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OS LIVROS DA FUVEST 
 
 
 
 
 
DOIS IRMÃOS 
MILTON HATOUM 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Análise da obra, seleção de textos e questionário 
MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA 
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DOIS IRMÃOS – MILTON HATOUM 
OBRAS DA FUVEST 
 
1. BIOGRAFIA DO AUTOR 
 
Milton Hatoum nasceu em Manaus em 19 de agosto de 1952. Filho 
de pai e avós maternos libaneses, os quais pouco falavam português, sendo 
a avó cristã maronita, educada em uma escola de freiras em Beirute, onde 
só se rezava em francês. O avô Mamede, um contador de histórias, muito 
influenciou Hatoum no interesse pelas narrativas orais, principalmente as 
libanesas, que povoaram a imaginação do autor. 
Aos quinze anos, Hatoum mudou-se de Manaus para Brasília, no 
período do auge do regime militar. Na capital, estudou no Colégio de Aplicação 
da UnB, uma escola de perfil politizado e vitimizado pela atmosfera opressiva 
da época. Nos anos de 1970, o autor transferiu-se para São Paulo, onde se 
diplomou em arquitetura pela USP. No final da mesma década, Hatoum 
mudou-se para Madri para estudar, transferindo-se logo depois para 
Barcelona, onde exerceu a tarefa de professor de Português e trabalhou na 
tradução de romances de Jorge Amado para o Espanhol. 
Em 1981, o autor viajou para Paris, onde iniciou o doutoramento 
na Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle) e começou a esboçar seu 
primeiro romance. Em 1984, interrompeu o doutorado e retornou a Manaus. 
Seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente, ganhador do 
Prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, foi lançado em 
1989, ganhou forte destaque na crítica literária e, rapidamente, editado na 
França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Líbano. 
Dois Irmãos, segunda obra de Hatoum, foi eleito o melhor romance 
brasileiro no período 1990-2005, em pesquisa feita pelos jornais Correio 
Braziliense e O Estado de Minas e Cinzas do Norte, e proporcionou ao autor 
diversos prêmios, como a Ordem do Mérito Cultural, Elo Ministério da 
Cultura, Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. 
No ano de 2008, Milton Hatoum publicou Órfãos do Eldorado, 
livro escrito sob encomenda que, segundo o autor, foi e será a única obra 
escrita para atender a um pedido. Ela também recebeu o Prêmio Jabuti em 
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2009 na categoria romance. 
Nas obras Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, Hatoum 
inseriu as vivências experimentadas no seio de sua família como filho de 
imigrantes libaneses. O autor escreveu também um livro de contos, A 
Cidade Ilhada, e uma coletânea de crônicas, publicadas em jornais e 
revistas, intitulada Um Solitário à Espreita. 
 
2. RESUMO DO ENREDO DE DOIS IRMÃOS 
 
Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de 
Manaus, a rua em declive sombreada por 
mangueiras centenárias, o lugar que para ela 
era quase tão vital quanto a Biblos de sua 
infância: a pequena cidade no Líbano que ela 
recordava em voz alta, vagando pelos aposentos 
empoeirados até se perder no quintal, onde a 
copa da velha seringueira sombreava as 
palmeiras e o pomar cultivados por mais de 
meio século.1 (Dois Irmãos, 2017, p. 9) 
Assim começa, com uma espécie de prefácio, o romance Dois 
Irmãos, de Milton Hatoum: Zana, internada em um hospital, recordou seu 
passado ao lado do pai, marido e filhos, desejando (até morrer) que os 
gêmeos, Yaqub e Omar, voltassem a se falar. 
No primeiro capítulo, Yaqub regressa do Líbano, para onde foi aos 13 
anos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, tendo sido, dessa maneira, 
separado do gêmeo Omar, o filho preferido de Zana. Na chegada a Manaus, 
Yaqub se emocionou ao rever a paisagem de sua infância e refletiu sobre 
como ele e o irmão gêmeo eram diferentes nos desafios: Yaqub era medroso, 
enquanto Omar, o aventureiro. 
 
Yaqub recorda também o dia do baile dos jovens em que ele queria 
ter ficado até a meia-noite, uma vez que a sobrinha dos Reinoso, Lívia, “a 
meninona loira” (Dois Irmãos, 2017, p. 21), estaria presente nesse horário 
1 Todas as passagens do romance Dois Irmãos foram extraídas da edição de bolso 
da Companhia das Letras de 2017. 
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ao evento. Ao vê-la, ele pensou em se aproximar dela, mas Zana ordenou-lhe 
que levasse a irmã mais nova, Rânia, para a casa e voltasse posteriormente. 
No retorno para o baile, Yaqub viu Lívia e Omar dançando num ritmo 
diferente do típico das festas carnavalescas, o que o fez odiar a festa. 
O gêmeo mais velho não entendia o porquê de a mãe proteger o irmão 
caçula e, muito menos, compreendia o motivo de ter sido mandado para o 
Líbano dois meses após o baile de Carnaval. 
No retorno a Manaus, ao chegar em casa, já um homem feito, Yaqub 
foi recebido efusivamente pela irmã Rânia e, então, caminhou até o quintal 
para abraçar Domingas, como se ela fosse sua mãe e não a empregada da 
casa. 
A vizinhança veio ver Yaqub, que foi beijado por Sultana, Talib, suas 
duas filhas, e Estelita Reinoso. Já era quase meia-noite, quando Omar entrou 
na sala, dirigiu-se até a mãe, que o recebeu como se ele fosse o filho ausente, 
abraçou-a e, sem nenhuma vontade, estendeu a mão para cumprimentar 
Yaqub. 
Domingas contou ao narrador a história da cicatriz que era a única 
diferença física entre Yaqub e Omar: no último sábado de cada mês, no 
porão da casa dos Reinoso, havia uma sessão de cinema em que a garotada 
vestia a melhor roupa para o evento. Nessas ocasiões, Lívia dispensava mais 
atenção a Yaqub, despertando o ciúme de Omar. 
Numa dessas sessões, Yaqub reservou uma cadeira para Lívia sentar-
se ao lado dele. Repentinamente ocorreu uma pane no gerador e, ao ser 
aberta a janela para entrar claridade, Omar viu os lábios de Lívia no rosto 
de Yaqub. Imediatamente cadeiras foram atiradas ao chão, uma garrafa de 
vidro estilhaçada e estocada no rosto de Yaqub por Omar. 
Depois da briga entre os gêmeos, para que fosse contida a possível 
violência entre os irmãos, Yaqub foi enviado ao Líbano e, agora, regressando 
cinco anos depois para Manaus, já era um homem alto, que falava mal a 
Língua Portuguesa, mas tinha grande facilidade com a Matemática. 
Pouco tempo depois de ter voltado a Manaus, Yaqub comunicou a 
família de que iria para São Paulo, onde estudaria na escola Politécnica. 
Enquanto ele se dedicava aos estudos, Omar faltava às aulas na 
escola, aproveitando a vida de maneira audaciosa e irresponsável pelas 
madrugadas festivas de Manaus, comportamento que incomodava o pai 
Halim. 
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 Omar foi expulso do colégio por ter desferido um soco no professor 
de Matemática, mestre querido de Yaqub. Zana tentou evitar a expulsão, 
mas o diretor não cedeu aos argumentos dela em favor de Omar. 
Para o narrador, a partida de Yaqub para o Líbano fora vantajosa, pois 
ficara com suas roupas velhas, as quais lhe serviriam depois de alguns anos. 
No segundo capítulo, o narrador relata que Galib, pai de Zana, 
inaugurou o restaurante Biblos, por volta de 1914, ponto de encontro de 
imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos. Abbas indicou o Biblos 
para Halim, que passou a ser frequentador assíduo do local pelo 
encantamento que tinha por Zana. Como Halim levava peixes para Galib, o 
dono do restaurante não lhe cobrava o almoço. 
Certa vez, quando Halim estava procurando por um chapéu feminino 
para dar de presente à Zana, Abbas sugeriu-lhe que a presenteasse com um 
gazal escrito por ele composto de quinze dísticos escritos em árabe. Halim 
colocou os versos num envelope e, no dia seguinte, fingiu esquecê-lo no 
restaurante. Uma semana depois, ao voltar ao Biblos, Halim recebeu de 
Galib o envelope que ele tinha “esquecido” sobre a mesa. 
Abbas disse a Halim que a timidez não conquistavaninguém e, 
dando-lhe duas garrafas de vinho, sugeriu que ele voltasse ao Biblos e se 
declarasse à Zana. Na manhã de sábado, Halim entrou no Biblos 
embriagado, dirigiu-se à Zana e declamou-lhe os gazais. Dois meses depois, 
eles se casaram. 
Halim era um romântico tardio, apaixonado por Zana, a qual decidiu 
casar-se com ele, mesmo com as cristãs maronitas de Manaus se opondo a 
ela ter um muçulmano como marido. No entanto, Zana só seguia sua própria 
vontade e, determinada, casou-se com Halim, enquanto Galib afastava as 
beatas para que deixassem sua filha em paz. 
Nessa ocasião, Zana fez uma exigência a Halim em frente ao pai: 
deveriam se casar no altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das 
maronitas e católicas de Manaus. Halim satisfez-se por ter vencido as 
oposições sociais em relação ao seu casamento, que foi feliz e de intensa 
atividade sexual, principalmente na rede, durante muito tempo. 
Certa vez, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano para rever 
os parentes. Ele partiu para Biblos2 e lá morreu na casa perto do mar. Zana, 
2 Biblos (βύβλος) é o nome grego da cidade portuária fenícia de Gubla (ou Gebal). 
Era conhecida pelos antigos egípcios como Kbn e, mais tarde, Kpn. Embora continue 
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ao saber da morte do pai, trancou-se por duas semanas no quarto. Após o 
período de luto, ela notificou ao marido o desejo de ter três filhos. Os 
gêmeos não nasceram logo depois da morte do avô, pois Halim queria 
aproveitar a vida com Zana sem a interferência de filhos. 
No terceiro capítulo, o narrador conta que Yaqub enviava para a 
família uma carta no final de cada mês e Zana e Halim convidavam os 
vizinhos para a leitura da missiva. Nela, Yaqub contava que, em São Paulo, 
tinha uma vida atribulada, o que levava Zana a temer que ele não voltasse 
mais a Manaus. 
Os pais mandavam dinheiro para Yaqub viver em São Paulo, mas ele 
devolvia todo o valor, dizendo que não precisava de nada deles. Enquanto 
ele se dedicava para ser um engenheiro, Omar continuava com sua vida 
folgada e repleta de aventuras. 
Zana sugeriu a Halim que vendessem o restaurante e abrissem um 
comércio na rua dos bares, onde o movimento de fregueses era maior. Por 
ocasião da inauguração da loja, uma freira, “irmãzinha de Jesus”, ofereceu 
ao casal uma órfã batizada e alfabetizada para trabalhar na casa de Zana e 
Halim. 
 Era Domingas, que cresceu nos fundos da casa e passou a fazer as 
tarefas do lar. Dois anos após a chegada dela, nasceram Yaqub e Omar. Em 
decorrência de o Caçula ter adoecido logo nos primeiros meses de vida, ele 
foi cercado pelo zelo excessivo da mãe, enquanto Domingas cuidava de 
Yaqub como se fosse sua mãe postiça. 
Halim, que perdeu a paz logo que os filhos começaram a andar, não 
se conformava com a ideia de ter sua privacidade e prazeres ao lado de Zana 
roubados pelo excesso de mimo que a mãe dedicava a Omar. 
O narrador revela que não conhecia suas origens, mas, alguns anos 
depois, desconfiou de que um dos gêmeos era seu pai. Certa vez, ele e 
Domingas foram passear e, nessa ocasião, ela contou ao narrador algumas 
passagens de sua vida antes do orfanato, a perda do pai e a orfandade que a 
levou para o convívio com as freiras. Uma tempestade fez esse passeio ser 
uma tormenta para Domingas e o filho, sendo essa a única viagem que 
fizeram juntos. 
a ser denominada de Biblos pelos investigadores (sobretudo em referência a épocas 
passadas), a cidade é agora conhecida pelo nome árabe Jubayl. Situa-se na 
costa mediterrânica do Líbano, a 42 quilômetros de Beirute e é um local de muito 
interesse de arqueólogos.
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Omar chegava das noitadas, acordava Zana e Domingas, que, 
juntamente com seu filho, o narrador da história, iam ajudar o Caçula 
embriagado. O narrador se incomodava muito com o que vivia na casa 
libanesa e, algumas vezes, pensara em fugir, mas não o fizera porque não 
queria deixar a mãe sozinha. 
Yaqub morava em São Paulo já há seis anos, enquanto Omar 
continuava sua vida alucinada. Uma noite, o Caçula chegou em casa com 
uma moça do cortiço, fizeram uma festinha a dois e, de manhã, Halim, ao 
se levantar, viu o filho e a moça nus dormindo no sofá. Enfurecido, o pai 
ergueu Omar pelos cabelos, deu-lhe uma bofetada, acorrentou-o à maçaneta 
do cofre de aço e desapareceu por dois dias. 
Mas foi o episódio da mulher prateada que fez Zana mandar Omar 
para São Paulo. Nessa altura, Yaqub já estava casado e não revelava o nome 
da esposa aos familiares, o que irritava a mãe, pois, para ela, um filho casado 
era um filho perdido ou sequestrado. 
No aniversário de Zana, Omar encheu a casa com flores e bilhetinhos 
amorosos para a mãe. O comportamento do Caçula despertava, na irmã, 
Rânia, uma forte paixão por ele, que costumava fazer-lhe cócegas nos 
quadris e tatear-lhe o vão entre suas pernas, fazendo-a suar e fugir para o 
quarto. 
Ainda muito jovem, Rânia aderiu à vida reclusa e solitária de seu 
quarto fechado. Contudo, nas festas de aniversário de Zana, Rânia sempre 
deixava esperançoso algum pretendente que estivesse no evento, aceitando 
convites para dançar, mas, logo depois, interrompia a dança para jogar-se 
nos braços do Caçula. A intimidade entre os irmãos revoltava qualquer 
pretendente, que saía da festa irritado. 
Havia rumores de que Omar estava envolvido com uma mulher mais 
velha do que ele, notícia que deixou Zana impaciente. Foi justamente no 
aniversário de Zana que Omar apresentou a namorada para a mãe, a qual 
sempre afastava todas as mulheres do filho. Nessa ocasião, no entanto, a 
mulher, chamada Dália, que Omar trouxe à casa, atraiu mais olhares na festa 
do que Rânia. As filhas de Talib, como sempre, surgiram na festa dançando, 
mas também tiveram o brilho ofuscado por Dália. 
A mulher prateada (Dália), que Omar trouxe para casa, despertou o 
fascínio de todos os presentes à festa. Após a dança, Zana chamou Dália 
para ajudá-la a limpar a mesa e, segurando-a pelo braço com força, 
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cochichou algo em seu ouvido, o que fez a mulher prateada ir embora, 
dizendo em voz alta: “Vamos ver, vamos ver” (Dois Irmãos, 2017, p. 77). 
Omar, desesperado, saiu correndo atrás de Dália. 
Zana fez de tudo para convencer Yaqub a hospedar o irmão em São 
Paulo, mas ele não permitiu que Omar dormisse em sua casa. O Caçula, 
descobrindo o plano da mãe de enviá-lo para São Paulo, tentou reaproximar 
Dália de Zana, mas ela mandou o narrador entregar dinheiro para a mulher 
prateada, a qual desapareceu com a família. 
Omar viajou para São Paulo enfurecido e revoltado. Durante seis 
meses, a casa de Halim ficou em paz. O Caçula escrevia aos pais contando 
que estudava muito e madrugava para ir à escola. No feriado de 15 de 
novembro, Yaqub viajou com a esposa para Santos. 
Na volta do feriado, ele foi ao colégio onde o Caçula estudava e, lá, 
informaram-no de que Omar deixara de frequentar a escola após o 15 de 
novembro. Na pensão, onde Omar residia em São Paulo, Yaqub soube que 
o irmão também abandonara o quarto com apenas uma mala vazia e algumas 
roupas dependuradas, além de um mapa dos Estados Unidos. Em dezembro, 
Omar enviou o primeiro cartão postal: 
 
(...) o Caçula enviou o primeiro cartão-postal 
de Miami; depois enviou outros, de Tampa, 
Mobile e Nova Orleans, contando suas farras e 
peripécias em cada cidade. Yaqub rasgara todos 
os postais menos um, que entregou ao pai: 
“Queridos mano e cunhada, Louisiana é a 
América em estado bruto e mesmo brutal, e o 
Mississippi é o Amazonas desta paragem. Por 
que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo 
selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês 
dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo 
de loiro, assim vão ser superiores em tudo. 
Mano, a tua mulher, que já foi bonita, pode 
rejuvenescer com o cabelo dourado. E tu podes 
enriquecer muito,aqui na América. Abraços do 
mano e cunhado Omar”. (Dois Irmãos, 2017, p. 
91) 
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No quinto capítulo, o narrador conta que Yaqub veio visitar a família 
pela primeira vez depois que partira para São Paulo, ocasião em que ele 
revelou a verdade sobre Omar aos pais. 
O narrador considera que, se Yaqub fosse seu pai, ele seria filho de 
um homem quase perfeito, o que não ocorreria se o pai dele fosse Omar. Ao 
reencontrar Yaqub, o narrador recebeu dele algum carinho, e, logo depois, 
viu sua mãe de mãos dadas com o gêmeo de São Paulo. 
Zana perguntou a Yaqub se a esposa não tinha vindo com ele, pois ela 
queria conhecer a nora. Yaqub disse à mãe que Omar lhe daria uma nora 
tão exemplar quanto ele. À noite ele revelou ao pai o motivo do 
desaparecimento de Omar: 
 
“Durante cem dias o teu filho foi disciplinado 
como não tinha sido em quase trinta anos, mas 
foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai. 
“Ele roubou meu passaporte e viajou para os 
Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de 
seda e duas camisas de linho irlandês!” 
Yaqub teve certeza disso quando recebeu o 
primeiro cartão postal. Já tinha expulsado a 
empregada, porque ela levara Omar para o 
apartamento quando ele e a esposa estavam em 
Santos no feriado de 15 de novembro. A 
empregada havia confessado quase tudo: Omar 
a levara para passear no Trianon e no Jardim 
da Luz; tinham almoçado no Brás e nos 
restaurantes do centro. Dois folgadões! Tudo 
isso com o dinheiro que vocês mandavam, disse 
Yaqub, irado. Depois Yaqub se lembrou dos dois 
volumes velhos e empoeirados de cálculo 
integral e diferencial, livros que comprara por 
uma pechincha num sebo da rua Aurora. Abriu 
os livros com o pressentimento de que fora 
aviltado. Rangia os dentes, as mãos trêmulas 
mal conseguiam folhear o primeiro volume, 
onde tinham sido enfiadas várias cédulas de um 
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dólar; no outro volume guardara as notas de 
vinte. Folheou os dois livros, página por página, 
depois chacoalhou-os, e caíram cédulas de um 
dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse 
o passaporte, a gravata de seda, as camisas de 
linho, mas dinheiro... “Deixou a mixaria, deixou 
o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami, 
ladrão!” (Dois Irmãos, 2017, p. 91, 92) 
 
