de pecuária, a soja avan-
çou em zonas anteriormente ocupadas 
pela pequena produção familiar (Val-
buena e Cohenca, 2006; Carvalho e Tu-
ra, 2006). Contribui com esse quadro o 
recente desmonte e esvaziamento de 
importantes políticas públicas volta-
das para esse grupo. A maior vulnera-
bilidade dos pequenos produtores, as-
sociada a um maior aquecimento do 
mercado de terras na região, leva esses 
agricultores familiares a vender suas 
terras e sair do campo. 
b) A apropriação do discurso ambien-
tal pelo setor produtivo e a substitui-
ção de matas por lavouras de soja
A questão ambiental tem papel central 
ao frear ou acelerar a expansão da soja 
no oeste paraense. O discurso dos pro-
dutores combina produtividade e mo-
dernização com sustentabilidade. Eles 
defendem que a tecnologia permitiria o 
uso racional dos recursos e menor im-
pacto ambiental. Assim, esses produto-
res se projetam como os agentes da pre-
servação ambiental e se contrapõem à 
agricultura mais tradicional, “menos 
sustentável”. 
c) A valorização das 
terras e o jogo especulativo
Avança a corrida por terras na re-
gião, seja para fins produtivos (frontei-
ra agrícola), logísticos ou para a espe-
culação (sobretudo a partir de 2010). O 
mercado de terras, impulsionado pelo 
Estado, incentiva a crescente privati-
zação e mercantilização das terras pú-
blicas. Avança também a profissionali-
zação na identificação e regularização 
Gráfico 2 VARIAÇÃO DOS PREÇOS DE TERRAS EM BELTERRA E SANTARÉM (2001-2020) (R$/ha)
Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal (2020).
1 Mojuí dos Campos, antes distrito de Santarém, foi emancipado em 2012. Por isso, temos dados do município apenas a partir de 2013.
Fonte: Elaborado pelo Gemap (pesquisador Junior Aleixo) com dados do Instituto FNP.
de terras, com imobiliárias que che-
gam antes e negociam as terras em blo-
co, preparando o terreno para os inves-
tidores. Tudo isso se reflete num 
intenso aumento do preço das terras 
na região (Gráfico 2). Diante de um 
mercado que se aquece, os posseiros, 
pequenos produtores e povos e comu-
nidades tradicionais são pressionados 
a deixar suas terras ou vender suas 
propriedades. 
d) Facilitação da 
regularização fundiária
O Programa Terra Legal e as recen-
tes mudanças nos marcos da regulari-
zação fundiária impulsionam a expan-
são da soja ao facilitarem a regularização 
fundiária de terras públicas federais na 
Amazônia Legal. Nosso campo indica 
que os produtores têm adotado a estra-
tégia de fragmentação de propriedades 
para facilitar a regularização. Só em 
60.000
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Beterra (PA)
Satarém (PA)
Mojuí dos Campos (PA)
Floresta Amazônica (Difícil acesso à BR) Pastagem Formada (1,5 UA/ha)
Pastagem Formada Terra Agrícula/Grãos Diversos (55 sc soja/ha)
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8 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
2014 foram destinados 9.928.655 hecta-
res no oeste do Pará, glebas públicas fe-
derais próximas à área da BR-163. A 
maior parte dos imóveis regularizados 
se localizava no Planalto Santareno, em 
áreas propícias à produção de soja. 
A reprimarização da economia bra-
sileira acentua o que David Harvey 
(2011) aponta como a “complexa dinâ-
mica do desenvolvimento das desi-
gualdades da acumulação do capital”. 
O oeste do Pará, desde o início de sua 
ocupação, foi marcado pela dinâmica 
de exploração dos recursos naturais. A 
exploração mineral e, recentemente, o 
cultivo da soja assinalam essa conti-
nuidade e reconectam essa região com 
as dinâmicas globais de corrida por re-
cursos. A atual dinâmica de reprimari-
zação imprime mudanças não apenas 
no território, mas também na vida con-
creta de populações que são desterrito-
rializadas e afetadas em seus modos de 
vida e nas formas com que se relacio-
nam com os territórios e os recursos 
naturais. Por isso, cada vez mais os mo-
vimentos sociais do campo e da cidade 
vêm questionando as dimensões desse 
modelo econômico que espolia recur-
sos e não atende aos princípios da equi-
dade e da justiça social e ambiental. 
*Karina Kato, Socorro Lima, Andréa 
Leão, Sandro Leão, Valdemar Wesz Ju-
nior e Graciane Simone Leite Barbosa 
são pesquisadores e colaboradores do 
Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, 
Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap), 
coordenado pelo professor Sergio Leite 
(CPDA) e vinculado ao Programa de Pós-
-Graduação de Ciências Sociais em De-
senvolvimento, Agricultura e Sociedade da 
Universidade Federal Rural do Rio de Ja-
neiro (CPDA-UFRRJ). A pesquisa na qual 
este artigo está embasado foi financiada 
pelo Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico (Bolsa de 
Produtividade e Edital Universal) e pela 
Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado 
do Rio de Janeiro (Faperj).
1 Trabalho de campo (novembro de 2017) nos 
municípios paraenses de Santarém, Belterra, 
Mojuí dos Campos e Itaituba, com realização 
de entrevistas com atores locais chave.
2 Para a Unctad (2019), um país é considerado 
dependente das commodities se estas com-
puserem mais de 60% de suas exportações 
(em valor). Essa dependência tem um efeito 
negativo no desenvolvimento econômico do 
respectivo país.
3 O Planalto Santareno envolve os municípios 
de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, 
cuja área se caracteriza por solo plano e favo-
rável ao plantio com sistema mecanizado, si-
tuada às margens das rodovias BR-163 e PA-
370 (Leão, 2017).
