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OS LIVROS DA FUVEST DOIS IRMÃOS MILTON HATOUM Análise da obra, seleção de textos e questionário MARIA DE LOURDES DA CONCEIÇÃO CUNHA DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 147 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 148 DOIS IRMÃOS – MILTON HATOUM OBRAS DA FUVEST 1. BIOGRAFIA DO AUTOR Milton Hatoum nasceu em Manaus em 19 de agosto de 1952. Filho de pai e avós maternos libaneses, os quais pouco falavam português, sendo a avó cristã maronita, educada em uma escola de freiras em Beirute, onde só se rezava em francês. O avô Mamede, um contador de histórias, muito influenciou Hatoum no interesse pelas narrativas orais, principalmente as libanesas, que povoaram a imaginação do autor. Aos quinze anos, Hatoum mudou-se de Manaus para Brasília, no período do auge do regime militar. Na capital, estudou no Colégio de Aplicação da UnB, uma escola de perfil politizado e vitimizado pela atmosfera opressiva da época. Nos anos de 1970, o autor transferiu-se para São Paulo, onde se diplomou em arquitetura pela USP. No final da mesma década, Hatoum mudou-se para Madri para estudar, transferindo-se logo depois para Barcelona, onde exerceu a tarefa de professor de Português e trabalhou na tradução de romances de Jorge Amado para o Espanhol. Em 1981, o autor viajou para Paris, onde iniciou o doutoramento na Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle) e começou a esboçar seu primeiro romance. Em 1984, interrompeu o doutorado e retornou a Manaus. Seu primeiro romance, Relato de um certo Oriente, ganhador do Prêmio Jabuti, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, foi lançado em 1989, ganhou forte destaque na crítica literária e, rapidamente, editado na França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Líbano. Dois Irmãos, segunda obra de Hatoum, foi eleito o melhor romance brasileiro no período 1990-2005, em pesquisa feita pelos jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas e Cinzas do Norte, e proporcionou ao autor diversos prêmios, como a Ordem do Mérito Cultural, Elo Ministério da Cultura, Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. No ano de 2008, Milton Hatoum publicou Órfãos do Eldorado, livro escrito sob encomenda que, segundo o autor, foi e será a única obra escrita para atender a um pedido. Ela também recebeu o Prêmio Jabuti em DOIS IRMÃOS 149 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 149 MILTON HATOUM 150 2009 na categoria romance. Nas obras Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, Hatoum inseriu as vivências experimentadas no seio de sua família como filho de imigrantes libaneses. O autor escreveu também um livro de contos, A Cidade Ilhada, e uma coletânea de crônicas, publicadas em jornais e revistas, intitulada Um Solitário à Espreita. 2. RESUMO DO ENREDO DE DOIS IRMÃOS Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal, onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século.1 (Dois Irmãos, 2017, p. 9) Assim começa, com uma espécie de prefácio, o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum: Zana, internada em um hospital, recordou seu passado ao lado do pai, marido e filhos, desejando (até morrer) que os gêmeos, Yaqub e Omar, voltassem a se falar. No primeiro capítulo, Yaqub regressa do Líbano, para onde foi aos 13 anos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, tendo sido, dessa maneira, separado do gêmeo Omar, o filho preferido de Zana. Na chegada a Manaus, Yaqub se emocionou ao rever a paisagem de sua infância e refletiu sobre como ele e o irmão gêmeo eram diferentes nos desafios: Yaqub era medroso, enquanto Omar, o aventureiro. Yaqub recorda também o dia do baile dos jovens em que ele queria ter ficado até a meia-noite, uma vez que a sobrinha dos Reinoso, Lívia, “a meninona loira” (Dois Irmãos, 2017, p. 21), estaria presente nesse horário 1 Todas as passagens do romance Dois Irmãos foram extraídas da edição de bolso da Companhia das Letras de 2017. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 150 ao evento. Ao vê-la, ele pensou em se aproximar dela, mas Zana ordenou-lhe que levasse a irmã mais nova, Rânia, para a casa e voltasse posteriormente. No retorno para o baile, Yaqub viu Lívia e Omar dançando num ritmo diferente do típico das festas carnavalescas, o que o fez odiar a festa. O gêmeo mais velho não entendia o porquê de a mãe proteger o irmão caçula e, muito menos, compreendia o motivo de ter sido mandado para o Líbano dois meses após o baile de Carnaval. No retorno a Manaus, ao chegar em casa, já um homem feito, Yaqub foi recebido efusivamente pela irmã Rânia e, então, caminhou até o quintal para abraçar Domingas, como se ela fosse sua mãe e não a empregada da casa. A vizinhança veio ver Yaqub, que foi beijado por Sultana, Talib, suas duas filhas, e Estelita Reinoso. Já era quase meia-noite, quando Omar entrou na sala, dirigiu-se até a mãe, que o recebeu como se ele fosse o filho ausente, abraçou-a e, sem nenhuma vontade, estendeu a mão para cumprimentar Yaqub. Domingas contou ao narrador a história da cicatriz que era a única diferença física entre Yaqub e Omar: no último sábado de cada mês, no porão da casa dos Reinoso, havia uma sessão de cinema em que a garotada vestia a melhor roupa para o evento. Nessas ocasiões, Lívia dispensava mais atenção a Yaqub, despertando o ciúme de Omar. Numa dessas sessões, Yaqub reservou uma cadeira para Lívia sentar- se ao lado dele. Repentinamente ocorreu uma pane no gerador e, ao ser aberta a janela para entrar claridade, Omar viu os lábios de Lívia no rosto de Yaqub. Imediatamente cadeiras foram atiradas ao chão, uma garrafa de vidro estilhaçada e estocada no rosto de Yaqub por Omar. Depois da briga entre os gêmeos, para que fosse contida a possível violência entre os irmãos, Yaqub foi enviado ao Líbano e, agora, regressando cinco anos depois para Manaus, já era um homem alto, que falava mal a Língua Portuguesa, mas tinha grande facilidade com a Matemática. Pouco tempo depois de ter voltado a Manaus, Yaqub comunicou a família de que iria para São Paulo, onde estudaria na escola Politécnica. Enquanto ele se dedicava aos estudos, Omar faltava às aulas na escola, aproveitando a vida de maneira audaciosa e irresponsável pelas madrugadas festivas de Manaus, comportamento que incomodava o pai Halim. DOIS IRMÃOS 151 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 151 MILTON HATOUM 152 Omar foi expulso do colégio por ter desferido um soco no professor de Matemática, mestre querido de Yaqub. Zana tentou evitar a expulsão, mas o diretor não cedeu aos argumentos dela em favor de Omar. Para o narrador, a partida de Yaqub para o Líbano fora vantajosa, pois ficara com suas roupas velhas, as quais lhe serviriam depois de alguns anos. No segundo capítulo, o narrador relata que Galib, pai de Zana, inaugurou o restaurante Biblos, por volta de 1914, ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos. Abbas indicou o Biblos para Halim, que passou a ser frequentador assíduo do local pelo encantamento que tinha por Zana. Como Halim levava peixes para Galib, o dono do restaurante não lhe cobrava o almoço. Certa vez, quando Halim estava procurando por um chapéu feminino para dar de presente à Zana, Abbas sugeriu-lhe que a presenteasse com um gazal escrito por ele composto de quinze dísticos escritos em árabe. Halim colocou os versos num envelope e, no dia seguinte, fingiu esquecê-lo no restaurante. Uma semana depois, ao voltar ao Biblos, Halim recebeu de Galib o envelope que ele tinha “esquecido” sobre a mesa. Abbas disse a Halim que a timidez não conquistavaninguém e, dando-lhe duas garrafas de vinho, sugeriu que ele voltasse ao Biblos e se declarasse à Zana. Na manhã de sábado, Halim entrou no Biblos embriagado, dirigiu-se à Zana e declamou-lhe os gazais. Dois meses depois, eles se casaram. Halim era um romântico tardio, apaixonado por Zana, a qual decidiu casar-se com ele, mesmo com as cristãs maronitas de Manaus se opondo a ela ter um muçulmano como marido. No entanto, Zana só seguia sua própria vontade e, determinada, casou-se com Halim, enquanto Galib afastava as beatas para que deixassem sua filha em paz. Nessa ocasião, Zana fez uma exigência a Halim em frente ao pai: deveriam se casar no altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das maronitas e católicas de Manaus. Halim satisfez-se por ter vencido as oposições sociais em relação ao seu casamento, que foi feliz e de intensa atividade sexual, principalmente na rede, durante muito tempo. Certa vez, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano para rever os parentes. Ele partiu para Biblos2 e lá morreu na casa perto do mar. Zana, 2 Biblos (βύβλος) é o nome grego da cidade portuária fenícia de Gubla (ou Gebal). Era conhecida pelos antigos egípcios como Kbn e, mais tarde, Kpn. Embora continue DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 152 ao saber da morte do pai, trancou-se por duas semanas no quarto. Após o período de luto, ela notificou ao marido o desejo de ter três filhos. Os gêmeos não nasceram logo depois da morte do avô, pois Halim queria aproveitar a vida com Zana sem a interferência de filhos. No terceiro capítulo, o narrador conta que Yaqub enviava para a família uma carta no final de cada mês e Zana e Halim convidavam os vizinhos para a leitura da missiva. Nela, Yaqub contava que, em São Paulo, tinha uma vida atribulada, o que levava Zana a temer que ele não voltasse mais a Manaus. Os pais mandavam dinheiro para Yaqub viver em São Paulo, mas ele devolvia todo o valor, dizendo que não precisava de nada deles. Enquanto ele se dedicava para ser um engenheiro, Omar continuava com sua vida folgada e repleta de aventuras. Zana sugeriu a Halim que vendessem o restaurante e abrissem um comércio na rua dos bares, onde o movimento de fregueses era maior. Por ocasião da inauguração da loja, uma freira, “irmãzinha de Jesus”, ofereceu ao casal uma órfã batizada e alfabetizada para trabalhar na casa de Zana e Halim. Era Domingas, que cresceu nos fundos da casa e passou a fazer as tarefas do lar. Dois anos após a chegada dela, nasceram Yaqub e Omar. Em decorrência de o Caçula ter adoecido logo nos primeiros meses de vida, ele foi cercado pelo zelo excessivo da mãe, enquanto Domingas cuidava de Yaqub como se fosse sua mãe postiça. Halim, que perdeu a paz logo que os filhos começaram a andar, não se conformava com a ideia de ter sua privacidade e prazeres ao lado de Zana roubados pelo excesso de mimo que a mãe dedicava a Omar. O narrador revela que não conhecia suas origens, mas, alguns anos depois, desconfiou de que um dos gêmeos era seu pai. Certa vez, ele e Domingas foram passear e, nessa ocasião, ela contou ao narrador algumas passagens de sua vida antes do orfanato, a perda do pai e a orfandade que a levou para o convívio com as freiras. Uma tempestade fez esse passeio ser uma tormenta para Domingas e o filho, sendo essa a única viagem que fizeram juntos. a ser denominada de Biblos pelos investigadores (sobretudo em referência a épocas passadas), a cidade é agora conhecida pelo nome árabe Jubayl. Situa-se na costa mediterrânica do Líbano, a 42 quilômetros de Beirute e é um local de muito interesse de arqueólogos. DOIS IRMÃOS 153 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 153 MILTON HATOUM 154 Omar chegava das noitadas, acordava Zana e Domingas, que, juntamente com seu filho, o narrador da história, iam ajudar o Caçula embriagado. O narrador se incomodava muito com o que vivia na casa libanesa e, algumas vezes, pensara em fugir, mas não o fizera porque não queria deixar a mãe sozinha. Yaqub morava em São Paulo já há seis anos, enquanto Omar continuava sua vida alucinada. Uma noite, o Caçula chegou em casa com uma moça do cortiço, fizeram uma festinha a dois e, de manhã, Halim, ao se levantar, viu o filho e a moça nus dormindo no sofá. Enfurecido, o pai ergueu Omar pelos cabelos, deu-lhe uma bofetada, acorrentou-o à maçaneta do cofre de aço e desapareceu por dois dias. Mas foi o episódio da mulher prateada que fez Zana mandar Omar para São Paulo. Nessa altura, Yaqub já estava casado e não revelava o nome da esposa aos familiares, o que irritava a mãe, pois, para ela, um filho casado era um filho perdido ou sequestrado. No aniversário de Zana, Omar encheu a casa com flores e bilhetinhos amorosos para a mãe. O comportamento do Caçula despertava, na irmã, Rânia, uma forte paixão por ele, que costumava fazer-lhe cócegas nos quadris e tatear-lhe o vão entre suas pernas, fazendo-a suar e fugir para o quarto. Ainda muito jovem, Rânia aderiu à vida reclusa e solitária de seu quarto fechado. Contudo, nas festas de aniversário de Zana, Rânia sempre deixava esperançoso algum pretendente que estivesse no evento, aceitando convites para dançar, mas, logo depois, interrompia a dança para jogar-se nos braços do Caçula. A intimidade entre os irmãos revoltava qualquer pretendente, que saía da festa irritado. Havia rumores de que Omar estava envolvido com uma mulher mais velha do que ele, notícia que deixou Zana impaciente. Foi justamente no aniversário de Zana que Omar apresentou a namorada para a mãe, a qual sempre afastava todas as mulheres do filho. Nessa ocasião, no entanto, a mulher, chamada Dália, que Omar trouxe à casa, atraiu mais olhares na festa do que Rânia. As filhas de Talib, como sempre, surgiram na festa dançando, mas também tiveram o brilho ofuscado por Dália. A mulher prateada (Dália), que Omar trouxe para casa, despertou o fascínio de todos os presentes à festa. Após a dança, Zana chamou Dália para ajudá-la a limpar a mesa e, segurando-a pelo braço com força, DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 154 cochichou algo em seu ouvido, o que fez a mulher prateada ir embora, dizendo em voz alta: “Vamos ver, vamos ver” (Dois Irmãos, 2017, p. 77). Omar, desesperado, saiu correndo atrás de Dália. Zana fez de tudo para convencer Yaqub a hospedar o irmão em São Paulo, mas ele não permitiu que Omar dormisse em sua casa. O Caçula, descobrindo o plano da mãe de enviá-lo para São Paulo, tentou reaproximar Dália de Zana, mas ela mandou o narrador entregar dinheiro para a mulher prateada, a qual desapareceu com a família. Omar viajou para São Paulo enfurecido e revoltado. Durante seis meses, a casa de Halim ficou em paz. O Caçula escrevia aos pais contando que estudava muito e madrugava para ir à escola. No feriado de 15 de novembro, Yaqub viajou com a esposa para Santos. Na volta do feriado, ele foi ao colégio onde o Caçula estudava e, lá, informaram-no de que Omar deixara de frequentar a escola após o 15 de novembro. Na pensão, onde Omar residia em São Paulo, Yaqub soube que o irmão também abandonara o quarto com apenas uma mala vazia e algumas roupas dependuradas, além de um mapa dos Estados Unidos. Em dezembro, Omar enviou o primeiro cartão postal: (...) o Caçula enviou o primeiro cartão-postal de Miami; depois enviou outros, de Tampa, Mobile e Nova Orleans, contando suas farras e peripécias em cada cidade. Yaqub rasgara todos os postais menos um, que entregou ao pai: “Queridos mano e cunhada, Louisiana é a América em estado bruto e mesmo brutal, e o Mississippi é o Amazonas desta paragem. Por que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser superiores em tudo. Mano, a tua mulher, que já foi bonita, pode rejuvenescer com o cabelo dourado. E tu podes enriquecer muito,aqui na América. Abraços do mano e cunhado Omar”. (Dois Irmãos, 2017, p. 91) DOIS IRMÃOS 155 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 155 MILTON HATOUM 156 No quinto capítulo, o narrador conta que Yaqub veio visitar a família pela primeira vez depois que partira para São Paulo, ocasião em que ele revelou a verdade sobre Omar aos pais. O narrador considera que, se Yaqub fosse seu pai, ele seria filho de um homem quase perfeito, o que não ocorreria se o pai dele fosse Omar. Ao reencontrar Yaqub, o narrador recebeu dele algum carinho, e, logo depois, viu sua mãe de mãos dadas com o gêmeo de São Paulo. Zana perguntou a Yaqub se a esposa não tinha vindo com ele, pois ela queria conhecer a nora. Yaqub disse à mãe que Omar lhe daria uma nora tão exemplar quanto ele. À noite ele revelou ao pai o motivo do desaparecimento de Omar: “Durante cem dias o teu filho foi disciplinado como não tinha sido em quase trinta anos, mas foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai. “Ele roubou meu passaporte e viajou para os Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de seda e duas camisas de linho irlandês!” Yaqub teve certeza disso quando recebeu o primeiro cartão postal. Já tinha expulsado a empregada, porque ela levara Omar para o apartamento quando ele e a esposa estavam em Santos no feriado de 15 de novembro. A empregada havia confessado quase tudo: Omar a levara para passear no Trianon e no Jardim da Luz; tinham almoçado no Brás e nos restaurantes do centro. Dois folgadões! Tudo isso com o dinheiro que vocês mandavam, disse Yaqub, irado. Depois Yaqub se lembrou dos dois volumes velhos e empoeirados de cálculo integral e diferencial, livros que comprara por uma pechincha num sebo da rua Aurora. Abriu os livros com o pressentimento de que fora aviltado. Rangia os dentes, as mãos trêmulas mal conseguiam folhear o primeiro volume, onde tinham sido enfiadas várias cédulas de um DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 156 dólar; no outro volume guardara as notas de vinte. Folheou os dois livros, página por página, depois chacoalhou-os, e caíram cédulas de um dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse o passaporte, a gravata de seda, as camisas de linho, mas dinheiro... “Deixou a mixaria, deixou o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami, ladrão!” (Dois Irmãos, 2017, p. 91, 92) Yaqub não iria sossegar enquanto não se vingasse do irmão, principalmente porque estava ainda mais enfurecido com Omar por ele ter entrado em seu apartamento, vasculhado tudo, descoberto que Lívia havia se casado com Yaqub e feito desenhos obscenos nas fotografias do casamento do irmão. Rânia quis modernizar a loja do pai, mas não havia dinheiro para reformar a casa ou a loja. Yaqub, então, generosamente financiou ambas as obras. Omar envolveu-se com outra mulher: a Pau-Mulato, uma bela rubiácea com quem ele passou a se encontrar às escondidas da mãe. Houve uma mudança de comportamento do Caçula: amanhecia em casa, sem ressaca, e tornara-se um homem trabalhador, que acordava cedo e dirigia- se a um banco estrangeiro para o dia de trabalho. O Caçula levou para casa um inglês, chamado Wyckham, o qual se dizia gerente do banco onde Omar trabalhava. No entanto, Zana descobriu que o inglês era um contrabandista do qual Omar era seu braço direito. Zana colocou Zanuri para seguir Omar. O delator profissional entregou a ela um relatório, no qual revelava que o Caçula passava as noites com o carro, um oldsmobile conversível, prateado e com bancos azuis, em frente a uma casa pobre, moradia de uma mulher alta e massuda. Ambos passavam a noite dentro do carro divertindo-se sexualmente. Como uma estrategista, Zana passou a presentear Omar, dando-lhe roupas bonitas para ele ir “mais lindo nas tuas noites da Cachoeirinha” (Dois Irmãos, 2017, p. 108). Omar, percebendo que a mãe havia descoberto seu relacionamento com a Pau-Mulato, arrumou suas coisas e saiu de casa: “A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e tem bom posto. Agora é a minha vez de viver... DOIS IRMÃOS 157 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 157 MILTON HATOUM 158 Eu e a minha mulher, longe da senhora...” Ergueu a cabeça e gritou para o pai: “Longe do senhor também, longe dessa casa... de todos. Não venham atrás de mim, não adianta...”