Yaqub não iria sossegar enquanto não se vingasse do irmão, 
principalmente porque estava ainda mais enfurecido com Omar por ele ter 
entrado em seu apartamento, vasculhado tudo, descoberto que Lívia havia 
se casado com Yaqub e feito desenhos obscenos nas fotografias do 
casamento do irmão. 
Rânia quis modernizar a loja do pai, mas não havia dinheiro para 
reformar a casa ou a loja. Yaqub, então, generosamente financiou ambas as 
obras. 
Omar envolveu-se com outra mulher: a Pau-Mulato, uma bela 
rubiácea com quem ele passou a se encontrar às escondidas da mãe. Houve 
uma mudança de comportamento do Caçula: amanhecia em casa, sem 
ressaca, e tornara-se um homem trabalhador, que acordava cedo e dirigia-
se a um banco estrangeiro para o dia de trabalho. 
O Caçula levou para casa um inglês, chamado Wyckham, o qual se 
dizia gerente do banco onde Omar trabalhava. No entanto, Zana descobriu 
que o inglês era um contrabandista do qual Omar era seu braço direito. 
Zana colocou Zanuri para seguir Omar. O delator profissional 
entregou a ela um relatório, no qual revelava que o Caçula passava as noites 
com o carro, um oldsmobile conversível, prateado e com bancos azuis, em 
frente a uma casa pobre, moradia de uma mulher alta e massuda. Ambos 
passavam a noite dentro do carro divertindo-se sexualmente. 
Como uma estrategista, Zana passou a presentear Omar, dando-lhe 
roupas bonitas para ele ir “mais lindo nas tuas noites da Cachoeirinha” (Dois 
Irmãos, 2017, p. 108). Omar, percebendo que a mãe havia descoberto seu 
relacionamento com a Pau-Mulato, arrumou suas coisas e saiu de casa: 
“A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e 
tem bom posto. Agora é a minha vez de viver... 
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Eu e a minha mulher, longe da senhora...” 
Ergueu a cabeça e gritou para o pai: “Longe do 
senhor também, longe dessa casa... de todos. 
Não venham atrás de mim, não adianta...”. 
Saiu gritando como um alucinado, sem se 
despedir de Rânia nem de Domingas. Era capaz 
de bater, de quebrar tudo se alguém o impedisse 
de partir. Ninguém dormiu naquela noite. Zana 
não parava de se lamentar; culpava-se, depois 
acusava Halim: “Nunca foste um pai para ele, 
nunca. Ele fugiu por causa do teu egoísmo... 
Isso mesmo, egoísmo”. Subia e descia a escada, 
atarantada, exigindo a minha presença, a de 
Domingas. Não sabia o que pedir, o que dizer a 
nós dois. Esperávamos, sonolentos, a tarefa. 
Mas ela não se decidia e perguntava: “O que 
acham disso? Meu filho perdido por uma 
mulher qualquer! O que vocês acham? E Rânia, 
por que não desce? Em vez de me ajudar, fica 
mofando naquele quarto”. Enfim, ordenou: que 
eu tirasse a filha da cama. Rânia abriu a porta, 
o rosto mal-humorado. Não estava dormindo, o 
quarto dela todo iluminado. As duas rezaram, 
fizeram promessas, acenderam velas. 
Acenderam tudo: as lâmpadas, os olhos, a alma. 
O tempo passava e ele não voltava para casa. 
Soltara-se de vez? Tinha asas, era impulsivo, 
mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se 
livremente no imenso céu do desejo. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 109) 
 
No sexto capítulo, iniciou-se a busca de Zana pelo filho caçula. 
Halim também procurou por Omar, acompanhado do amigo Cid Tannus, 
percorrendo todos os lugares da cidade. Numa dessas ocasiões, Halim pediu 
ao narrador que o acompanhasse numa procura incessante por Omar, 
passando por ilhas, lagos e rios de Manaus. Durante meses a procura pelo 
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Caçula foi infrutífera. 
Rânia administrava a loja vendendo mercadorias da moda que 
vinham de São Paulo, controlando cada centavo gasto. Contrariada, ela 
cedeu à compra excessiva de peixe pescado por Adamor, o Perna de Sapo, 
um farejador que descobriu em pouco tempo o paradeiro de Omar: Ele 
estava morando num barquinho de aluguel, juntamente com a mulher Pau 
Mulato, pescando tudo o que podiam para vender. Omar rapara os cabelos 
e deixara a barba crescer, além de ter os braços arranhados e seu corpo 
bronzeado de tanto sol. 
O Caçula foi resgatado e levado de volta para casa e, num acesso de 
fúria, pegou a corrente do pai, arremessou-a contra o espelho, destruiu 
cadeiras e molduras, rasgou os retratos de Yaqub, praguejou contra Halim, 
xingou a mãe e a irmã, mas não se dirigiu ao narrador, que torcia para que 
ele o tocasse para poder dar-lhe uma pancada. 
Zana aproximou-se de Omar dizendo-lhe não admitir que ele se 
envolvesse com uma mulher qualquer: 
 
(...) “Isso mesmo, uma qualquer! Uma charmuta, uma 
puta! Que ela passe o resto da vida mofando naquele 
barco imundo, mas não com o meu filho. Uma 
contrabandista! Falsária... Agiota... Gastei uma fortuna 
para descobrir os detalhes. O contrabando, as meninas 
que ela aliciava para o Quelé, aquele inglês de araque... 
O esconderijo de vocês na Cachoeirinha... As orgias... A 
patifaria... a sujeira toda! Eu não ia permitir... nunca! 
Ouviste bem? Nunca!” Ela abaixou a voz e sussurrou, 
dócil, tristonha: “Tens tudo aqui em casa, meu amor”. 
Começou a soluçar, a chorar. Pegou nas mãos dele, 
penteou-lhe a barba grisalha com os dedos, alisou-lhe a 
careca feridenta. Os dois, abraçados, foram para o 
alpendre; ela franziu a testa ao ver sua própria imagem 
distorcida em mil fragmentos no espelho estilhaçado. 
Perdeu o espelho precioso, mas ainda assim suspirava de 
felicidade porque o filho estava ali, queimado por dentro, 
mas agora só dela. Fez um sinal para que eu e Domingas 
limpássemos a sala. (Dois Irmãos, 2017, p. 130) 
 
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Omar ficou vários dias sem sair de seu quarto e voltou a ser mimado 
pela mãe. Rânia teve que ceder dinheiro para os caprichos do irmão, que a 
agarrava no colo e sussurrava palavras em seu ouvido, as quais a faziam se 
derreter toda. 
Depois do envolvimento com a Pau-Mulato, Omar jamais se entregou 
a outra mulher da mesma maneira. Voltou à vida de farras e às bebedeiras 
noturnas, deixando o pai cada vez mais revoltado com o seu 
comportamento. Halim foi entristecendo e, em seus últimos anos de vida, 
passava a maior parte do tempo sozinho, no pequeno depósito da loja, mas 
ainda se emocionava com Zana e dizia-lhe palavras de amor. 
No sétimo capítulo, na primeira semana de janeiro de 1964, Antenor 
Laval, o professor do colégio, foi até a casa de Omar para pedir-lhe que 
participasse de uma leitura de poesia. O Caçula voltou para casa na 
madrugada do dia seguinte e pediu dinheiro à irmã, que se recusou a dá-lo, 
pois a quantia era muito maior do que ele costumava solicitar. 
O narrador estranhou que Laval não o tivesse convidado para a leitura 
de poesias. Em fins de março, o professor reapareceu muito abatido e não 
voltou mais à escola, até que, em uma manhã de abril, ele foi preso e morto 
por soldados do regime militar. 
Vários alunos prestaram homenagem a Laval no coreto da praça, 
lendo seus poemas, sendo o último leitor Omar. Enquanto isso,Yaqub voltou 
para Manaus e, ao chegar em casa, quis que Domingas lhe fizesse 
companhia na rede. Repentinamente, o Caçula ficou febril e recebeu os 
cuidados exagerados da mãe, enquanto o narrador, que também adoecera, 
recebia a atenção do avô Halim, da mãe Domingas e de Yaqub. 
Depois de recuperado, o narrador e Yaqub passearam por Manaus, 
que estava lotada de soldados. Após a partida de Yaqub para São Paulo, 
Omar começou a se exercitar como jardineiro, catando frutas podres do 
quintal, varrendo as folhas, cheirando flores e cavando a terra. 
Rânia pediu ao narrador que fosse ajudá-la com umas caixas de 
mercadorias na loja. Os dois trabalhavam arduamente, quando, ao se abaixar 
para abrir uma caixa, Rânia deixou os seios aparecerem, despertando desejo 
no narrador. Ambos pararam as tarefas e se envolveram fisicamente na 
escuridão da loja. 
Depois do momento sexual intenso, eles conversaram um pouco e 
Rânia contou ao narrador que sua festa de aniversário de quinze anos fora 
cancelada repentinamente e apenas ela e a mãe sabiam o motivo: 
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“Zana conhecia o meu namorado, o homem que 
eu amava... Eu queria viver com ele. Minha mãe 
implicou, se enfezou, dizia que a filha dela não 
ia conviver com um homem daquela laia... não 
ia permitir que ele fosse à minha festa. Me 
ameaçou, ia fazer um escândalo se me visse com 
ele... ‘Com tantos advogados e médicos 
interessados em ti, e escolhes um pé-rapado...’ 
Meu pai ainda tentou me ajudar, fez de tudo, 
implorou para que Zana cedesse, aceitasse, mas 
não adiantou. Ela era mais forte, enfeitiçou meu 
pai até o fim. Desprezei todos aqueles 
pretendentes... alguns até hoje aparecem aqui, 
fingem que querem comprar e acabam 
comprando as porcarias encalhadas... os 
restos... tudo o que eu não vendo durante o ano. 
Agora é esse o meu mundo... sou dona de tudo 
isso”, ela disse, olhando as paredes da loja. 
Permanecemos em silêncio, na penumbra; com 
a luz fraca do depósito, mal dava para ver o 
rosto dela. Ela me pediu que fosse embora, 
queria ficar sozinha, talvez dormisse na loja. 
Eram mais de duas da madrugada, e eu sabia 
que não ia pegar no sono. Só pensava em Rânia, 
na voz dela, na beleza que vi de perto, muito 
perto, como ninguém talvez tivesse visto. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 155, 156) 
 
Enquanto o narrador ficava em seu quarto lendo e estudando, o 
Caçula trabalhava no jardim, carregando sacos de folhas mortas. Halim 
comentou que Omar se esforçava no trabalho só para não sair de perto da 
mãe: 
 
Um dia, a mãe se envergonhou de uma cena. É 
que as duas filhas de Talib, Zahia e Nahda, 
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entraram de supetão na casa e logo começaram 
a rir. Riam e cobriam o rosto com as mãos, 
nervosas. Nós ouvimos o riso e o tilintar das 
pulseiras de ouro que chacoalhavam no braço 
das moças. A mãe apareceu na sala, e, antes de 
perguntar a razão do riso, olhou para o quintal: 
o filho, nu, enlaçava o tronco da seringueira, e, 
com uma lentidão artística, arranhava-lhe o 
tronco. Queria extrair leite daquela árvore 
secular? Ao ver a mãe espiá-lo, ele se afastou 
da árvore, pôs as mãos entre as pernas, apalpou 
a virilha. Começou a gemer, fazendo uma careta 
medonha. Zahia e Nahda pararam de rir, 
arregalaram os olhos. Recuaram. Ele uivava, 
berrava como um desgraçado, apertando as 
coxas com as mãos. Zana gritou por Domingas, 
as duas se acercaram do tronco, minha mãe 
logo percebeu o motivo dos berros. Sofria, o 
Caçula. Arreganhava-se para mijar, mordia os 
lábios e tornava a arranhar o tronco da 
seringueira. “Está com o ramêmi ensopado de 
pus”, disse Domingas. Zana se espantou: “O 
que é isso? Estás louca?”. Minha mãe balançou 
a cabeça: “A senhora não sabe... Não é a 
primeira vez que ele pega essa doença”. Zana 
não acreditou. À noite, o sonso do jardineiro 
escapava pela cerca dos fundos... Dessa vez 
tinha sido forte, uma gonorreia galopante, como 
se dizia. As duas levaram o Caçula para o 
banheiro, fizeram um curativo, enrolaram o 
ramêmi de Omar com gaze. Ele teve que ir ao 
médico, e aguentou umas duas agulhadas na 
bunda. Voltava da farmácia caminhando de 
banda, como um papagaio. Em casa, o 
tratamento não era mais ameno. Zana esperava 
Halim sair, Domingas fervia água com folhas de 
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crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da 
bacia, recebendo o tratamento da mãe. Ele 
apertava a virilha, se contorcia, trincava os 
dentes, derramava a infusão, queria fugir. Zana 
pegava uma toalha limpa e recomeçava a 
aplicação. No fim, ele se sentia aliviado. Nós 
sabíamos quando ele mijava por causa dos 
urros que soltava durante a noite. Era um 
escândalo. “Quem fez isso contigo?”, quis 
saber Zana. Ele não falou.” (Dois Irmãos, 2017, 
p. 156, 157) 
 
Halim, triste e cansado, passou a perambular pela cidade, falando 
sozinho e perguntando por Yaqub. Zana mandava o narrador ir atrás do 
marido: 
Numa tarde que ele escapara logo depois da 
sesta eu o encontrei na beira do rio Negro. 
Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de 
pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates. 
Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade 
Flutuante. (Dois Irmãos, 2017, p. 158, 159) 
 
Apenas na manhã da véspera do Natal de 1968, a busca por Halim foi 
inútil. A ceia de Natal fora silenciosa e triste. Zana não tocou na comida, pois 
preferiu esperar mais um pouco pelo retorno do marido que nunca deixava 
a família nessa data. De madrugada o grito de Zana acordou a todos: Halim 
estava sentado no sofá cinza calado para sempre. 
No oitavo capítulo, o narrador revelou que Omar não suportou ver o 
pai morto e, num ataque de histeria, dirigiu-se ao finado de maneira 
afrontosa: 
Começou a gritar, criança incendiada de ódio ou de 
algum sentimento parecido com o ódio. Gritava, fora de 
si: “Ele não vai acorrentar o filho dele? Não vai passar 
a mão no rosto suado? Por que ele não se mexe e fala 
comigo? Vai ficar aí, com esse olhar de peixe morto?”. 
Gritos na madrugada. Os gritos do Caçula. O choro de 
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Rânia, de Domingas. Zana cobria o rosto com as mãos; 
ela estava sentada no chão, no meio de cacos do alguidar, 
perto de Halim, talvez sem entender como tinha 
acontecido. Ninguém, naquela noite, viu o velho entrar 
na sala. Ele devia ter chegado no meio da madrugada, 
avançando com passos imperceptíveisde velho ferido que 
foge de tudo e de todos para morrer. Omar nos 
surpreendeu com seu gesto irado, o dedo em riste 
apontado para o rosto de Halim, para os olhos quase 
fechados, sem vida, do pai cabisbaixo. Rânia ficou 
paralisada: não sabia o que fazer, não pôde impedir o 
irmão de gritar, de pegar no queixo do pai e erguer-lhe a 
cabeça. O viúvo Talib chegou a tempo de evitar um 
confronto entre o filho vivo e o pai morto. Já amanhecia 
quando Talib e as duas filhas irromperam na sala e 
apartaram Omar do pai. O Caçula reagiu, esperneando, 
gritando, e eu não suportei vê-lo tão corajoso diante do 
finado Halim. Fiz um gesto para Talib e suas filhas, 
expulsei o Caçula da sala e arrastei-o até o quintal. Ele 
se enfureceu, pegou um terçado, me ameaçou. Gritei mais 
alto do que ele: que me enfrentasse de uma vez, que me 
esquartejasse, o covarde. O terçado tremia-lhe na mão 
direita, enquanto eu repetia várias vezes: “Covarde...”. 
Ele calou, empunhando o facão que usava para brincar 
de jardineiro. Tinha coragem de olhar para mim, e o 
olhar dele só aumentava a minha raiva. Ele recuou, ficou 
acocorado debaixo da velha seringueira, o rosto 
espantado voltado para a porta da sala, de onde 
Domingas nos observava. Ela me chamou, me abraçou e 
pediu que eu voltasse para a sala. (Dois Irmãos, 2017, p. 
162, 163) 
 
Zana, inconsolável com a perda do marido, começou a repreender o 
Caçula, comportamento que surpreendeu o filho querido. Após alguns dias, 
Rânia chamou Omar para trabalhar na loja com ela, mas ele riu da proposta 
e retornou à sua vida de noitadas por Manaus. 
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Em um sábado, o Caçula chegou em casa na companhia de Rochiram, 
um indiano que trabalhava na construção civil e estava procurando um 
terreno para construir um hotel. Zana, inicialmente, não gostou do visitante 
e Domingas desconfiou do comportamento dele. 
Zana pediu ao narrador que datilografasse uma carta dela para Yaqub, 
na qual pedia perdão por tê-lo mandado para o Líbano e afirmava seu desejo 
de ver os filhos reconciliados, trabalhando na construção do 
empreendimento do indiano. Algum tempo depois, chegou a resposta de 
Yaqub: 
Era uma carta com poucas linhas. Ele não 
aceitou nem recusou qualquer perdão. Escreveu 
que o atrito entre ele e Omar era um assunto dos 
dois, e acrescentou: “Oxalá seja resolvido com 
civilidade; se houver violência, será uma cena 
bíblica”. Mas ele se interessou pela construção 
do hotel, ignorando a participação do irmão. 
Terminou a carta com um abraço, sem adjetivo 
ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa 
palavra e murmurou: “Eu peço perdão e ele se 
despede com um abraço”. (Dois Irmãos, 2017, 
p. 171) 
 
Omar esbanjava dinheiro em bebidas e presentes com a quantia que 
havia ganhado da comissão pela venda do terreno ao indiano. Yaqub voltou 
a Manaus, hospedando-se, dessa vez, em um hotel simples. Após alguns 
dias de sua chegada, ele visitou a casa da mãe. 
Ao ver Domingas, Yaqub convidou-a para se sentar com ele na rede, 
quando, subitamente, o Caçula surgiu, socando o rosto do irmão e dando-
lhe uma surra em meio a xingamentos de traidor e covarde. Os dois foram 
separados pelo narrador e pelos vizinhos. Omar, vendo-se cercado, retirou-
se da casa. 
No hospital, Yaqub foi socorrido e tratado. Seu rosto estava inchado, 
dois ou três dedos da mão esquerda fraturados. Rochiram veio até a loja 
para conversar com Rânia e apresentar uma proposta para encerrar o 
problema que teve com os irmãos gêmeos dela: 
 
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Rochiram exigia uma fortuna em troca do que 
havia pagado a Yaqub pela execução dos 
projetos de engenharia e, a Omar, pela comissão 
do terreno. Além disso, perdera muito tempo 
com esse negócio. Ameaçou-a com um processo, 
escreveu que já conhecia pessoas influentes, “as 
mais poderosas da cidade”. Rânia pediu um 
prazo: “Alguns meses para arrumarmos a nossa 
vida”. 
Contou à mãe a exigência de Rochiram. Disse 
que faria tudo para evitar um processo de Yaqub 
contra Omar. (Dois Irmãos, 2017, p. 177) 
 