Referências bibliográficas
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bre a relação econômica Brasil-China. Artigo pre-
parado para o Seminário Internacional Brasil e 
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Figura 1 USO DO SOLO NO PLANALTO SANTARENO
1985 1995
2005 2018
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9JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
A esquerda, uma 
ideia nova nos Bálcãs
Desde o fim da Iugoslávia, o debate político nos Bálcãs foi reduzido a um confronto entre nacionalistas 
e liberais. Atualmente, uma nova esquerda anticapitalista emerge em defesa dos bens comuns e contra 
as crescentes desigualdades. A coalizão da esquerda verde acaba de ganhar a prefeitura de Zagreb, 
enquanto uma esquerda soberanista governa o Kosovo
POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E LAURENT GESLIN*
UMA RECONQUISTA DAS GRANDES CIDADES
“A 
ideia do socialismo demo-
crático foi tabu por três dé-
cadas na Croácia. Consegui-
mos reafirmá-lo no debate 
político.” Na eleição presidencial de 22 
de dezembro de 2019, Katarina Peovic 
vestiu as cores da Frente dos Trabalha-
dores, conquistando apenas 1,12% dos 
votos. Seis meses depois, contudo, em 5 
de julho de 2020, vários partidos, in-
cluindo a Frente dos Trabalhadores, 
unidos em uma coalizão de esquerda 
ambiental, surpreenderam nas eleições 
legislativas com 7% dos votos e sete 
eleitos (de 151 cadeiras). O ensaio ga-
nhou corpo nas eleições municipais de 
maio passado: a coalizão obteve maio-
ria absoluta no conselho municipal de 
Zagreb ainda no primeiro turno, e, duas 
semanas depois, seu candidato, Tomis-
lav Tomaševic, foi triunfantemente elei-
to prefeito da capital, com 65% dos vo-
tos. A coalizão – da qual a Frente dos 
Trabalhadores se separou – também te-
ve resultados notáveis em Pula, Split e 
muitas outras cidades do país.
A sacudida à esquerda começou na 
Eslovênia, onde Združena Levica [A Es-
querda Unida] colocou seus primeiros 
membros eleitos no Parlamento em 
2014. “Enquanto na Croácia o naciona-
lismo e a guerra esmagaram tudo, na 
Eslovênia sempre se manteve uma tra-
dição de esquerda ativa, com jornais 
como Mladina, espaços de debate, in-
telectuais como Slavoj Žižek e muitos 
outros”, explica o deputado Luka Me-
sec. Às vezes referido como “Tsipras es-
loveno”, em referência ao ex-primeiro-
-ministro grego Alexis Tsipras, esse 
jovem – com apenas 27 anos quando foi 
eleito pela primeira vez em 2014 – lide-
rou notavelmente a Universidade dos 
Trabalhadores e dos Punks, um espaço 
crucial para o rearmamento intelectual 
da esquerda. “Minha geração sofreu o 
impacto da crise global de 2008. Enten-
demos que não haveria emprego para 
todos e que as coisas não melhorariam 
automaticamente. Em suma, devemos 
não apenas compreender, mas também 
transformar a sociedade”, afirma.
Para a nova geração da esquerda es-
lovena, a insurgência “cidadã” de 2012 
desempenhou um papel importante. Já 
primeiro-ministro naquele momento 
(voltou a ser primeiro-ministro de 2012 
a 2013, depois a partir de março de 
2020), o conservador Janez Janša, esta-
va liderando uma política de austerida-
de severa, diminuindo os salários dos 
funcionários públicos e organizando 
cortes nos orçamentos de saúde e edu-
cação. Envolvido em escândalos de 
corrupção, foi finalmente demitido do 
cargo no fim de fevereiro de 2013, após 
semanas de protestos.
“A crise de 2008 embaralhou as car-
tas e marcou o surgimento de novas 
questões. Os estudantes denunciaram 
o modelo liberal de ensino superior que 
a União Europeia pretendia impor. A 
demanda central era a educação gra-
tuita, da educação infantil ao doutora-
do”, confirma o escritor Igor Štiks, um 
dos líderes da revolta estudantil croata 
de 2009. Como na Eslovênia alguns 
anos depois, esse movimento serviu de 
escola ativista para toda uma geração.
Em fevereiro de 2014, o movimento 
chamado de plenums [cidadãos articu-
lados em assembleias] incendiou a Bós-
nia-Herzegovina a partir da grande e 
adormecida cidade operária de Tuzla, 
no noroeste do país. Funcionários de 
fábricas privatizadas que exigiam seus 
salários não pagos juntaram-se aos ci-
dadãos da cidade e assumiram a sede 
do governo municipal. Denunciando 
ao mesmo tempo o modelo neoliberal 
docilmente seguido pela Bósnia-Her-
zegovina e as divisões nacionais, os 
manifestantes recordaram que “a pala-
vra ‘fome’ é a mesma em bósnio, croata 
ou sérvio”. “Esse movimento experi-
mentou a democracia direta. Os 
plenums da cidade reuniram-se em um 
plenum de plenums, algo como as ‘as-
sembleias de assembleias’ dos ‘coletes 
amarelos’ franceses”, enfatiza Štiks.
Nenhuma força política, no entanto, 
conseguiu prevalecer na Bósnia-Herze-
govina. O fracasso desse movimento 
pode ser explicado, pelo menos em par-
te, pelas divisões etnopolíticas no país, 
mantidas pelos nacionalistas no poder. 
“As autoridades sérvias da Bósnia esta-
beleceram um cordão sanitário para 
prevenir o contágio, alegando que as 
demandas sociais constituíam traição 
nacional”, relata Krunoslav Stojaković, 
originário de Tuzla e agora diretor do 
© Možemo Split
Tomislav Tomaševic, da coalização de esquerda, foi eleito prefeito da capital Zagreb, com 65% dos votos
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10 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
escritório regional para o sudeste da 
Europa da Fundação Rosa Luxembur-
go, politicamente filiada ao partido ale-
mão Die Linke [A esquerda].
Hoje, as dinâmicas croata e eslove-
na despertam vocações na Sérvia. Um 
partido da esquerda radical (Partija Ra-
dikalne Levice, PRL) foi criado em se-
tembro de 2020 sobre os escombros da 
União Social Democrática (SDU), após 
uma severa obrigação de inventário. 
“Estamos orgulhosos do envolvimento 
da SDU no movimento antiguerra dos 
anos 1990 e nas lutas contra o regime de 
[ex-presidente Slobodan] Miloševic. Por 
outro lado, rejeitamos sua participação 
nos governos dos anos 2000 e seu apoio 
às privatizações”, explica Ivan Zlatic, 
membro da presidência do partido.