. Saiu gritando como um alucinado, sem se despedir de Rânia nem de Domingas. Era capaz de bater, de quebrar tudo se alguém o impedisse de partir. Ninguém dormiu naquela noite. Zana não parava de se lamentar; culpava-se, depois acusava Halim: “Nunca foste um pai para ele, nunca. Ele fugiu por causa do teu egoísmo... Isso mesmo, egoísmo”. Subia e descia a escada, atarantada, exigindo a minha presença, a de Domingas. Não sabia o que pedir, o que dizer a nós dois. Esperávamos, sonolentos, a tarefa. Mas ela não se decidia e perguntava: “O que acham disso? Meu filho perdido por uma mulher qualquer! O que vocês acham? E Rânia, por que não desce? Em vez de me ajudar, fica mofando naquele quarto”. Enfim, ordenou: que eu tirasse a filha da cama. Rânia abriu a porta, o rosto mal-humorado. Não estava dormindo, o quarto dela todo iluminado. As duas rezaram, fizeram promessas, acenderam velas. Acenderam tudo: as lâmpadas, os olhos, a alma. O tempo passava e ele não voltava para casa. Soltara-se de vez? Tinha asas, era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto e perder-se livremente no imenso céu do desejo. (Dois Irmãos, 2017, p. 109) No sexto capítulo, iniciou-se a busca de Zana pelo filho caçula. Halim também procurou por Omar, acompanhado do amigo Cid Tannus, percorrendo todos os lugares da cidade. Numa dessas ocasiões, Halim pediu ao narrador que o acompanhasse numa procura incessante por Omar, passando por ilhas, lagos e rios de Manaus. Durante meses a procura pelo DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 158 Caçula foi infrutífera. Rânia administrava a loja vendendo mercadorias da moda que vinham de São Paulo, controlando cada centavo gasto. Contrariada, ela cedeu à compra excessiva de peixe pescado por Adamor, o Perna de Sapo, um farejador que descobriu em pouco tempo o paradeiro de Omar: Ele estava morando num barquinho de aluguel, juntamente com a mulher Pau Mulato, pescando tudo o que podiam para vender. Omar rapara os cabelos e deixara a barba crescer, além de ter os braços arranhados e seu corpo bronzeado de tanto sol. O Caçula foi resgatado e levado de volta para casa e, num acesso de fúria, pegou a corrente do pai, arremessou-a contra o espelho, destruiu cadeiras e molduras, rasgou os retratos de Yaqub, praguejou contra Halim, xingou a mãe e a irmã, mas não se dirigiu ao narrador, que torcia para que ele o tocasse para poder dar-lhe uma pancada. Zana aproximou-se de Omar dizendo-lhe não admitir que ele se envolvesse com uma mulher qualquer: (...) “Isso mesmo, uma qualquer! Uma charmuta, uma puta! Que ela passe o resto da vida mofando naquele barco imundo, mas não com o meu filho. Uma contrabandista! Falsária... Agiota... Gastei uma fortuna para descobrir os detalhes. O contrabando, as meninas que ela aliciava para o Quelé, aquele inglês de araque... O esconderijo de vocês na Cachoeirinha... As orgias... A patifaria... a sujeira toda! Eu não ia permitir... nunca! Ouviste bem? Nunca!” Ela abaixou a voz e sussurrou, dócil, tristonha: “Tens tudo aqui em casa, meu amor”. Começou a soluçar, a chorar. Pegou nas mãos dele, penteou-lhe a barba grisalha com os dedos, alisou-lhe a careca feridenta. Os dois, abraçados, foram para o alpendre; ela franziu a testa ao ver sua própria imagem distorcida em mil fragmentos no espelho estilhaçado. Perdeu o espelho precioso, mas ainda assim suspirava de felicidade porque o filho estava ali, queimado por dentro, mas agora só dela. Fez um sinal para que eu e Domingas limpássemos a sala. (Dois Irmãos, 2017, p. 130) DOIS IRMÃOS 159 DOIS IRMAOS_OBRASFUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 159 MILTON HATOUM 160 Omar ficou vários dias sem sair de seu quarto e voltou a ser mimado pela mãe. Rânia teve que ceder dinheiro para os caprichos do irmão, que a agarrava no colo e sussurrava palavras em seu ouvido, as quais a faziam se derreter toda. Depois do envolvimento com a Pau-Mulato, Omar jamais se entregou a outra mulher da mesma maneira. Voltou à vida de farras e às bebedeiras noturnas, deixando o pai cada vez mais revoltado com o seu comportamento. Halim foi entristecendo e, em seus últimos anos de vida, passava a maior parte do tempo sozinho, no pequeno depósito da loja, mas ainda se emocionava com Zana e dizia-lhe palavras de amor. No sétimo capítulo, na primeira semana de janeiro de 1964, Antenor Laval, o professor do colégio, foi até a casa de Omar para pedir-lhe que participasse de uma leitura de poesia. O Caçula voltou para casa na madrugada do dia seguinte e pediu dinheiro à irmã, que se recusou a dá-lo, pois a quantia era muito maior do que ele costumava solicitar. O narrador estranhou que Laval não o tivesse convidado para a leitura de poesias. Em fins de março, o professor reapareceu muito abatido e não voltou mais à escola, até que, em uma manhã de abril, ele foi preso e morto por soldados do regime militar. Vários alunos prestaram homenagem a Laval no coreto da praça, lendo seus poemas, sendo o último leitor Omar. Enquanto isso,Yaqub voltou para Manaus e, ao chegar em casa, quis que Domingas lhe fizesse companhia na rede. Repentinamente, o Caçula ficou febril e recebeu os cuidados exagerados da mãe, enquanto o narrador, que também adoecera, recebia a atenção do avô Halim, da mãe Domingas e de Yaqub. Depois de recuperado, o narrador e Yaqub passearam por Manaus, que estava lotada de soldados. Após a partida de Yaqub para São Paulo, Omar começou a se exercitar como jardineiro, catando frutas podres do quintal, varrendo as folhas, cheirando flores e cavando a terra. Rânia pediu ao narrador que fosse ajudá-la com umas caixas de mercadorias na loja. Os dois trabalhavam arduamente, quando, ao se abaixar para abrir uma caixa, Rânia deixou os seios aparecerem, despertando desejo no narrador. Ambos pararam as tarefas e se envolveram fisicamente na escuridão da loja. Depois do momento sexual intenso, eles conversaram um pouco e Rânia contou ao narrador que sua festa de aniversário de quinze anos fora cancelada repentinamente e apenas ela e a mãe sabiam o motivo: DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 160 “Zana conhecia o meu namorado, o homem que eu amava... Eu queria viver com ele. Minha mãe implicou, se enfezou, dizia que a filha dela não ia conviver com um homem daquela laia... não ia permitir que ele fosse à minha festa. Me ameaçou, ia fazer um escândalo se me visse com ele... ‘Com tantos advogados e médicos interessados em ti, e escolhes um pé-rapado...’ Meu pai ainda tentou me ajudar, fez de tudo, implorou para que Zana cedesse, aceitasse, mas não adiantou. Ela era mais forte, enfeitiçou meu pai até o fim. Desprezei todos aqueles pretendentes... alguns até hoje aparecem aqui, fingem que querem comprar e acabam comprando as porcarias encalhadas... os restos... tudo o que eu não vendo durante o ano. Agora é esse o meu mundo... sou dona de tudo isso”, ela disse, olhando as paredes da loja. Permanecemos em silêncio, na penumbra; com a luz fraca do depósito, mal dava para ver o rosto dela. Ela me pediu que fosse embora, queria ficar sozinha, talvez dormisse na loja. Eram mais de duas da madrugada, e eu sabia que não ia pegar no sono. Só pensava em Rânia, na voz dela, na beleza que vi de perto, muito perto, como ninguém talvez tivesse visto. (Dois Irmãos, 2017, p. 155, 156) Enquanto o narrador ficava em seu quarto lendo e estudando, o Caçula trabalhava no jardim, carregando sacos de folhas mortas. Halim comentou que Omar se esforçava no trabalho só para não sair de perto da mãe: Um dia, a mãe se envergonhou de uma cena. É que as duas filhas de Talib, Zahia e Nahda, DOIS IRMÃOS 161 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 161 MILTON HATOUM 162 entraram de supetão na casa e logo começaram a rir. Riam e cobriam o rosto com as mãos, nervosas. Nós ouvimos o riso e o tilintar das pulseiras de ouro que chacoalhavam no braço das moças. A mãe apareceu na sala, e, antes de perguntar a razão do riso, olhou para o quintal: o filho, nu, enlaçava o tronco da seringueira, e, com uma lentidão artística, arranhava-lhe o tronco. Queria extrair leite daquela árvore secular? Ao ver a mãe espiá-lo, ele se afastou da árvore, pôs as mãos entre as pernas, apalpou a virilha. Começou a gemer, fazendo uma careta medonha. Zahia e Nahda pararam de rir, arregalaram os olhos. Recuaram. Ele uivava, berrava como um desgraçado, apertando as coxas com as mãos. Zana gritou por Domingas, as duas se acercaram do tronco, minha mãe logo percebeu o motivo dos berros. Sofria, o Caçula. Arreganhava-se para mijar, mordia os lábios e tornava a arranhar o tronco da seringueira. “Está com o ramêmi ensopado de pus”, disse Domingas. Zana se espantou: “O que é isso? Estás louca?”. Minha mãe balançou a cabeça: “A senhora não sabe... Não é a primeira vez que ele pega essa doença”. Zana não acreditou. À noite, o sonso do jardineiro escapava pela cerca dos fundos... Dessa vez tinha sido forte, uma gonorreia galopante, como se dizia. As duas levaram o Caçula para o banheiro, fizeram um curativo, enrolaram o ramêmi de Omar com gaze. Ele teve que ir ao médico, e aguentou umas duas agulhadas na bunda. Voltava da farmácia caminhando de banda, como um papagaio. Em casa, o tratamento não era mais ameno. Zana esperava Halim sair, Domingas fervia água com folhas de DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 162 crajiru e o Caçula ficava de cócoras ao lado da bacia, recebendo o tratamento da mãe. Ele apertava a virilha, se contorcia, trincava os dentes, derramava a infusão, queria fugir. Zana pegava uma toalha limpa e recomeçava a aplicação. No fim, ele se sentia aliviado. Nós sabíamos quando ele mijava por causa dos urros que soltava durante a noite. Era um escândalo. “Quem fez isso contigo?”, quis saber Zana. Ele não falou.” (Dois Irmãos, 2017, p. 156, 157) Halim, triste e cansado, passou a perambular pela cidade, falando sozinho e perguntando por Yaqub. Zana mandava o narrador ir atrás do marido: Numa tarde que ele escapara logo depois da sesta eu o encontrei na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates. Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. (Dois Irmãos, 2017, p. 158, 159) Apenas na manhã da véspera do Natal de 1968, a busca por Halim foi inútil. A ceia de Natal fora silenciosa e triste. Zana não tocou na comida, pois preferiu esperar mais um pouco pelo retorno do marido que nunca deixava a família nessa data. De madrugada o grito de Zana acordou a todos: Halim estava sentado no sofá cinza calado para sempre. No oitavo capítulo, o narrador revelou que Omar não suportou ver o pai morto e, num ataque de histeria, dirigiu-se ao finado de maneira afrontosa: Começou a gritar, criança incendiada de ódio ou de algum sentimento parecido com o ódio. Gritava, fora de si: “Ele não vai acorrentar o filho dele? Não vai passar a mão no rosto suado? Por que ele não se mexe e fala comigo? Vai ficar aí, com esse olhar de peixe morto?”. Gritos na madrugada. Os gritos do Caçula. O choro de DOIS IRMÃOS 163 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 163 MILTON HATOUM 164 Rânia, de Domingas. Zana cobria o rosto com as mãos; ela estava sentada no chão, no meio de cacos do alguidar, perto de Halim, talvez sem entender como tinha acontecido. Ninguém, naquela noite, viu o velho entrar na sala. Ele devia ter chegado no meio da madrugada, avançando com passos imperceptíveisde velho ferido que foge de tudo e de todos para morrer. Omar nos surpreendeu com seu gesto irado, o dedo em riste apontado para o rosto de Halim, para os olhos quase fechados, sem vida, do pai cabisbaixo. Rânia ficou paralisada: não sabia o que fazer, não pôde impedir o irmão de gritar, de pegar no queixo do pai e erguer-lhe a cabeça. O viúvo Talib chegou a tempo de evitar um confronto entre o filho vivo e o pai morto. Já amanhecia quando Talib e as duas filhas irromperam na sala e apartaram Omar do pai. O Caçula reagiu, esperneando, gritando, e eu não suportei vê-lo tão corajoso diante do finado Halim. Fiz um gesto para Talib e suas filhas, expulsei o Caçula da sala e arrastei-o até o quintal. Ele se enfureceu, pegou um terçado, me ameaçou. Gritei mais alto do que ele: que me enfrentasse de uma vez, que me esquartejasse, o covarde. O terçado tremia-lhe na mão direita, enquanto eu repetia várias vezes: “Covarde...”. Ele calou, empunhando o facão que usava para brincar de jardineiro. Tinha coragem de olhar para mim, e o olhar dele só aumentava a minha raiva. Ele recuou, ficou acocorado debaixo da velha seringueira, o rosto espantado voltado para a porta da sala, de onde Domingas nos observava. Ela me chamou, me abraçou e pediu que eu voltasse para a sala. (Dois Irmãos, 2017, p. 162, 163) Zana, inconsolável com a perda do marido, começou a repreender o Caçula, comportamento que surpreendeu o filho querido. Após alguns dias, Rânia chamou Omar para trabalhar na loja com ela, mas ele riu da proposta e retornou à sua vida de noitadas por Manaus. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 164 Em um sábado, o Caçula chegou em casa na companhia de Rochiram, um indiano que trabalhava na construção civil e estava procurando um terreno para construir um hotel. Zana, inicialmente, não gostou do visitante e Domingas desconfiou do comportamento dele. Zana pediu ao narrador que datilografasse uma carta dela para Yaqub, na qual pedia perdão por tê-lo mandado para o Líbano e afirmava seu desejo de ver os filhos reconciliados, trabalhando na construção do empreendimento do indiano. Algum tempo depois, chegou a resposta de Yaqub: Era uma carta com poucas linhas. Ele não aceitou nem recusou qualquer perdão. Escreveu que o atrito entre ele e Omar era um assunto dos dois, e acrescentou: “Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena bíblica”. Mas ele se interessou pela construção do hotel, ignorando a participação do irmão. Terminou a carta com um abraço, sem adjetivo ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa palavra e murmurou: “Eu peço perdão e ele se despede com um abraço”. (Dois Irmãos, 2017, p. 171) Omar esbanjava dinheiro em bebidas e presentes com a quantia que havia ganhado da comissão pela venda do terreno ao indiano. Yaqub voltou a Manaus, hospedando-se, dessa vez, em um hotel simples. Após alguns dias de sua chegada, ele visitou a casa da mãe. Ao ver Domingas, Yaqub convidou-a para se sentar com ele na rede, quando, subitamente, o Caçula surgiu, socando o rosto do irmão e dando- lhe uma surra em meio a xingamentos de traidor e covarde. Os dois foram separados pelo narrador e pelos vizinhos. Omar, vendo-se cercado, retirou- se da casa. No hospital, Yaqub foi socorrido e tratado. Seu rosto estava inchado, dois ou três dedos da mão esquerda fraturados. Rochiram veio até a loja para conversar com Rânia e apresentar uma proposta para encerrar o problema que teve com os irmãos gêmeos dela: DOIS IRMÃOS 165 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 165 MILTON HATOUM 166 Rochiram exigia uma fortuna em troca do que havia pagado a Yaqub pela execução dos projetos de engenharia e, a Omar, pela comissão do terreno. Além disso, perdera muito tempo com esse negócio. Ameaçou-a com um processo, escreveu que já conhecia pessoas influentes, “as mais poderosas da cidade”. Rânia pediu um prazo: “Alguns meses para arrumarmos a nossa vida”. Contou à mãe a exigência de Rochiram. Disse que faria tudo para evitar um processo de Yaqub contra Omar. (Dois Irmãos, 2017, p. 177) No nono capítulo, revela-se a identidade do narrador: Nael, o mesmo nome do pai de Halim. Domingas convidou o filho para passearem na praça da matriz: (...) “Quando tu nasceste”, ela disse, “seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu deixei... Seu Halim. Parece que a vida se entortou também para ele... Eu sentia que o velho gostava muito de ti. Acho que gostava até dos filhos. Mas reclamava do Omar, dizia que o filho tinha sufocado a Zana.” Senti suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. “Com o Omar eu não DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 166 queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão.” (Dois Irmãos, 2017, p. 180) A esta altura, Zana já misturava as lembranças do passado com os acontecimentos do presente, recuperando mentalmente a imagem do pai falecido, a morte do marido e ausência do filho caçula. Estava arrependida de ter escrito a carta a Yaqub, a quem, agora, chamava de intratável. O filho mais velho tornara-se o irmão perverso. Certa vez, o Nael, o narrador, ao chegar em casa não encontrou a mãe na cozinha. Ao procurá-la pelo imóvel, deparou-se com ela enrolada na rede de Omar e já sem vida. Domingas, a pedido do narrador, foi enterrada no jazigo da família ao lado de Halim. No décimo capítulo, a casa libanesa encontra-se vazia e envelhecida. Rânia havia comprado um bangalô no Norte de Manaus e queria que a mãe fosse morar com ela. Zana recusava-se, dizendo que nem morta deixaria a sua casa: Foi nessa época que Zana levou a primeira queda e teve que engessar o braço e a clavícula esquerda. Mesmo engessada, ela estendia a roupa de Halim no varal, punha os sapatos dele no piso do alpendre, o suspensório e a bengala no sofá cinzento. Fazia isso nos dias ensolarados, ao entardecer recolhia tudo e sentava à mesa, no lado direito da cabeceira onde o filho almoçava. À noite, ela chamava Domingas, eu me assustava, ia correndo até a sala e a encontrava de pé, perto do oratório, o terço pendurado na mão direita. Rânia não suportava mais ver a mãe conviver com fantasmas. Ficava entalada só de pensar na ameaça de Rochiram e desconfiava que cedo ou tarde teria de vender a casa para pagar a dívida. Queria morar longe dali, longe também DOIS IRMÃOS 167 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 167 MILTON HATOUM 168 do bulício no centro de Manaus. (Dois Irmãos, 2017, p. 184, 185) Restavam na casa apenas o narrador e Zana, que perguntava, insistentemente, se Omar não iria voltar: Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez poucos soubessem: o nome dela de batismo em Biblos era Zeina. No Brasil, ainda criança, ela aprendeu português e mudou de nome. Eu soube mais de Galib e Halim, e também de minha mãe. Domingas mudou muito depois que engravidou. Passava horas compenetrada. “Só vendo... bastante com ela mesma, até que Halim, de mansinho, abria a porta do quarto e perguntava: ‘em que estás pensando?’, ‘Hã? Eu?’