No nono capítulo, revela-se a identidade do narrador: Nael, o mesmo 
nome do pai de Halim. Domingas convidou o filho para passearem na praça 
da matriz: 
 
(...) “Quando tu nasceste”, ela disse, “seu 
Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... 
Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, 
não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, 
só ele me acompanhou. E ainda me pediu para 
escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome 
do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas 
ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. Parece 
que a vida se entortou também para ele... Eu 
sentia que o velho gostava muito de ti. Acho que 
gostava até dos filhos. Mas reclamava do Omar, 
dizia que o filho tinha sufocado a Zana.” Senti 
suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias. 
Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a 
cabeça. Murmurou que gostava tanto de 
Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, 
passeavam. Omar ficava enciumado quando via 
os dois juntos, no quarto, logo que o irmão 
voltou do Líbano. “Com o Omar eu não 
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queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, 
fazendo aquela algazarra, bêbado, 
abrutalhado... Ele me agarrou com força de 
homem. Nunca me pediu perdão.” (Dois Irmãos, 
2017, p. 180) 
 
A esta altura, Zana já misturava as lembranças do passado com os 
acontecimentos do presente, recuperando mentalmente a imagem do pai 
falecido, a morte do marido e ausência do filho caçula. Estava arrependida 
de ter escrito a carta a Yaqub, a quem, agora, chamava de intratável. O filho 
mais velho tornara-se o irmão perverso. 
Certa vez, o Nael, o narrador, ao chegar em casa não encontrou a mãe 
na cozinha. Ao procurá-la pelo imóvel, deparou-se com ela enrolada na rede 
de Omar e já sem vida. Domingas, a pedido do narrador, foi enterrada no 
jazigo da família ao lado de Halim. 
No décimo capítulo, a casa libanesa encontra-se vazia e envelhecida. 
Rânia havia comprado um bangalô no Norte de Manaus e queria que a mãe 
fosse morar com ela. Zana recusava-se, dizendo que nem morta deixaria a 
sua casa: 
Foi nessa época que Zana levou a primeira 
queda e teve que engessar o braço e a clavícula 
esquerda. Mesmo engessada, ela estendia a 
roupa de Halim no varal, punha os sapatos dele 
no piso do alpendre, o suspensório e a bengala 
no sofá cinzento. Fazia isso nos dias 
ensolarados, ao entardecer recolhia tudo e 
sentava à mesa, no lado direito da cabeceira 
onde o filho almoçava. À noite, ela chamava 
Domingas, eu me assustava, ia correndo até a 
sala e a encontrava de pé, perto do oratório, o 
terço pendurado na mão direita. 
Rânia não suportava mais ver a mãe conviver 
com fantasmas. Ficava entalada só de pensar 
na ameaça de Rochiram e desconfiava que cedo 
ou tarde teria de vender a casa para pagar a 
dívida. Queria morar longe dali, longe também 
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do bulício no centro de Manaus. (Dois Irmãos, 
2017, p. 184, 185) 
 
Restavam na casa apenas o narrador e Zana, que perguntava, 
insistentemente, se Omar não iria voltar: 
 
Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez 
poucos soubessem: o nome dela de batismo em 
Biblos era Zeina. No Brasil, ainda criança, ela 
aprendeu português e mudou de nome. Eu soube 
mais de Galib e Halim, e também de minha mãe. 
Domingas mudou muito depois que engravidou. 
Passava horas compenetrada. “Só vendo... 
bastante com ela mesma, até que Halim, de 
mansinho, abria a porta do quarto e 
perguntava: ‘em que estás pensando?’, ‘Hã? 
Eu?’. Tua mãe respondia assim, assustada... Ela 
amolava uma faquinha e pegava um pedaço de 
pau para fazer aqueles bichinhos. Halim me 
dizia: ‘Essa cunhantã... Por Deus, alguma coisa 
aconteceu com ela...’. Como a tua mãe deu 
trabalho no orfanato! Era rebelde, queriavoltar 
para aquela aldeia, no rio dela... Ia crescer 
sozinha, lá no fim do mundo? Então a irmã 
Damasceno me ofereceu a pequena, eu aceitei. 
Coitado do Halim! Não queria ninguém aqui, 
nem sombras na casa. Vivia dizendo: ‘Deve ser 
penoso criar o filho dos outros, um filho de 
ninguém’. Quando tu nasceste, eu perguntei: E 
agora, nós vamos aturar mais um filho de 
ninguém? Halim se aborreceu, disse que tu eras 
alguém, filho da casa...” 
Ela falava aos pedaços, e ela mesma fazia as 
perguntas: “No tapete? Se namoramos no 
tapete onde ele rezava? Ora, mil vezes... Tu não 
espiavas a gente, rapaz?”. Eu me arrepiava 
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quando ela dizia isso. Eles me vigiavam, 
percebiam a minha presença? Talvez não se 
incomodassem, nem tivessem vergonha. Deviam 
rir de mim. Filho de ninguém! Zana esqueceu a 
Domingas rebelde e evocou a outra, a 
empregada e cozinheira de muitos anos, a 
cúmplice no momento das orações, a mulher 
minha mãe. (Dois Irmãos, 2017, p. 186, 187) 
 
Rochiram propôs a Rânia a troca da dívida dos gêmeos pela propriedade 
da casa, acrescentando que Yaqub estava de acordo com essa negociação. 
Alguns dias depois, a mudança de Zana para o bangalô de Rânia foi inevitável. 
Nael passou a morar sozinho na casa. Certa vez, Rânia pediu ao 
narrador que tomasse conta de Zana. Durante a tarefa, ele se distraiu e, 
quando olhou para o quintal da casa, Zana estava dependurando as roupas 
do marido no varal, arejando o seu quarto e suplicando a Deus que Omar 
voltasse. Ela seguiu até o galinheiro e, logo depois, foi encontrada pelo 
narrador deitada no chão, coberta com as roupas de Halim. Zana foi retirada 
da casa em meio a gritos, dizendo que não sairia dali e não venderia a sua 
casa, pois o filho iria voltar: 
 
Depois eu soube da hemorragia interna, e ainda 
a visitei numa clínica no bairro de Rânia. Ela 
me reconheceu, ficou me olhando. Então soprou 
nomes e palavras em árabe que eu conhecia: a 
vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu 
rosto o esforço, a força para murmurar uma 
frase em português, como se a partir daquele 
momento apenas a língua materna fosse 
sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas 
mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido... 
(Dois Irmãos, 2017, p. 189) 
No décimo primeiro capítulo, Zana morre e a casa é transformada em 
uma loja de quinquilharias do indiano. Na passagem lateral da casa, um 
quarto fora reservado como moradia para Nael a pedido de Yaqub. 
Rânia ficou sabendo de que, no dia da última briga entre os gêmeos, 
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Omar fora ao hospital para espancar o irmão. De lá ele foi expulso e fugiu, 
passando a viver escondido em pousadas e pensões, uma vez que o irmão 
mais velho empreendera uma verdadeira caçada policial a Omar. 
Rânia começou a receber diversas cobranças dos gastos que o Caçula 
realizava em suas farras. Ela não podia mais pagar todas as dívidas de Omar, 
pois sabia que deveria poupar dinheiro para o que viria posteriormente. 
No último capítulo, Nael relata que Rânia, durante a hora de almoço, 
saía da loja a procura de Omar. Numa tarde de abril, ela o avistou magro, 
amarelo, cabeludo e barbudo, mas não conseguiu se aproximar dele. 
Repentinamente, tiros foram disparados e pessoas correram em fuga. Eram 
soldados que empreendiam uma caçada a Omar, o qual foi preso, enquanto 
Rânia discutia com os policiais e era repelida brutalmente por eles. 
Omar foi condenado a dois anos e meio de detenção, sendo um 
agravante à sentença sua amizade com Laval. Rânia escreveu a Yaqub, 
recriminando-o pela perseguição empreendida ao Caçula e dizendo-lhe que 
a vingança era muito mais patética do que o perdão. Yaqub manteve-se em 
silêncio. 
Omar foi liberado do presídio antes de completar a pena. Rânia tentou 
se aproximar dele, mas ele fugia de todos. Nael, o narrador, chegou a ver 
Omar mais uma vez: 
 
Naquela época, quando Omar saiu do presídio, 
eu ainda o vi num fim de tarde. Foi o nosso 
último encontro. 
O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou 
suas portas e janelas bem antes do anoitecer. 
Lembro-me de que estava ansioso naquela tarde 
de meio-céu. Eu acabara de dar minha primeira 
aula no liceu onde havia estudado e vim a pé 
para cá, sob a chuva, observando as valetas que 
dragavam o lixo, os leprosos amontoados, 
encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com 
assombro e tristeza a cidade que se mutilava e 
crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do 
rio, irreconciliável com o seu passado. 
Um relâmpago havia provocado um 
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curto-circuito na Casa Rochiram. O bazar 
indiano tornara-se um breu na tarde sombria, 
coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei no 
meu quarto, este mesmo quarto nos fundos da 
casa de outrora. Trouxera para perto de mim o 
bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o 
que restara dela, do trabalho que lhe dava 
prazer: os únicos gestos que lhe devolviam 
durante a noite a dignidade que ela perdia 
durante o dia. Assim pensava ao observar e 
manusear esses bichinhos de pau-rainha, que 
antes me pareciam apenas miniaturas imitadas 
da natureza. Agora meu olhar os vê como seres 
estranhos. 
Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, 
os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas 
conversas com Halim. Passei parte da tarde 
com as palavras do poeta inédito e a voz do 
amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa 
alternância — o jogo de lembranças e 
esquecimentos — me dava prazer. 
O toró que cobria Manaus, trégua na quentura 
do equador, me aliviava. Frutas e folhas 
boiavam nas poças que cercavam a porta do 
meu quarto. Nos fundos, o capim crescera, e a 
cerca de pau podre, cheia de buracos, não era 
mais uma fronteira com o cortiço. Desde a 
partida de Zana eu havia deixado ao furor do 
sol e da chuva o pouco que restara das árvores 
e trepadeiras. Zelar por essa natureza 
significava uma submissão ao passado, a um 
tempo que morria dentro de mim. 
Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar 
invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu 
quarto devagar, um vulto. Avançou mais um 
pouco e estacou bem perto da velha seringueira, 
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diminuído pela grandeza da árvore. Não pude 
ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça 
para a copa que cobria o quintal. Depois virou 
o corpo, olhou para trás: não havia mais 
alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um 
muro alto e sólido separava o meu canto da 
Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os 
pés descalços no aguaçal. Um homem de 
meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me 
encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse 
a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, 
uma só. O perdão. 
Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. 
Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a 
chuva e a janela, para além de qualquer ângulo 
ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois 
recuou lentamente, deu as costas e foi embora. 
(Dois irmãos, 2017, p. 196 a 198) 
 
 
 
3. ANÁLISE DA OBRA DOIS IRMÃOS 
 
“Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, 
disse Halim durante uma conversa.” (Dois Irmãos, 2017, p. 183) 
 
 
 3.1 NAEL – O NARRADOR E A MEMÓRIA 
 
Nael, o narrador de Dois irmãos, vale-se da escrita da história de 
família de Halim para encontrar sua própria identidade, restaurando, por 
meio da memória, os acontecimentos que presenciou e, principalmente, os 
que lhe foram contados por Halim, Domingas e Zana. 
A narrativa se caracteriza pelo relato fragmentado, em que o narrador 
rompe a linearidade cronológica, valendo-se da memória que tem, 
principalmente dos fatos relatados nas sinuosas conversas com Halim. 
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Ao longo de doze capítulos, a voz do narrador, um homem solitário 
e refugiado na escrita desua obra, nostalgicamente, recompõe, depois de 
trinta anos, cenas de uma infância vivida em uma casa à qual ele, na verdade, 
não pertencia oficialmente, colocado à margem da família de Halim, 
vivendo no quartinho dos fundos, juntamente com a mãe indígena 
Domingas, a qual esconde, aparentemente, um segredo. 
Adiar a escrita por trinta anos pode indicar que o distanciamento dos 
fatos altere ou modifique os entendimentos que Nael constrói da realidade 
que viveu, e a compreensão do passado fique comprometida, principalmente 
porque o Nael menino é muito diferente do Nael narrador adulto, o qual já 
teve experiências ao longo da vida, além de ser um professor que tem 
habilidades com a escrita e a criatividade. 
No entanto, algo não se altera nessas décadas: Nael ainda é o morador 
do mesmo quartinho dos fundos da extinta casa libanesa, portanto, sua 
condição de excluído, de pária social, que tenta resgatar o tempo passado, 
para encontrar o equilíbrio sonhado, se mantém, o que pode ser detectado 
em algumas das frequentes digressões presentes no livro. 
Assim, Nael é um narrador memorialista que tem a pretensa intenção 
de relatar uma versão mais ampla dos acontecimentos, mas, na verdade, 
mais importante do que contar a história da família libanesa, ele deseja 
construir-se como sujeito, buscando, na identificação de quem era seu pai, 
a sua identidade e o encontro de si mesmo. No entanto, para descobrir sua 
origem, o narrador precisa partir da história da rivalidade dos gêmeos, Yaqub 
e Omar, dois polos narrativos que representam, alternadamente, o bem e o 
mal. 
Além de narrador, Nael é também personagem dessa história, pois 
ele, no seu papel de ajudante da casa, participa, silenciosamente, de tudo o 
que acontece, ouve e vê os atritos familiares, até começar a perceber que um 
dos gêmeos poderia ser seu pai. De certa maneira, Nael prefere Yaqub como 
pai, mas a dúvida permanece e ele teme que seu pai seja Omar. 
Considerando-se que Nael reconstrói a história em um tempo muito 
posterior ao momento em que sucederam os acontecimentos e, além disso, 
é parte interessada no que narra, o relato torna-se parcial e motivo para 
duvidarmos se tudo o que ele conta está vinculado à fidelidade dos fatos ou 
manchado pelas sombras da memória e da parte interessada do narrador. 
Assim, mais do que o desejo de contar a história da família libanesa 
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em Manaus, Nael vale-se da escrita para reviver e revirar o passado e suas 
experiências traumáticas. Ele, o filho bastardo de um dos dois irmãos, 
emprega uma linguagem representativa da dor do abandono, da rejeição, da 
marginalização espacial e social, das cicatrizes que tem na alma pelo 
convívio com formas diversas de violência traumatizante: 
 
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras 
linhas. Mas as palavras parecem esperar a 
morte e o esquecimento; permanecem 
soterradas, petrificadas, em estado latente, para 
depois, em lenta combustão, acenderem em nós 
o desejo de contar passagens que o tempo 
dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, 
também é cúmplice delas. (Dois Irmãos, 2017, 
p. 183) 
 
Nael é o narrador-protagonista que manipula não só uma visão parcial 
dos fatos, a partir de seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções, 
como também da reunião de outras vozes narrativas fragmentadas ao longo 
do livro, numa espécie de caleidoscópio narrativo, que compõem os dados 
que ele obteve para gerar seu relato. 
Esse narrador ensimesmado constrói seu texto a partir da memória, 
uma justificativa factível para que o comando do relato não obedeça ao 
tempo cronológico linear. Assim, por meio de flashbacks frequentes, as 
histórias da família em ruína, da cidade de Manaus, da transformação dos 
espaços, das mudanças do cotidiano, do espaço amazonense entrelaçado 
com a cultura libanesa e a de outros imigrantes, das alterações sociais 
provocadas pelo avanço da industrialização nos anos 60 no Brasil e do 
regime militar vão sendo o motor da narrativa. 
Nael estrutura sua narrativa em partes meio desconexas que vão se 
agrupando na mente do leitor que as ordena, aparentando uma certa 
confusão mental do narrador, triste e inseguro, mas que, na verdade, traz ao 
livro uma verossimilhança com o que ocorre com a memória de qualquer 
indivíduo: lembrar dos fatos em ordem de importância, independentemente 
da cronologia deles. 
 
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É por meio dessa recuperação mental que Nael desenvolve diversas 
interrogações diretas, mas seguidas de respostas iniciadas por conectivos 
de dúvida, ou expressões que marcam um narrador ainda titubeante: 
 
Eu fui incumbido de vasculhar o centro da 
cidade; entrei nas barracas espalhadas no porto 
da praça dos Remédios, nos pequenos 
restaurantes encafuados no alto dos barrancos, 
nos botecos do labirinto da Cidade Flutuante, 
onde ele costumava papear com um compadre. 
Ninguém o avistara, e mesmo se eu o tivesse 
encontrado, não teria dito nada. Na extremidade 
do porto da Escadaria, amarrado a uma canoa, 
latia um cachorro, e babava, o vira-lata, de 
tanta agonia; dessa vez eu ri de verdade, pois a 
visão do cachorro amarrado me remetia ao 
cativo de cara inflada. Toda valentia é 
vulnerável. Halim, tão sereno, sabia disso? 
Bateu firme no rosto do filho e foi embora. Só 
voltou para casa dois dias depois. Durante as 
duas noites de cativeiro, ouvíamos os urros de 
Omar, o ruído dos pontapés inúteis no cofre 
maciço, o tilintar grave das argolas de ferro. 
Bastava um maçarico para libertá-lo, mas 
ninguém pensou nisso, muito menos eu, que 
desconhecia a existência dos maçaricos e só 
pensava, vagamente, em vingança. Mas vingar-
me de quem? (Dois Irmãos, 2017, p. 68, 69) 
 
Nael também se apresenta, em alguns momentos, como um narrador 
onisciente, com acesso livre aos pensamentos e sentimentos de outras 
personagens, compondo sua história a partir dos fragmentos da sua memória 
das vivências de outras personagens, como Halim, Domingas e Zana. 
O narrador faz das palavras dos outros as suas palavras, aplicando, 
dessa maneira, mais um filtro à realidade de diversos fatos, dos quais Nael 
não foi testemunha, o que ocorre, logicamente, apenas após o seu nascimento, 
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ou melhor, a partir da possibilidade de ele ter percepções em relação aos 
acontecimentos que vivencia e que resultarão em uma reflexão silenciosa. 
As lembranças de Nael vinculam-se ao espaço solitário do quartinho 
dos fundos, onde ele sempre viveu e, talvez, já adulto, permaneça nesse 
espaço por não querer abandonar o passado. Assim, a primeira cena do 
romance, que podemos considerar como o prefácio da obra, também está 
relacionada ao passado. Nela, percebemos a amargura de Nael e a 
inexistência de afeto familiar entre ele e Zana, matriarca da casa, com quem 
Nael é impiedoso ao se recusar a olhar para a avó à beira da morte. 
A narrativa inicia-se pela morte de Zana, que desencadeia as 
reminiscências de Nael sobre o ódio, leit motiv do romance, e que será 
revivido pelas memórias do narrador, o qual nunca se conforma em ter sido 
tratado com indiferença humilhante, principalmente por parte de Zana: 
 