Zlatic pretende fazer uma avaliação 
crítica de A Outra Sérvia (Druga Srbija), 
esse amplo movimento que se opôs, 
muitas vezes com coragem, ao naciona-
lismo e à guerra, e que consegue manter 
os vínculos entre as repúblicas da anti-
ga federação, ao mesmo tempo que de-
fende os direitos das mulheres e das mi-
norias sexuais. “A experiência iugoslava 
foi duas coisas: fraternidade e unidade 
de todos os povos– isto é, internaciona-
lismo – e direitos sociais. A tradição li-
beral soube salvaguardar o primeiro as-
pecto, mas sacrificou o segundo, que 
devemos recolocar em primeiro plano”. 
Para Zlatic, essa “outra Sérvia”, que che-
gou ao poder após a queda de Miloševic 
em 5 de outubro de 2000, não estava sa-
tisfeita com a adoção de um programa 
de reformas liberais. “Havia uma vonta-
de de punir os trabalhadores por meio 
das privatizações, de punir esse povo 
que não se rebelou contra Miloševic, o 
que, aliás, é falso: esquecemos o papel 
desempenhado pelas greves operárias 
de outubro de 2000 na queda do regi-
me!”, lembra.
A esquerda eslovena de Levica inte-
gra o Partido da Esquerda Europeia 
(PEE), que inclui notadamente o Parti-
do Comunista Francês, o Die Linke ale-
mão e a coligação grega Syriza. “Opera-
mos dentro de um quadro europeu, mas 
temos relações mais estreitas com os 
camaradas da Croácia, da Bósnia-Her-
zegovina e da Sérvia do que com os da 
Itália ou da Áustria. Compartilhamos 
referências comuns”, pontua Mesec. Em 
Zagreb, Peovic também não nega o refe-
rente iugoslavo: “Os nacionalistas rejei-
tam tudo o que é iugoslavo, mas, na 
Croácia, para muitas pessoas, isso assu-
me um significado positivo: direitos so-
ciais, férias para todos. Pode haver uma 
dimensão folclórica da ‘iugonostalgia’, 
enquanto o debate sobre as causas do 
colapso do Estado comum não acabou. 
Se as noções de socialismo e Iugoslávia 
ainda estão ligadas na imaginação de 
muitos croatas, isso não é mais uma 
desvantagem para nós”, sugere.
A Fundação Rosa Luxemburgo, em 
um movimento de denunciar as tendên-
cias revisionistas em relação à Segunda 
Guerra Mundial que animam as direitas 
da Croácia e da Sérvia, desenvolve pro-
jetos de memória que favorecem uma 
reflexão crítica positiva sobre a expe-
riência socialista, em particular em sua 
dimensão de autogestão. “Até a consoli-
dação do poder neoliberal autoritário 
de [Aleksandar] Vucic, em 2012-2014, a 
Sérvia experimentou muitas formas de 
resistência dos trabalhadores, como a 
longa greve de Jugoremedija em Zrenja-
nin, de dezembro de 2003 a setembro de 
2004. Trabalhadores ocuparam essa fá-
brica farmacêutica para protestar con-
tra sua privatização e os tribunais aca-
baram por outorgar-lhes o controle da 
maioria do capital”, relata Zlatic, con-
vencido de que a experiência de auto-
gestão continua ancorada na memória 
das classes trabalhadoras iugoslavas.
A esquerda que tenta crescer e ga-
nhar espaço encontra-se na encruzi-
lhada de duas tradições: a das lutas 
operárias e a das experiências munici-
palistas, centradas na defesa dos bens 
comuns. Assim, a coligação da esquer-
da verde, que acaba de ganhar a Câ-
mara Municipal da capital croata, de-
senvolveu-se por meio da experiência 
da plataforma de Zagreb I NAŠ! [Za-
greb é nossa!]. Seu recente triunfo é 
motivador para o movimento Ne da(-
vi)mo Beograd [Não afoguemos Bel-
grado], que desempenha um papel 
central nas mobilizações contra o sa-
que de capital orquestrado por incor-
poradores imobiliários próximos ao 
Partido Progressista Sérvio (SNS), no 
poder. O centro da cidade foi esvazia-
do de sua população e arrasado para 
dar lugar a um luxuoso complexo às 
margens do Danúbio, o Belgrade Wa-
terfront, supostamente financiado por 
capital dos Emirados Árabes Unidos, 
mas que seria em realidade uma enor-
me operação de lavagem de dinheiro.
“A TRANSIÇÃO 
TIROU TUDO DE NÓS”
Na primavera de 2016, milhares de bel-
gradinos marcharam atrás da mascote 
do movimento, um pato de plástico 
amarelo gigante. O protesto se esten-
deu contra outros projetos imobiliários 
da capital, como a destruição dos anti-
gos estúdios de cinema Avala e dos bos-
ques de Košutnjak. A luta contra a gen-
trificação de certos bairros envolve 
também o combate aos despejos, extre-
mamente facilitados pela lei sérvia em 
casos de endividamento, aluguéis não 
pagos ou devolução de um imóvel a 
seus proprietários, cujo título datava 
de antes de 1945. “Alguns ativistas de 
extrema direita tentaram integrar-se às 
mobilizações, mas a tentativa falhou”, 
sorri Isidora Petrovic, ativista do movi-
mento Krov nad glavom [Um teto sobre 
sua cabeça]. “É preciso muita determi-
nação diante de oficiais de justiça e po-
liciais, sempre em conluio com o poder 
estabelecido”, completa.
Petrovic tem um olhar crítico sobre 
as manifestações “democráticas” do 
inverno de 2018-2019: aos seus olhos, 
representam pouco mais do que uma 
tentativa da oposição liberal de fazer as 
pessoas falarem sobre ela, após repeti-
dos fracassos eleitorais. A jovem está 
convencida, contudo, de que o regime 
de Vucic não está imune a uma explo-
são social, como mostrou a revolta es-
pontânea dos estudantes que, em julho 
de 2020, rechaçaram o fechamento de 
suas residências universitárias por mo-
tivos sanitários.