. Tua mãe respondia assim, assustada... Ela amolava uma faquinha e pegava um pedaço de pau para fazer aqueles bichinhos. Halim me dizia: ‘Essa cunhantã... Por Deus, alguma coisa aconteceu com ela...’. Como a tua mãe deu trabalho no orfanato! Era rebelde, queriavoltar para aquela aldeia, no rio dela... Ia crescer sozinha, lá no fim do mundo? Então a irmã Damasceno me ofereceu a pequena, eu aceitei. Coitado do Halim! Não queria ninguém aqui, nem sombras na casa. Vivia dizendo: ‘Deve ser penoso criar o filho dos outros, um filho de ninguém’. Quando tu nasceste, eu perguntei: E agora, nós vamos aturar mais um filho de ninguém? Halim se aborreceu, disse que tu eras alguém, filho da casa...” Ela falava aos pedaços, e ela mesma fazia as perguntas: “No tapete? Se namoramos no tapete onde ele rezava? Ora, mil vezes... Tu não espiavas a gente, rapaz?”. Eu me arrepiava DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 168 quando ela dizia isso. Eles me vigiavam, percebiam a minha presença? Talvez não se incomodassem, nem tivessem vergonha. Deviam rir de mim. Filho de ninguém! Zana esqueceu a Domingas rebelde e evocou a outra, a empregada e cozinheira de muitos anos, a cúmplice no momento das orações, a mulher minha mãe. (Dois Irmãos, 2017, p. 186, 187) Rochiram propôs a Rânia a troca da dívida dos gêmeos pela propriedade da casa, acrescentando que Yaqub estava de acordo com essa negociação. Alguns dias depois, a mudança de Zana para o bangalô de Rânia foi inevitável. Nael passou a morar sozinho na casa. Certa vez, Rânia pediu ao narrador que tomasse conta de Zana. Durante a tarefa, ele se distraiu e, quando olhou para o quintal da casa, Zana estava dependurando as roupas do marido no varal, arejando o seu quarto e suplicando a Deus que Omar voltasse. Ela seguiu até o galinheiro e, logo depois, foi encontrada pelo narrador deitada no chão, coberta com as roupas de Halim. Zana foi retirada da casa em meio a gritos, dizendo que não sairia dali e não venderia a sua casa, pois o filho iria voltar: Depois eu soube da hemorragia interna, e ainda a visitei numa clínica no bairro de Rânia. Ela me reconheceu, ficou me olhando. Então soprou nomes e palavras em árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver. Mas quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido... (Dois Irmãos, 2017, p. 189) No décimo primeiro capítulo, Zana morre e a casa é transformada em uma loja de quinquilharias do indiano. Na passagem lateral da casa, um quarto fora reservado como moradia para Nael a pedido de Yaqub. Rânia ficou sabendo de que, no dia da última briga entre os gêmeos, DOIS IRMÃOS 169 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 169 MILTON HATOUM 170 Omar fora ao hospital para espancar o irmão. De lá ele foi expulso e fugiu, passando a viver escondido em pousadas e pensões, uma vez que o irmão mais velho empreendera uma verdadeira caçada policial a Omar. Rânia começou a receber diversas cobranças dos gastos que o Caçula realizava em suas farras. Ela não podia mais pagar todas as dívidas de Omar, pois sabia que deveria poupar dinheiro para o que viria posteriormente. No último capítulo, Nael relata que Rânia, durante a hora de almoço, saía da loja a procura de Omar. Numa tarde de abril, ela o avistou magro, amarelo, cabeludo e barbudo, mas não conseguiu se aproximar dele. Repentinamente, tiros foram disparados e pessoas correram em fuga. Eram soldados que empreendiam uma caçada a Omar, o qual foi preso, enquanto Rânia discutia com os policiais e era repelida brutalmente por eles. Omar foi condenado a dois anos e meio de detenção, sendo um agravante à sentença sua amizade com Laval. Rânia escreveu a Yaqub, recriminando-o pela perseguição empreendida ao Caçula e dizendo-lhe que a vingança era muito mais patética do que o perdão. Yaqub manteve-se em silêncio. Omar foi liberado do presídio antes de completar a pena. Rânia tentou se aproximar dele, mas ele fugia de todos. Nael, o narrador, chegou a ver Omar mais uma vez: Naquela época, quando Omar saiu do presídio, eu ainda o vi num fim de tarde. Foi o nosso último encontro. O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou suas portas e janelas bem antes do anoitecer. Lembro-me de que estava ansioso naquela tarde de meio-céu. Eu acabara de dar minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu passado. Um relâmpago havia provocado um DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 170 curto-circuito na Casa Rochiram. O bazar indiano tornara-se um breu na tarde sombria, coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei no meu quarto, este mesmo quarto nos fundos da casa de outrora. Trouxera para perto de mim o bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o que restara dela, do trabalho que lhe dava prazer: os únicos gestos que lhe devolviam durante a noite a dignidade que ela perdia durante o dia. Assim pensava ao observar e manusear esses bichinhos de pau-rainha, que antes me pareciam apenas miniaturas imitadas da natureza. Agora meu olhar os vê como seres estranhos. Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor Laval, e a anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde com as palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa alternância — o jogo de lembranças e esquecimentos — me dava prazer. O toró que cobria Manaus, trégua na quentura do equador, me aliviava. Frutas e folhas boiavam nas poças que cercavam a porta do meu quarto. Nos fundos, o capim crescera, e a cerca de pau podre, cheia de buracos, não era mais uma fronteira com o cortiço. Desde a partida de Zana eu havia deixado ao furor do sol e da chuva o pouco que restara das árvores e trepadeiras. Zelar por essa natureza significava uma submissão ao passado, a um tempo que morria dentro de mim. Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha seringueira, DOIS IRMÃOS 171 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 171 MILTON HATOUM 172 diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão. Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora. (Dois irmãos, 2017, p. 196 a 198) 3. ANÁLISE DA OBRA DOIS IRMÃOS “Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa.” (Dois Irmãos, 2017, p. 183) 3.1 NAEL – O NARRADOR E A MEMÓRIA Nael, o narrador de Dois irmãos, vale-se da escrita da história de família de Halim para encontrar sua própria identidade, restaurando, por meio da memória, os acontecimentos que presenciou e, principalmente, os que lhe foram contados por Halim, Domingas e Zana. A narrativa se caracteriza pelo relato fragmentado, em que o narrador rompe a linearidade cronológica, valendo-se da memória que tem, principalmente dos fatos relatados nas sinuosas conversas com Halim. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 172 Ao longo de doze capítulos, a voz do narrador, um homem solitário e refugiado na escrita desua obra, nostalgicamente, recompõe, depois de trinta anos, cenas de uma infância vivida em uma casa à qual ele, na verdade, não pertencia oficialmente, colocado à margem da família de Halim, vivendo no quartinho dos fundos, juntamente com a mãe indígena Domingas, a qual esconde, aparentemente, um segredo. Adiar a escrita por trinta anos pode indicar que o distanciamento dos fatos altere ou modifique os entendimentos que Nael constrói da realidade que viveu, e a compreensão do passado fique comprometida, principalmente porque o Nael menino é muito diferente do Nael narrador adulto, o qual já teve experiências ao longo da vida, além de ser um professor que tem habilidades com a escrita e a criatividade. No entanto, algo não se altera nessas décadas: Nael ainda é o morador do mesmo quartinho dos fundos da extinta casa libanesa, portanto, sua condição de excluído, de pária social, que tenta resgatar o tempo passado, para encontrar o equilíbrio sonhado, se mantém, o que pode ser detectado em algumas das frequentes digressões presentes no livro. Assim, Nael é um narrador memorialista que tem a pretensa intenção de relatar uma versão mais ampla dos acontecimentos, mas, na verdade, mais importante do que contar a história da família libanesa, ele deseja construir-se como sujeito, buscando, na identificação de quem era seu pai, a sua identidade e o encontro de si mesmo. No entanto, para descobrir sua origem, o narrador precisa partir da história da rivalidade dos gêmeos, Yaqub e Omar, dois polos narrativos que representam, alternadamente, o bem e o mal. Além de narrador, Nael é também personagem dessa história, pois ele, no seu papel de ajudante da casa, participa, silenciosamente, de tudo o que acontece, ouve e vê os atritos familiares, até começar a perceber que um dos gêmeos poderia ser seu pai. De certa maneira, Nael prefere Yaqub como pai, mas a dúvida permanece e ele teme que seu pai seja Omar. Considerando-se que Nael reconstrói a história em um tempo muito posterior ao momento em que sucederam os acontecimentos e, além disso, é parte interessada no que narra, o relato torna-se parcial e motivo para duvidarmos se tudo o que ele conta está vinculado à fidelidade dos fatos ou manchado pelas sombras da memória e da parte interessada do narrador. Assim, mais do que o desejo de contar a história da família libanesa DOIS IRMÃOS 173 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 173 MILTON HATOUM 174 em Manaus, Nael vale-se da escrita para reviver e revirar o passado e suas experiências traumáticas. Ele, o filho bastardo de um dos dois irmãos, emprega uma linguagem representativa da dor do abandono, da rejeição, da marginalização espacial e social, das cicatrizes que tem na alma pelo convívio com formas diversas de violência traumatizante: Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. (Dois Irmãos, 2017, p. 183) Nael é o narrador-protagonista que manipula não só uma visão parcial dos fatos, a partir de seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções, como também da reunião de outras vozes narrativas fragmentadas ao longo do livro, numa espécie de caleidoscópio narrativo, que compõem os dados que ele obteve para gerar seu relato. Esse narrador ensimesmado constrói seu texto a partir da memória, uma justificativa factível para que o comando do relato não obedeça ao tempo cronológico linear. Assim, por meio de flashbacks frequentes, as histórias da família em ruína, da cidade de Manaus, da transformação dos espaços, das mudanças do cotidiano, do espaço amazonense entrelaçado com a cultura libanesa e a de outros imigrantes, das alterações sociais provocadas pelo avanço da industrialização nos anos 60 no Brasil e do regime militar vão sendo o motor da narrativa. Nael estrutura sua narrativa em partes meio desconexas que vão se agrupando na mente do leitor que as ordena, aparentando uma certa confusão mental do narrador, triste e inseguro, mas que, na verdade, traz ao livro uma verossimilhança com o que ocorre com a memória de qualquer indivíduo: lembrar dos fatos em ordem de importância, independentemente da cronologia deles. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 174 É por meio dessa recuperação mental que Nael desenvolve diversas interrogações diretas, mas seguidas de respostas iniciadas por conectivos de dúvida, ou expressões que marcam um narrador ainda titubeante: Eu fui incumbido de vasculhar o centro da cidade; entrei nas barracas espalhadas no porto da praça dos Remédios, nos pequenos restaurantes encafuados no alto dos barrancos, nos botecos do labirinto da Cidade Flutuante, onde ele costumava papear com um compadre. Ninguém o avistara, e mesmo se eu o tivesse encontrado, não teria dito nada. Na extremidade do porto da Escadaria, amarrado a uma canoa, latia um cachorro, e babava, o vira-lata, de tanta agonia; dessa vez eu ri de verdade, pois a visão do cachorro amarrado me remetia ao cativo de cara inflada. Toda valentia é vulnerável. Halim, tão sereno, sabia disso? Bateu firme no rosto do filho e foi embora. Só voltou para casa dois dias depois. Durante as duas noites de cativeiro, ouvíamos os urros de Omar, o ruído dos pontapés inúteis no cofre maciço, o tilintar grave das argolas de ferro. Bastava um maçarico para libertá-lo, mas ninguém pensou nisso, muito menos eu, que desconhecia a existência dos maçaricos e só pensava, vagamente, em vingança. Mas vingar- me de quem? (Dois Irmãos, 2017, p. 68, 69) Nael também se apresenta, em alguns momentos, como um narrador onisciente, com acesso livre aos pensamentos e sentimentos de outras personagens, compondo sua história a partir dos fragmentos da sua memória das vivências de outras personagens, como Halim, Domingas e Zana. O narrador faz das palavras dos outros as suas palavras, aplicando, dessa maneira, mais um filtro à realidade de diversos fatos, dos quais Nael não foi testemunha, o que ocorre, logicamente, apenas após o seu nascimento, DOIS IRMÃOS 175 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 175 MILTON HATOUM 176 ou melhor, a partir da possibilidade de ele ter percepções em relação aos acontecimentos que vivencia e que resultarão em uma reflexão silenciosa. As lembranças de Nael vinculam-se ao espaço solitário do quartinho dos fundos, onde ele sempre viveu e, talvez, já adulto, permaneça nesse espaço por não querer abandonar o passado. Assim, a primeira cena do romance, que podemos considerar como o prefácio da obra, também está relacionada ao passado. Nela, percebemos a amargura de Nael e a inexistência de afeto familiar entre ele e Zana, matriarca da casa, com quem Nael é impiedoso ao se recusar a olhar para a avó à beira da morte. A narrativa inicia-se pela morte de Zana, que desencadeia as reminiscências de Nael sobre o ódio, leit motiv do romance, e que será revivido pelas memórias do narrador, o qual nunca se conforma em ter sido tratado com indiferença humilhante, principalmente por parte de Zana: “Sei que um dia ele vai voltar”, Zana me dizia sem olhar para mim, talvez sem sentir a minha presença, o rosto que fora tão belo agora sombrio, abatido. (Dois Irmãos, 2017, p. 9) [...] Na velhice que poderia ter sido menos melancólica, ela repetiu isso várias vezes a Domingas, sua escrava fiel, e a mim, sem me olhar, sem se importar com a minha presença. Na verdade, para Zana eu só existia como rastro dos filhos dela. (Dois Irmãos, 2017, p. 28) Nael discorre a respeito de uma família destruída, revivendo seus pesadelos, e de outras personagens, buscando, por meio de experiências externas,construir sua própria história para constituir a sua identidade. Consciente de que um dos gêmeos era seu pai, o narrador tem clara sua condição de bastardo e agregado da família libanesa. Nael é filho da indígena Domingas, a qual, ainda menina, foi trazida por uma freira “Irmãzinha de Jesus”, até Zana, em troca de alguns donativos e dinheiro. A mãe de Nael era uma cunhantã, doada de um orfanato para, eufemisticamente, ajudar Zana nos trabalhos da casa libanesa. Ao se recordar do orfanato de sua mãe, o narrador descreve-o como uma espécie DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 176 de cativeiro, ou até mesmo de uma senzala, em que os tratamentos dispensados eram cruéis: As noites que ela dormiu no orfanato, as orações que tinha de decorar, e ai de quem se esquecesse de uma reza, do nome de uma santa. Uns dois anos ali, aprendendo a ler e a escrever, rezando de manhãzinha e ao anoitecer, limpando os banheiros e o refeitório, costurando e bordando para as quermesses das missões. As noites eram mais tristes, as internas não podiam se aproximar das janelas, tinham de ficar caladas, deitadas na escuridão; às oito a irmã Damasceno abria a porta, atravessava o dormitório, rondava