“Sei que um dia ele vai voltar”, Zana me dizia 
sem olhar para mim, talvez sem sentir a minha 
presença, o rosto que fora tão belo agora 
sombrio, abatido. (Dois Irmãos, 2017, p. 9) 
 [...] 
Na velhice que poderia ter sido menos 
melancólica, ela repetiu isso várias vezes a 
Domingas, sua escrava fiel, e a mim, sem me 
olhar, sem se importar com a minha presença. 
Na verdade, para Zana eu só existia como rastro 
dos filhos dela. (Dois Irmãos, 2017, p. 28) 
 
Nael discorre a respeito de uma família destruída, revivendo seus 
pesadelos, e de outras personagens, buscando, por meio de experiências 
externas,construir sua própria história para constituir a sua identidade. 
Consciente de que um dos gêmeos era seu pai, o narrador tem clara 
sua condição de bastardo e agregado da família libanesa. Nael é filho da 
indígena Domingas, a qual, ainda menina, foi trazida por uma freira 
“Irmãzinha de Jesus”, até Zana, em troca de alguns donativos e dinheiro. 
A mãe de Nael era uma cunhantã, doada de um orfanato para, 
eufemisticamente, ajudar Zana nos trabalhos da casa libanesa. Ao se 
recordar do orfanato de sua mãe, o narrador descreve-o como uma espécie 
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de cativeiro, ou até mesmo de uma senzala, em que os tratamentos 
dispensados eram cruéis: 
 
As noites que ela dormiu no orfanato, as 
orações que tinha de decorar, e ai de quem se 
esquecesse de uma reza, do nome de uma santa. 
Uns dois anos ali, aprendendo a ler e a escrever, 
rezando de manhãzinha e ao anoitecer, 
limpando os banheiros e o refeitório, costurando 
e bordando para as quermesses das missões. As 
noites eram mais tristes, as internas não podiam 
se aproximar das janelas, tinham de ficar 
caladas, deitadas na escuridão; às oito a irmã 
Damasceno abria a porta, atravessava o 
dormitório, rondava as camas, parava perto de 
cada menina. O corpo da religiosa crescia, uma 
palmatória balançava na mão dela. Irmã 
Damasceno era alta, carrancuda, toda de preto, 
amedrontava a todos. Domingas fechava os 
olhos e fingia dormir, e se lembrava do pai e do 
irmão. Chorava quando se lembrava do pai, dos 
bichinhos de madeira que fazia para ela, das 
cantigas que cantava para os filhos. E chorava 
de raiva. Nunca mais ia ver o irmão, nunca pôde 
voltar para Jurubaxi. As freiras não deixavam, 
ninguém podia sair do orfanato. As irmãs 
vigiavam o tempo todo. Espiava as alunas da 
Escola Normal passeando na praça, livres, em 
bandos... namorando. Dava vontade de fugir. 
Duas internas, as mais velhas, conseguiram 
escapar de madrugada: pularam o muro dos 
fundos, caíram no beco Simón Bolívar e 
sumiram no matagal. Foram corajosas. 
Domingas também pensou em fugir, mas as 
irmãs perceberam, Deus vai castigar, diziam. O 
fedor dos banheiros, o cheiro de creolina, das 
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roupas suadas e gosmentas das religiosas. 
Domingas não aguentava mais. Um dia a irmã 
Damasceno ordenou: que tomasse um banho de 
verdade, lavasse a cabeça com sabão de coco, 
cortasse as unhas dos pés e das mãos. Tinha que 
ficar limpa e cheirosa! (Dois Irmãos, 2017, p. 
55, 56) 
 
Assim, Nael é filho da empregada da casa de Halim e Zana, 
imigrantes árabes e pais dos gêmeos Omar e Yaqub, mas ele não sente sua 
identidade vinculada à tradição indígena e, muito menos, à influência 
libanesa. Pesa-lhe se sentir apenas como mais um empregado de Zana, 
menino de recados dela, atormentado por ordens e tarefas que lhe são 
impostas. 
Por outro lado, Nael é o agregado da família, situação que lhe permite 
transitar pela casa, ouvir segredos, bisbilhotar intimidades que comporão 
sua narrativa. Desse modo, é mister para Nael libertar-se das humilhações 
das quais é, direta ou indiretamente, vítima, e o caminho para alcançar êxito 
é a dedicação aos estudos, tal qual o fez Yaqub. 
A configuração da família libanesa, nesse sentido, corresponde ao 
perfil familiar brasileiro da época, do qual a estrutura escravocrata dos 
séculos passados ainda se fazia presente, disfarçada na simulação da 
agregação e do favor. 
No entanto, essa condição de subalterno estimula a resistência do 
narrador, que emprega a literatura como instrumento de combate, dando voz 
aos rebaixados pela sociedade, como Domingas, os peixeiros e os populares 
de Manaus. Desse modo, Nael é solidário aos marginalizados sociais, pois 
ele também experimenta o sentimento de exclusão, já que não encontra suas 
raízes identitárias árabes ou indígenas. 
Sua miscigenação, que pode ser associada a uma forma de 
representação do homem brasileiro híbrido, equilibra-se, portanto, entre o 
referencial materno indígena e o paterno libanês. Destaque-se que Milton 
Hatoum distancia-se dos estereótipos indígenas românticos ao trazer 
Domingas para a vida de agregada da família de Halim, mas reforça o 
vínculo dela com as raízes e as tradições de sua tribo. 
Embora durante uma viagem que o narrador faz com a mãe para 
conhecer as origens dela, ele não se identifique como fruto da cultura 
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indígena, é por meio desse passeio que Nael consegue perceber a 
importância da origem familiar e, portanto, parte para a busca incessante 
do encontro de sua identidade. 
Ser filho de uma cunhatã expressa, por um lado, a negação de Nael 
de sua origem, já que reforça nele a condição de vítima da sociedade 
segregacionista, e, por outro lado, a origem árabe lhe pesa a perspectiva de 
bastardo. 
Há um momento em que as duas origens de Nael se aproximam: 
quando Domingas morre, ele pede que a mãe seja sepultada ao lado do avô 
Halim. O imigrante libanês e a mãe indígena, ambos distantes de suas terras 
natais, ficam próximos no momento que iguala todo ser humano: a morte. 
O nome Nael lhe foi dado como uma homenagem ao pai de Halim, 
portanto bisavô do narrador. De acordo com Safa Jubran, professora da 
Universidade de São Paulo no Departamento de Letras Orientais, o nome 
Nael vincula-se ao verbo naala, que significa obter ou pegar, verbos que 
podem ser associados ao desejo do narrador de obter respostas para “pegar” 
sua origem paterna. 
Embora Nael seja alvo de preconceitos sociais e raciais, além de 
carregar o trauma de não ter sido reconhecido pelo pai, ele se revela 
incansável na busca de respostas para o silêncio de Domingas quanto a quem 
seria seu pai: Omar, o mimado e farrista, que ignorou, desprezou e maltratou 
Nael, ou Yaqub, o gêmeo engenheiro, bem-sucedido, que tratava o narrador 
com carinho, mas era incapaz de perdoar? 
Independentemente de Nael não descobrir qual dos gêmeos seria seu 
pai, percebe-se que ele renuncia à elucidação do mistério da origem de sua 
identidade, ao perceber que tanto Omar quanto Yaqub pautaram suas vidas 
em ódio, rancor e vingança, sendo gêmeos idênticos em luta constante pela 
conquista do mesmo espaço no coração da mãe, Zana, e também no de 
Lívia. 
Além disso, destaque-se a possibilidade de Nael ser fruto de um 
estupro, uma vez que Omar invadiu o quarto de Domingas e a tomou 
sexualmente à força, talvez motivado pelos ciúmes que tinha da intimidade 
dela com Yaqub. Justamente essas intimidades que a mãe tem com Yaqub, 
e o tratamento que ele dispensa ao narrador, também levam a uma suspeita 
de que ele pudesse ser o pai de Nael. E por que não seria Halim seu pai, já 
que dá atenção, carinho e faz conidência a Nael? 
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Deixemos essa suspeita sobre Halim de lado e nos fixemos no que 
Nael desconfia: um dos gêmeos é seu pai. O narrador apresenta alguns 
traços que podem ser vinculados aos dois gêmeos. Yaqub presenteia Nael 
com livros, estimulando-o na busca pelo conhecimento, mas é na mesma 
escola de Omar, o “Galinheiro dos vândalos”, que o narrador tem contato 
com a importância da literatura, por meio do professor Laval, amigo de 
Omar; a relação de Yaqub com Domingas tem um resquício incestuoso, uma 
vez que ela praticamente o criou, tal qual a relação entre Omar e Zana e o 
afeto incestuoso que Nael também nutre por sua tia Rânia. 
Assim, desconsiderando-se outras aproximações que podem ser 
estabelecidas entre Nael e os gêmeos, percebe-se o reflexo de Omar e Yaqub 
na formação do narrador, o qual finda por se libertar da expectativa de 
descobrir qual deles seria seu pai, ao perceber que não poderia se espelhar 
no comportamento de qualquer um deles, uma vez que não é um 
desequilibrado violento como Omar, nem o homem de postura 
aparentemente ilibada,que age pelas costas do irmão e da família, como é 
Yaqub. 
Resta a Nael o afeto de Halim, o qual desabafava suas amarguras com 
o neto e nele sente confiança para fazê-lo. Essa relação de cumplicidade 
que o narrador tem com o avô é inexistente nas demais personagens do 
romance. 
Para um neto bastardo, não reconhecido como da família, que vive na 
fronteira entre a casa e o quartinho dos fundos, essa intimidade lhe dá uma 
certeza: fosse quem fosse seu pai, Nael era um membro excluído da família 
por sua origem duvidosa. Restava-lhe o desabafo por meio da escrita, a qual, 
indiretamente, foi estimulada por Halim quando lhe presenteou com uma 
caneta tinteiro, como se dissesse para o narrador, no futuro, registrar o 
passado perdido no tempo: “O futuro, essa falácia que persiste” (Dois 
Irmãos, 2017, 196). 
 
3.2 ESPAÇO E TEMPO 
 
O período histórico do enredo do romance Dois irmãos percorre o 
final do Ciclo da Borracha, a Segunda Guerra Mundial, a tomada da cidade 
de Manaus pelo regime militar, com o Golpe de 1964, e o vislumbre com a 
criação da Zona Franca de Manaus, em 1967. 
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Em Dois irmãos, a chegada da família libanesa ocorre no início do 
século XX, por volta de 1914, ocasião em que Galib inaugurou o restaurante 
Biblos, e se prolonga até pouco tempo depois do golpe militar em 1964. 
Desde a fase da borracha até a implantação da Zona Franca de 
Manaus, o desenvolvimento da capital manauara colaborou paradoxalmente 
com as diferenças socioeconômicas da população amazonense, que, em 
grande parte, migrou do interior para a capital em busca de uma espécie de 
ouro perdido. 
 Manaus encontrava-se repleta de trabalhadores esperançosos: 
indígenas, seringueiros, caboclos, imigrantes de todos os espaços, 
principalmente os sírio-libaneses, em busca de melhores condições de vida, 
todos colaborando para a constituição de um painel multicultural na capital 
amazonense. 
Os sírios e os libaneses, por exemplo, instalam-se em Manaus, 
fugindo da perseguição religiosa e do empobrecimento, trazendo para a 
cidade uma ampliação da diversidade cultural, incluindo perspectivas 
históricas, literárias, religiosas, musicais e gastronômicas no local. Depois 
de se instalarem em quartos das vilas do centro da cidade, os mascates 
libaneses mudaram-se para as proximidades do Mercado Central, onde 
abriram armarinhos, lojas de tapeçarias, tecidos e rendas em prédios que 
serviam tanto para o comércio quanto para a moradia. 
Em Dois Irmãos, assim que Galib inaugura o restaurante, no andar 
térreo da mesma edificação onde morava, o Biblos passa a ser uma espécie 
de ponto de encontro de imigrantes e moradores locais: 
 
Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava 
a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um 
véu de tule para evitar o sol abrasador. No 
Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um 
tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com 
farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e 
servia-o com molho de gergelim. Entrava na 
sala do restaurante com a bandeja equilibrada 
na palma da mão esquerda; a outra mão 
enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de 
mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água 
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gasosa, vinho. O pai conversava em português 
com os clientes do restaurante: mascates, 
comandantes de embarcação, regatões, 
trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a 
inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro 
de imigrantes libaneses, sírios e judeus 
marroquinos que moravam na praça Nossa 
Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a 
rodeavam. Falavam português misturado com 
árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia 
surgiam histórias que se cruzavam, vidas em 
trânsito, um vaivém de vozes que contavam um 
pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num 
povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, 
lembranças remotas e o mais recente: uma dor 
ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda 
coberta de luto, a esperança de que os caloteiros 
saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, 
fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, 
adiando a sesta. (Dois Irmãos, 2017, p. 36) 
 
De acordo com Sombra (1996, p. 91), a paisagem urbana de Manaus 
alterava-se, e a cidade distanciava-se de suas características indígenas, 
aterrando os igarapés para a construção de avenidas, sobrados, palacetes, 
belos hotéis, o pomposo Teatro Amazonas, o Porto Flutuante de Manaus, a 
Alfândega, a Igreja Nossa Senhora dos Remédios, a biblioteca pública, o 
Palácio Rio Negro, o Colégio Amazonense D. Pedro II. 
 Muitos arquitetos, urbanistas e paisagistas iniciaram a execução de 
um novo plano visual para a cidade, influenciados pela arquitetura europeia, 
entre os estilos neoclássico e art nouveau. No meio da selva, Manaus 
ganhava luz elétrica, sistema telefônico, ruas, calçadas, galerias fluviais, 
tratamento de água e esgoto, bondes elétricos, avenidas e praças urbanizadas 
e o primeiro porto flutuante brasileiro. 
Culturalmente, os hábitos também sofriam alterações, e os bens de 
consumo e a forma de sociabilidade se modificavam, espelhando os saraus 
europeus em família (semelhantes às reuniões que ocorriam na casa de 
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Halim e Zana ou dos Reinoso em Dois Irmãos), os cabarés, o cinema, e o 
Teatro Amazonas. No entanto, a exclusão social já se fazia notar. 
Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em 
decorrência de um acordo entre Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, o 
Brasil se comprometeu com auxílio aos países aliados, Estados Unidos, 
Inglaterra e França, com o fornecimento de, no mínimo, 5.000 toneladas de 
borracha anuais, a fim de se substituir a produção da Malásia, a essa altura 
sob o domínio japonês. 
O empobrecimento econômico manauara, então, se registrava nas 
carroças e nos raros automóveis que circulavam na cidade, que sofria com 
falta de eletricidade, alimentos que escasseavam e prática comercial, que se 
dava a partir de trocas de produtos. Assim, o mercado norte-americano 
passou a ser indispensável para a economia de Manaus, como destaca 
Milton Hatoum em Dois Irmãos: 
 
(...) Fora assim durante os anos da guerra: 
Manaus às escuras, seus moradores 
acotovelando-se diante dos açougues e 
empórios, disputando um naco de carne, um 
pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia 
racionamento de energia, e um ovo valia ouro. 
Zana e Domingas acordavam de madrugada, a 
empregada esperava o carvoeiro, a patroa ia ao 
Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas 
passavam a ferro, preparavam a massa do pão, 
cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim 
comprava carne enlatada e farinha de trigo que 
os aviões norte-americanos traziam para a 
Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido 
encalhado: morim ou algodão esgarçado, renda 
encardida, essas coisas. (Dois irmãos, 2017, p. 
18) 
 
No entanto, Manaus começa a enfrentar problemas com o término da 
Segunda Guerra Mundial, e os programas para o desenvolvimento da 
Amazônia precisavam alterar a exclusividade extrativista da borracha para 
o desenvolvimento das indústrias e da mineração. 
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A “Paris dos trópicos”, ou “Paris das selvas”, inicia seu declínio, pois 
a riqueza decorrente da extração do látex diminui, e, consequentemente, 
grande parte do capital estrangeiro e dos barões da borracha começa a 
desaparecer. Eis Manaus empobrecida e com a economia estagnada. 
Um dos símbolos dessa decadência manauara é a Cidade Flutuante, 
composta de ribeirinhos que viam Manaus repleta de grandes dificuldades 
no campo de trabalho, na alimentação de acesso escasso e nas submoradias. 
Formada por casas de palafitas, barracas e palhoças, os habitantes da Cidade 
Flutuante dependiam das águas do rio e dos igarapés para sobreviverem. A 
decadência da belle époque manauara exigiu uma forte mudança no modo 
devida até então estabilizado pelo Ciclo da Borracha. 
Desta forma se configurava Manaus, até a derrocada do ciclo da 
borracha que abala profundamente sua economia e os costumes locais, como 
relata Mello (1984, p. 27): 
 
Era o fim da grande vida. Do dia para a noite, 
se foram acabando o luxo, as ostentações, os 
esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo 
trabalho praticamente escravo do caboclo 
seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou 
bruscamente a construção dos grandes 
sobrados portugueses, dos palacetes 
afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. 
Não se mandou mais buscar mármores e 
azulejos na Europa, ninguém acendia mais 
charutos com cédulas estrangeiras. 
 
Entre 1950 e o início dos anos de 1960, Manaus vive uma fase de 
economia estagnada, ficando à deriva governamental, crise que fez empresas 
falirem, a fome se instalar e a saída pelo porto se intensificar. Por outro 
lado, a cultura no país experimentava transformações com sistemas de rádio, 
a chegada da televisão, o cinema hollywoodiano, os musicais e os bailes de 
carnaval. 
Por outro lado, Manaus era mais um aglomerado urbano, com cerca 
de 100 mil habitantes, do que uma cidade grande e desenvolvida como já o 
era São Paulo, sendo o crescimento desordenado de ambas as cidades um 
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dos causadores das condições de vida desigual. Nael, o narrador de Dois 
Irmãos, por exemplo, é consciente de ser um excluído nessa sociedade, pois 
lhe fora reservado um lugar secundário nela, representado pelo quartinho 
dos fundos da casa libanesa onde residia: 
 
Depois da nossa viagem de barco Halim sugeriu 
que eu ocupasse o outro quartinho dos fundos. 
Disse a Domingas que eu já passara da idade 
de dormir com a mãe no mesmo quarto, que ela 
devia se desgarrar um pouco de mim. Eu mesmo 
ajudei a limpar e a pintar o quartinho. Desde 
então, foi o meu abrigo, o lugar que me pertence 
neste quintal. Agora só escutava o eco da 
canção que minha mãe cantava nas noites de 
insônia. Às vezes, quando eu estava estudando 
debruçado sobre uma mesinha, via o rosto de 
Domingas no vão da janela, o cabelo liso, de 
cobre, sobre os ombros morenos, os olhos 
dirigidos para mim, como se me pedisse para 
dormir com ela, na mesma rede, nós dois 
abraçados. Quando eu saía à noite pela cerca 
dos fundos, ela me esperava, alerta, tal uma 
sentinela preocupada com alguma ameaça 
noturna. Ela temia que o meu destino confluísse 
para o de Omar, como dois rios indômitos e 
turbulentos: águas sem nenhum remanso. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 23, 24) 
 
O final da década de 1950, no Brasil, marca-se pela euforia de 
crescimento estimulada, principalmente por Juscelino Kubitschek e seu 
Plano Nacional de Desenvolvimento, Cinquenta anos em cinco, com o 
propósito de alavancar o país ao patamar de nação desenvolvida. Mas, em 
Manaus a situação era diferente: modernizada tardiamente a cidade sofria 
com a falta de políticas públicas nacionais e sobrevivia à sombra das 
grandezas naturais do rio e da floresta. 
Em abril de 1964, Manaus conhece o medo e o clima de horror do 
regime militar, que impõe uma nova ordem política ao país. As 
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manifestações em contrário à nova forma de governo brasileiro encontram 
alguns ativistas em prol da liberdade, sendo, na obra Dois Irmãos, o 
professor Laval um símbolo do inconformismo com o estado limitador da 
censura imposta aos brasileiros. 
A chegada dos militares a Manaus alterou drasticamente o cenário da 
cidade, transformando-a num local repleto de repressão e medo: 
 
Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade 
ocupada. As escolas e os cinemas tinham sido 
fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a 
baía do Negro, e as estações de rádio 
transmitiam comunicados do Comando Militar 
da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja 
porque a greve dos portuários terminara num 
confronto com a polícia do Exército. Halim me 
aconselhou a não mencionar o nome de Laval 
fora de casa. Outros nomes foram emudecidos. 
A tarja preta que cobria uma parte da fachada 
do liceu fora arrancada e as portas do prédio 
permaneceram trancadas por várias semanas. 
(Dois Irmãos, 2017, p. 149). 
 