Nos Bálcãs, a defesa dos comuns se 
mobiliza na forma de manifestações, 
como os grandes desfiles que anima-
ram Belgrado no início de abril, ou 
ações locais. Várias lutas se cristali-
zam na oposição a projetos de micro-
-hidrelétricas, que se multiplicaram 
na região e muitas vezes são construí-
das por empresas próximas aos regi-
mes, com auxílio do Banco Europeu de 
Desenvolvimento (Berd). “A transição 
tirou tudo de nós: nossos empregos, 
nossas fábricas, nosso futuro. Só nos 
resta água, ar e natureza, e mesmo isso 
eles querem tirar de nós”, indigna-se 
Aleksandar Vemic, defensor do Rio Bu-
kovica, na província de Montenegro. 
Essas mobilizações sem precedentes 
conseguiram transcender as diferen-
ças de identidade que estruturam a so-
ciedade montenegrina e contribuí-
ram, em agosto de 2020, para a queda 
do regime de Milo Đukanovic.1 Um 
dos pilares do novo governo, o movi-
mento Ação Reformista Unida (Uje-
dinjena reformka akcija, URA) juntou-
-se ao Partido Verde Europeu e se 
reivindica parte de uma esquerda ci-
dadã e ambientalista.
A junção entre as lutas dos trabalha-
dores, ambientais e pelos direitos das 
mulheres e das minorias sexuais per-
manece um caminho complexo. Mesec 
ressalta que, diante do autoritarismo de 
ultradireita de Janša, homólogo eslove-
no do húngaro Viktor Orbán que voltou 
ao poder em março de 2020, cabe prin-
cipalmente à esquerda anticapitalista 
liderar os combates em defesa dos direi-
tos e das liberdades fundamentais. Ro-
bert Kozma, do Ne da(vi)mo Beograd, 
sublinha, por sua vez, que pertencer ou 
não à União Europeia já não induz dife-
renças entre os países da região: “Todos 
pertencem a uma semiperiferia” 
*Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin 
são jornalistas do Courrier des Balkans.
1 Ler “Clientélisme et vertiges identitaires au 
Monténégro” [Clientelismo e vertigens identi-
tárias em Montenegro], Le Monde Diplomati-
que, fev. 2021.
Ao obter 50,3% dos votos nas elei-ções parlamentares de 14 de fe-
vereiro, o movimento soberanista de 
esquerda no Kosovo esmagou seus ri-
vais, em particular os partidos dos ex-
-comandantes guerrilheiros do Exérci-
to de Libertação do Kosovo (UÇK). 
Albin Kurti, o carismático líder da Vetë-
vendosje (“Autodeterminação”, em al-
banês), tornou-se novamente primeiro-
-ministro. Ele já ocupava o cargo desde 
as eleições de outubro de 2019, mas 
seu gabinete foi derrubado em março 
de 2020 – em meio à pandemia –, 
após a saída da Liga Democrática do 
Kosovo (LDK, centro-direita), por pres-
são da administração norte-americana 
na época. Donald Trump queria chegar 
rapidamente a um acordo entre Pristi-
na e Belgrado, fundamentado em uma 
possível troca de territórios1 – mas 
cujos termos a Vetëvendosje recusou. 
Em setembro de 2020, a Casa Branca 
obteve um “acordo econômico” sem 
muito significado.2 Embora o Kosovo 
cultive, desde o bombardeio à Sérvia 
em 1999, uma viva americanofilia, seus 
eleitores votaram a favor de um líder 
que afirma ter sido vítima de uma ten-
tativa de “golpe de Estado” orquestra-
da pelos Estados Unidos.
Kurti declarou que suas prioridades 
seriam a luta contra a corrupção e a 
situação econômica, sanitária e social– e não o diálogo com Belgrado. Mas 
qual é sua margem de manobra? As 
forças de esquerda nos Bálcãs ainda 
cultivam certa reserva em relação a 
Vetëvendosje, pelo viés nacionalista 
assumido,3 mas todas observam com 
interesse a experiência em curso: Kurti 
demonstrou que uma mudança radical 
é possível, mesmo sem o apoio dos 
ocidentais. (J.-A.D. e L.G.)
1 Ler “Dans les Balkans, les frontières bou-
gent, les logiques ethniques demeurent” 
[Nos Bálcãs, as fronteiras se movem, a 
lógica étnica permanece], Le Monde Di-
plomatique, ago. 2019.
2 Ler Serge Halimi, “Fausses indépendan-
ces” [Falsas independências], Le Monde 
Diplomatique, out. 2020.
3 Ler Jean-Arnault Dérens, “Essor d’une 
gauche souverainiste au Kosovo” [Ascen-
são de uma esquerda soberanista no Ko-
sovo], Le Monde Diplomatique, dez. 2017.
EXPERIÊNCIA SOBERANISTA NO KOSOVO
A luta contra a gentrifi-
cação de certos bairros 
envolve também o com-
bate aos despejos, extre-
mamente facilitados 
pela lei sérvia
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11JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
Cabos submarinos, 
uma questão de Estado
O sonho libertário de uma internet regulamentada apenas por empresas privadas 
está desaparecendo. Por muito tempo impotentes diante de um fenômeno que não 
entendiam, os Estados estão reconquistando o front na cena digital e têm um peso 
cada vez maior na arquitetura física da internet – uma questão de soberania e 
poder no século XXI, como eram os cabos telegráficos no século XIX 
POR CHARLES PERRAGIN E GUILLAUME RENOUARD*
QUANDO A INFRAESTRUTURA DAS REDES VOLTA A SER GEOPOLÍTICA
A 
Wehrmacht a chamava de Mar-
tha. Hoje, um casco cor de ferru-
gem esconde o cinza do concreto. 
Na estrada que segue ao longo do 
grande porto marítimo de Marselha ru-
mo a L’Estaque, a antiga base de sub-
marinos nazistas está abandonada há 
mais de setenta anos. O bunker inaca-
bado foi usado como prisão militar pe-
los Aliados após o desembarque da Pro-
vença. Depois, nada. Até recentemente, 
alguns iniciados vinham admirar anti-
gos desenhos esquecidos nas paredes, 
provavelmente obra de prisioneiros ale-
mães. Agora, eles não estão mais acessí-
veis, escondidos desde 2020 por trás das 
instalações da MRS 3, um dos enormes 
data centers da companhia Interxion.