as camas, parava perto de cada menina. O corpo da religiosa crescia, uma palmatória balançava na mão dela. Irmã Damasceno era alta, carrancuda, toda de preto, amedrontava a todos. Domingas fechava os olhos e fingia dormir, e se lembrava do pai e do irmão. Chorava quando se lembrava do pai, dos bichinhos de madeira que fazia para ela, das cantigas que cantava para os filhos. E chorava de raiva. Nunca mais ia ver o irmão, nunca pôde voltar para Jurubaxi. As freiras não deixavam, ninguém podia sair do orfanato. As irmãs vigiavam o tempo todo. Espiava as alunas da Escola Normal passeando na praça, livres, em bandos... namorando. Dava vontade de fugir. Duas internas, as mais velhas, conseguiram escapar de madrugada: pularam o muro dos fundos, caíram no beco Simón Bolívar e sumiram no matagal. Foram corajosas. Domingas também pensou em fugir, mas as irmãs perceberam, Deus vai castigar, diziam. O fedor dos banheiros, o cheiro de creolina, das DOIS IRMÃOS 177 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 177 MILTON HATOUM 178 roupas suadas e gosmentas das religiosas. Domingas não aguentava mais. Um dia a irmã Damasceno ordenou: que tomasse um banho de verdade, lavasse a cabeça com sabão de coco, cortasse as unhas dos pés e das mãos. Tinha que ficar limpa e cheirosa! (Dois Irmãos, 2017, p. 55, 56) Assim, Nael é filho da empregada da casa de Halim e Zana, imigrantes árabes e pais dos gêmeos Omar e Yaqub, mas ele não sente sua identidade vinculada à tradição indígena e, muito menos, à influência libanesa. Pesa-lhe se sentir apenas como mais um empregado de Zana, menino de recados dela, atormentado por ordens e tarefas que lhe são impostas. Por outro lado, Nael é o agregado da família, situação que lhe permite transitar pela casa, ouvir segredos, bisbilhotar intimidades que comporão sua narrativa. Desse modo, é mister para Nael libertar-se das humilhações das quais é, direta ou indiretamente, vítima, e o caminho para alcançar êxito é a dedicação aos estudos, tal qual o fez Yaqub. A configuração da família libanesa, nesse sentido, corresponde ao perfil familiar brasileiro da época, do qual a estrutura escravocrata dos séculos passados ainda se fazia presente, disfarçada na simulação da agregação e do favor. No entanto, essa condição de subalterno estimula a resistência do narrador, que emprega a literatura como instrumento de combate, dando voz aos rebaixados pela sociedade, como Domingas, os peixeiros e os populares de Manaus. Desse modo, Nael é solidário aos marginalizados sociais, pois ele também experimenta o sentimento de exclusão, já que não encontra suas raízes identitárias árabes ou indígenas. Sua miscigenação, que pode ser associada a uma forma de representação do homem brasileiro híbrido, equilibra-se, portanto, entre o referencial materno indígena e o paterno libanês. Destaque-se que Milton Hatoum distancia-se dos estereótipos indígenas românticos ao trazer Domingas para a vida de agregada da família de Halim, mas reforça o vínculo dela com as raízes e as tradições de sua tribo. Embora durante uma viagem que o narrador faz com a mãe para conhecer as origens dela, ele não se identifique como fruto da cultura DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 178 indígena, é por meio desse passeio que Nael consegue perceber a importância da origem familiar e, portanto, parte para a busca incessante do encontro de sua identidade. Ser filho de uma cunhatã expressa, por um lado, a negação de Nael de sua origem, já que reforça nele a condição de vítima da sociedade segregacionista, e, por outro lado, a origem árabe lhe pesa a perspectiva de bastardo. Há um momento em que as duas origens de Nael se aproximam: quando Domingas morre, ele pede que a mãe seja sepultada ao lado do avô Halim. O imigrante libanês e a mãe indígena, ambos distantes de suas terras natais, ficam próximos no momento que iguala todo ser humano: a morte. O nome Nael lhe foi dado como uma homenagem ao pai de Halim, portanto bisavô do narrador. De acordo com Safa Jubran, professora da Universidade de São Paulo no Departamento de Letras Orientais, o nome Nael vincula-se ao verbo naala, que significa obter ou pegar, verbos que podem ser associados ao desejo do narrador de obter respostas para “pegar” sua origem paterna. Embora Nael seja alvo de preconceitos sociais e raciais, além de carregar o trauma de não ter sido reconhecido pelo pai, ele se revela incansável na busca de respostas para o silêncio de Domingas quanto a quem seria seu pai: Omar, o mimado e farrista, que ignorou, desprezou e maltratou Nael, ou Yaqub, o gêmeo engenheiro, bem-sucedido, que tratava o narrador com carinho, mas era incapaz de perdoar? Independentemente de Nael não descobrir qual dos gêmeos seria seu pai, percebe-se que ele renuncia à elucidação do mistério da origem de sua identidade, ao perceber que tanto Omar quanto Yaqub pautaram suas vidas em ódio, rancor e vingança, sendo gêmeos idênticos em luta constante pela conquista do mesmo espaço no coração da mãe, Zana, e também no de Lívia. Além disso, destaque-se a possibilidade de Nael ser fruto de um estupro, uma vez que Omar invadiu o quarto de Domingas e a tomou sexualmente à força, talvez motivado pelos ciúmes que tinha da intimidade dela com Yaqub. Justamente essas intimidades que a mãe tem com Yaqub, e o tratamento que ele dispensa ao narrador, também levam a uma suspeita de que ele pudesse ser o pai de Nael. E por que não seria Halim seu pai, já que dá atenção, carinho e faz conidência a Nael? DOIS IRMÃOS 179 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 179 MILTON HATOUM 180 Deixemos essa suspeita sobre Halim de lado e nos fixemos no que Nael desconfia: um dos gêmeos é seu pai. O narrador apresenta alguns traços que podem ser vinculados aos dois gêmeos. Yaqub presenteia Nael com livros, estimulando-o na busca pelo conhecimento, mas é na mesma escola de Omar, o “Galinheiro dos vândalos”, que o narrador tem contato com a importância da literatura, por meio do professor Laval, amigo de Omar; a relação de Yaqub com Domingas tem um resquício incestuoso, uma vez que ela praticamente o criou, tal qual a relação entre Omar e Zana e o afeto incestuoso que Nael também nutre por sua tia Rânia. Assim, desconsiderando-se outras aproximações que podem ser estabelecidas entre Nael e os gêmeos, percebe-se o reflexo de Omar e Yaqub na formação do narrador, o qual finda por se libertar da expectativa de descobrir qual deles seria seu pai, ao perceber que não poderia se espelhar no comportamento de qualquer um deles, uma vez que não é um desequilibrado violento como Omar, nem o homem de postura aparentemente ilibada,que age pelas costas do irmão e da família, como é Yaqub. Resta a Nael o afeto de Halim, o qual desabafava suas amarguras com o neto e nele sente confiança para fazê-lo. Essa relação de cumplicidade que o narrador tem com o avô é inexistente nas demais personagens do romance. Para um neto bastardo, não reconhecido como da família, que vive na fronteira entre a casa e o quartinho dos fundos, essa intimidade lhe dá uma certeza: fosse quem fosse seu pai, Nael era um membro excluído da família por sua origem duvidosa. Restava-lhe o desabafo por meio da escrita, a qual, indiretamente, foi estimulada por Halim quando lhe presenteou com uma caneta tinteiro, como se dissesse para o narrador, no futuro, registrar o passado perdido no tempo: “O futuro, essa falácia que persiste” (Dois Irmãos, 2017, 196). 3.2 ESPAÇO E TEMPO O período histórico do enredo do romance Dois irmãos percorre o final do Ciclo da Borracha, a Segunda Guerra Mundial, a tomada da cidade de Manaus pelo regime militar, com o Golpe de 1964, e o vislumbre com a criação da Zona Franca de Manaus, em 1967. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 180 Em Dois irmãos, a chegada da família libanesa ocorre no início do século XX, por volta de 1914, ocasião em que Galib inaugurou o restaurante Biblos, e se prolonga até pouco tempo depois do golpe militar em 1964. Desde a fase da borracha até a implantação da Zona Franca de Manaus, o desenvolvimento da capital manauara colaborou paradoxalmente com as diferenças socioeconômicas da população amazonense, que, em grande parte, migrou do interior para a capital em busca de uma espécie de ouro perdido. Manaus encontrava-se repleta de trabalhadores esperançosos: indígenas, seringueiros, caboclos, imigrantes de todos os espaços, principalmente os sírio-libaneses, em busca de melhores condições de vida, todos colaborando para a constituição de um painel multicultural na capital amazonense. Os sírios e os libaneses, por exemplo, instalam-se em Manaus, fugindo da perseguição religiosa e do empobrecimento, trazendo para a cidade uma ampliação da diversidade cultural, incluindo perspectivas históricas, literárias, religiosas, musicais e gastronômicas no local. Depois de se instalarem em quartos das vilas do centro da cidade, os mascates libaneses mudaram-se para as proximidades do Mercado Central, onde abriram armarinhos, lojas de tapeçarias, tecidos e rendas em prédios que serviam tanto para o comércio quanto para a moradia. Em Dois Irmãos, assim que Galib inaugura o restaurante, no andar térreo da mesma edificação onde morava, o Biblos passa a ser uma espécie de ponto de encontro de imigrantes e moradores locais: Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água DOIS IRMÃOS 181 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 181 MILTON HATOUM 182 gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascates, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta. (Dois Irmãos, 2017, p. 36) De acordo com Sombra (1996, p. 91), a paisagem urbana de Manaus alterava-se, e a cidade distanciava-se de suas características indígenas, aterrando os igarapés para a construção de avenidas, sobrados, palacetes, belos hotéis, o pomposo Teatro Amazonas, o Porto Flutuante de Manaus, a Alfândega, a Igreja Nossa Senhora dos Remédios, a biblioteca pública, o Palácio Rio Negro, o Colégio Amazonense D. Pedro II. Muitos arquitetos, urbanistas e paisagistas iniciaram a execução de um novo plano visual para a cidade, influenciados pela arquitetura europeia, entre os estilos neoclássico e art nouveau. No meio da selva, Manaus ganhava luz elétrica, sistema telefônico, ruas, calçadas, galerias fluviais, tratamento de água e esgoto, bondes elétricos, avenidas e praças urbanizadas e o primeiro porto flutuante brasileiro. Culturalmente, os hábitos também sofriam alterações, e os bens de consumo e a forma de sociabilidade se modificavam, espelhando os saraus europeus em família (semelhantes às reuniões que ocorriam na casa de DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 182 Halim e Zana ou dos Reinoso em Dois Irmãos), os cabarés, o cinema, e o Teatro Amazonas. No entanto, a exclusão social já se fazia notar. Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em decorrência de um acordo entre Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, o Brasil se comprometeu com auxílio aos países aliados, Estados Unidos, Inglaterra e França, com o fornecimento de, no mínimo, 5.000 toneladas de borracha anuais, a fim de se substituir a produção da Malásia, a essa altura sob o domínio japonês. O empobrecimento econômico manauara, então, se registrava nas carroças e nos raros automóveis que circulavam na cidade, que sofria com falta de eletricidade, alimentos que escasseavam e prática comercial, que se dava a partir de trocas de produtos. Assim, o mercado norte-americano passou a ser indispensável para a economia de Manaus, como destaca Milton Hatoum em Dois Irmãos: (...) Fora assim durante os anos da guerra: Manaus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro. Zana e Domingas acordavam de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a patroa ia ao Mercado Adolpho Lisboa e depois as duas passavam a ferro, preparavam a massa do pão, cozinhavam. Quando tinha sorte, Halim comprava carne enlatada e farinha de trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazônia. Às vezes, trocava víveres por tecido encalhado: morim ou algodão esgarçado, renda encardida, essas coisas. (Dois irmãos, 2017, p. 18) No entanto, Manaus começa a enfrentar problemas com o término da Segunda Guerra Mundial, e os programas para o desenvolvimento da Amazônia precisavam alterar a exclusividade extrativista da borracha para o desenvolvimento das indústrias e da mineração. DOIS IRMÃOS 183 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 183 MILTON HATOUM 184 A “Paris dos trópicos”, ou “Paris das selvas”, inicia seu declínio, pois a riqueza decorrente da extração do látex diminui, e, consequentemente, grande parte do capital estrangeiro e dos barões da borracha começa a desaparecer. Eis Manaus empobrecida e com a economia estagnada. Um dos símbolos dessa decadência manauara é a Cidade Flutuante, composta de ribeirinhos que viam Manaus repleta de grandes dificuldades no campo de trabalho, na alimentação de acesso escasso e nas submoradias. Formada por casas de palafitas, barracas e palhoças, os habitantes da Cidade Flutuante dependiam das águas do rio e dos igarapés para sobreviverem. A decadência da belle époque manauara exigiu uma forte mudança no modo devida até então estabilizado pelo Ciclo da Borracha. Desta forma se configurava Manaus, até a derrocada do ciclo da borracha que abala profundamente sua economia e os costumes locais, como relata Mello (1984, p. 27): Era o fim da grande vida. Do dia para a noite, se foram acabando o luxo, as ostentações, os esbanjamentos e as opulências sustentadas pelo trabalho praticamente escravo do caboclo seringueiro lá nas brenhas da selva. Cessou bruscamente a construção dos grandes sobrados portugueses, dos palacetes afrancesados, dos edifícios públicos suntuosos. Não se mandou mais buscar mármores e azulejos na Europa, ninguém acendia mais charutos com cédulas estrangeiras. Entre 1950 e o início dos anos de 1960, Manaus vive uma fase de economia estagnada, ficando à deriva governamental, crise que fez empresas falirem, a fome se instalar e a saída pelo porto se intensificar. Por outro lado, a cultura no país experimentava transformações com sistemas de rádio, a chegada da televisão, o cinema hollywoodiano, os musicais e os bailes de carnaval. Por outro lado, Manaus era mais um aglomerado urbano, com cerca de 100 mil habitantes, do que uma cidade grande e desenvolvida como já o era São Paulo, sendo o crescimento desordenado de ambas as cidades um DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 184 dos causadores das condições de vida desigual. Nael, o narrador de Dois Irmãos, por exemplo, é consciente de ser um excluído nessa sociedade, pois lhe fora reservado um lugar secundário nela, representado pelo quartinho dos fundos da casa libanesa onde residia: Depois da nossa viagem de barco Halim sugeriu que eu ocupasse o outro quartinho dos fundos. Disse a Domingas que eu já passara da idade de dormir com a mãe no mesmo quarto, que ela devia se desgarrar um pouco de mim. Eu mesmo ajudei a limpar e a pintar o quartinho. Desde então, foi o meu abrigo, o lugar que me pertence neste quintal. Agora só escutava o eco da canção que minha mãe cantava nas noites de insônia. Às vezes, quando eu estava estudando debruçado sobre uma mesinha, via o rosto de Domingas no vão da janela, o cabelo liso, de cobre, sobre os ombros morenos, os olhos dirigidos para mim, como se me pedisse para dormir com ela, na mesma rede, nós dois abraçados. Quando eu saía à noite pela cerca dos fundos, ela me esperava, alerta, tal uma sentinela preocupada com alguma ameaça noturna. Ela temia que o meu destino confluísse para o de Omar, como dois rios indômitos e turbulentos: águas sem nenhum remanso. (Dois Irmãos, 2017, p. 23, 24) O final da década de 1950, no Brasil, marca-se pela euforia de crescimento estimulada, principalmente por Juscelino Kubitschek e seu Plano Nacional de Desenvolvimento, Cinquenta anos em cinco, com o propósito de alavancar o país ao patamar de nação desenvolvida. Mas, em Manaus a situação era diferente: modernizada tardiamente a cidade sofria com a falta de políticas públicas nacionais e sobrevivia à sombra das grandezas naturais do rio e da floresta. Em abril de 1964, Manaus conhece o medo e o clima de horror do regime militar, que impõe uma nova ordem política ao país. As DOIS IRMÃOS 185 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 185 MILTON HATOUM 186 manifestações em contrário à nova forma de governo brasileiro encontram alguns ativistas em prol da liberdade, sendo, na obra Dois Irmãos, o professor Laval um símbolo do inconformismo com o estado limitador da censura imposta aos brasileiros. A chegada dos militares a Manaus alterou drasticamente o cenário da cidade, transformando-a num local repleto de repressão e medo: Ele sabia que Manaus se tornara uma cidade ocupada. As escolas e os cinemas tinham sido fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as estações de rádio transmitiam comunicados do Comando Militar da Amazônia. Rânia teve que fechar a loja porque a greve dos portuários terminara num confronto com a polícia do Exército. Halim me aconselhou a não mencionar o nome de Laval fora de casa. Outros nomes foram emudecidos. A tarja preta que cobria uma parte da fachada do liceu fora arrancada e as portas do prédio permaneceram trancadas por várias semanas. (Dois Irmãos, 2017, p. 149). Embora a repressão fosse a ordem do dia no país, a economia de Manaus começava a apresentar melhoras, e a chegada da Zona Franca, em 1967, abriu cerca de 40.000 postos de emprego para suprir a necessidade de mão de obra das indústrias de montagem e acabamento, alterando espaços ocupados anteriormente por belos sobrados, agora transformados em centros comerciais, como aconteceu com a casa da família de Halim, que deu lugar para a Casa Rochiram, que vendia produtos importados. As empresas se localizaram em espaços urbanizados com a assessoria do governo do Amazonas para a instalação no chamado Distrito Industrial. Como as indústrias não dependiam do extrativismo, a mão de obra barata dos nativos e imigrantes era suficiente para o sucesso da Zona Franca. Com a industrialização, os bairros antigos foram destruídos, muitas transformações mudaram o perfil manauara, a miserabilidade indígena, de seus descendentes e dos trabalhadores portuários foi crescente, a rigidez dos DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 186 militares era intensa e a atividade de imigrantes estrangeiros, descontrolada. A violência e a destruição eram constantes e a população assistia a tudo desolada: (...) Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do Rio, serem desmantelados a golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancavam os tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os finos pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas caíam na água e se distanciavam da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela noite. (Dois Irmãos, 2017, p. 158, 159) Dois irmãos registra uma parte da história de Manaus, a memória coletiva da cidade, sua cultura híbrida e as relações interculturais entre as religiões, gastronomia, línguas e valores, convivendo com os avanços da modernidade e das alterações políticas, sociais e econômicas. A transição da cidade, de seus dias de glória e de estabilidade econômica para o declínio e destruição de valores naturais, é metaforizada na casa libanesa de Halim. Enquanto Manaus é o macroespaço da narrativa, a casa é um microespaço, em que se refletem os conflitos e os valores manauaras entrelaçados à influência libanesa, numa mesma trajetória do apogeu à modernização da história manauense. DOIS IRMÃOS 187 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 187 MILTON HATOUM 188 Os tempos de riqueza, proporcionados pelo Ciclo da Borracha, estão representados na casa dos Reinosos, chamada pelo narrador de palácio em decorrência da ostentação e do luxo, que se transforma, depois, na representação da elite decadente de Manaus. A reforma da loja de Halim, por exemplo, registra a nova identidade de Manaus, já que Rânia passa a comercializar produtos modernos no lugar das mercadorias antigas que o pai amava, numa espécie de descaracterização da loja que representa a decadência familiar pela perda de suas origens e o consequente crescimento dos confrontos que conduzem ao desmoronamento da Casa, agora em seu sentido de Família. A chegada do indiano Rochiram simboliza a entrada do capitalismo selvagem emManaus e a conversão dos valores importantes das amizades sinceras e da honestidade em peças de um jogo de interesses inescrupulosos e egoístas do investidor sem limites. Assim como o falso inglês Wyckhan, um contrabandista, Rochiram representa a política econômica de exploração, dominação e injustiça do sistema econômico capitalista, que desconstrói as relações sociais e afetivas. Desse modo, Manaus não é só o espaço geográfico em que o enredo de Dois irmãos circula, mas se torna uma personagem que movimenta a vida de todas as camadas sociais manauaras, influenciando a vida das personagens e, também, sendo influenciada pelos movimentos delas. A chegada da industrialização e a transformação de uma Manaus plural antiga em uma desordenada capital trazem o questionamento em relação ao atraso e ao progresso da realidade do Norte do Brasil, que, se comparado ao Sul do país, representado pelo progresso da cidade de São Paulo e pela construção de Brasília, construída com o esforço árduo de brasileiros trabalhadores, registram o descaso com as reais necessidades de Manaus: uma cidade empobrecida e sem a devida importância no cenário nacional. Enquanto em Brasília o progresso era galopante, Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 188 dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso. Zana, que na juventude aproveitara os resquícios desse passado, agora se irritava com a geladeira a querosene, com o fogareiro, com o jipe mais velho de Manaus, que circulava aos sacolejos e fumegava. (Dois Irmãos, 2017, p. 96) Em Dois Irmãos, Manaus, desintegrada do vertiginoso progresso de São Paulo e Brasília, torna-se um cenário de ruínas e da passagem do tempo. Assim, Yaqub, ao se mudar para São Paulo, foge do atraso e do passado, enquanto Omar permanece no espaço amazônico que vai sendo devastado, tal como a vida do Caçula. Omar mantém por toda sua vida uma rotina de desleixo, irresponsabilidade e algazarras, sem perspectiva de evolução ou crescimento reais, pois vive na dependência dos pais, assim como Manaus, originalmente, um espaço de riquezas, não consegue independer-se do domínio que lhe é imposto. Já Yaqub, deslumbrado com a ideia de futuro promissor por meio dos estudos, muda-se para a grande metrópole paulistana e rende-se ao mundo capitalista frenético. Em suas cartas, o gêmeo mais velho descreve a cidade de São Paulo como o espaço da prosperidade e, desse modo, parece defender o ritmo acelerado de mudanças em Manaus, com a implantação do projeto de industrialização e, até mesmo, parece nutrir uma certa simpatia ao regime militar, divergindo do pai Halim, arruinado ao assistir às mutilações impostas à capital amazônica. Mas, mesmo distante de sua terra de origem, Yaqub encontra na capital paulista um elemento que o vincula a Manaus: uma seringueira semelhante à do seu quintal, em que Omar subia destemido. O olhar para a árvore estabelece em Yaqub um estranhamento com a metrópole, ao mesmo tempo que o familiariza com ela. A imagem da seringueira amazônica percorre praticamente todo o livro Dois Irmãos: na infância dos gêmeos, no lugar em que Halim plantava suas ervas do Oriente, no leito de que ela servia para momentos amorosos do casal libanês, no sacrifício do carneiro que era nela dependurado para DOIS IRMÃOS 189 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 189 MILTON HATOUM 190 depois servir de refeição, no canto do urumutum, na tentativa de alívio da coceira de Omar decorrente da doença venérea, no espaço de refúgio do Caçula e na derrocada da família, da qual toda riqueza é extraída, restando, no entanto, apenas a velha seringueira rodeada pelas quinquilharias da Loja Rochiram. A árvore secular, muito além de ser um referencial da natureza amazônica, é símbolo de enraizamento da família de Halim em Manaus e estende-se a São Paulo, para que Yaqub não se esqueça de suas origens, mesmo tendo escolhido viver no espaço urbano. Tanto a transformação da casa libanesa, de arquitetura elegante e tradicional, na loja indiana, com suas vitrines exibindo produtos vindos de Miami e do Panamá, quanto a destruição da Cidade Flutuante representam a devastação e a imposição dos valores ditos modernos a Manaus, uma cidade edificada por seringueiros e indígenas, em meio à construção de conjuntos populacionais para os trabalhadores de baixíssima renda, com precário saneamento básico, rodeada por maus odores e de crescimento desorganizado. O caminhar de Nael por Manaus é o instrumento de que se vale Milton Hatoum para ilustrar a cidade, numa espécie de mapeamento geográfico local, cercada pelas águas do Rio Negro presente na maioria das lembranças de Nael, Domingas e Halim, que remetem ao rio de Heráclito, metáfora da passagem de um tempo que não volta mais, tal como a água que corre e não regressa. Durante a viagem de barco no rio Negro, que Nael faz com a mãe, ela vincula a contemplação da paisagem com suas memórias do passado, tal qual faz Halim, que também se vale das águas para resgatar suas lembranças e relatá-las ao narrador. A imagem da água é um referencial para a trajetória da família, simbolizando a vida positiva inicial em terras amazônicas até o desmoronamento dos laços que uniam, de certo modo, todos os que viviam ao redor da casa libanesa. Também está a água associada à história de Manaus, desde o registro do cheiro desagradável da Cidade Flutuante, em contraste à beleza exuberante dos rios e da floresta amazônica, até a paisagem lodosa da zona portuária com árvores apodrecendo (tal qual a podridão imposta àqueles que estão à margem da sociedade manauara elitizada), e a invasão militar em meio a um terrível aguaceiro que cai sobre a cidade manauara. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 190 DOIS IRMÃOS 191 Assim, há, na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, duas Manaus: a real, passando por diversas mudanças de ordem econômica, social e política, e a imaginária, fruto das leituras subjetivas que o narrador faz desse espaço. Além disso, podemos vincular a capital manauara à casa da família de Halim: ambas vão de tempos de glória ao declínio, das tradições culturais nativas às alterações impostas pelo mundo capitalista. Dois espaços e uma mesma sina. 3.3 OS HOMENS EM DOIS IRMÃOS Halim é marido de Zana e pai de Yaqub, Omar e Rânia. Ele é responsável pela manutenção da história da família de imigrantes libaneses, sendo suas lembranças registradas pelo narrador Nael. Homem apaixonado pela esposa, suas emoções representam por extensão os sentimentos dos imigrantes deslocados de suas terras natais. Admirador de música e poesia, Halim fora mascate pelas ruas de Manaus até casar-se com Zana, filha de Galib, proprietário do restaurante Biblos, que, após a morte do pai, converte-se na loja e residência da família libanesa. Halim, homem simples, de ambições reduzidas e sem a firmeza típica do tradicional libanês chefe patriarcal da família, era apaixonado por Zana e não desejava filhos para que eles não tirassem a esposa de seu convívio inseparável, mas, por exigência dela, o casal acaba tendo três crianças: os gêmeos Yaqub e Omar e Rânia: Os filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e ele nunca se conformou com isso. No entanto, eram filhos, e conviveu com eles, contava-lhes histórias, cuidava deles em momentos esparsos. Levava-os para pescar no lago do Puraquecoara, e remavam no paraná do Cambixe, onde Halim conhecia criadores de gado, donos de fazendolas. Foi o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente de que os filhos tinham-lhe roubado um bom pedaço de DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_202331/08/2023 11:06 Página 191 MILTON HATOUM 192 privacidade e prazer. Anos depois, iriam roubar-lhe a serenidade e o bom humor. Ele advertia a esposa sobre o excesso de mimo com o Caçula, a criança delicada que por pouco não morrera de pneumonia. (Dois Irmãos, 2017, p. 53) Como o Caçula apresentou problemas de saúde ainda muito pequeno, Zana passou a se dedicar aos cuidados dele, o que acabou se convertendo em um relacionamento moldado na posse e no ciúmes de ambas as partes, o que Halim não compreendia, mas se conformava, como romântico tardio e paciente que era e, por isso, fora capaz de abdicar de qualquer coisa pelo profundo amor que sentia por Zana, a real comandante da casa. Halim passa a ver Omar como uma espécie de ladrão que furtava dele a atenção de Zana. Não bastando os excessivos zelos da mãe pelo Caçula, o comportamento inconsequente e mimado dele irritava imensamente o pai, intensificando-se a rivalidade entre ambos. As decepções vividas em casa eram atenuadas pelos longos e solitários passeios de Halim pela orla portuária de Manaus, sempre parando em alguma taberna para tomar algo e petiscar, com pescadores, carroceiros, carregadores. Halim é um errante, que se ausenta de casa frequentemente em busca das memórias passadas de sua terra natal e de uma identidade alterada pela imposição do domínio afetivo que Omar tem da mãe. É o afeto que tem por Nael que, de certo modo, supre as deficiências sentimentais de Halim. Com o neto bastardo, ele desabafa e passeia, rememorando o passado, suas tormentas e lamentações. Dessa maneira, o narrador tem acesso às informações mais preciosas da vida da família libanesa e das histórias envolvendo Yaqub, Omar, Galib, Cid Tannus e outras personagens. O que Halim não conta acaba sendo preenchido na narrativa por informações que o narrador obtém por meio de Domingas e Zana, ou pela própria imaginação que lhe permite criar alguns fatos. Halim é um “contador de casos”, reais ou imaginados, oral, que acaba estimulando Nael a ser o contador de histórias por meio da escrita, que, de certa maneira, foi indicada a ele quando o avô o presenteou com uma caneta tinteiro. Já Yaqub, o gêmeo mais velho, é um homem sério, dedicado aos DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 192 DOIS IRMÃOS 193 estudos, enigmático aos olhos do narrador, inteligente, de atitudes comedidas e secretas. Desde a infância, Yaqub é ofuscado pelo comportamento impetuoso e ousado do irmão Omar, o Caçula, idêntico fisicamente, mas díspar, até certo ponto, de Yaqub. Preterido pela mãe em favor de Omar, Yaqub é solitário e silencioso como o pai Halim, comportamentos intensificados após ele ter sido enviado ao Líbano pelos pais, numa tentativa de se evitarem maiores conflitos entre os gêmeos depois do episódio que resultou na cicatriz no rosto de Yaqub, provocada por uma garrafada que Omar lhe deu num acesso de ciúmes ao ver Lívia dando um beijo no rosto do irmão. Ao retornar do Líbano, aos dezoito anos de idade, Yaqub é um estranho para o pai e um rude para a mãe. Além disso, a separação de Omar por cinco anos se encarregou de aumentar mais a rivalidade entre os gêmeos, contrariando as expectativas de Halim e Zana. Yaqub é uma releitura às avessas do mito de Ulisses, ou Odisseu, do poema épico Odisseia, o qual se distanciou por dez anos de Ítaca e, ao voltar, encontrou Penépole, sua esposa, aguardando fiel e obstinadamente o seu retorno, o que não ocorre com Yaqub, que, de certa forma, continua sendo o rejeitado pela mãe e sem identificação com um lugar para onde voltar. A história de Yaqub e Omar também pode ser vinculada à parábola bíblica do Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), que conta a história de um pai e dois filhos. Em certa ocasião, o filho mais novo solicitou ao pai que lhe desse sua parte na herança, partindo para terras distantes, onde gastou todos seus bens em atividades pecaminosas e inconsequentes, sem nenhuma preocupação com o futuro. O dinheiro findou e o filho mais novo passou a viver como um mendigo. Desesperado e arrependido, ele voltou à casa do pai e foi recebido por ele com festa, já que o filho retornara ao lar. No entanto, o irmão mais velho não aceitou a volta do pródigo por ter sido desleal à família, ao contrário dele. Em Dois Irmãos, o filho expatriado é Yaqub, o mais velho, ao contrário da parábola bíblica, mas é Omar, o mais novo, que se mantém em Manaus e gasta o dinheiro da família na esbórnia, sem nenhum sinal de arrependimento pelo que faz. Além disso, no retorno de Yaqub, há uma rápida recepção para ele na casa libanesa, mas o destaque da festa é Omar, o qual não é visto pela mãe como o filho pródigo, denominação que, para ela, seria mais pertinente a Yaqub. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 193 MILTON HATOUM 194 Em Dois irmãos, de Milton Hatoum, o gêmeos continuam, por toda a vida, disputando o espaço de privilégio no coração da mãe e, frente à impossibilidade de solução desse impasse, Yaqub, um estrangeiro em seu próprio lar, decide ir para São Paulo, onde estuda e conquista uma sólida carreira profissional na engenharia, fruto de sua grande habilidade com a Matemática. No entanto, a ida de Yaqub para São Paulo representa não só o interesse dele pela modernização em troca do provincianismo manauara, mas, também, sua rejeição de participar do núcleo familiar dominado por Omar e, ainda, a possibilidade de vingança dele de provar para a família sua capacidade de independência e sucesso econômico e profissional: Um outro Yaqub, usando a máscara do que havia de mais moderno no outro lado do Brasil. Ele se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca que se quer serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a folhagem. Por fora, era realmente outro. Por dentro, um mistério e tanto: um ser calado que nunca pensava em voz alta. (Dois Irmãos, 2017, p. 45) Yaqub enviava, frequentemente, presentes para a família numa demonstração do carinho que tinha para com os seus, preocupado com uma melhor qualidade de vida deles, mas, por outro lado, a meu ver mais importante, era uma forma de ele exibir sua prosperidade, comprovando ser superior a Omar, o filho querido de Zana. Na verdade, o ressentimento vivido por Yaqub nunca será resolvido por ele, principalmente se considerarmos o espírito vingativo do gêmeo mais velho direcionado, principalmente, a Omar, mas também à família e, principalmente a Omar, quando moderniza, juntamente com Rânia, o comércio de Halim, destruindo anos de dedicação do pai ao trabalho que amava, e ao negociar a casa da família libanesa com Rochiram, o indiano inescrupuloso. A garrafada que Omar deu no rosto do irmão na adolescência provocou mais do que a cicatriz física no rosto de Yaqub: deixou-lhe na DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 194 face esquerda uma marca que cresceu na alma do gêmeo mais velho, transformando-o em um homem capaz de fazer qualquer coisa para se vingar de Omar e de Zana. O Caçula é apresentado por meio das avaliações feitas por outras personagens e pelo olhar de Nael que, embora preferisse ser filho de Yaqub, acredita muito em que Omar seja seu pai em decorrência de ele ter violentado sexualmente Domingas. Enquanto Yaqub posa de farda e impressiona a todos no desfile de Sete de Setembro, Omar é quase um ogro, selvagem sempre deitado na rede, importunando sexualmente as mulheres da casa e aventurando-se com outras na rua e nas festinhas manauaras: Já Omar era presente demais: seu corpo estava ali, dormindo no alpendre. O corpo participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna. Durante a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser imóvel, embrulhado na