Embora a repressão fosse a ordem do dia no país, a economia de 
Manaus começava a apresentar melhoras, e a chegada da Zona Franca, em 
1967, abriu cerca de 40.000 postos de emprego para suprir a necessidade de 
mão de obra das indústrias de montagem e acabamento, alterando espaços 
ocupados anteriormente por belos sobrados, agora transformados em centros 
comerciais, como aconteceu com a casa da família de Halim, que deu lugar 
para a Casa Rochiram, que vendia produtos importados. 
As empresas se localizaram em espaços urbanizados com a assessoria 
do governo do Amazonas para a instalação no chamado Distrito Industrial. 
Como as indústrias não dependiam do extrativismo, a mão de obra barata 
dos nativos e imigrantes era suficiente para o sucesso da Zona Franca. 
Com a industrialização, os bairros antigos foram destruídos, muitas 
transformações mudaram o perfil manauara, a miserabilidade indígena, de 
seus descendentes e dos trabalhadores portuários foi crescente, a rigidez dos 
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militares era intensa e a atividade de imigrantes estrangeiros, descontrolada. 
A violência e a destruição eram constantes e a população assistia a tudo 
desolada: 
 
(...) Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade 
Flutuante. Os moradores xingavam os 
demolidores, não queriam morar longe do 
pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a 
cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas 
serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava 
uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo 
isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os 
policiais impediam a entrada no bairro. Ele 
ficou engasgado, e começou a chorar quando 
viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do 
Rio, serem desmantelados a golpes de machado. 
Chorou muito enquanto arrancavam os 
tabiques, cortavam as amarras dos troncos 
flutuantes, golpeavam brutalmente os finos 
pilares de madeira. Os telhados desabavam, 
caibros e ripas caíam na água e se distanciavam 
da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, 
o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram 
flutuando, até serem engolidos pela noite. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 158, 159) 
 
Dois irmãos registra uma parte da história de Manaus, a memória 
coletiva da cidade, sua cultura híbrida e as relações interculturais entre as 
religiões, gastronomia, línguas e valores, convivendo com os avanços da 
modernidade e das alterações políticas, sociais e econômicas. 
A transição da cidade, de seus dias de glória e de estabilidade 
econômica para o declínio e destruição de valores naturais, é metaforizada 
na casa libanesa de Halim. Enquanto Manaus é o macroespaço da narrativa, 
a casa é um microespaço, em que se refletem os conflitos e os valores 
manauaras entrelaçados à influência libanesa, numa mesma trajetória do 
apogeu à modernização da história manauense. 
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Os tempos de riqueza, proporcionados pelo Ciclo da Borracha, estão 
representados na casa dos Reinosos, chamada pelo narrador de palácio em 
decorrência da ostentação e do luxo, que se transforma, depois, na 
representação da elite decadente de Manaus. 
A reforma da loja de Halim, por exemplo, registra a nova identidade 
de Manaus, já que Rânia passa a comercializar produtos modernos no lugar 
das mercadorias antigas que o pai amava, numa espécie de descaracterização 
da loja que representa a decadência familiar pela perda de suas origens e o 
consequente crescimento dos confrontos que conduzem ao desmoronamento 
da Casa, agora em seu sentido de Família. 
A chegada do indiano Rochiram simboliza a entrada do capitalismo 
selvagem emManaus e a conversão dos valores importantes das amizades 
sinceras e da honestidade em peças de um jogo de interesses inescrupulosos 
e egoístas do investidor sem limites. Assim como o falso inglês Wyckhan, 
um contrabandista, Rochiram representa a política econômica de 
exploração, dominação e injustiça do sistema econômico capitalista, que 
desconstrói as relações sociais e afetivas. 
Desse modo, Manaus não é só o espaço geográfico em que o enredo 
de Dois irmãos circula, mas se torna uma personagem que movimenta a 
vida de todas as camadas sociais manauaras, influenciando a vida das 
personagens e, também, sendo influenciada pelos movimentos delas. 
A chegada da industrialização e a transformação de uma Manaus 
plural antiga em uma desordenada capital trazem o questionamento em 
relação ao atraso e ao progresso da realidade do Norte do Brasil, que, se 
comparado ao Sul do país, representado pelo progresso da cidade de São 
Paulo e pela construção de Brasília, construída com o esforço árduo de 
brasileiros trabalhadores, registram o descaso com as reais necessidades de 
Manaus: uma cidade empobrecida e sem a devida importância no cenário 
nacional. 
Enquanto em Brasília o progresso era galopante, 
 
Noites de blecaute no norte, enquanto a nova 
capital do país estava sendo inaugurada. A 
euforia, que vinha de um Brasil tão distante, 
chegava a Manaus como um sopro amornado. 
E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, 
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dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos 
longe da era industrial e mais longe ainda do 
nosso passado grandioso. Zana, que na 
juventude aproveitara os resquícios desse 
passado, agora se irritava com a geladeira a 
querosene, com o fogareiro, com o jipe mais 
velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e 
fumegava. (Dois Irmãos, 2017, p. 96) 
 
Em Dois Irmãos, Manaus, desintegrada do vertiginoso progresso de 
São Paulo e Brasília, torna-se um cenário de ruínas e da passagem do tempo. 
Assim, Yaqub, ao se mudar para São Paulo, foge do atraso e do passado, 
enquanto Omar permanece no espaço amazônico que vai sendo devastado, 
tal como a vida do Caçula. 
Omar mantém por toda sua vida uma rotina de desleixo, 
irresponsabilidade e algazarras, sem perspectiva de evolução ou crescimento 
reais, pois vive na dependência dos pais, assim como Manaus, 
originalmente, um espaço de riquezas, não consegue independer-se do 
domínio que lhe é imposto. 
Já Yaqub, deslumbrado com a ideia de futuro promissor por meio dos 
estudos, muda-se para a grande metrópole paulistana e rende-se ao mundo 
capitalista frenético. Em suas cartas, o gêmeo mais velho descreve a cidade 
de São Paulo como o espaço da prosperidade e, desse modo, parece defender 
o ritmo acelerado de mudanças em Manaus, com a implantação do projeto 
de industrialização e, até mesmo, parece nutrir uma certa simpatia ao regime 
militar, divergindo do pai Halim, arruinado ao assistir às mutilações 
impostas à capital amazônica. 
Mas, mesmo distante de sua terra de origem, Yaqub encontra na 
capital paulista um elemento que o vincula a Manaus: uma seringueira 
semelhante à do seu quintal, em que Omar subia destemido. O olhar para a 
árvore estabelece em Yaqub um estranhamento com a metrópole, ao mesmo 
tempo que o familiariza com ela. 
A imagem da seringueira amazônica percorre praticamente todo o 
livro Dois Irmãos: na infância dos gêmeos, no lugar em que Halim plantava 
suas ervas do Oriente, no leito de que ela servia para momentos amorosos 
do casal libanês, no sacrifício do carneiro que era nela dependurado para 
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depois servir de refeição, no canto do urumutum, na tentativa de alívio da 
coceira de Omar decorrente da doença venérea, no espaço de refúgio do 
Caçula e na derrocada da família, da qual toda riqueza é extraída, restando, 
no entanto, apenas a velha seringueira rodeada pelas quinquilharias da Loja 
Rochiram. 
A árvore secular, muito além de ser um referencial da natureza 
amazônica, é símbolo de enraizamento da família de Halim em Manaus e 
estende-se a São Paulo, para que Yaqub não se esqueça de suas origens, 
mesmo tendo escolhido viver no espaço urbano. 
Tanto a transformação da casa libanesa, de arquitetura elegante e 
tradicional, na loja indiana, com suas vitrines exibindo produtos vindos de 
Miami e do Panamá, quanto a destruição da Cidade Flutuante representam 
a devastação e a imposição dos valores ditos modernos a Manaus, uma 
cidade edificada por seringueiros e indígenas, em meio à construção de 
conjuntos populacionais para os trabalhadores de baixíssima renda, com 
precário saneamento básico, rodeada por maus odores e de crescimento 
desorganizado. 
O caminhar de Nael por Manaus é o instrumento de que se vale 
Milton Hatoum para ilustrar a cidade, numa espécie de mapeamento 
geográfico local, cercada pelas águas do Rio Negro presente na maioria das 
lembranças de Nael, Domingas e Halim, que remetem ao rio de Heráclito, 
metáfora da passagem de um tempo que não volta mais, tal como a água 
que corre e não regressa. 
Durante a viagem de barco no rio Negro, que Nael faz com a mãe, ela 
vincula a contemplação da paisagem com suas memórias do passado, tal 
qual faz Halim, que também se vale das águas para resgatar suas lembranças 
e relatá-las ao narrador. A imagem da água é um referencial para a trajetória 
da família, simbolizando a vida positiva inicial em terras amazônicas até o 
desmoronamento dos laços que uniam, de certo modo, todos os que viviam 
ao redor da casa libanesa. 
Também está a água associada à história de Manaus, desde o registro 
do cheiro desagradável da Cidade Flutuante, em contraste à beleza 
exuberante dos rios e da floresta amazônica, até a paisagem lodosa da zona 
portuária com árvores apodrecendo (tal qual a podridão imposta àqueles 
que estão à margem da sociedade manauara elitizada), e a invasão militar em 
meio a um terrível aguaceiro que cai sobre a cidade manauara. 
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Assim, há, na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, duas Manaus: a 
real, passando por diversas mudanças de ordem econômica, social e política, 
e a imaginária, fruto das leituras subjetivas que o narrador faz desse espaço. 
Além disso, podemos vincular a capital manauara à casa da família de 
Halim: ambas vão de tempos de glória ao declínio, das tradições culturais 
nativas às alterações impostas pelo mundo capitalista. Dois espaços e uma 
mesma sina. 
 
3.3 OS HOMENS EM DOIS IRMÃOS 
 
 
Halim é marido de Zana e pai de Yaqub, Omar e Rânia. Ele é 
responsável pela manutenção da história da família de imigrantes libaneses, 
sendo suas lembranças registradas pelo narrador Nael. Homem apaixonado 
pela esposa, suas emoções representam por extensão os sentimentos dos 
imigrantes deslocados de suas terras natais. 
Admirador de música e poesia, Halim fora mascate pelas ruas de 
Manaus até casar-se com Zana, filha de Galib, proprietário do restaurante 
Biblos, que, após a morte do pai, converte-se na loja e residência da família 
libanesa. 
Halim, homem simples, de ambições reduzidas e sem a firmeza típica 
do tradicional libanês chefe patriarcal da família, era apaixonado por Zana 
e não desejava filhos para que eles não tirassem a esposa de seu convívio 
inseparável, mas, por exigência dela, o casal acaba tendo três crianças: os 
gêmeos Yaqub e Omar e Rânia: 
 
Os filhos haviam se intrometido na vida de 
Halim, e ele nunca se conformou com isso. No 
entanto, eram filhos, e conviveu com eles, 
contava-lhes histórias, cuidava deles em 
momentos esparsos. Levava-os para pescar no 
lago do Puraquecoara, e remavam no paraná 
do Cambixe, onde Halim conhecia criadores de 
gado, donos de fazendolas. Foi o que se poderia 
chamar de pai, só que um pai consciente de que 
os filhos tinham-lhe roubado um bom pedaço de 
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privacidade e prazer. Anos depois, iriam 
roubar-lhe a serenidade e o bom humor. Ele 
advertia a esposa sobre o excesso de mimo com 
o Caçula, a criança delicada que por pouco não 
morrera de pneumonia. (Dois Irmãos, 2017, p. 
53) 
 
Como o Caçula apresentou problemas de saúde ainda muito pequeno, 
Zana passou a se dedicar aos cuidados dele, o que acabou se convertendo em 
um relacionamento moldado na posse e no ciúmes de ambas as partes, o 
que Halim não compreendia, mas se conformava, como romântico tardio e 
paciente que era e, por isso, fora capaz de abdicar de qualquer coisa pelo 
profundo amor que sentia por Zana, a real comandante da casa. 
Halim passa a ver Omar como uma espécie de ladrão que furtava dele 
a atenção de Zana. Não bastando os excessivos zelos da mãe pelo Caçula, 
o comportamento inconsequente e mimado dele irritava imensamente o pai, 
intensificando-se a rivalidade entre ambos. 
As decepções vividas em casa eram atenuadas pelos longos e 
solitários passeios de Halim pela orla portuária de Manaus, sempre parando 
em alguma taberna para tomar algo e petiscar, com pescadores, carroceiros, 
carregadores. Halim é um errante, que se ausenta de casa frequentemente em 
busca das memórias passadas de sua terra natal e de uma identidade alterada 
pela imposição do domínio afetivo que Omar tem da mãe. 
É o afeto que tem por Nael que, de certo modo, supre as deficiências 
sentimentais de Halim. Com o neto bastardo, ele desabafa e passeia, 
rememorando o passado, suas tormentas e lamentações. Dessa maneira, o 
narrador tem acesso às informações mais preciosas da vida da família 
libanesa e das histórias envolvendo Yaqub, Omar, Galib, Cid Tannus e outras 
personagens. O que Halim não conta acaba sendo preenchido na narrativa 
por informações que o narrador obtém por meio de Domingas e Zana, ou 
pela própria imaginação que lhe permite criar alguns fatos. 
Halim é um “contador de casos”, reais ou imaginados, oral, que acaba 
estimulando Nael a ser o contador de histórias por meio da escrita, que, de 
certa maneira, foi indicada a ele quando o avô o presenteou com uma caneta 
tinteiro. 
Já Yaqub, o gêmeo mais velho, é um homem sério, dedicado aos 
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estudos, enigmático aos olhos do narrador, inteligente, de atitudes 
comedidas e secretas. Desde a infância, Yaqub é ofuscado pelo 
comportamento impetuoso e ousado do irmão Omar, o Caçula, idêntico 
fisicamente, mas díspar, até certo ponto, de Yaqub. 
Preterido pela mãe em favor de Omar, Yaqub é solitário e silencioso 
como o pai Halim, comportamentos intensificados após ele ter sido enviado 
ao Líbano pelos pais, numa tentativa de se evitarem maiores conflitos entre 
os gêmeos depois do episódio que resultou na cicatriz no rosto de Yaqub, 
provocada por uma garrafada que Omar lhe deu num acesso de ciúmes ao 
ver Lívia dando um beijo no rosto do irmão. 
Ao retornar do Líbano, aos dezoito anos de idade, Yaqub é um 
estranho para o pai e um rude para a mãe. Além disso, a separação de Omar 
por cinco anos se encarregou de aumentar mais a rivalidade entre os gêmeos, 
contrariando as expectativas de Halim e Zana. 
Yaqub é uma releitura às avessas do mito de Ulisses, ou Odisseu, do 
poema épico Odisseia, o qual se distanciou por dez anos de Ítaca e, ao voltar, 
encontrou Penépole, sua esposa, aguardando fiel e obstinadamente o seu 
retorno, o que não ocorre com Yaqub, que, de certa forma, continua sendo 
o rejeitado pela mãe e sem identificação com um lugar para onde voltar. 
A história de Yaqub e Omar também pode ser vinculada à parábola 
bíblica do Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), que conta a história de um pai e 
dois filhos. Em certa ocasião, o filho mais novo solicitou ao pai que lhe 
desse sua parte na herança, partindo para terras distantes, onde gastou todos 
seus bens em atividades pecaminosas e inconsequentes, sem nenhuma 
preocupação com o futuro. O dinheiro findou e o filho mais novo passou a 
viver como um mendigo. Desesperado e arrependido, ele voltou à casa do 
pai e foi recebido por ele com festa, já que o filho retornara ao lar. No 
entanto, o irmão mais velho não aceitou a volta do pródigo por ter sido 
desleal à família, ao contrário dele. 
Em Dois Irmãos, o filho expatriado é Yaqub, o mais velho, ao 
contrário da parábola bíblica, mas é Omar, o mais novo, que se mantém em 
Manaus e gasta o dinheiro da família na esbórnia, sem nenhum sinal de 
arrependimento pelo que faz. Além disso, no retorno de Yaqub, há uma 
rápida recepção para ele na casa libanesa, mas o destaque da festa é Omar, 
o qual não é visto pela mãe como o filho pródigo, denominação que, para 
ela, seria mais pertinente a Yaqub. 
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Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, o gêmeos continuam, por toda 
a vida, disputando o espaço de privilégio no coração da mãe e, frente à 
impossibilidade de solução desse impasse, Yaqub, um estrangeiro em seu 
próprio lar, decide ir para São Paulo, onde estuda e conquista uma sólida 
carreira profissional na engenharia, fruto de sua grande habilidade com a 
Matemática. 
No entanto, a ida de Yaqub para São Paulo representa não só o 
interesse dele pela modernização em troca do provincianismo manauara, 
mas, também, sua rejeição de participar do núcleo familiar dominado por 
Omar e, ainda, a possibilidade de vingança dele de provar para a família 
sua capacidade de independência e sucesso econômico e profissional: 
 
Um outro Yaqub, usando a máscara do que 
havia de mais moderno no outro lado do Brasil. 
Ele se sofisticava, preparando-se para dar o 
bote: minhoca que se quer serpente, algo assim. 
Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a 
folhagem. Por fora, era realmente outro. Por 
dentro, um mistério e tanto: um ser calado que 
nunca pensava em voz alta. (Dois Irmãos, 2017, 
p. 45) 
 