“Não posso deixá-los entrar. São 
plataformas de nuvem muito sensíveis 
e temos cláusulas de confidencialidade 
do tamanho de um braço”, diz já de saí-
da Fabrice Coquio, presidente da em-
presa. As instalações são civis, mas a 
segurança é digna de uma base militar. 
Aqui está enterrada uma parte dos ca-
torze cabos submarinos de fibra óptica 
que chegam a Marselha. Dados vindo 
do mundo inteiro, armazenados e tro-
cados em centros de dados dos clientes: 
Google, Amazon, Facebook, um escri-
tório de advocacia, a companhia de 
água local e operadoras de telecomuni-
cações. E também o Estado francês. 
“Não faz muito tempo que os países eu-
ropeus se interessaram abertamente 
pelos atores privados de infraestrutura 
da internet”, observa Coquio. Secreta-
mente, eles fizeram isso nos anos 2000. 
Com 99% das comunicações eletrôni-
cas intercontinentais trafegando pelos 
cabos submarinos, os serviços de inte-
ligência fizeram deles um de seus terre-
nos de ação favoritos.
Olhando para os grandes prédios 
reluzentes do terminal de navios de 
cruzeiro, é difícil imaginar que esta-
mos em um ninho de espiões. No en-
tanto, de acordo com os documentos 
fornecidos pelas denúncias de Edward 
Snowden ao jornal Der Spiegel, a Agên-
nal.” E isso sem marco legal claro nem 
controle. “Os cabos submarinos têm re-
lação com as comunicações interna-
cionais, portanto são um assunto de 
Estado. Na França, nunca tivemos a 
competência para controlar a DGSE a 
respeito dos cabos, e a lei de inteligên-
cia de 2015 não mudou nada”, esclarece 
Jean-Marie Delarue, ex-presidente da 
Comissão Nacional para o Controle de 
Interceptações de Segurança. E a Fran-
ça não é exceção. “As leis de inteligên-
cia aprovadas nos países da OCDE [Or-
ganização para a Cooperação e o 
Desenvolvimento Econômico] após o 
caso Snowden facilitaram a coleta de 
dados, que, portanto, só aumentou”, 
conclui Crozier.
Dos cabos submarinos dependem 
as comunicações, os fluxos financeiros, 
o acesso a dados armazenados remota-
mente (a “nuvem”, em inglês cloud). Pa-
ra os Estados, o controle desses fluxos 
constitui uma imensa alavanca de in-
fluência geoeconômica. Outro país en-
tendeu isso muito bem: a China. No dia 
8 de abril de 2010, segundo um relatório 
do Congresso dos Estados Unidos, a 
China desviou para seus servidores, 
durante 18 minutos, e-mails com ori-
gem ou destino no Senado dos Estados 
Unidos, em seu Ministério da Defesa e 
do Comércio e na Administração Na-
cional da Aeronáutica e Espaço (Nasa). 
Em junho de 2019, engenheiros da em-
presa Oracle descobriram que um gran-
de volume de tráfego europeu da Bouy-
gues Telecom e da SFR foi redirecionado 
por duas horas em direção à China.
E mais: o país pressionou direta-
mente suas empresas públicas a con-
trolar a camada física do ciberespaço. 
“O Estado chinês conquistou um lugar 
de destaque nos consórcios asiáticos 
por meio da China Mobile, China Te-
lecom e China Unicom. De maneira 
geral, a grande mudança no tráfego da 
internet para a Ásia deu aos Estados 
asiáticos (China, Tailândia, Cingapu-
ra) mais peso sobre os cabos: desde 
2010, eles forneceram uma média de 
9% dos investimentos, contra 1% en-
tre 1987 e 2010”, detalha Félix Blanc, 
doutor em Ciência Política especiali-
zado na governança dos cabos sub-
marinos. Para além de sua influência 
regional, a China investe em projetos 
situados em áreas estratégicas, como 
o Canal da Nicarágua, cuja concessão 
também abrange cabos de internet, 
ou a ligação ao continente europeu via 
Marselha por meio da primeira liga-
ção de fibra óptica chinesa entre a 
França e a Ásia, chamado Pakistan 
and East Africa Connecting Europe 
(Peace – Paquistão e África Oriental 
Conectando a Europa). Entre 2016 e 
2019, as empresas chinesas participa-
ram de 20% das construções de cabos, 
mais da metade delas fora do Mar da 
China Meridional, sobretudo em paí-
ses emergentes.5
cia de Segurança Nacional (NSA) dos 
Estados Unidos introduziu, em feverei-
ro de 2013, um vírus computacional no 
núcleo do site de administração e ges-
tão do SEA-ME-WE 4, um cabo que leva 
as comunicações telefônicas e de inter-
net de Marselha para o norte da África, 
Oriente Médio e Sudeste Asiático.1 Para 
a NSA, Marselha é um dos principais 
pontos de interceptação do mundo.