rede. No começo da tarde, rugia, faminto, bon vivant em tempo de penúria. Era, na aparência, indiferente ao êxito do irmão. Não participava da leitura das cartas, ignorava o oficial da reservae futuro politécnico. No entanto, mangava das fotografias expostas na sala. “Um lesão com pinta de importante”, ele dizia, e com uma voz tão parecida com a do irmão que Domingas, assustada, procurava na sala um Yaqub de carne e osso. A mesma voz, a mesma inflexão. Na minha mente, a imagem de Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de Omar. Neste habitavam os gêmeos, porque Omar sempre esteve por ali, expandindo sua presença na casa para apagar a existência de Yaqub. Quando Rânia beijava as fotos do irmão ausente, Omar fazia umas macacadas, se exibia, era um contorcionista tentando atrair a atenção da irmã. Mas a lembrança de Yaqub triunfava. As DOIS IRMÃOS 195 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 195 MILTON HATOUM 196 fotografias emitiam sinais fortes, poderosos de presença. Yaqub sabia disso? Sempre com a expressão altaneira, o cabelo penteado, o paletó impecável, as sobrancelhas grossas e arqueadas, e um sorriso sem vontade, difícil de compreender. O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir. (Dois Irmãos, 2017, p. 46) De comportamento agressivo, Omar é retratado como o corajoso, desafiador de perigos, chamando os “curumins” para a briga, atacando o professor Bolislau, desferindo a garrafa quebrada no irmão, enfrentando o regime militar na defesa do professor Laval. Mas suas principais audácias foram levar Dália para casa e envolver- se com a Pau-Mulato, desafiando a mãe, a qual não admitia que o Omar (e também Yaqub, tanto que ele se casa às escondidas da família, principalmente por ter escolhido para esposa Lívia, o estopim da discórdia entre os gêmeos, mas não a única responsável por ele) saísse de casa para morar com uma mulher. O Caçula impetuoso, no final da narrativa, encontra-se sozinho e silencioso, abandonando-se ao destino que ele buscou e para o qual não estava definitivamente preparado por causa dos mimos e proteções que a mãe lhe oferecia. Com Zana morta, Omar torna-se um homem sem rumo e volta a ser uma criança fragilizada como o fora ao nascer. Embora ele peque intensamente com seu comportamento inconsequente, e também vingativo em relação ao irmão Yaqub, cabem aqui dois ligeiros questionamentos sem resposta única: Há realmente diferenças comportamentais definidas entre os dois irmãos vingativos que se odeiam? Qual dos gêmeos é o vilão da história? Mais uma ambiguidade que marca a narrativa de Milton Hatoum ao lado da que parece ser o dínamo do livro: quem é o pai de Nael? 3.4 AS MULHERES EM DOIS IRMÃOS Na cultura árabe, o mando familiar centra-se na figura de um pai e, no caso da ausência dele, de um irmão mais velho, homens provedores da casa a quem se deve obediência e respeito. Assim, as mulheres, normalmente, têm suas vidas sob a dominação masculina, à qual são DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 196 resignadas, conforme é determinado pelo livro sagrado da religião islâmica, o Alcorão. No entanto, no romance Dois Irmãos, encontramos uma ruptura dessa tradição na casa do libanês Halim: Zana, a matriarca da família, é quem detém todo o poder de mando sobre tudo e todos à sua volta, invertendo as tradições árabes no que concerne ao papel social feminino. Órfã de mãe, Zana saiu do Líbano ainda criança e veio com o pai, Galib, para Manaus, onde as perspectivas de vida melhor eram intensas. Embora a vida de Zana, num ambiente distante de sua terra natal, seja difícil e dolorosa, ela é uma mulher forte: a decisão de se casar com Halim foi dela, enfrentando até a oposição das maronitas; a quantidade de filhos que teria, talvez para recuperar o sentido de sua vida depois da morte do pai, partiu dela, mesmo com a recusa de Halim, que não queria filhos; o controle da casa e de sua movimentação passava pelo comando das mãos de Zana; a intensa atividade sexual com Halim tinha as diretrizes da esposa; a escolha de Yaqub para ir sozinho para o Líbano teve dela grande participação; a solteirice de Omar coube à determinação da mãe dominadora: Halim torcia para que uma dessas mulheres levasse o filho (Omar) para bem longe de casa, ou que uma das filhas de Talib, sobretudo Zahia, a mais formosa, sensual e perspicaz, laçasse o Caçula. Mas ele intuía que Zana era mais forte, mais audaciosa, mais poderosa. (Dois Irmãos, 2017, p. 74) A voz de Zana é ouvida e respeitada (ou obedecida) por todos à sua volta, à exceção, de certo modo, de Yaqub. Mulher calculista, curiosa, às vezes melancólica, e apaixonada pelo filho Caçula, num relacionamento que beira o incesto, Zana desespera-se algumas vezes ao longo da narrativa como, por exemplo, por ocasião da morte de seu pai, o que a faz assumir um comportamento próximo ao da viuvez. A relação entre Zana e o pai remete ao mito de Electra, o qual se vincula ao amor incestuoso entre filha e pai, mas, também, de maneira invertida, podemos associar ao comportamento que Zana tem com o filho DOIS IRMÃOS 197 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 197 MILTON HATOUM 198 Omar, já que ultrapassa o limite de amor maternal, ao tornar-se, além de possessivo, um afeto repleto de sensualidade de ambas as partes. Destaque-se que os homens da família libanesa marcam-se pelo estigma da dependência da matriarca, e essa fragilidade é mais notória no comportamento de Omar, o qual não consegue se libertar dos mimos da mãe, embora chegue a tentar por duas vezes ao se envolver com Dália e Pau-Mulato. Halim também é aprisionado pelos encantos e desempenhos sexuais da esposa, por isso suporta ser comandado pela mulher. O único que demonstra uma certa libertação de Zana é Yaqub, no entanto, se observarmos mais profundamente, detectamos nele a necessidade de ser amado pela mãe, que, embora idolatre e orgulhe-se do filho doutor, pretere- o em favor do Caçula. Até mesmo o neto bastardo, Nael, tem por ela algum encantamento, mas é consciente de que ela o usa como um faz-tudo da casa, já que é filho de Domingas. Todos os homens de Zana parecem hipnotizados pelo domínio dela. Com as desavenças intransponíveis entre Yaqub e Omar, o comportamento irregular do Caçula, o desejo de vingança do gêmeo mais velho, a morte de Halim e o despejo de sua amada casa, Zana desencadeia um forte processo de melancolia e solidão, vendo seu clã familiar desmoronar, situação da qual ela é uma das principais responsáveis. De certa forma, a maneira autoritária e dominadora de Zana se reflete, em grau menos acentuado, no relacionamento dela com Rânia, a real caçula dos três irmãos. Sensual e arredia, bonita e ocultadora de seus encantos físicos, Rânia, mulher de olhos amendoados, era desejada por homens, aos quais ela não dispensava atenção, mas lhes acendia delírios sensuais, como ocorre também com o sobrinho Nael, com quem ela chega a se relacionar sexualmente uma vez. Embora entre ela e o narrador exista o elo familiar, Rânia parece recusar esse vínculo, como também rejeita a possibilidade de um envolvimento amoroso sério com Nael pelo mesmo motivo que se afastava de todos os homens que por ela se interessavam: nutria um forte amor platônico e incestuoso pelos irmãos gêmeos. Fica notória a preferência que Rânia tem por Omar, embora as carícias que Yaqub lhe fazia provocassem nela um forte estonteamento físico, quase animalesco: DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 198 (...) Ela mimava os gêmeos e se deixava acariciar por eles, como naquela manhã em que Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela, morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo. Como ela se tornava sensual na presença do irmão! Com esse ou com outro, formava um par promissor. Nos quatro dias de visita ela se empetecou como nunca, e parecia que toda a sua sensualidade, represada por tanto tempo, jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante. Rânia, não a mãe, ganhou osmelhores presentes dele: um colar de pérolas e um bracelete de prata, que ela nunca usou na nossa frente. Ainda chovia muito quando a vi subir a escada, de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento minha imaginação correu solta. Só desceram para comer. (Dois Irmãos, 2017, p. 87) A imaginação de Nael também viaja livremente quando pensa no forte desejo que sentia pela tia, tendo a mesma vontade aparente de tê-la sexualmente como parece ocorrer com Omar e Yaqub, num quase quarteto amoroso incestuoso. Sendo uma personagem secundária na trama de Milton Hatoum, Rânia, além de sua sensualidade, tem forte habilidade para o comércio, revelando a herança que recebeu do pai, Halim, ao fazer os negócios prosperarem. Ela, assim como Zana, se considerarmos o papel da mulher na sociedade árabe, estão na contramão do comum, fugindo da passividade feminina e tomando as rédeas do comando comercial, no caso da filha, e doméstico, no caso da mãe. Por outro lado, a dedicação de Rânia ao trabalho funciona como uma válvula de escape para sua forte frustração amorosa desencadeada pela mãe. Quando Rânia se apaixonou, Zana destruiu a possibilidade de ela ser feliz amorosamente, proibindo a filha de se envolver com um rapaz de baixo DOIS IRMÃOS 199 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 199 MILTON HATOUM 200 poder aquisitivo. No entanto, sabedores que somos do espírito dominador e, de certo modo, egoísta de Zana, fica-nos sugerido que a mãe repete com Rânia o que também fez com Omar e tentou com Yaqub: manter todos os filhos sob seu teto e poder. Assim, Rânia não se interessou por mais nenhum homem, seja por causa do trauma de não poder casar com quem desdejava, seja porque não encontrava em seus pretendentes o espelhamento dos gêmeos. Como forma de compensação, ela dedicou-se aos negócios, realizando na loja do pai o que se esperava ser feito por Omar, uma vez que Yaqub tomara rumo para a engenharia. Zana fez com Rânia o que não permitiu que lhe fizessem: dominar e controlar suas ações. Exercer o domínio é característica marcante da mãe libanesa e, não satisfeita em regular os membros de sua família, Zana também rege a vida de Domingas. Indígena órfã, retirada de sua terra por religiosas que a moldaram para servir às famílias de Manaus, e agregada da família de Halim, Domingas é uma das peças fundamentais para Nael compor sua narrativa e tentar construir sua identidade, uma vez que é da mãe que poderia sair a resposta de quem era o pai dele, mas Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes. (Dois Irmãos, 2017, p. 54) Domingas era uma indígena com características próximas a de uma escrava liberta, já que não era remunerada pelos seus serviços e nem tinha DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 200 dias de folga. No Norte do Brasil, muitos indígenas ou descendentes destribalizados eram comumente incorporados às casas de famílias, o que ainda hoje é comum em alguns lugares. O reflexo do processo de colonização, portanto, ainda se faz presente na sociedade brasileira. No caso do romance Dois Irmãos, Zana representaria o colonizador poderoso e soberano e Domingas, a colonizada que absorve, por exemplo, os valores religiosos da patroa, com a qual identifica algumas semelhanças, pois ambas têm devoção a seus filhos, partilham os cuidados e o amor aos gêmeos, participam de rituais religiosos em conjunto e sofrem por causa do desterro e da saudade do tempo passado. O indígena, no Brasil, considerado de maneira preconceituosa como selvagem e bárbaro, tinha um papel relevante em algumas tarefas, como as do tratamento e exploração da terra e do serviço doméstico. A situação de empregada doméstica, sem nenhuma regalia, faz com que Domingas testemunhe os acontecimentos ocorridos na casa de Halim, com quem ela tem uma relação de cumplicidade e vice-versa, já que ambos mantêm, até o desfecho da obra, o segredo de quem seria o pai do narrador, além de as duas personagens serem testemunhas dos fatos que compõem a narrativa de Nael. Domingas, em sua condição de empregada, marginalizada, alvo de preconceitos e obediente à aculturação europeia, tem livre acesso à casa libanesa e, mesmo sendo vítima de exclusão social, como grande parte dos indígenas brasileiros também o são, sabe de informações elucidativas no que concerne à realidade familiar de Halim e Zana, acompanhando-os desde a prosperidade até o declínio do clã libanês. A mãe de Nael, ao ser levada para o orfanato ainda criança, tem suas crenças alteradas, absorve o batismo e a alfabetização, que não a libertam da exclusão, mas a obrigam a uma dedicação e desprendimento pessoal em relação à família de Zana até a morte, sem nunca reivindicar algo para si. Num condicionamento inconsciente das alterações que lhe foram provocadas, Domingas, fruto da sociedade patriarcal e machista, em certa ocasião, faz uma viagem com o filho Nael, mas, durante o passeio, também não se sente confortável, já que não se identifica mais como filha da selva. A cultura indígena, entretanto, não deixa de fazer parte do dia a dia de Domingas. Por exemplo, em uma das vezes que Omar desaparece de casa, ela sugere DOIS IRMÃOS 201 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 201 MILTON HATOUM 202 (...) Posso preparar um olho de boto? A senhora pendura o olho no pescoço e aí o Caçula vem beijar a senhora... com muito amor”. Zana não sabia o que dizer? Ela se aproximou de minha mãe e virou a cabeça para o oratório. As duas, juntas, ainda disputavam a beleza de outros tempos. A índia e a levantina, lado a lado: a expressão solene dos rostos, o fervor que cruzara oceanos e rios para palpitar ali naquela sala — tanta devoção para que ele voltasse, são e salvo, sobretudo sozinho, para o quarto que seria sempre só dele. (Dois Irmãos, 2017, p. 111) Em um outro momento da narrativa, Domingas vale-se dos conhecimentos indígenas para tratar o filho adoentado: Nos últimos dias que ficou em Manaus Yaqub me visitou várias vezes. Sentava num tamborete, passava a mão no meu braço e na minha testa, dizia que eu tinha um pouco de febre. Ainda me lembro do seu rosto preocupado, da voz que queria chamar um médico, ele pagaria tudo. Domingas não aceitou, ela confiava no bálsamo de copaíba, nas ervas medicinais. Passei alguns dias deitado, e me alegrou saber que Halim dera mais atenção ao neto bastardo que ao filho legítimo. Ele sequer pisou na soleira da porta do Caçula. No meu quarto entrou várias vezes, e numa delas me deu uma caneta-tinteiro, toda prateada, presente dos meus dezoito anos. (Dois Irmãos, 2017, p. 150, 151) O narrador, Nael, embora não se considere um indígena, pois não se vê ligado à cultura da mãe, respeita, no entanto, os valores da cultura familiar. Ele observa com carinho, por exemplo, as pequenas esculturas DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 202 feitas por Domingas com representações de pássaros e serpentes, metáforas da liberdade e do perigo, respectivamente, no imaginário da indígena. Domingas, mesmo aparentemente integrada à realidade que lhe fora imposta, com o afastamento dela de sua cultura, credo e identidade indígena, não despreza seus valores originais, vivos, internamente, e vinculados ao desejo de liberdade: Quando chovia sem força de temporal, Domingas entrava no meu quarto e eu a ajudava a tirar a casca de um pedaçode tronco de muirapiranga, que depois ela esculpiria com habilidade e paciência. Ela, que tinha medo de trocar uma lâmpada, podia transformar um pau tosco num pequenino papa-açaí de peito encarnado. [...] Os bichinhos esculpidos em muirapiranga estavam arrumados na prateleira. Lustrados, luziam ali os pássaros e as serpentes. O bestiário de minha mãe: miniaturas que as mãos dela haviam forjado durante noites e noites à luz de um aladim. As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empoleirado num galho de verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha mãe tinham servido os outros. Guardou até o fim aquelas palavras, mas não morreu com o segredo que tanto me exasperava. Eu olhava o rosto de minha mãe e me lembrava da brutalidade do Caçula. (Dois Irmãos, 2017, p. 97, 182) Domingas vive privada de sua liberdade, saudosa, em certa medida, de seu contato com a natureza, sendo vítima de preconceitos, como se pode perceber na fala de Estelita Reinoso: DOIS IRMÃOS 203 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 203 MILTON HATOUM 204 Seu casarão era um luxo, as salas cheias de tapetes persas, cadeiras e espelhos franceses; os copos e taças cintilavam a cristaleira, tudo devia ser limpo cem vezes por dia. O pêndulo dourado brilhava, mas o relógio silenciara havia muito tempo. Para entrar na cozinha dos Reinoso eu tinha que tirar as sandálias, era a norma. Na casa moravam empregadas de quem Estelita falava horrores para Zana. Eram umas desastradas, desmazeladas, não serviam para nada! Não valia a pena educar aquelas cabocas, estavam todas perdidas, eram inúteis! O Calisto, um curumim meio parrudo do cortiço dos fundos, cuidava dos animais dos Reinoso, sobretudo dos macacos, que guinchavam e saltitavam nos imensos cubos de arame do quintal. Eram divertidos, dóceis, faziam gracejos para as visitas e não davam tanto trabalho. Os macacos amestrados eram o tesouro vivo de Estelita. Com toda a tropa de serventes à sua disposição, aquela parasita era a vizinha que mais me atazanava. Parece que fazia de propósito. “Zana”, dizia com uma voz melosa e falsa, “o teu menino pode apanhar uma talha de leite para mim?” Eu saía para buscar o leite e tinha vontade de mijar e cuspir na talha. Às vezes, depois do almoço, quando me sentava para fazer uma tarefa da escola, escutava os estalidos do salto alto de Estelita ressoando no assoalho de casa. As marteladas dos passos acordavam todo mundo. (Dois Irmãos, 2017, p. 61) A mais gritante e inaceitável violência, no entanto, da qual Domingas é vítima, é o estupro que sofre de Omar, reflexo da mentalidade escravocrata, DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 204 machista e desrespeitosa em relação à mulher, presa por estigmas de dominação e cooptação. A atitude agressiva de Omar em relação à Domingas pode ser considerada (mas não aceita como normal) decorrente de motivos como o caráter doentio do Caçula, que acredita poder ser e fazer o que quiser, livre de qualquer possibilidade de punição; do viés machista de dominação da mulher que, impossibilitada de reagir em decorrência de sua condição de agregada e dependente da família, se cala frente à violência; ou, ainda, uma forma de revanchismo de Omar em relação ao irmão Yaqub, com o qual Domingas tem uma relação afetiva mais intensa do que com o Caçula, embora ela gostasse de ambos os gêmeos. Domingas passou sua vida inteira servindo aos outros, mantida sob o controle deles, sem reivindicar nada para si própria, e, assim como viveu em silêncio, também acabou morrendo silenciosamente. 