Yaqub enviava, frequentemente, presentes para a família numa 
demonstração do carinho que tinha para com os seus, preocupado com uma 
melhor qualidade de vida deles, mas, por outro lado, a meu ver mais 
importante, era uma forma de ele exibir sua prosperidade, comprovando ser 
superior a Omar, o filho querido de Zana. 
Na verdade, o ressentimento vivido por Yaqub nunca será resolvido 
por ele, principalmente se considerarmos o espírito vingativo do gêmeo mais 
velho direcionado, principalmente, a Omar, mas também à família e, 
principalmente a Omar, quando moderniza, juntamente com Rânia, o 
comércio de Halim, destruindo anos de dedicação do pai ao trabalho que 
amava, e ao negociar a casa da família libanesa com Rochiram, o indiano 
inescrupuloso. 
A garrafada que Omar deu no rosto do irmão na adolescência 
provocou mais do que a cicatriz física no rosto de Yaqub: deixou-lhe na 
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face esquerda uma marca que cresceu na alma do gêmeo mais velho, 
transformando-o em um homem capaz de fazer qualquer coisa para se 
vingar de Omar e de Zana. 
O Caçula é apresentado por meio das avaliações feitas por outras 
personagens e pelo olhar de Nael que, embora preferisse ser filho de Yaqub, 
acredita muito em que Omar seja seu pai em decorrência de ele ter 
violentado sexualmente Domingas. 
Enquanto Yaqub posa de farda e impressiona a todos no desfile de 
Sete de Setembro, Omar é quase um ogro, selvagem sempre deitado na rede, 
importunando sexualmente as mulheres da casa e aventurando-se com 
outras na rua e nas festinhas manauaras: 
 
Já Omar era presente demais: seu corpo estava 
ali, dormindo no alpendre. O corpo participava 
de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia 
da farra noturna. Durante a manhã, ele se 
esquecia do mundo, era um ser imóvel, 
embrulhado na rede. No começo da tarde, rugia, 
faminto, bon vivant em tempo de penúria. Era, na 
aparência, indiferente ao êxito do irmão. Não 
participava da leitura das cartas, ignorava o 
oficial da reservae futuro politécnico. No 
entanto, mangava das fotografias expostas na 
sala. “Um lesão com pinta de importante”, ele 
dizia, e com uma voz tão parecida com a do 
irmão que Domingas, assustada, procurava na 
sala um Yaqub de carne e osso. A mesma voz, a 
mesma inflexão. Na minha mente, a imagem de 
Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de 
Omar. Neste habitavam os gêmeos, porque Omar 
sempre esteve por ali, expandindo sua presença 
na casa para apagar a existência de Yaqub. 
Quando Rânia beijava as fotos do irmão ausente, 
Omar fazia umas macacadas, se exibia, era um 
contorcionista tentando atrair a atenção da irmã. 
Mas a lembrança de Yaqub triunfava. As 
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fotografias emitiam sinais fortes, poderosos de 
presença. Yaqub sabia disso? Sempre com a 
expressão altaneira, o cabelo penteado, o paletó 
impecável, as sobrancelhas grossas e arqueadas, 
e um sorriso sem vontade, difícil de compreender. 
O duelo entre os gêmeos era uma centelha que 
prometia explodir. (Dois Irmãos, 2017, p. 46) 
 
De comportamento agressivo, Omar é retratado como o corajoso, 
desafiador de perigos, chamando os “curumins” para a briga, atacando o 
professor Bolislau, desferindo a garrafa quebrada no irmão, enfrentando o 
regime militar na defesa do professor Laval. 
Mas suas principais audácias foram levar Dália para casa e envolver-
se com a Pau-Mulato, desafiando a mãe, a qual não admitia que o Omar (e 
também Yaqub, tanto que ele se casa às escondidas da família, 
principalmente por ter escolhido para esposa Lívia, o estopim da discórdia 
entre os gêmeos, mas não a única responsável por ele) saísse de casa para 
morar com uma mulher. 
O Caçula impetuoso, no final da narrativa, encontra-se sozinho e 
silencioso, abandonando-se ao destino que ele buscou e para o qual não 
estava definitivamente preparado por causa dos mimos e proteções que a 
mãe lhe oferecia. Com Zana morta, Omar torna-se um homem sem rumo e 
volta a ser uma criança fragilizada como o fora ao nascer. 
Embora ele peque intensamente com seu comportamento 
inconsequente, e também vingativo em relação ao irmão Yaqub, cabem aqui 
dois ligeiros questionamentos sem resposta única: Há realmente diferenças 
comportamentais definidas entre os dois irmãos vingativos que se odeiam? 
Qual dos gêmeos é o vilão da história? Mais uma ambiguidade que marca 
a narrativa de Milton Hatoum ao lado da que parece ser o dínamo do livro: 
quem é o pai de Nael? 
 
 
3.4 AS MULHERES EM DOIS IRMÃOS 
Na cultura árabe, o mando familiar centra-se na figura de um pai e, 
no caso da ausência dele, de um irmão mais velho, homens provedores da 
casa a quem se deve obediência e respeito. Assim, as mulheres, 
normalmente, têm suas vidas sob a dominação masculina, à qual são 
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resignadas, conforme é determinado pelo livro sagrado da religião islâmica, 
o Alcorão. 
No entanto, no romance Dois Irmãos, encontramos uma ruptura dessa 
tradição na casa do libanês Halim: Zana, a matriarca da família, é quem 
detém todo o poder de mando sobre tudo e todos à sua volta, invertendo as 
tradições árabes no que concerne ao papel social feminino. 
 
Órfã de mãe, Zana saiu do Líbano ainda criança e veio com o pai, 
Galib, para Manaus, onde as perspectivas de vida melhor eram intensas. 
Embora a vida de Zana, num ambiente distante de sua terra natal, seja difícil 
e dolorosa, ela é uma mulher forte: a decisão de se casar com Halim foi 
dela, enfrentando até a oposição das maronitas; a quantidade de filhos que 
teria, talvez para recuperar o sentido de sua vida depois da morte do pai, 
partiu dela, mesmo com a recusa de Halim, que não queria filhos; o controle 
da casa e de sua movimentação passava pelo comando das mãos de Zana; 
a intensa atividade sexual com Halim tinha as diretrizes da esposa; a escolha 
de Yaqub para ir sozinho para o Líbano teve dela grande participação; a 
solteirice de Omar coube à determinação da mãe dominadora: 
 
Halim torcia para que uma dessas mulheres 
levasse o filho (Omar) para bem longe de casa, 
ou que uma das filhas de Talib, sobretudo Zahia, 
a mais formosa, sensual e perspicaz, laçasse o 
Caçula. Mas ele intuía que Zana era mais forte, 
mais audaciosa, mais poderosa. (Dois Irmãos, 
2017, p. 74) 
 
A voz de Zana é ouvida e respeitada (ou obedecida) por todos à sua 
volta, à exceção, de certo modo, de Yaqub. Mulher calculista, curiosa, às 
vezes melancólica, e apaixonada pelo filho Caçula, num relacionamento 
que beira o incesto, Zana desespera-se algumas vezes ao longo da narrativa 
como, por exemplo, por ocasião da morte de seu pai, o que a faz assumir um 
comportamento próximo ao da viuvez. 
A relação entre Zana e o pai remete ao mito de Electra, o qual se 
vincula ao amor incestuoso entre filha e pai, mas, também, de maneira 
invertida, podemos associar ao comportamento que Zana tem com o filho 
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Omar, já que ultrapassa o limite de amor maternal, ao tornar-se, além de 
possessivo, um afeto repleto de sensualidade de ambas as partes. 
Destaque-se que os homens da família libanesa marcam-se pelo 
estigma da dependência da matriarca, e essa fragilidade é mais notória no 
comportamento de Omar, o qual não consegue se libertar dos mimos da 
mãe, embora chegue a tentar por duas vezes ao se envolver com Dália e 
Pau-Mulato. 
Halim também é aprisionado pelos encantos e desempenhos sexuais 
da esposa, por isso suporta ser comandado pela mulher. O único que 
demonstra uma certa libertação de Zana é Yaqub, no entanto, se 
observarmos mais profundamente, detectamos nele a necessidade de ser 
amado pela mãe, que, embora idolatre e orgulhe-se do filho doutor, pretere-
o em favor do Caçula. Até mesmo o neto bastardo, Nael, tem por ela algum 
encantamento, mas é consciente de que ela o usa como um faz-tudo da casa, 
já que é filho de Domingas. Todos os homens de Zana parecem hipnotizados 
pelo domínio dela. 
Com as desavenças intransponíveis entre Yaqub e Omar, o 
comportamento irregular do Caçula, o desejo de vingança do gêmeo mais 
velho, a morte de Halim e o despejo de sua amada casa, Zana desencadeia 
um forte processo de melancolia e solidão, vendo seu clã familiar 
desmoronar, situação da qual ela é uma das principais responsáveis. 
De certa forma, a maneira autoritária e dominadora de Zana se reflete, 
em grau menos acentuado, no relacionamento dela com Rânia, a real caçula 
dos três irmãos. Sensual e arredia, bonita e ocultadora de seus encantos 
físicos, Rânia, mulher de olhos amendoados, era desejada por homens, aos 
quais ela não dispensava atenção, mas lhes acendia delírios sensuais, como 
ocorre também com o sobrinho Nael, com quem ela chega a se relacionar 
sexualmente uma vez. 
Embora entre ela e o narrador exista o elo familiar, Rânia parece 
recusar esse vínculo, como também rejeita a possibilidade de um 
envolvimento amoroso sério com Nael pelo mesmo motivo que se afastava 
de todos os homens que por ela se interessavam: nutria um forte amor 
platônico e incestuoso pelos irmãos gêmeos. 
Fica notória a preferência que Rânia tem por Omar, embora as 
carícias que Yaqub lhe fazia provocassem nela um forte estonteamento 
físico, quase animalesco: 
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(...) Ela mimava os gêmeos e se deixava 
acariciar por eles, como naquela manhã em que 
Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela, 
morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela 
acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e 
Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como 
ela se tornava sensual na presença do irmão! 
Com esse ou com outro, formava um par 
promissor. Nos quatro dias de visita ela se 
empetecou como nunca, e parecia que toda a 
sua sensualidade, represada por tanto tempo, 
jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante. 
Rânia, não a mãe, ganhou osmelhores presentes 
dele: um colar de pérolas e um bracelete de 
prata, que ela nunca usou na nossa frente. Ainda 
chovia muito quando a vi subir a escada, de 
mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto 
dela, alguém fechou a porta e nesse momento 
minha imaginação correu solta. Só desceram 
para comer. (Dois Irmãos, 2017, p. 87) 
 
A imaginação de Nael também viaja livremente quando pensa no 
forte desejo que sentia pela tia, tendo a mesma vontade aparente de tê-la 
sexualmente como parece ocorrer com Omar e Yaqub, num quase quarteto 
amoroso incestuoso. 
Sendo uma personagem secundária na trama de Milton Hatoum, 
Rânia, além de sua sensualidade, tem forte habilidade para o comércio, 
revelando a herança que recebeu do pai, Halim, ao fazer os negócios 
prosperarem. Ela, assim como Zana, se considerarmos o papel da mulher na 
sociedade árabe, estão na contramão do comum, fugindo da passividade 
feminina e tomando as rédeas do comando comercial, no caso da filha, e 
doméstico, no caso da mãe. 
Por outro lado, a dedicação de Rânia ao trabalho funciona como uma 
válvula de escape para sua forte frustração amorosa desencadeada pela mãe. 
Quando Rânia se apaixonou, Zana destruiu a possibilidade de ela ser feliz 
amorosamente, proibindo a filha de se envolver com um rapaz de baixo 
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poder aquisitivo. No entanto, sabedores que somos do espírito dominador e, 
de certo modo, egoísta de Zana, fica-nos sugerido que a mãe repete com 
Rânia o que também fez com Omar e tentou com Yaqub: manter todos os 
filhos sob seu teto e poder. 
Assim, Rânia não se interessou por mais nenhum homem, seja por 
causa do trauma de não poder casar com quem desdejava, seja porque não 
encontrava em seus pretendentes o espelhamento dos gêmeos. Como forma 
de compensação, ela dedicou-se aos negócios, realizando na loja do pai o 
que se esperava ser feito por Omar, uma vez que Yaqub tomara rumo para 
a engenharia. 
Zana fez com Rânia o que não permitiu que lhe fizessem: dominar e 
controlar suas ações. Exercer o domínio é característica marcante da mãe 
libanesa e, não satisfeita em regular os membros de sua família, Zana 
também rege a vida de Domingas. 
Indígena órfã, retirada de sua terra por religiosas que a moldaram 
para servir às famílias de Manaus, e agregada da família de Halim, 
Domingas é uma das peças fundamentais para Nael compor sua narrativa e 
tentar construir sua identidade, uma vez que é da mãe que poderia sair a 
resposta de quem era o pai dele, mas 
 
Domingas disfarçava quando eu tocava no 
assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez 
pensando que um dia eu pudesse descobrir a 
verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos 
nossos passeios, quando me acompanhava até 
o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava 
uma frase mas logo interrompia e me olhava, 
aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a 
sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas 
titubeava, hesitava e acabava não dizendo. 
Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me 
silenciava, e eram olhos tristes. (Dois Irmãos, 
2017, p. 54) 
 
Domingas era uma indígena com características próximas a de uma 
escrava liberta, já que não era remunerada pelos seus serviços e nem tinha 
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dias de folga. No Norte do Brasil, muitos indígenas ou descendentes 
destribalizados eram comumente incorporados às casas de famílias, o que 
ainda hoje é comum em alguns lugares. 
O reflexo do processo de colonização, portanto, ainda se faz presente 
na sociedade brasileira. No caso do romance Dois Irmãos, Zana 
representaria o colonizador poderoso e soberano e Domingas, a colonizada 
que absorve, por exemplo, os valores religiosos da patroa, com a qual 
identifica algumas semelhanças, pois ambas têm devoção a seus filhos, 
partilham os cuidados e o amor aos gêmeos, participam de rituais religiosos 
em conjunto e sofrem por causa do desterro e da saudade do tempo passado. 
O indígena, no Brasil, considerado de maneira preconceituosa como 
selvagem e bárbaro, tinha um papel relevante em algumas tarefas, como as 
do tratamento e exploração da terra e do serviço doméstico. 
A situação de empregada doméstica, sem nenhuma regalia, faz com 
que Domingas testemunhe os acontecimentos ocorridos na casa de Halim, 
com quem ela tem uma relação de cumplicidade e vice-versa, já que ambos 
mantêm, até o desfecho da obra, o segredo de quem seria o pai do narrador, 
além de as duas personagens serem testemunhas dos fatos que compõem a 
narrativa de Nael. 
Domingas, em sua condição de empregada, marginalizada, alvo de 
preconceitos e obediente à aculturação europeia, tem livre acesso à casa 
libanesa e, mesmo sendo vítima de exclusão social, como grande parte dos 
indígenas brasileiros também o são, sabe de informações elucidativas no 
que concerne à realidade familiar de Halim e Zana, acompanhando-os desde 
a prosperidade até o declínio do clã libanês. 
A mãe de Nael, ao ser levada para o orfanato ainda criança, tem suas 
crenças alteradas, absorve o batismo e a alfabetização, que não a libertam 
da exclusão, mas a obrigam a uma dedicação e desprendimento pessoal em 
relação à família de Zana até a morte, sem nunca reivindicar algo para si. 
Num condicionamento inconsciente das alterações que lhe foram 
provocadas, Domingas, fruto da sociedade patriarcal e machista, em certa 
ocasião, faz uma viagem com o filho Nael, mas, durante o passeio, também 
não se sente confortável, já que não se identifica mais como filha da selva. 
A cultura indígena, entretanto, não deixa de fazer parte do dia a dia 
de Domingas. Por exemplo, em uma das vezes que Omar desaparece de 
casa, ela sugere 
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(...) Posso preparar um olho de boto? A senhora 
pendura o olho no pescoço e aí o Caçula vem 
beijar a senhora... com muito amor”. Zana não 
sabia o que dizer? Ela se aproximou de minha 
mãe e virou a cabeça para o oratório. As duas, 
juntas, ainda disputavam a beleza de outros 
tempos. A índia e a levantina, lado a lado: a 
expressão solene dos rostos, o fervor que 
cruzara oceanos e rios para palpitar ali naquela 
sala — tanta devoção para que ele voltasse, são 
e salvo, sobretudo sozinho, para o quarto que 
seria sempre só dele. (Dois Irmãos, 2017, p. 
111) 
 
Em um outro momento da narrativa, Domingas vale-se dos 
conhecimentos indígenas para tratar o filho adoentado: 
 
Nos últimos dias que ficou em Manaus Yaqub 
me visitou várias vezes. Sentava num tamborete, 
passava a mão no meu braço e na minha testa, 
dizia que eu tinha um pouco de febre. Ainda me 
lembro do seu rosto preocupado, da voz que 
queria chamar um médico, ele pagaria tudo. 
Domingas não aceitou, ela confiava no bálsamo 
de copaíba, nas ervas medicinais. Passei alguns 
dias deitado, e me alegrou saber que Halim dera 
mais atenção ao neto bastardo que ao filho 
legítimo. Ele sequer pisou na soleira da porta 
do Caçula. No meu quarto entrou várias vezes, 
e numa delas me deu uma caneta-tinteiro, toda 
prateada, presente dos meus dezoito anos. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 150, 151) 
 
O narrador, Nael, embora não se considere um indígena, pois não se 
vê ligado à cultura da mãe, respeita, no entanto, os valores da cultura 
familiar. Ele observa com carinho, por exemplo, as pequenas esculturas 
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feitas por Domingas com representações de pássaros e serpentes, metáforas 
da liberdade e do perigo, respectivamente, no imaginário da indígena. 
Domingas, mesmo aparentemente integrada à realidade que lhe fora 
imposta, com o afastamento dela de sua cultura, credo e identidade indígena, 
não despreza seus valores originais, vivos, internamente, e vinculados ao 
desejo de liberdade: 
 
Quando chovia sem força de temporal, 
Domingas entrava no meu quarto e eu a ajudava 
a tirar a casca de um pedaçode tronco de 
muirapiranga, que depois ela esculpiria com 
habilidade e paciência. Ela, que tinha medo de 
trocar uma lâmpada, podia transformar um pau 
tosco num pequenino papa-açaí de peito 
encarnado. 
 [...] 
Os bichinhos esculpidos em muirapiranga 
estavam arrumados na prateleira. Lustrados, 
luziam ali os pássaros e as serpentes. O 
bestiário de minha mãe: miniaturas que as mãos 
dela haviam forjado durante noites e noites à luz 
de um aladim. As asas finas de um saracuá, o 
pássaro mais belo, empoleirado num galho de 
verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas 
bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave 
que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da 
minha mãe tinham servido os outros. Guardou 
até o fim aquelas palavras, mas não morreu com 
o segredo que tanto me exasperava. Eu olhava o 
rosto de minha mãe e me lembrava da 
brutalidade do Caçula. (Dois Irmãos, 2017, p. 
97, 182) 
 
Domingas vive privada de sua liberdade, saudosa, em certa medida, 
de seu contato com a natureza, sendo vítima de preconceitos, como se pode 
perceber na fala de Estelita Reinoso: 
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Seu casarão era um luxo, as salas cheias de 
tapetes persas, cadeiras e espelhos franceses; 
os copos e taças cintilavam a cristaleira, tudo 
devia ser limpo cem vezes por dia. O pêndulo 
dourado brilhava, mas o relógio silenciara 
havia muito tempo. Para entrar na cozinha dos 
Reinoso eu tinha que tirar as sandálias, era a 
norma. Na casa moravam empregadas de quem 
Estelita falava horrores para Zana. Eram umas 
desastradas, desmazeladas, não serviam para 
nada! Não valia a pena educar aquelas 
cabocas, estavam todas perdidas, eram inúteis! 
O Calisto, um curumim meio parrudo do cortiço 
dos fundos, cuidava dos animais dos Reinoso, 
sobretudo dos macacos, que guinchavam e 
saltitavam nos imensos cubos de arame do 
quintal. Eram divertidos, dóceis, faziam 
gracejos para as visitas e não davam tanto 
trabalho. Os macacos amestrados eram o 
tesouro vivo de Estelita. Com toda a tropa de 
serventes à sua disposição, aquela parasita era 
a vizinha que mais me atazanava. Parece que 
fazia de propósito. “Zana”, dizia com uma voz 
melosa e falsa, “o teu menino pode apanhar 
uma talha de leite para mim?” Eu saía para 
buscar o leite e tinha vontade de mijar e cuspir 
na talha. Às vezes, depois do almoço, quando 
me sentava para fazer uma tarefa da escola, 
escutava os estalidos do salto alto de Estelita 
ressoando no assoalho de casa. As marteladas 
dos passos acordavam todo mundo. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 61) 
 
A mais gritante e inaceitável violência, no entanto, da qual Domingas é 
vítima, é o estupro que sofre de Omar, reflexo da mentalidade escravocrata, 
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machista e desrespeitosa em relação à mulher, presa por estigmas de 
dominação e cooptação. 
A atitude agressiva de Omar em relação à Domingas pode ser 
considerada (mas não aceita como normal) decorrente de motivos como o 
caráter doentio do Caçula, que acredita poder ser e fazer o que quiser, livre 
de qualquer possibilidade de punição; do viés machista de dominação da 
mulher que, impossibilitada de reagir em decorrência de sua condição de 
agregada e dependente da família, se cala frente à violência; ou, ainda, uma 
forma de revanchismo de Omar em relação ao irmão Yaqub, com o qual 
Domingas tem uma relação afetiva mais intensa do que com o Caçula, 
embora ela gostasse de ambos os gêmeos. 
Domingas passou sua vida inteira servindo aos outros, mantida sob 
o controle deles, sem reivindicar nada para si própria, e, assim como viveu 
em silêncio, também acabou morrendo silenciosamente. 
 