CLEAN NETWORK, 
A LIMPEZA NORTE-AMERICANA
“No início, a captação de dados de ca-
bos submarinos era justificada pelo an-
titerrorismo”, explica Dominique Boul-
lier, sociólogo do Instituto de Estudos 
Políticos de Paris. Após os ataques de 11 
de setembro de 2001, “era necessário 
captar fluxos em massa nos pontos ne-
vrálgicos a fim de monitorar e even-
tualmente chegar até os culpados em 
caso de um incidente”. Em vinte anos, 
os Estados Unidos tornaram-se o maes-
tro dos “Five Eyes” [cinco olhos] na 
captação de comunicações que trafe-
gam por cabos – fala-se de “intercepta-
ção de cabos” –, efetuada por sondas 
colocadas nos grandes pontos de ater-
ramento de cabos do planeta, com a 
cumplicidade das operadoras. “Hoje os 
Estados Unidos bombeiam todos os ca-
bos. Na França, testamos seus roteado-
res Cisco. Sabemos que parte dos dados 
que saem vão misteriosamente para os 
Estados Unidos”, declara, anonima-
mente, um alto funcionário de uma 
operadora francesa de telecomunica-
ções. Além da captação em massa, os 
serviços norte-americanos realizam 
operações direcionadas de espionagem 
política (governos, embaixadas) e eco-
nômica. Nos últimos anos, por exem-
plo, vimos a interceptação em Hondu-
ras de um cabo que serve um local 
turístico onde se reúnem atores econô-
micos globais, do setor automotivo ao 
agronegócio, ou do Centro Internacio-
nal de Física Teórica de Trieste, que 
treina cientistas de todo o mundo na 
área nuclear.2
Dolado dos parceiros britânicos, as 
mesmas brigas. Em 2012, o Govern-
ment Communications Headquarters 
(GCHQ), serviço do governo britânico 
encarregado do monitoramento das te-
lecomunicações, utilizou os cabos para 
recuperar cookies (testemunhas de co-
nexão) dos funcionários da operadora 
belga Belgacom para se infiltrar na re-
de da companhia, que presta serviços a 
governos europeus.3 Em 2014, os fran-
ceses souberam que os serviços britâ-
nicos acessavam os clientes da Orange 
desde 2011: “Na época, os serviços bri-
tânicos suspeitavam que o grupo Iliad 
tivesse feito um acordo com o Mossad”, 
lembra uma fonte interna, que prefere 
ficar anônima. “O GCHQ, por meio da 
Orange, podia medir as variações de 
fluxo nos cabos e determinar se estava 
acontecendo alguma coisa entre a 
França e Israel: acordos comerciais, co-
laboração, uma operação qualquer... 
Isso se tornou um procedimento clássi-
co para os Estados.”
Após as revelações de Snowden, 
países europeus ficaram indignados, 
principalmente a França. Mas o Estado 
francês, que colabora com a NSA, tem 
desde 2008 um programa de escuta de 
comunicações internacionais que tra-
fegam por cabos submarinos.4 Uma no-
ta revelada por Snowden mostra que, 
em 2009, a Direção-Geral da Segurança 
Exterior (DGSE) intensificou sua coo-
peração com o GCHQ na “busca por in-
terceptações maciças por meio da que-
bra de sistemas de criptografia 
entregues por fornecedores privados”. 
Cinco cabos foram grampeados entre 
2008 e 2013 com a cumplicidade da 
Orange. E isso é só o começo.
“Hoje, qual Estado não intervém di-
retamente junto a suas empresas de te-
lecomunicações?”, pergunta Sébastien 
Crozier, presidente da Confederação 
Francesa de Executivos – Confederação 
Geral de Executivos (CFE-CGC) da 
Orange. “Ser uma operadora de comu-
nicação hoje significa aceitar que se 
tem uma função na soberania nacio-
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12 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2021
Washington não gosta nada disso. 
“Em 2013, os Estados Unidos já haviam 
provocado o fracasso da implantação de 
um cabo transatlântico Nova York-Lon-
dres, da qual participaria a empresa chi-
nesa Huawei Marine”, recorda Blanc. 
Em 2020, a Comissão Federal de Comu-
nicações (FCC) obrigou o Google e o Fa-
cebook a não conectar Los Angeles a 
Hong Kong, conforme previa o projeto 
inicial. As gigantes da internet se dobra-
ram. Oficialmente, o governo dos Esta-
dos Unidos acusou o terceiro membro 
do consórcio, a Pacific Light Data 
Communication, de Hong Kong, de co-
laborar com os serviços de inteligência 
chineses. Para Crozier, “a operação ser-
viu principalmente para enfraquecer a 
posição financeira de Hong Kong em um 
contexto no qual ela poderia se aproxi-
mar de Xangai e suplantar Londres”.
No que diz respeito ao cabo Peace, o 
governo dos Estados Unidos faz pres-
são direta sobre a França. Em outubro 
de 2020, Peter Berkowitz, diretor do ór-
gão de planejamento do Departamento 
de Estado, reuniu-se com assessores do 
presidente da República e com repre-
sentantes dos ministérios das Relações 
Exteriores e das Forças Armadas. Ele 
apresentou um inquietante relatório 
sobre as ambições globais da China na 
instalação de cabos e alertou – e alertas 
são sempre empolgantes – sobre os ris-
cos de espionagem. “É normal que haja 
pressão”, comenta Paul Triolo, membro 
da consultoria Eurasia Group. “A nu-
vem é dos Estados Unidos. Se você é a 
Microsoft ou a Amazon, contanto que 
seus concorrentes na Europa sejam 
empresas como Outscale e OVH, não 
há muito a temer. Mas Alibaba e Ten-
cent são outra história.”
“Os Estados Unidos intervêm cada 
vez mais nos cabos, no contexto de sua 
guerra comercial com a China”, explica 
Camille Morel, doutora em Direito e 
Ciência Política ligada à Universidade 
Jean-Moulin Lyon III. “Na Europa, isso 
é muito recente, mas em 2018 eles já 
pressionaram a Austrália e fizeram o 
país se recusar a permitir que a Huawei 
financiasse a instalação de um cabo en-
tre Sydney e as Ilhas Salomão.” Essas 
ingerências colaboram para um vasto 
programa norte-americano que o ex-
-secretário de Estado Mike Pompeo 
chamou de Clean Network [rede lim-
pa]. A “limpeza” norte-americana tinha 
vários componentes: banir operadoras 
chinesas (como a China Telecom) ou 
determinados aplicativos (TikTok, que 
foi alvo de Donald Trump por algum 
tempo) no país, reduzir a quantidade 
de dados armazenados remotamente 
na China e, claro, “limpar” a rede a ca-
bo, excluindo os atores chineses.
“É preciso lembrar que a internet é 
norte-americana desde o início. Endos-
samos demais a posição dos Estados 
Unidos, que exagera a respeito do poder 
chinês”, lembra Ophélie Coelho, pes-
dos nas profundezas abissais: os minis-
térios das Forças Armadas, dos Estados 
Unidos à China, passando pelo Reino 
Unido e a França, competem em inven-
tividade para se proteger contra uma 
“guerra no fundo do mar” (seabed war-
fare), mencionada sobretudo na Atuali-
zação Estratégica de 2021. O que o Yan-
tar estava realmente fazendo? O que 
fazem os drones submarinos norte-a-
mericanos e chineses? “Não sabemos. 