3.5 O IMIGRANTE, O DESTERRO E A FÉ A Amazônia de Milton Hatoum não se limita apenas à paisagem natural exuberante que é de conhecimento mundial, mas se estende a representações regionais em que conflitos universais podem ser identificados. É nesse regionalismo universal amazônico que se encontra Halim e Zana, imigrantes libaneses, incorporando valores da cultura local, mas os mesclando com as tradições de suas origens associadas a saudades, memórias e experiências do tempo da Segunda Guerra Mundial até o regime militar brasileiro. Por meio das narrativas orais de Halim, Nael viaja no tempo resgatando o mosaico de aventuras relatadas pelo avô, o qual, como imigrante que é, vive caminhando de um lado para outro dentro dos limites de Manaus, como se desejasse fugir para um não-lugar. Halim é um exilado errante solitário, que anda pelas ruas manauaras tentando suprir os sentimentos de solidão, de não pertencimento e de desintegração de sua identidade distante de sua terra natal, constatando, por meio de um olhar pessimista, sua ruína e, também, a de Manaus. Ele é um exilado de sua pátria, Língua, cultura, religião e identidade vivendo no Amazonas. Como havia um acordo diplomático entre o Brasil e o Líbano, firmado por Dom Pedro II, a chegada de imigrantes desse país ao Amazonas DOIS IRMÃOS 205 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 205 MILTON HATOUM 206 passou a ser frequente, desencadeando diversos avanços na região. A vinda da família libanesa para o Brasil, como já mencionado, ocorre na década de 1910 e está vinculada a questões de ordem político-eco nômica e de controle autoritário do governo turco-otomano, tributando impostos de diversas espécies no Líbano e perseguindo cristãos, aos quais era imposto o serviço militar obrigatório, um outro motivo da impulsão imigratória do país. Zana é exemplo dessa fuga da perseguição religiosa praticada pelo Islamismo, uma vez que ela era praticante católica maronita3 num país em que o preconceito religioso é comum. No entanto, a intolerância religiosa velada também ganha espaço na sociedade amazonense: As cristãs maronitas de Manaus, velhas e moças, não aceitavam a ideia de ver Zana casar-se com um muçulmano. Ficavam de vigília na calçada do Biblos, encomendavam novenas para que ela não se casasse com Halim. Diziam a Deus e o mundo fuxicos assim: que ele era um mascate, um teque-teque qualquer, um rude, um maometano das montanhas do sul do Líbano que se vestia como um pé-rapado e matraqueava nas ruas e praças de Manaus. Galib reagiu, enxotou as beatas: que deixassem sua filha em paz, aquela ladainha prejudicava o movimento do Biblos. (Dois Irmãos, 2017, p. 40) Galib, pai de Zana, veio para o Brasil e instalou-se em Manaus, abrindo o restaurante Biblos, em que servia pratos mesclados por alimentos da região manauara aos da gastronomia libanesa, forte representação, na obra Dois Irmãos, do intercâmbio de culturas que marca Manaus. Semelhante mescla pode ser percebida nas orações católicas feitas por Zana juntamente com Domingas, outra exilada de suas terras, que acompanha a patroa na fé, registrando-se, assim, na casa libanesa, a mistura 3 Maronita é o indivíduo que professa o Cristianismo de rito oriental afiliado à Igreja Católica Romana, presente sobretudo no Líbano e na Síria. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 206 de credos e culturas, como se ela fosse uma Manaus multicultural em miniatura. Esse lar libanês é um dos pontos mais representativos da importância do universo familiar em Dois Irmãos, a ponto de ele já se encontrar presente desde a epígrafe do livro, composta pelos versos do poema “Liquidação”, de Carlos Drummond de Andrade, em que elementos constitutivos da narrativa (destacados entre parênteses) se encontram presentes: A casa foi vendida com todas as lembranças (de Halim, Zana e Domingas) Todos os móveis todos os pesadelos (as rivalidades entre os gêmeos) Todos os pecados cometidos ou em via de cometer 4 A casa foi vendida com seu bater de portas (fechada para ser transformada numa loja de quinquilharias) Com seu vento encanado sua vista do mundo Seusimponderáveis [...] Podemos observar que os versos do poema Liquidação antecipam a destruição do lar libanês e de todos os seus valores, com os quais Nael não se identifica, bem como com os referenciais amazônicos, aproximando o narrador à representação de um exilado em sua própria terra. Sua condição de mestiço e bastardo, vivendo às margens da sociedade, faz com que 4 Em Dois Irmãos, podemos encontrar situações que envolvem todos os Sete Pecados Capitais, que são: a soberba, definida como orgulho excessivo, característico de Yaqub e Omar; a avareza, também chamada de ganância, apego incontrolável aos bens materiais e ao dinheiro, tal como ocorre com Yaqub; a inveja é a tristeza pelo bem de outra pessoa, sendo o invejoso aquele que se sente mal pelas conquistas alheias, como Omar sente por Yaqub e vice-versa; ira, raiva ou fúria é uma manifestação intensa de indignação que pode levar a agressões verbais ou físicas, comportamento comum nos gêmeos; a luxúria, lascívia ou libertinagem é o pecado associado aos desejos sexuais, que são intensos entre Halim e Zana, Omar e Pau-Mulato, Yaqub e Domingas, Rânia e os gêmeos e Nael; a gula é o pecado associado ao desejo de comer e beber de maneira exagerada, para além das necessidades, indicada pela fartura de comidas na casa libanesa; a preguiça é a falta de vontade ou de interesse em atividades que exijam algum esforço, seja físico ou intelectual, traço peculiar a Omar. DOIS IRMÃOS 207 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 207 MILTON HATOUM 208 acumule à falta de identidade, por não saber quem é seu pai, a perda de reconhecimento social e religioso. Um dos exilados mais perturbados da narrativa parece ser Yaqub. Sua experiência dos anos em que viveu, forçosamente, no Líbano foi omitida na obra, pois Yaqub se recusava a contar como fora sua vida no país de origem de seus pais, como se a não rememoração fosse um artifício para o apagamento do trauma do exílio familiar. Yaqub, sem cometer nenhum delito, foi condenado à cicatriz do exílio numa aldeia no Líbano e, dessa experiência, resulta uma espécie de perda de sua identidade, que se pode comprovar, por exemplo, na dificuldade que ele tem com a Língua Portuguesa e na alteração drástica de sua personalidade. Assim, desenraizado, Yaqub, tal como Nael, vive a agonia da identidade perdida, o que desencadeia nele a necessidade de um novo exílio na cidade de São Paulo. Destaque-se que o fluxo migratório manauara não está representado no livro apenas pelos membros da família libanesa. O crescimento da cidade trouxe novos estrangeiros, como coreanos, chineses e indianos, cuja representação se dá pela figura de Rochiram, homem que vivia de maneira quase nômade, buscando riqueza em espaços diversos. Imigrantes e migrantes de todas as origens territoriais e econômicas compõem a formação de Manaus e de sua projeção de modernidade e lucratividade. Todos, no entanto, de certa maneira acabam perdendo suas identidades em prol da construção de uma nova vida em terras longínquas. 3.6 RIVALIDADE E VIOLÊNCIA Dois Irmãos é uma narrativa sobre a rivalidade entre os gêmeos Yaqub e Omar, desafeto que se torna real a partir do momento em que eles se apaixonam pela mesma menina, Lívia, e pelo ciúme despertado no irmão mais velho pelo tratamento preferencial que a mãe dá ao Caçula. As rivalidades entre irmãos são representadas na Bíblia, no livro de Gênesis, nos mitos de “Caim e Abel” e de “Esaú e Jacó” (Yaqub é a transcrição de Jacó em árabe), referenciais presentes na obra de Milton Hatoum: DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 208 O seu grande sonho era ver os filhos reconciliados. Ela só pensava nisso, e desde a morte de Halim acordava no meio da noite, assustada. Quem ia entender a falta que Halim lhe fazia? A dor que ele deixou. Não queria morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois inimigos. Não era mãe de Caim e Abel. (Dois Irmãos, 2017, p. 170) As disputas entre os gêmeos Yaqub e Omar vinculam-se à necessidade que ambos têm de poder, posse, exclusividade, superioridade e destaque. Assim, vencer passa a ser a meta de cada um dos irmãos e, para isso, a violência entre eles se instala numa conturbada e destruidora relação familiar. Yaqub vale-se, nessa guerra fraternal, de suas capacidades intelectuais, acobertando seu instinto ambicioso, vingativo, alicerçado em aparatos legais, em um comportamento introspectivo, enquanto Omar, o desequilibrado dos irmãos, tem conduta animalesca, revidando as atitudes de Yaqub a partir das agressões físicas. Se considerarmos que os dois são gêmeos idênticos, Yaqub se vê em Omar e vice-versa, o que metaforizaria as atitudes violentas e a rejeição de Omar por ele próprio e de Yaqub por si mesmo, já que as personagens são duplos de uma mesma imagem. Saliente-se que o duplo está presente em Dois Irmãos no título do romance; na composição do narrador, que vive entre a cultura libanesa e a indígena, sem se identificar totalmente com nenhuma delas; na perspectiva religiosa de Domingas e no reflexo de Manaus em miniatura no lar de Halim em crise. A violência na casa libanesa, no entanto, não se resume à rivalidade entre os gêmeos. Halim, cansado de ser um exilado em seu próprio lar, e abandonando sua paciência comparada ao do mito bíblico de Jó, chega a acorrentar Omar ao cofre por alguns dias, após tê-lo encontrado nu com uma mulher no sofá. Esse momento, na narrativa, questiona o viés patriarcal, do qual Halim se ressentia, uma vez que Zana dava as ordens em casa, representando a sensação de incapacidade e derrota do marido na criação dos filhos, que DOIS IRMÃOS 209 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 209 MILTON HATOUM 210 nunca foram de seu desejo. Uma outra forma de violência, apresentada na obra, é a exercida pelo poder autoritário do Estado na imposição de normas por meio do regime militar. Em abril de 1964, o professor Antenor Laval é morto na praça de Manaus, em decorrência de sua ideologia militante e sua representação de resistência à ditadura, luta apreciada por Omar e Nael, o qual recebe influência para ser professor e escritor do contato com Laval. Poeta e professor, Laval é um divulgador da literatura de boa qualidade e modelo inspirador para muitos estudantes do colégio Liceu Rui Barbosa. Além do convívio entre professor e aluno dentro dos muros da escola, havia também encontros entre eles em bares e ruas manauaras, quase compondo uma “Sociedade dos poetas mortos” amazonense. No entanto, o professor tem fama de militante de esquerda, inclusive pela história que circulava sobre ele e sua passagem por Moscou aludindo à Revolução Russa, de 1917, ocasião em que o partido bolchevique, liderado por Vladimir Lênin, levou operários e camponeses à revolta, que pôs fim à monarquia, originando o primeiro país socialista do mundo, a União Soviética: Só um zum-zum corria nos corredores do liceu, dois dedos de mexerico da vida alheia, dele, Laval. Um: que fora militante vermelho, dos mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem por Moscou. Ele não negava, tampouco aprovava. Calava quando a curiosidade se alastrava em alaridos. O outro rumor, bem mais triste. Diz que havia muito tempo o jovem advogado Laval vivia com uma moça do interior. Líder e orador nato, ele fora convocado para uma reunião secreta, no Rio. Levou a amante e voltou a Manaus sozinho. Falou-se de traição e abandono. Versões desiguais, palavras desencontradas e afins... Conjeturas. O que se sabe é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 210 da caverna, quieto e emudecido, o rosto cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação. Não era greve de fome nem inapetência. Talvez desespero. Seus poemas,cheios de palavras raras, insinuavam noites aflitas, mundos soterrados, vidas sem saída ou escape. Às sextas-feiras distribuía-os aos alunos, pensando que ninguém os leria, pensando sempre no pior. Lá no íntimo era um pessimista, um desencantado, e tentava compensar esse desencanto por meio da aparência, com seu jeito de dândi. Refutava o rótulo de poeta, mas não se incomodava quando o chamavam de excêntrico ou afetado. Não sei qual dos dois atributos o definia melhor. Nenhum, talvez. Mas foi um mestre. (Dois Irmãos, 2017, p. 144, 145) Embora não fosse efetivamente um líder revolucionário, o comportamento de professor de francês e de literatura clássica francesa de Laval, com discurso ampliador da capacidade de reflexão dos estudantes, incomodou os militares instalados em Manaus. Assim, acusado de liderar uma manifestação contra o regime, Laval foi espancado em via pública, de forma violenta para intimidar qualquer outro revoltoso, e morto. Logo depois, alguns estudantes concentraram-se na mesma da praça, protestando contra a morte do professor e reivindicando melhorias para a cidade e para a população. Dentre eles estavam Omar e Nael. Seriam eles pai e filho, já que concebiam as mesmas ideologias? 3.7 POLIFONIA E INTERTEXTUALIDADE Mikhail Bakthin (2005, p. 04) esclarece que a polifonia é uma “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis”, que se misturam ao discurso do enunciador, sendo distintas ideologicamente do discurso autoral. É por meio desse entrecruzamento de vozes que Nael compõe sua narrativa moldada, principalmente, pelo viés da memória fragmentada de DOIS IRMÃOS 211 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 211 MILTON HATOUM 212 Halim, Domingas, Zana, Yaqub e Rânia, muitas vezes substituindo-se a voz do narrador pelas vozes dessas personagens “sub-narradoras”: Eu gostava de ouvir as histórias. Hoje, a voz me chega aos ouvidos como sons da memória ardente. Às vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas, querido.” A intimidade com os filhos, isso Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em dias esparsos, aos pedaços, “como retalhos de um tecido”. Ouvi esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e forte, foi se desfibrando até esgarçar. (Dois Irmãos, 2017, p. 39) Nael não compreende muitas palavras empregadas em árabe por Halim, o qual mantém sua Língua materna quando conversa com familiares, misturando-a com a Língua Portuguesa, em sua variedade amazônica, ao se comunicar com outras pessoas, assim como também o faz Zana. O bilinguismo, portanto, é constante em Dois Irmãos, mas a Língua Francesa também permeia a obra nos comércios locais, como a loja Rouaix, ou nas aulas de francês na escola: No Liceu, que não era totalmente desprezível, reinava a liberdade de gestos ousados, a liberdade que faz estremecer convenções e normas. A escória de Manaus o frequentava, e eu me deixei arrastar pela torrente dos insensatos. Ninguém ali era “très raisonnable”, como dizia o mestre de francês, ele mesmo um DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 212 excêntrico, um dândi deslocado na província, recitador de simbolistas, palhaço da sua própria excentricidade. Não ensinava a gramática, apenas recitava, barítono, as iluminações e as verdes neves de seu adorado simbolista francês. (Dois Irmãos, 2017, p. 28) A Língua Espanhola aparece nas conversas entre Rochiram e Rânia e os termos indígenas também se fazem presentes no romance de Milton Hatoum. Desse modo, Nael, embora não domine nenhum outro idioma além do Português, vai criando seu discurso com essa mescla de Língua e de léxicos religiosos católicos, muçulmanos e indígenas, empregando tanto a norma culta quanto o coloquialismo em sua composição literária. A multiplicidade de vozes conduz o leitor a olhares diferentes e, também, a narrativas, que vão se encaixando à principal, a fim de ilustrar ou complementar situações. Muitas dessas histórias, sejam elas de Nael, Halim, Zana, Rânia, Domingas, dentre outros, vinculam-se a outros textos literários já existentes, compondo uma releitura, denominada intertextualidade, e dialogando, principalmente, com os temas do ciúme, da inveja e da ira. Uma das obras de tradição árabe mais conhecida é As mil e uma noites, em que as histórias vão sendo contadas dentro de outras histórias, com o propósito de se adiar o desfecho, tal qual em Dois Irmãos, em que não há término se considerarmos que a rivalidade entre Yaqub e Omar continua mesmo após a morte dos pais. Outra relação intertextual da obra de Milton Hatoum é com a Bíblia: a rivalidade entre irmãos nos mitos de Caim e Abel e de Esaú e Jacó. No primeiro livro do Pentateuco5, o Gênesis, Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, eram irmãos de comportamentos extremamente diferentes, sendo o primeiro agricultor e o segundo, pastor de ovelhas. Caim ofereceu a Deus os frutos de sua primeira colheita e Abel, as primeiras ovelhas que nasceram do seu rebanho, o que agradou mais ao Senhor, por considerar uma oferta mais sincera e justa do que a de Caim, o que fez com que ele, motivado por inveja e ciúme, preparasse uma emboscada, na qual o irmão Abel morre. 