3.5 O IMIGRANTE, O DESTERRO E A FÉ 
A Amazônia de Milton Hatoum não se limita apenas à paisagem 
natural exuberante que é de conhecimento mundial, mas se estende a 
representações regionais em que conflitos universais podem ser 
identificados. É nesse regionalismo universal amazônico que se encontra 
Halim e Zana, imigrantes libaneses, incorporando valores da cultura local, 
mas os mesclando com as tradições de suas origens associadas a saudades, 
memórias e experiências do tempo da Segunda Guerra Mundial até o regime 
militar brasileiro. 
Por meio das narrativas orais de Halim, Nael viaja no tempo 
resgatando o mosaico de aventuras relatadas pelo avô, o qual, como 
imigrante que é, vive caminhando de um lado para outro dentro dos limites 
de Manaus, como se desejasse fugir para um não-lugar. 
Halim é um exilado errante solitário, que anda pelas ruas manauaras 
tentando suprir os sentimentos de solidão, de não pertencimento e de 
desintegração de sua identidade distante de sua terra natal, constatando, por 
meio de um olhar pessimista, sua ruína e, também, a de Manaus. Ele é um 
exilado de sua pátria, Língua, cultura, religião e identidade vivendo no 
Amazonas. 
Como havia um acordo diplomático entre o Brasil e o Líbano, 
firmado por Dom Pedro II, a chegada de imigrantes desse país ao Amazonas 
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passou a ser frequente, desencadeando diversos avanços na região. 
A vinda da família libanesa para o Brasil, como já mencionado, 
ocorre na década de 1910 e está vinculada a questões de ordem 
político-eco nômica e de controle autoritário do governo turco-otomano, 
tributando impostos de diversas espécies no Líbano e perseguindo cristãos, 
aos quais era imposto o serviço militar obrigatório, um outro motivo da 
impulsão imigratória do país. 
Zana é exemplo dessa fuga da perseguição religiosa praticada pelo 
Islamismo, uma vez que ela era praticante católica maronita3 num país em 
que o preconceito religioso é comum. No entanto, a intolerância religiosa 
velada também ganha espaço na sociedade amazonense: 
 
As cristãs maronitas de Manaus, velhas e 
moças, não aceitavam a ideia de ver Zana 
casar-se com um muçulmano. Ficavam de 
vigília na calçada do Biblos, encomendavam 
novenas para que ela não se casasse com 
Halim. Diziam a Deus e o mundo fuxicos assim: 
que ele era um mascate, um teque-teque 
qualquer, um rude, um maometano das 
montanhas do sul do Líbano que se vestia como 
um pé-rapado e matraqueava nas ruas e praças 
de Manaus. Galib reagiu, enxotou as beatas: 
que deixassem sua filha em paz, aquela ladainha 
prejudicava o movimento do Biblos. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 40) 
 
Galib, pai de Zana, veio para o Brasil e instalou-se em Manaus, 
abrindo o restaurante Biblos, em que servia pratos mesclados por alimentos 
da região manauara aos da gastronomia libanesa, forte representação, na 
obra Dois Irmãos, do intercâmbio de culturas que marca Manaus. 
Semelhante mescla pode ser percebida nas orações católicas feitas 
por Zana juntamente com Domingas, outra exilada de suas terras, que 
acompanha a patroa na fé, registrando-se, assim, na casa libanesa, a mistura 
3 Maronita é o indivíduo que professa o Cristianismo de rito oriental afiliado à Igreja 
Católica Romana, presente sobretudo no Líbano e na Síria.
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de credos e culturas, como se ela fosse uma Manaus multicultural em 
miniatura. 
Esse lar libanês é um dos pontos mais representativos da importância 
do universo familiar em Dois Irmãos, a ponto de ele já se encontrar presente 
desde a epígrafe do livro, composta pelos versos do poema “Liquidação”, 
de Carlos Drummond de Andrade, em que elementos constitutivos da 
narrativa (destacados entre parênteses) se encontram presentes: 
 
A casa foi vendida com todas as lembranças (de 
Halim, Zana e Domingas) 
Todos os móveis todos os pesadelos (as 
rivalidades entre os gêmeos) 
Todos os pecados cometidos ou em via de 
cometer 4 
A casa foi vendida com seu bater de portas 
(fechada para ser transformada numa loja de 
quinquilharias) 
Com seu vento encanado sua vista do mundo 
Seusimponderáveis [...] 
 
Podemos observar que os versos do poema Liquidação antecipam a 
destruição do lar libanês e de todos os seus valores, com os quais Nael não 
se identifica, bem como com os referenciais amazônicos, aproximando o 
narrador à representação de um exilado em sua própria terra. Sua condição 
de mestiço e bastardo, vivendo às margens da sociedade, faz com que 
4 Em Dois Irmãos, podemos encontrar situações que envolvem todos os Sete 
Pecados Capitais, que são: a soberba, definida como orgulho excessivo, 
característico de Yaqub e Omar; a avareza, também chamada de ganância, apego 
incontrolável aos bens materiais e ao dinheiro, tal como ocorre com Yaqub; a inveja 
é a tristeza pelo bem de outra pessoa, sendo o invejoso aquele que se sente mal 
pelas conquistas alheias, como Omar sente por Yaqub e vice-versa; ira, raiva ou fúria 
é uma manifestação intensa de indignação que pode levar a agressões verbais ou 
físicas, comportamento comum nos gêmeos; a luxúria, lascívia ou libertinagem é 
o pecado associado aos desejos sexuais, que são intensos entre Halim e Zana, Omar 
e Pau-Mulato, Yaqub e Domingas, Rânia e os gêmeos e Nael; a gula é o pecado 
associado ao desejo de comer e beber de maneira exagerada, para além das 
necessidades, indicada pela fartura de comidas na casa libanesa; a preguiça é a falta 
de vontade ou de interesse em atividades que exijam algum esforço, seja físico ou 
intelectual, traço peculiar a Omar. 
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acumule à falta de identidade, por não saber quem é seu pai, a perda de 
reconhecimento social e religioso. 
Um dos exilados mais perturbados da narrativa parece ser Yaqub. Sua 
experiência dos anos em que viveu, forçosamente, no Líbano foi omitida 
na obra, pois Yaqub se recusava a contar como fora sua vida no país de 
origem de seus pais, como se a não rememoração fosse um artifício para o 
apagamento do trauma do exílio familiar. 
 Yaqub, sem cometer nenhum delito, foi condenado à cicatriz do 
exílio numa aldeia no Líbano e, dessa experiência, resulta uma espécie de 
perda de sua identidade, que se pode comprovar, por exemplo, na 
dificuldade que ele tem com a Língua Portuguesa e na alteração drástica de 
sua personalidade. 
Assim, desenraizado, Yaqub, tal como Nael, vive a agonia da 
identidade perdida, o que desencadeia nele a necessidade de um novo exílio 
na cidade de São Paulo. 
Destaque-se que o fluxo migratório manauara não está representado 
no livro apenas pelos membros da família libanesa. O crescimento da cidade 
trouxe novos estrangeiros, como coreanos, chineses e indianos, cuja 
representação se dá pela figura de Rochiram, homem que vivia de maneira 
quase nômade, buscando riqueza em espaços diversos. 
Imigrantes e migrantes de todas as origens territoriais e econômicas 
compõem a formação de Manaus e de sua projeção de modernidade e 
lucratividade. Todos, no entanto, de certa maneira acabam perdendo suas 
identidades em prol da construção de uma nova vida em terras longínquas. 
 
3.6 RIVALIDADE E VIOLÊNCIA 
 
Dois Irmãos é uma narrativa sobre a rivalidade entre os gêmeos 
Yaqub e Omar, desafeto que se torna real a partir do momento em que eles 
se apaixonam pela mesma menina, Lívia, e pelo ciúme despertado no irmão 
mais velho pelo tratamento preferencial que a mãe dá ao Caçula. 
As rivalidades entre irmãos são representadas na Bíblia, no livro de 
Gênesis, nos mitos de “Caim e Abel” e de “Esaú e Jacó” (Yaqub é a 
transcrição de Jacó em árabe), referenciais presentes na obra de Milton 
Hatoum: 
 
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O seu grande sonho era ver os filhos 
reconciliados. Ela só pensava nisso, e desde a 
morte de Halim acordava no meio da noite, 
assustada. Quem ia entender a falta que Halim 
lhe fazia? A dor que ele deixou. Não queria 
morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois 
inimigos. Não era mãe de Caim e Abel. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 170) 
 
As disputas entre os gêmeos Yaqub e Omar vinculam-se à 
necessidade que ambos têm de poder, posse, exclusividade, superioridade e 
destaque. Assim, vencer passa a ser a meta de cada um dos irmãos e, para 
isso, a violência entre eles se instala numa conturbada e destruidora relação 
familiar. 
 Yaqub vale-se, nessa guerra fraternal, de suas capacidades 
intelectuais, acobertando seu instinto ambicioso, vingativo, alicerçado em 
aparatos legais, em um comportamento introspectivo, enquanto Omar, o 
desequilibrado dos irmãos, tem conduta animalesca, revidando as atitudes 
de Yaqub a partir das agressões físicas. 
Se considerarmos que os dois são gêmeos idênticos, Yaqub se vê em 
Omar e vice-versa, o que metaforizaria as atitudes violentas e a rejeição de 
Omar por ele próprio e de Yaqub por si mesmo, já que as personagens são 
duplos de uma mesma imagem. 
Saliente-se que o duplo está presente em Dois Irmãos no título do 
romance; na composição do narrador, que vive entre a cultura libanesa e a 
indígena, sem se identificar totalmente com nenhuma delas; na perspectiva 
religiosa de Domingas e no reflexo de Manaus em miniatura no lar de Halim 
em crise. 
A violência na casa libanesa, no entanto, não se resume à rivalidade 
entre os gêmeos. Halim, cansado de ser um exilado em seu próprio lar, e 
abandonando sua paciência comparada ao do mito bíblico de Jó, chega a 
acorrentar Omar ao cofre por alguns dias, após tê-lo encontrado nu com 
uma mulher no sofá. 
Esse momento, na narrativa, questiona o viés patriarcal, do qual 
Halim se ressentia, uma vez que Zana dava as ordens em casa, representando 
a sensação de incapacidade e derrota do marido na criação dos filhos, que 
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nunca foram de seu desejo. 
Uma outra forma de violência, apresentada na obra, é a exercida pelo 
poder autoritário do Estado na imposição de normas por meio do regime 
militar. Em abril de 1964, o professor Antenor Laval é morto na praça de 
Manaus, em decorrência de sua ideologia militante e sua representação de 
resistência à ditadura, luta apreciada por Omar e Nael, o qual recebe 
influência para ser professor e escritor do contato com Laval. 
Poeta e professor, Laval é um divulgador da literatura de boa 
qualidade e modelo inspirador para muitos estudantes do colégio Liceu Rui 
Barbosa. Além do convívio entre professor e aluno dentro dos muros da 
escola, havia também encontros entre eles em bares e ruas manauaras, quase 
compondo uma “Sociedade dos poetas mortos” amazonense. 
No entanto, o professor tem fama de militante de esquerda, inclusive 
pela história que circulava sobre ele e sua passagem por Moscou aludindo 
à Revolução Russa, de 1917, ocasião em que o partido bolchevique, liderado 
por Vladimir Lênin, levou operários e camponeses à revolta, que pôs fim à 
monarquia, originando o primeiro país socialista do mundo, a União 
Soviética: 
 
Só um zum-zum corria nos corredores do liceu, 
dois dedos de mexerico da vida alheia, dele, 
Laval. Um: que fora militante vermelho, dos 
mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem 
por Moscou. Ele não negava, tampouco 
aprovava. Calava quando a curiosidade se 
alastrava em alaridos. O outro rumor, bem mais 
triste. Diz que havia muito tempo o jovem 
advogado Laval vivia com uma moça do 
interior. Líder e orador nato, ele fora convocado 
para uma reunião secreta, no Rio. Levou a 
amante e voltou a Manaus sozinho. Falou-se de 
traição e abandono. Versões desiguais, palavras 
desencontradas e afins... Conjeturas. O que se 
sabe é que, desde então, Laval internou-se no 
subsolo de uma casa à margem do Igarapé de 
Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto 
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da caverna, quieto e emudecido, o rosto 
cadavérico, a barba espessa que ele conservaria 
até a imolação. Não era greve de fome nem 
inapetência. Talvez desespero. Seus poemas,cheios de palavras raras, insinuavam noites 
aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou 
escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos 
alunos, pensando que ninguém os leria, 
pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um 
pessimista, um desencantado, e tentava 
compensar esse desencanto por meio da 
aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o 
rótulo de poeta, mas não se incomodava quando 
o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei 
qual dos dois atributos o definia melhor. 
Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 144, 145) 
 
Embora não fosse efetivamente um líder revolucionário, o 
comportamento de professor de francês e de literatura clássica francesa de 
Laval, com discurso ampliador da capacidade de reflexão dos estudantes, 
incomodou os militares instalados em Manaus. 
Assim, acusado de liderar uma manifestação contra o regime, Laval 
foi espancado em via pública, de forma violenta para intimidar qualquer 
outro revoltoso, e morto. Logo depois, alguns estudantes concentraram-se 
na mesma da praça, protestando contra a morte do professor e reivindicando 
melhorias para a cidade e para a população. Dentre eles estavam Omar e 
Nael. Seriam eles pai e filho, já que concebiam as mesmas ideologias? 
 
3.7 POLIFONIA E INTERTEXTUALIDADE 
Mikhail Bakthin (2005, p. 04) esclarece que a polifonia é uma 
“multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis”, que se 
misturam ao discurso do enunciador, sendo distintas ideologicamente do 
discurso autoral. 
É por meio desse entrecruzamento de vozes que Nael compõe sua 
narrativa moldada, principalmente, pelo viés da memória fragmentada de 
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Halim, Domingas, Zana, Yaqub e Rânia, muitas vezes substituindo-se a voz 
do narrador pelas vozes dessas personagens “sub-narradoras”: 
 
Eu gostava de ouvir as histórias. Hoje, a voz me 
chega aos ouvidos como sons da memória 
ardente. Às vezes ele se distraía e falava em 
árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de 
incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o 
senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na 
testa, murmurava: “É a velhice, a gente não 
escolhe a língua na velhice. Mas tu podes 
aprender umas palavrinhas, querido.” 
A intimidade com os filhos, isso Halim nunca 
teve. Uma parte de sua história, a valentia de 
uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele 
me fazia revelações em dias esparsos, aos 
pedaços, “como retalhos de um tecido”. Ouvi 
esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e 
forte, foi se desfibrando até esgarçar. (Dois 
Irmãos, 2017, p. 39) 
 
Nael não compreende muitas palavras empregadas em árabe por 
Halim, o qual mantém sua Língua materna quando conversa com familiares, 
misturando-a com a Língua Portuguesa, em sua variedade amazônica, ao se 
comunicar com outras pessoas, assim como também o faz Zana. O 
bilinguismo, portanto, é constante em Dois Irmãos, mas a Língua Francesa 
também permeia a obra nos comércios locais, como a loja Rouaix, ou nas 
aulas de francês na escola: 
 
No Liceu, que não era totalmente desprezível, 
reinava a liberdade de gestos ousados, a 
liberdade que faz estremecer convenções e 
normas. A escória de Manaus o frequentava, e 
eu me deixei arrastar pela torrente dos 
insensatos. Ninguém ali era “très raisonnable”, 
como dizia o mestre de francês, ele mesmo um 
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excêntrico, um dândi deslocado na província, 
recitador de simbolistas, palhaço da sua própria 
excentricidade. Não ensinava a gramática, 
apenas recitava, barítono, as iluminações e as 
verdes neves de seu adorado simbolista francês. 
(Dois Irmãos, 2017, p. 28) 
 