Mas, para além de alguns atos de van-
dalismo, sabemos que a grande maioria 
dos cerca de cem cortes por ano tem re-
lação com a presença de barcos de pes-
ca próximo à costa”, responde Camille 
Morel. “Os cabos cristalizam tensões 
diplomáticas, mas estamos longe de ver 
ações militares. As consequências se-
riam pesadas demais. Uma sabotagem 
por parte de um país seria como uma 
declaração de guerra.”
Esse ressurgimento da questão dos 
cabos coroa uma longa tendência. A 
partir da década de 1930, o desenvolvi-
mento do rádio marginalizou os cabos, 
sem, no entanto, fazê-los desaparecer; 
eles continuam sendo mais difíceis de 
interceptar do que as ondas de rádio. 
Mesmo com a chegada dos satélites, os 
cabos foram usados para a espionagem 
durante a Guerra Fria.10 No fim dos 
anos 1980, com o advento da fibra ópti-
ca, o aumento da capacidade desses ca-
bos inaugurou a era da banda larga, da 
internet e das grandes operadoras mo-
vidas por interesses comerciais. “Du-
rante a primeira década de desenvolvi-
mento do cabeamento de fibra óptica, a 
indústria de cabos contou com consór-
cios de operadoras nacionais, incluin-
do muitos monopólios estatais”, expli-
ca Nicole Starosielski, professora da 
Universidade de Nova York e autora de 
The Undersea Network [A rede subma-
rina] (Duke University Press, 2015). 
“Mas a adoção do princípio da concor-
rência por muitos países, seguindo a lei 
de telecomunicações dos Estados Uni-
dos de 1996, confiou o leme aos atores 
privados.” Em dez anos, a participação 
de capital das operadoras públicas 
caiu, passando a representar menos de 
1% do investimento total.
Na última década, alguns investido-
res norte-americanos poderosos o bas-
tante para operar sozinhos suplanta-
ram os antigos consórcios, que reuniam 
dezenas de operadoras: Google, Face-
book, Amazon e Microsoft. Enquanto a 
China avança no mercado asiático, es-
sas empresas poderiam controlar a 
grande maioria dos cabos submarinos 
ocidentais em três anos.11 Em breve, o 
Google terá cinco. O último a entrar em 
serviço chama-se Dunant. Quase du-
zentas vezes mais poderoso do que os 
cabos instalados há vinte anos, ele liga 
Virginia Beach a Saint-Hilaire-de-Riez, 
na França. “No princípio, nos contentá-
vamos em alugar largura de banda das 
operadoras. Mas, dada a explosão do 
quisadora do Departamento Intermi-
nisterial sobre Questão Digital. Seu ar 
assustado não impede que os Estados 
Unidos espionem a China, como quan-
do o serviço secreto da Nova Zelândia 
interceptou, em nome da NSA, um cabo 
que passa pelo consulado chinês em 
Auckland.6 Para a China, as infraestru-
turas da internet representam um meio 
de garantir interesses vitais. Com quase 
20% da população mundial para 10% 
das terras aráveis, a China “financia in-
fraestrutura tecnológica fora de seu ter-
ritório para acessar matérias-primas, 
sobretudo recursos alimentares”, se-
gundo Statia Lee, pesquisadorade Ciên-
cia Política da Universidade de Washin-
gton. A China Unicom, por exemplo, 
investiu em um cabo entre Camarões e 
o Brasil em troca de acesso a zonas de 
pesca.7 “A estratégia chinesa em relação 
aos cabos, voltada ao atendimento da 
demanda doméstica, sustenta cada vez 
mais uma projeção de sua economia di-
gital no estrangeiro, na França, na Áfri-
ca e, há mais tempo, na Ásia. É o que foi 
chamado de ‘rota da seda digital’”, deta-
lha Jean-Luc Vuillemin, vice-presidente 
das redes internacionais da Orange. Se-
gundo ele, a China chegou recentemen-
te a frustrar a instalação de três cabos 
parcialmente financiados pelo Google 
que iriam conectar Hong Kong ao Japão, 
Cingapura e Filipinas.
ÁFRICA, MERCADO CATIVO
Outros países também tentam manter 
os Estados Unidos a distância, como 
Cuba. Em troca, os norte-americanos 
proibiram que qualquer cabo que to-
casse a Flórida (quase toda a fibra ópti-
ca latino-americana) se conectasse à 
ilha. Poucos meses após as revelações 
de Snowden, o governo de Dilma Rous-
seff apresentou o projeto de cabo Ella-
Link, entre Brasil e Portugal, como uma 
forma de contornar os Estados Unidos 
e restaurar a soberania digital do Bra-
sil. A ambição foi partilhada pela Rús-
sia, que, como explica Julien Nocetti, 
investigador especializado em internet 
russa do Instituto Francês de Relações 
Internacionais, “está realocando seus 
data centers. No fim de 2019, 60% dos 
dados russos ainda estavam armaze-
nados no exterior”.
Ferramentas de vigilância e até de 
opressão – como durante a Primavera 
Árabe de 2011, quando cabos foram de-
liberadamente cortados pelas autori-
dades a fim de isolar a população na Sí-
ria ou no Egito8 –, as infraestruturas de 
telecomunicações de fibra óptica são 
também vetores de influência econô-
mica. Esses dois aspectos as colocam 
no centro de grandes questões geopolí-
ticas, como os cabos telegráficos no sé-
culo XIX, o primeiro dos quais ligou, 
em 1852, as Bolsas de Valores de Paris, 
Londres e Nova York. Nas décadas se-
guintes, a Eastern Telegraph Company 
multiplicou as ligações entre a Grã-Bre-
tanha e suas colônias na África, Ásia, 
América do Sul, Austrália e especial-
mente na costa oeste dos Estados Uni-
dos. Em 1892, dois terços dos cabos do 
mundo pertenciam a eles. “Ainda hoje, 
a rota dos cabos submarinos da inter-
net segue as rotas do telégrafo do Impé-
rio Britânico”, destaca Jovan Kurbalija, 
ex-diplomata especializado em gover-
nança da internet.