5 O Pentateuco são os primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. DOIS IRMÃOS 213 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 213 MILTON HATOUM 214 No caso de Yaqub e Omar, ambos tentam conquistar a atenção materna, desencadeando entre eles uma forte e violenta rivalidade, que, embora não culmine com a morte de nenhum dos gêmeos, destrói a harmonia familiar. No mito de Esaú e Jacó, também em Gênesis, Isaac pediu a Deus o milagre de que a esposa Rebeca concebesse um filho, uma vez que ela era estéril. Após algum tempo, ela engravidou de gêmeos, os quais, desde o ventre, já rivalizavam. Deus disse à Rebeca que ela gerava o princípio de dois povos, sendo que um de seus filhos seria mais forte do que o outro. O primeiro a nascer era uma criança ruiva e com o corpo coberto de pelos e, por isso, foi chamado Esaú, cujo nome significa “coberto de pelos”. Logo a seguir, nasceu o caçula, segurando o irmão pelo calcanhar, o que fez com que seu nome fosse Jacó, que significa “aquele que segura pelo calcanhar”. Esaú, por sua vez, tornou-se um homem com habilidade para a caça, o que o tornava mais querido pelo pai, enquanto Rebeca amava Jacó, situação que desencadeou uma intensa rivalidade entre os gêmeos. Dois Irmãos retoma a passagem bíblica no que concerne à rivalidade entre os gêmeos, mas inverte a ordem dos nascimentos, uma vez que Yaqub, cujo nome em árabe significa Jacó, nasce primeiro do que Omar, o qual é o peludinho de Zana. Na história bíblica, os filhos são separados após a traição de Jacó, tal qual em Dois Irmãos, se considerarmos o flerte de Yaqub com Lívia uma traição a Omar, o qual estava interessado na menina Lívia. Rebeca, no mito bíblico, passa a priorizar o afeto a Jacó, como Zana faz com o Caçula, que, na obra de Hatoum, é Omar. O episódio de Esaú e Jacó também é retomado no romance homônimo de Machado de Assis, sendo, por extensão, a obra machadiana vinculada intertextualmente a Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Em “Esaú e Jacó”, Machado de Assis apresenta Pedro e Paulo, gêmeos rivais ab ovo, que, ao longo da vida, tornam-se inimigos nas esferas ideológicas, políticas e amorosas, tal qual Esaú e Jacó, Yaqub e Omar. No entanto, enquanto na Bíblia os irmãos se reconciliam, os gêmeos da ficção machadiana e hatouniana continuam inimigos por toda a vida. Outra similaridade entre o mito bíblico eDois Irmãos é a preferência materna pelos filhos caçulas, o que não ocorre em Machado de Assis, pois DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 214 a mãe de Pedro e Paulo, Natividade, trata os gêmeos da mesma maneira. Destaque-se que, nos três casos, a figura materna é o motor da discórdia fraternal. Outras intertextualidades bíblicas se fazem presentes na obra de Milton Hatoum, como a já citada parábola do “Filho Pródigo” e uma alusão a Moisés, salvo do rio Nilo e criado por uma princesa egípcia, quando Nael fala sobre sua origem: Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. (Dois Irmãos, 2017, p. 54) Certamente, há outras intertextualidades trabalhadas na obra Dois Irmãos, vínculos que podem ser feitos entre as características de Yaqub e Omar com a mitologia pagã greco-latina, como Apolo e Dionísio, opostos e complementares um do outro, como os gêmeos de Milton Hatoum, ou com diversos outros textos da grandiosa literatura universal. DOIS IRMÃOS 215 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 215 MILTON HATOUM 216 4. EXERCÍCIOS PROPOSTOS 1. (UFAM) – A respeito do personagem Adamor, o Perna-de-Sapo, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se as seguintes afirmativas: I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que desaparecera nas florestas do Purus e salvou da morte o aviador Binford. II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que fugira de casa com uma mulher chamada Pau-Mulato e se escondera num barquinho atrás do Mercado Adolpho Lisboa. III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia de porta em porta e sofria com as implicâncias da índia Domingas. IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada, veio para Manaus, onde passou a morar em condições humilhantes numa palafita. Estão corretas: a) Apenas II e IV. b) I, II e IV. c Apenas I e III. d) II, III e IV. e) Todas as afirmativas. 2. (UFAM) – Ainda sobre o romance, é correto afirmar, a propósito do enredo: a) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu um gazal com quinze dísticos, que o pretendente fingiu esquecer na mesa do restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça. b) Tal como em Esaú de Jacó, de Machado de Assis, observamos o tema dos gêmeos, que foi, porém, tratado de forma diferente, uma vez que os dois irmãos não são inimigos. c) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do Alto Rio Negro trazida por Halim, que nessa época trabalhava como regatão. d) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma multinacional, após a instalação da Zona Franca, e Nael e Rânia, sua tia, se mudaram para um conjunto habitacional moderno. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 216 e) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar o ciúme possessivo que Zana sentia em relação ao filho. 3. (UFSJ) – A relação de Rânia com Omar e Yaqub, no romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, é descrita pelo narrador como: a) erotizada b) cruel c) pudica d) fraterna 5. RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS PROPOSTOS 1) Reunindo-se todas as informações das afirmativas, teremos um breve resumo da vida da personagem Adamor, o Perna-de-Sapo. Resposta: E 2) Halim, para conquistar Zana, valeu-se de um gazel, ou gazal, composto pelo amigo Abbas. Gazal é um poema lírico, de forma fixa, composto em dísticos e de temática amorosa ou mística. Resposta: A 3) De acordo com a narrativa, é perceptível que Rânia, irmã de Omar e de Yaqub, tem um afeto pelos gêmeos que supera a afeição fraternal. Resposta: A DOIS IRMÃOS 217 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 217 MILTON HATOUM 218 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABDALA JUNIOR, Benjamin. Um ensaio de abertura: mestiçagem e hibridismo, globalização e comunitarismos. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin. (Org.). Margens da cultura. 1 ed. 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APÊNDICES Biorritmo Ribeirinho Milton Hatoum, autor do livro “Dois Irmãos”, privilegiou Manaus na narrativa para “quitar dívida” Escritor manauara leva o rio dentro de si Heloísa Helena Lupinacci “Calmo como uma mangueira”. Assim o escritor Milton Hatoum é descrito por quem o conhece. Tão calmo que ficou 11 anos sem publicar um livro, intervalo entre o lançamento de “Relato de um Certo Oriente” (1989) e “Dois Irmãos” (2000), escrito e reescrito sete vezes. Filho de libaneses, nasceu em 1952 em Manaus. Aos 16 anos, foi para Brasília, de lá, para São Paulo. Aqui, se formou arquiteto em 1977. Foi para Espanha e para a França. Voltou para Manaus e quinze anos depois, em 1999, para São Paulo, de onde fala sobre a vida manauara para a Folha. Folha – O que acontece com um manauara que vem para São Paulo? Milton Hatoum – Entra sem pressa para selva paulistana e aprende a gostar dela. Mas, de vez em quando, sonha com a imensidão e os remansos do rio Negro. Uma singularidade de Manaus é ser metrópole no meio da floresta e à margem desse belo afluente do Amazonas. Em São Paulo eu sinto falta do horizonte, da vegetação... Às vezes fico imaginando aquele rio... O diabo é que, para onde vou, levo esse rio dentro de mim. Quando vou a certos lugares de São Paulo, tenho a sensação de estar em bairros de Manaus. No meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo. Folha – Como o rio dita a vida lá? Hatoum – Euclides da Cunha notou que na Amazônia “o rio é a estrada para toda a terra”. O velho Manaus Harbour liga Manaus à região amazônica. O rio possibilita uma intensa relação cultural e econômica entre a cidade e o interior. Além disso, moradores e comerciantes navegam nos igarapés que cortam a cidade. A paisagem urbana é anfíbia. Mas desde a implantação da Zona Franca [1967], a cidade cresceu sem planejamento, e os igarapés estão poluídos. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 222 Folha – Que lugares devem ser visitados em Manaus? Hatoum – Gosto muito do mercado municipal de Adolpho Lisboa, do porto da Escadaria e do centro antigo, a área em redor da praça Pedro II até a ilha de São Vicente. A sede do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas], projetada por Severiano Porto, é uma aula de arquitetura e deveria ser modelo para habitação popular. Além do teatro Amazonas, da Ponta Negra e dos lugares mais visitados, vale a pena pegar uma catraia no porto da Escadaria e navegar pelo igarapê do Educandos. Se der tempo, um passeio pelo arquipélago das Anavilhanas é o máximo. Sugiro também subir o rio Negro até Barcelos, a primeira capital da Província. Ou então um passeio pelo rio Urubu e pelo lago Tupira, perto de Silves. Isso sem falar de Manacapuru e seus lagos. É uma viagem sem fim. Folha – Certa vez, você disse “Vejo conflito em tudo [em Manaus]”. Um visitante atento percebe isso? Hatoum – Ele logo percebe que a população e a cidade herdaram muita coisa das culturas indígena e europeia. Manaus é o nome de uma tribo que foi dizimada. A Zona Franca é irreversível. A periferia é uma favela gigantesca, o desmatamento foi brutal. A ironia mais trágica é que em muitos bairros pobres falta água, numa cidade banhada pelo maior rio do mundo. Em 1976, um prefeito-coronel destruiu a praça Nove de Novembro, um logradouro histórico, pois a notícia da Independência só chegou a Manaus no dia 9 de novembro. Destruiu praças e monumentos, cortou árvores centenárias, fez o diabo em nome do “progresso”. O atual prefeito encheu a cidade de palmeiras, só que de palmeiras importadas! Há centenas de palmáceas amazônicas... Não é de enlouquecer? Folha – Por que Manaus é tão presente no livro “Dois Irmãos”? Hatoum – No meu primeiro livro [Relato de um Certo Oriente], o espaço da cidade não aparece muito. O relato é uma viagem interior, com lances de uma memória inventada. Quando escrevi “Dois Irmãos”, estavapossuído pela cidade. Foi inevitável, porque passei quinze anos lá. Aí juntei os dramas de uma família com o “progresso decadente” da Manaus moderna. A gente escreve sobre algo que nos toca profundamente. Eu tinha uma dívida afetiva e moral com a minha cidade, e eu tentei quitá-la escrevendo um romance. É pouco, mas é tudo o que puder fazer, com muita paixão, dor e também alegria. DOIS IRMÃOS 223 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 223 MILTON HATOUM 224 LUPINACCI, Heloísa H. Escritor manauara leva o rio dentro de si. Folha de S. Paulo, Turismo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ turismo/fz0906200316.htm. Acesso em: 30 jun. 2023. MUSA – MUSEU IMAGINÁRIO: A SÉRIE DE ENTREVISTAS DO MUSA Que características você ressaltaria dessa arquitetura (de Manaus)? Primeiro, acho que a combinação inteligente da alvenaria, do tijolo de argila, com a madeira. A solução que o Severiano encontrou para a circulação do ar; a proteção solar também é inteligente; os beirais; as placas de proteção solar; a implantação dos edifícios em uma área arborizada... Eu acho que há ali um desenho inteligente e sensível que responde aos imperativos do clima e isso é importante. Além disso, tem um lado visual e estético que é bem interessante a meu ver. Se você comparar isso aos projetos de habitação popular, vai ver como esses arquitetos ou desenhistas ou engenheiros conseguem projetar de uma maneira burra e cruel. Porque a arquitetura, quando é burra e malfeita, é também cruel porque age diretamente na vida das pessoas. Não é como uma pintura, que, se você não gostar, passa adiante ou não olha mais; ou como um livro, que se, você não gostar, fecha e isso não te faz mal. A arquitetura não. O atributo da arquitetura não é apenas a visão, é a própria vida, você habita o espaço projetado, dorme lá, come lá, conversa, convive, se relaciona nesse espaço. Então, esses projetos de habitação popular são, para mim, uma espécie de tara arquitetônica. Diria quase que são projetos fascistas, sem que esse arquiteto saiba, eu não sei se ele sabe. E você comentou que um pouco dessa sua revolta você coloca nos livros. Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda. No Dois irmãos, Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem explícita, porque eu também acho isso muito frágil – romance-denúncia, arte-denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde a nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 224 tempo, sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um mundo, que não existe mais. Como é seu processo de construir um livro? Eu geralmente só começo a escrever quando tenho a estrutura mais ou menos armada na minha cabeça. Preciso estruturar os conflitos, saber, mais ou menos, quem são os personagens e qual a relação entre eles, saber como se dá a passagem do tempo. Porque o romance fala sobre a passagem do tempo, o romance é uma narrativa sobre o tempo. A partir daí então eu começo a escrever. Geralmente escrevo a primeira página, o começo e o fim. Preciso saber como começa e como termina. Porque o grande problema, o mistério, é essa ponte, é como se dá esse arco que vai da primeira página à última. O romance é a arte da paciência, como a pesquisa. Na pesquisa você não pode ter pressa. As pesquisas duram anos, porque dependem da observação, do empírico, dos testes, de coisas comprovadas ou não. Você está fazendo uma pesquisa com o objetivo X e no fim alcança o objetivo Z. Não é muito diferente na literatura. Você começa a escrever um romance e no meio do caminho a coisa vai mudando, sai do seu controle, personagens secundários se tornam importantes, protagonistas se tornam secundários, os conflitos assumem outras proporções. Acho que tudo isso é imprevisível como a vida. Você frequentemente menciona que não reconhece mais Manaus. O que mudou? Foi a estrutura física apenas ou algo mais sutil? Manaus, nos últimos 30 ou 40 anos, talvez tenha sido a cidade menos preservada e mais destruída do Brasil. Isso por várias razões: pela falta de planejamento; pela ignorância dos administradores; pela falta de visão dos administradores – visão urbana, histórica; falta de sensibilidade cultural e também uma falta de amor pela cidade. Esse é um dos lados que gerou essa transformação negativa. Outras coisas são a especulação imobiliária, que é totalmente selvagem, e a falta de critérios para construir, implantar zonas comerciais, residenciais. A cidade tem que ser pensada, refletida, não pode ser jogada, não pode crescer de forma aleatória. O que eu acho é que a DOIS IRMÃOS 225 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 225 MILTON HATOUM 226 intervenção urbana e arquitetônica [em Manaus] é muito burra. Optaram pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia ao clima. Quer dizer, optou-se por uma espécie de cópia, de “macaquiação”, de São Paulo, que por sua vez é uma cópia muito precária de Miami, vamos dizer assim. E do Rio de Janeiro também. O Rio ainda tem uma coisa dos anos 50 e 60 que é interessante, que tem a ver com a escala urbana, com a paisagem, com os morros e montanhas, com o relevo e com o mar. No caso de Manaus, você pode notar que os edifícios não são avarandados, não tem proteção solar, não são pensados em função do clima. Eu não falo nem da opção estética, que é horrorosa na maioria das vezes. Poucos arquitetos entenderam essa cidade, um deles foi Severiano Porto [1930-]. Por isso, o rosto da cidade se tornou um pouco monstruoso, as praças estão sufocadas, não há mais uma relação orgânica entre a natureza e o urbano, algo que havia na minha infância e juventude. Foram criados pouquíssimos novos parques – o parque do Bilhar, o Jefferson Peres, mas é muito pouco para uma cidade que não é arborizada, que não tem calçadas. O transporte urbano é o pior do Brasil, talvez um dos piores da América do Sul. A habitação popular é uma espécie de canil, e isso eu falo nos meus romances, no Cinzas do Norte. A implantação de conjuntos habitacionais é totalmente irracional, arranca-se a floresta e é como se as pessoas não necessitassem de sombra. Então, é de uma burrice, de uma ignorância, estarrecedora. Isso tudo me entristece. Não sei se me entristece, acho que me revolta, mais do que me entristece. Como manauara pensa a cidade? Acho que o manauara não tem nem condições de pensar. O povo, do jeito que vive, dessa forma bruta que vive, não tem condições de refletir sobre a cidade. Ele sabe que sofre, que mora no inferno – a maior parte da população mora em um inferno, porque a periferia de Manaus é um retrato do que há de mais terrível. Há muito sofrimento, você passa horas dentro de um ônibus morrendo de calor, os igarapés estão poluídos, quando chove há enchente, quando não chove o calor é brutal. Acho que esse livro do Gautherot mostra que a arquitetura da palafita era uma arquitetura sábia. A arquitetura do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia] é sábia, o projeto arquitetônico dos edifícios faz parte de uma reflexão sobre a região. DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 226 Musa. Museu imaginário: a série de entrevistas do musa. In: Pereira, Claudia M. de S. O processo de constituição do livro Dois Irmãos: uma análise da paratopia criadora de Milton Hatoum. Disponível em:h t t p s : / / r epos i to r iou f sca r.b r /b i t s t r eam/hand le /u f sca r /8910 / DissCMSP.pdf?sequence=1&isAllowed=y.Acesso em: 24 jul. 2023. DOIS IRMÃOS 227 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 227 MILTON HATOUM 228 DOIS IRMAOS_OBRAS FUVEST_GIL_2023 31/08/2023 11:06 Página 228