A Língua Espanhola aparece nas conversas entre Rochiram e Rânia 
e os termos indígenas também se fazem presentes no romance de Milton 
Hatoum. Desse modo, Nael, embora não domine nenhum outro idioma além 
do Português, vai criando seu discurso com essa mescla de Língua e de 
léxicos religiosos católicos, muçulmanos e indígenas, empregando tanto a 
norma culta quanto o coloquialismo em sua composição literária. 
A multiplicidade de vozes conduz o leitor a olhares diferentes e, 
também, a narrativas, que vão se encaixando à principal, a fim de ilustrar ou 
complementar situações. Muitas dessas histórias, sejam elas de Nael, Halim, 
Zana, Rânia, Domingas, dentre outros, vinculam-se a outros textos literários 
já existentes, compondo uma releitura, denominada intertextualidade, e 
dialogando, principalmente, com os temas do ciúme, da inveja e da ira. 
Uma das obras de tradição árabe mais conhecida é As mil e uma 
noites, em que as histórias vão sendo contadas dentro de outras histórias, 
com o propósito de se adiar o desfecho, tal qual em Dois Irmãos, em que não 
há término se considerarmos que a rivalidade entre Yaqub e Omar continua 
mesmo após a morte dos pais. 
Outra relação intertextual da obra de Milton Hatoum é com a Bíblia: 
a rivalidade entre irmãos nos mitos de Caim e Abel e de Esaú e Jacó. 
No primeiro livro do Pentateuco5, o Gênesis, Caim e Abel, filhos de 
Adão e Eva, eram irmãos de comportamentos extremamente diferentes, 
sendo o primeiro agricultor e o segundo, pastor de ovelhas. Caim ofereceu 
a Deus os frutos de sua primeira colheita e Abel, as primeiras ovelhas que 
nasceram do seu rebanho, o que agradou mais ao Senhor, por considerar 
uma oferta mais sincera e justa do que a de Caim, o que fez com que ele, 
motivado por inveja e ciúme, preparasse uma emboscada, na qual o irmão 
Abel morre. 
5 O Pentateuco são os primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, 
Números e Deuteronômio.
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No caso de Yaqub e Omar, ambos tentam conquistar a atenção 
materna, desencadeando entre eles uma forte e violenta rivalidade, que, 
embora não culmine com a morte de nenhum dos gêmeos, destrói a 
harmonia familiar. 
No mito de Esaú e Jacó, também em Gênesis, Isaac pediu a Deus o 
milagre de que a esposa Rebeca concebesse um filho, uma vez que ela era 
estéril. Após algum tempo, ela engravidou de gêmeos, os quais, desde o 
ventre, já rivalizavam. Deus disse à Rebeca que ela gerava o princípio de 
dois povos, sendo que um de seus filhos seria mais forte do que o outro. 
O primeiro a nascer era uma criança ruiva e com o corpo coberto de 
pelos e, por isso, foi chamado Esaú, cujo nome significa “coberto de pelos”. 
Logo a seguir, nasceu o caçula, segurando o irmão pelo calcanhar, o que fez 
com que seu nome fosse Jacó, que significa “aquele que segura pelo 
calcanhar”. 
Esaú, por sua vez, tornou-se um homem com habilidade para a caça, 
o que o tornava mais querido pelo pai, enquanto Rebeca amava Jacó, 
situação que desencadeou uma intensa rivalidade entre os gêmeos. 
Dois Irmãos retoma a passagem bíblica no que concerne à rivalidade 
entre os gêmeos, mas inverte a ordem dos nascimentos, uma vez que Yaqub, 
cujo nome em árabe significa Jacó, nasce primeiro do que Omar, o qual é o 
peludinho de Zana. 
Na história bíblica, os filhos são separados após a traição de Jacó, tal 
qual em Dois Irmãos, se considerarmos o flerte de Yaqub com Lívia uma 
traição a Omar, o qual estava interessado na menina Lívia. Rebeca, no mito 
bíblico, passa a priorizar o afeto a Jacó, como Zana faz com o Caçula, que, 
na obra de Hatoum, é Omar. 
O episódio de Esaú e Jacó também é retomado no romance 
homônimo de Machado de Assis, sendo, por extensão, a obra machadiana 
vinculada intertextualmente a Dois Irmãos, de Milton Hatoum. 
Em “Esaú e Jacó”, Machado de Assis apresenta Pedro e Paulo, 
gêmeos rivais ab ovo, que, ao longo da vida, tornam-se inimigos nas esferas 
ideológicas, políticas e amorosas, tal qual Esaú e Jacó, Yaqub e Omar. No 
entanto, enquanto na Bíblia os irmãos se reconciliam, os gêmeos da ficção 
machadiana e hatouniana continuam inimigos por toda a vida. 
Outra similaridade entre o mito bíblico eDois Irmãos é a preferência 
materna pelos filhos caçulas, o que não ocorre em Machado de Assis, pois 
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a mãe de Pedro e Paulo, Natividade, trata os gêmeos da mesma maneira. 
Destaque-se que, nos três casos, a figura materna é o motor da discórdia 
fraternal. 
Outras intertextualidades bíblicas se fazem presentes na obra de 
Milton Hatoum, como a já citada parábola do “Filho Pródigo” e uma alusão 
a Moisés, salvo do rio Nilo e criado por uma princesa egípcia, quando Nael 
fala sobre sua origem: 
 
Meu passado, de alguma forma palpitando na 
vida dos meus antepassados, nada disso eu 
sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da 
origem. É como esquecer uma criança dentro de 
um barco num rio deserto, até que uma das 
margens a acolhe. (Dois Irmãos, 2017, p. 54) 
 
Certamente, há outras intertextualidades trabalhadas na obra Dois 
Irmãos, vínculos que podem ser feitos entre as características de Yaqub e 
Omar com a mitologia pagã greco-latina, como Apolo e Dionísio, opostos 
e complementares um do outro, como os gêmeos de Milton Hatoum, ou 
com diversos outros textos da grandiosa literatura universal. 
 
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4. EXERCÍCIOS PROPOSTOS 
 
1. (UFAM) – A respeito do personagem Adamor, o Perna-de-Sapo, do 
romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se as seguintes 
afirmativas: 
I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que desaparecera 
nas florestas do Purus e salvou da morte o aviador Binford. 
II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que fugira de casa 
com uma mulher chamada Pau-Mulato e se escondera num barquinho 
atrás do Mercado Adolpho Lisboa. 
III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia de porta em 
porta e sofria com as implicâncias da índia Domingas. 
IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada, veio para Manaus, 
onde passou a morar em condições humilhantes numa palafita. 
 
Estão corretas: 
a) Apenas II e IV. 
b) I, II e IV. 
c Apenas I e III. 
d) II, III e IV. 
e) Todas as afirmativas. 
 
2.  (UFAM) – Ainda sobre o romance, é correto afirmar, a propósito do 
enredo: 
 
a) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu um gazal com 
quinze dísticos, que o pretendente fingiu esquecer na mesa do 
restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça. 
b) Tal como em Esaú de Jacó, de Machado de Assis, observamos o tema 
dos gêmeos, que foi, porém, tratado de forma diferente, uma vez que 
os dois irmãos não são inimigos. 
c) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do Alto Rio 
Negro trazida por Halim, que nessa época trabalhava como regatão. 
d) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma multinacional, 
após a instalação da Zona Franca, e Nael e Rânia, sua tia, se mudaram 
para um conjunto habitacional moderno. 
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e) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher 
Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar o ciúme 
possessivo que Zana sentia em relação ao filho. 
 
3. (UFSJ) – A relação de Rânia com Omar e Yaqub, no romance Dois 
Irmãos, de Milton Hatoum, é descrita pelo narrador como: 
a) erotizada  
b) cruel  
c) pudica  
d) fraterna 
 
 
5. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS PROPOSTOS 
 
1) Reunindo-se todas as informações das afirmativas, teremos um breve 
resumo da vida da personagem Adamor, o Perna-de-Sapo. 
Resposta: E 
 
2) Halim, para conquistar Zana, valeu-se de um  gazel,  ou gazal, 
composto pelo amigo Abbas. Gazal é um poema lírico, de forma fixa, 
composto em dísticos e de temática amorosa ou mística. 
Resposta: A 
 
3) De acordo com a narrativa, é perceptível que Rânia, irmã de Omar e 
de Yaqub, tem um afeto pelos gêmeos que supera a afeição fraternal. 
Resposta: A 
 
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7. APÊNDICES 
 
Biorritmo Ribeirinho 
Milton Hatoum, autor do livro “Dois Irmãos”, privilegiou Manaus na 
narrativa para “quitar dívida” 
 
Escritor manauara leva o rio dentro de si 
 
Heloísa Helena Lupinacci 
 
“Calmo como uma mangueira”. Assim o escritor Milton Hatoum 
é descrito por quem o conhece. Tão calmo que ficou 11 anos sem publicar 
um livro, intervalo entre o lançamento de “Relato de um Certo Oriente” 
(1989) e “Dois Irmãos” (2000), escrito e reescrito sete vezes. 
Filho de libaneses, nasceu em 1952 em Manaus. Aos 16 anos, foi 
para Brasília, de lá, para São Paulo. Aqui, se formou arquiteto em 1977. Foi 
para Espanha e para a França. Voltou para Manaus e quinze anos depois, 
em 1999, para São Paulo, de onde fala sobre a vida manauara para a Folha. 
 
Folha – O que acontece com um manauara que vem para São Paulo? 
Milton Hatoum – Entra sem pressa para selva paulistana e aprende a gostar 
dela. Mas, de vez em quando, sonha com a imensidão e os remansos do rio 
Negro. Uma singularidade de Manaus é ser metrópole no meio da floresta 
e à margem desse belo afluente do Amazonas. Em São Paulo eu sinto falta 
do horizonte, da vegetação... Às vezes fico imaginando aquele rio... O diabo 
é que, para onde vou, levo esse rio dentro de mim. Quando vou a certos 
lugares de São Paulo, tenho a sensação de estar em bairros de Manaus. No 
meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo. 
 
Folha – Como o rio dita a vida lá? 
Hatoum – Euclides da Cunha notou que na Amazônia “o rio é a estrada para 
toda a terra”. O velho Manaus Harbour liga Manaus à região amazônica. O 
rio possibilita uma intensa relação cultural e econômica entre a cidade e o 
interior. Além disso, moradores e comerciantes navegam nos igarapés que 
cortam a cidade. A paisagem urbana é anfíbia. Mas desde a implantação da 
Zona Franca [1967], a cidade cresceu sem planejamento, e os igarapés estão 
poluídos. 
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Folha – Que lugares devem ser visitados em Manaus? 
Hatoum – Gosto muito do mercado municipal de Adolpho Lisboa, do porto 
da Escadaria e do centro antigo, a área em redor da praça Pedro II até a ilha 
de São Vicente. A sede do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas 
Amazônicas], projetada por Severiano Porto, é uma aula de arquitetura e 
deveria ser modelo para habitação popular. Além do teatro Amazonas, da 
Ponta Negra e dos lugares mais visitados, vale a pena pegar uma catraia no 
porto da Escadaria e navegar pelo igarapê do Educandos. Se der tempo, um 
passeio pelo arquipélago das Anavilhanas é o máximo. Sugiro também subir 
o rio Negro até Barcelos, a primeira capital da Província. Ou então um 
passeio pelo rio Urubu e pelo lago Tupira, perto de Silves. Isso sem falar de 
Manacapuru e seus lagos. É uma viagem sem fim. 
 
Folha – Certa vez, você disse “Vejo conflito em tudo [em Manaus]”. Um 
visitante atento percebe isso? 
Hatoum – Ele logo percebe que a população e a cidade herdaram muita 
coisa das culturas indígena e europeia. Manaus é o nome de uma tribo que 
foi dizimada. A Zona Franca é irreversível. A periferia é uma favela 
gigantesca, o desmatamento foi brutal. A ironia mais trágica é que em muitos 
bairros pobres falta água, numa cidade banhada pelo maior rio do mundo. 
Em 1976, um prefeito-coronel destruiu a praça Nove de Novembro, um 
logradouro histórico, pois a notícia da Independência só chegou a Manaus 
no dia 9 de novembro. Destruiu praças e monumentos, cortou árvores 
centenárias, fez o diabo em nome do “progresso”. O atual prefeito encheu 
a cidade de palmeiras, só que de palmeiras importadas! Há centenas de 
palmáceas amazônicas... Não é de enlouquecer? 
 
Folha – Por que Manaus é tão presente no livro “Dois Irmãos”? 
Hatoum – No meu primeiro livro [Relato de um Certo Oriente], o espaço 
da cidade não aparece muito. O relato é uma viagem interior, com lances de 
uma memória inventada. Quando escrevi “Dois Irmãos”, estavapossuído 
pela cidade. Foi inevitável, porque passei quinze anos lá. Aí juntei os dramas 
de uma família com o “progresso decadente” da Manaus moderna. A gente 
escreve sobre algo que nos toca profundamente. Eu tinha uma dívida afetiva 
e moral com a minha cidade, e eu tentei quitá-la escrevendo um romance. 
É pouco, mas é tudo o que puder fazer, com muita paixão, dor e também 
alegria. 
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LUPINACCI, Heloísa H. Escritor manauara leva o rio dentro de si. Folha 
de S. Paulo, Turismo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ 
turismo/fz0906200316.htm. Acesso em: 30 jun. 2023. 
 
MUSA – MUSEU IMAGINÁRIO: A SÉRIE DE 
ENTREVISTAS DO MUSA 
 
Que características você ressaltaria dessa arquitetura (de Manaus)? 
Primeiro, acho que a combinação inteligente da alvenaria, do tijolo de argila, 
com a madeira. A solução que o Severiano encontrou para a circulação do 
ar; a proteção solar também é inteligente; os beirais; as placas de proteção 
solar; a implantação dos edifícios em uma área arborizada... Eu acho que há 
ali um desenho inteligente e sensível que responde aos imperativos do clima 
e isso é importante. Além disso, tem um lado visual e estético que é bem 
interessante a meu ver. Se você comparar isso aos projetos de habitação 
popular, vai ver como esses arquitetos ou desenhistas ou engenheiros 
conseguem projetar de uma maneira burra e cruel. Porque a arquitetura, 
quando é burra e malfeita, é também cruel porque age diretamente na vida 
das pessoas. Não é como uma pintura, que, se você não gostar, passa adiante 
ou não olha mais; ou como um livro, que se, você não gostar, fecha e isso 
não te faz mal. A arquitetura não. O atributo da arquitetura não é apenas a 
visão, é a própria vida, você habita o espaço projetado, dorme lá, come lá, 
conversa, convive, se relaciona nesse espaço. Então, esses projetos de 
habitação popular são, para mim, uma espécie de tara arquitetônica. Diria 
quase que são projetos fascistas, sem que esse arquiteto saiba, eu não sei se 
ele sabe. 
 
E você comentou que um pouco dessa sua revolta você coloca nos livros. 
Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa 
destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O 
romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda. No Dois irmãos, 
Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até 
implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem 
explícita, porque eu também acho isso muito frágil – romance-denúncia, 
arte-denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde 
a nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu 
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tempo, sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais 
ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da 
ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia 
do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um 
mundo, que não existe mais. 
 
Como é seu processo de construir um livro? 
Eu geralmente só começo a escrever quando tenho a estrutura mais ou 
menos armada na minha cabeça. Preciso estruturar os conflitos, saber, mais 
ou menos, quem são os personagens e qual a relação entre eles, saber como 
se dá a passagem do tempo. Porque o romance fala sobre a passagem do 
tempo, o romance é uma narrativa sobre o tempo. A partir daí então eu 
começo a escrever. Geralmente escrevo a primeira página, o começo e o 
fim. Preciso saber como começa e como termina. Porque o grande problema, 
o mistério, é essa ponte, é como se dá esse arco que vai da primeira página 
à última. O romance é a arte da paciência, como a pesquisa. Na pesquisa 
você não pode ter pressa. As pesquisas duram anos, porque dependem da 
observação, do empírico, dos testes, de coisas comprovadas ou não. Você 
está fazendo uma pesquisa com o objetivo X e no fim alcança o objetivo Z. 
Não é muito diferente na literatura. Você começa a escrever um romance e 
no meio do caminho a coisa vai mudando, sai do seu controle, personagens 
secundários se tornam importantes, protagonistas se tornam secundários, os 
conflitos assumem outras proporções. Acho que tudo isso é imprevisível 
como a vida. 
 
Você frequentemente menciona que não reconhece mais Manaus. O que 
mudou? Foi a estrutura física apenas ou algo mais sutil? 
Manaus, nos últimos 30 ou 40 anos, talvez tenha sido a cidade menos 
preservada e mais destruída do Brasil. Isso por várias razões: pela falta de 
planejamento; pela ignorância dos administradores; pela falta de visão dos 
administradores – visão urbana, histórica; falta de sensibilidade cultural e 
também uma falta de amor pela cidade. Esse é um dos lados que gerou essa 
transformação negativa. Outras coisas são a especulação imobiliária, que é 
totalmente selvagem, e a falta de critérios para construir, implantar zonas 
comerciais, residenciais. A cidade tem que ser pensada, refletida, não pode 
ser jogada, não pode crescer de forma aleatória. O que eu acho é que a 
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intervenção urbana e arquitetônica [em Manaus] é muito burra. Optaram 
pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para 
uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia 
ao clima. Quer dizer, optou-se por uma espécie de cópia, de “macaquiação”, 
de São Paulo, que por sua vez é uma cópia muito precária de Miami, vamos 
dizer assim. E do Rio de Janeiro também. O Rio ainda tem uma coisa dos 
anos 50 e 60 que é interessante, que tem a ver com a escala urbana, com a 
paisagem, com os morros e montanhas, com o relevo e com o mar. No caso 
de Manaus, você pode notar que os edifícios não são avarandados, não tem 
proteção solar, não são pensados em função do clima. Eu não falo nem da 
opção estética, que é horrorosa na maioria das vezes. Poucos arquitetos 
entenderam essa cidade, um deles foi Severiano Porto [1930-]. Por isso, o 
rosto da cidade se tornou um pouco monstruoso, as praças estão sufocadas, 
não há mais uma relação orgânica entre a natureza e o urbano, algo que 
havia na minha infância e juventude. Foram criados pouquíssimos novos 
parques – o parque do Bilhar, o Jefferson Peres, mas é muito pouco para 
uma cidade que não é arborizada, que não tem calçadas. O transporte urbano 
é o pior do Brasil, talvez um dos piores da América do Sul. A habitação 
popular é uma espécie de canil, e isso eu falo nos meus romances, no Cinzas 
do Norte. A implantação de conjuntos habitacionais é totalmente irracional, 
arranca-se a floresta e é como se as pessoas não necessitassem de sombra. 
Então, é de uma burrice, de uma ignorância, estarrecedora. Isso tudo me 
entristece. Não sei se me entristece, acho que me revolta, mais do que me 
entristece. 
 
Como manauara pensa a cidade? 
Acho que o manauara não tem nem condições de pensar. O povo, do jeito 
que vive, dessa forma bruta que vive, não tem condições de refletir sobre a 
cidade. Ele sabe que sofre, que mora no inferno – a maior parte da população 
mora em um inferno, porque a periferia de Manaus é um retrato do que há 
de mais terrível. Há muito sofrimento, você passa horas dentro de um ônibus 
morrendo de calor, os igarapés estão poluídos, quando chove há enchente, 
quando não chove o calor é brutal. Acho que esse livro do Gautherot mostra 
que a arquitetura da palafita era uma arquitetura sábia. A arquitetura do Inpa 
[Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] é sábia, o projeto 
arquitetônico dos edifícios faz parte de uma reflexão sobre a região. 
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Musa. Museu imaginário: a série de entrevistas do musa. In: Pereira, Claudia 
M. de S. O processo de constituição do livro Dois Irmãos: uma análise da 
paratopia criadora de Milton Hatoum. Disponível em:h t t p s : / / r epos i to r iou f sca r.b r /b i t s t r eam/hand le /u f sca r /8910 / 
DissCMSP.pdf?sequence=1&isAllowed=y.Acesso em: 24 jul. 2023.
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