Tanto no Reino Unido como na 
França, a partir de 1870 (quando Mar-
selha estava ligada a Argel), “os cabos 
tornaram-se indispensáveis não ape-
nas para o comércio marítimo de todas 
as grandes potências e suas colônias, 
mas também para a defesa desse co-
mércio e dessas colônias em tempos de 
guerra”, escreve o historiador Daniel 
Headrick.9 Já naquela época, o governo 
britânico incentivava navios estrangei-
ros de instalação de cabos a aterrar em 
suas costas, para que eles pudessem fi-
car sob vigilância. “A lição era clara”, 
continua Headrick: “Em tempos de 
guerra, a nação que tivesse o maior nú-
mero de navios de instalação de cabos e 
a Marinha mais poderosa, ou seja, a 
Grã-Bretanha, controlaria também as 
comunicações de outras nações. O di-
reito internacional, o respeito aos direi-
tos e à propriedade dos neutros, as pro-
messas de paz e amizade perpétuas e 
os laços de fraternidade entre as nações 
não se aplicavam mais. O século XX ha-
via começado”. Foi em 1898, durante a 
Guerra Hispano-Americana em Cuba, 
que os cabos viraram alvo pela primei-
ra vez. Depois, no início de cada guerra 
mundial, o Reino Unido cortaria os ca-
bos submarinos alemães.
Hoje, como outrora, a importância e 
a quantidade de dados que trafegam 
pelos cabos suscitam preocupações. No 
verão de 2015, bastou que um navio 
oceanográfico russo, o Yantar, rastreas-
se cabos perto da costa dos Estados 
Unidos para que um think tank britâni-
co, o Policy Exchange, publicasse em 
2017 um relatório com o evocativo títu-
lo “Cabos submarinos: indispensáveis e 
vulneráveis”. Cerca de quarenta pági-
nas redigidas sob a supervisão de um 
ex-almirante norte-americano expli-
cam por que os russos não descartavam 
a hipótese de cortar cabos submarinos 
em caso de conflito. O secretário-geral 
da Organização do Tratado do Atlânti-
co Norte (Otan), Jens Stoltenberg, de-
fendeu, no fim de 2020, o desenvolvi-
mento de missões de vigilância e 
proteção de cabos submarinos.
Navios de vigilância, drones sub-
marinos, sistemas de sonar deposita-
“Hoje, qual Estado não 
intervém diretamente 
junto a suas empresas 
de telecomunicações?”
®® https://t.me/PDFs_Brasil
13JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil
tráfego, constatada ou prevista, a me-
lhor abordagem seria investir em nos-
sos próprios cabos”, declara Jayne Sto-
well, que negocia contratos para a 
construção de cabos submarinos no 
Google. Com o vídeo (YouTube, Netflix, 
Twitch) e o armazenamento remoto, o 
consumo de dados explodiu: ele seria 
130 vezes maior em 2021 do que em 
2005.12 “Quem gere o tráfego é o chama-
do Gafam [Google, Apple, Facebook, 
Amazon, Microsoft], do qual a Europa 
depende maciçamente. Ele já usa meta-
de da largura de banda da internet do 
mundo, e isso pode crescer até 80% em 
2027. Para esses atores, controlar sozi-
nhos seus fluxos de dados se tornou 
uma obviedade”, resume Lucie Greene, 
autora de Silicon States [Estados de Silí-
cio] (Counterpoint, 2018).
As empresas de telecomunicações 
estão coléricas. “Há alguns anos, o 
Google e a Microsoft eram seus clien-
tes. Agora, elas estão reduzidas a ge-
renciar o aterramento de cabos em ter-
ritórios nacionais e a cuidar da 
papelada e da ligação com os usuários 
finais. Viraram subcontratadas. E seu 
modelo de negócio vai depender cada 
vez mais de infraestruturas que já não 
lhes pertencem”, analisa Andrew 
Blum, jornalista e autor de Tubes: A 
Journey to the Center of the Internet [Tu-
bos: uma viagem ao centro da Internet] 
(Ecco, 2013). Mais ainda, o armazena-
mento remoto de dados hospedados 
em servidores espalhados pelo mundo 
torna as empresas dependentes do ca-
beamento. “A economia da nuvem é 
hoje o motor da indústria dos cabos. 
Por razões de custo e eficiência, as 
grandes empresas europeias confiam 
seus dados a empresas como a Amazon 
Web Services”, observa Boullier. Por 
causa da dependência em relação a gi-
gantes norte-americanos da nuvem, 
como a Amazon (31% do mercado), a 
Microsoft (20%) e o Google (7%), os da-
dos europeus estão à mercê dos servi-
ços norte-americanos, graças ao Cloud 
Act, adotado em maio de 2018 pelo go-
verno Trump. Estejam esses dados ar-
mazenados em servidores em solo dos 
Estados Unidos ou no exterior, um 
simples pedido de um juiz norte-ame-
ricano é suficiente para recuperá-los.
Auxiliado por um poderoso sistema 
de lobby dentro da União Europeia,13 o 
Gafam acumula certificações para a 
gestão de dados sensíveis. Assim, sem 
terem planejado, empresas e governos 
colocam-se à mercê dos cabos norte-a-
mericanos. “E, às vezes, sem nem con-
frontar a concorrência”, esclarece 
Ophélie Coelho. “Esse foi o caso do 
Health Data Hub, plataforma gerencia-
da pelo Microsoft Azure que desde 2019 
coleta dados médicos de hospitais fran-
ceses para fins de pesquisa.” Resulta-
do: “Descobrimos que somos depen-
dentes da maneira como eles hospedam 
e controlam os dados e de sua legisla-
tipo de contrato é padrão em termos de 
controle internacional de infraestrutu-
ra de telecomunicações. Do lado chi-
nês, há muito cuidado para não disper-
sar as joias da família: vendida em 2019, 
a Huawei Marine foi comprada pela 
compatriota Hengtong, maior fabri-
cante mundial de cabos ópticos terres-
tres e submarinos, muito próxima do 
Estado chinês, com o objetivo de racio-
nalizar a política de cabos. “Os cabos 
ligam um território cada vez mais frag-
mentado, onde se trava uma guerra po-
lítica e econômica de longo prazo. E os 
dois polos normativos são os Estados 
Unidos e a China”, conclui Edward J. 
Malecki, geógrafo

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