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Texto 1_NATURALISMO_VS_CONTRATUALISMO_SOBRE_A_ORIGEM_DO_SOCIAL

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NATURALISMO V.S. CONTRATUALISMO:
SOBRE A ORIGEM DO SOCIAL
AMANDA CARLA MOURA BRAGA 1
CLISTENES CHAVES DE FRANÇA2
Resumo: Neste trabalho propomo-nos expor e explicar, de forma breve, duas correntes de pensamento
que têm como objetivo principal solucionar o enigma da origem do social. Enigma este que sempre esteve
presente no imaginário do homem. A partir desse pressuposto serão analisados a corrente naturalista e o
pensamento de alguns de seus adeptos, que defendem uma origem natural do social, e a corrente
contratualista e alguns de seus principais filósofos que, por sua vez, afirmam a origem do social a partir
de um ato deliberado da vontade humana.
Palavras-chave: Origem do Social. Naturalistas.
Contratualistas.
NATURALISM V.S. CONTRACTARIANISM:
THE ORIGINS OF THE SOCIAL
Abstract: In this work, we try to show and explain the ideas about the origins of the
social life, which two of the most important political thought schools defend. The origins
of the social life represents a puzzle, which both schools want to solve. The naturalist
school about the social origin defend that the social life responds to a natural necessity,
while the contractarianism say that the social life begins only after an act of the human
will.
Keywords: Origins of the Social. Naturalism.
Contractarianism.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o objetivo de realizar uma exposição/explicação acerca
das
teorias que buscam solucionar o enigma acerca da origem do social. O tema em
questão é de
1 Acadêmica de Direito do 6° semestre pela Faculdade Luciano Feijão (FLF). E-mail:
amanda.moura1@outlook.com 2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia pela
Ruhr-Universität Bochum/Alemanha. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Professor da Faculdade Luciano Feijão (FLF), nos cursos de Direito e Administração. E-mail:
clisteneschaves@hotmail.com
tamanha relevância que conquistou especial atenção de diversos pensadores
renomados de
diversas épocas da história humana, tais como Aristóteles, Santo Tomás de Aquino,
Thomas
Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, entre outros, o que mostra que, além de possuir
grande
importância, o tema também é uma constante no pensamento e na curiosidade do ser
humano.
A vida em sociedade traz inúmeros benefícios para o ser humano, contudo
resulta
também em diversas restrições, de modo que, algumas vezes, pode chegar até mesmo
a limitar
a própria liberdade humana (DALLARI, 2005, p. 9). Sendo assim, qual o motivo de o
homem
decidir – ou não – pela vida em sociedade e nela permanecer? Dessa forma, surge a
seguinte
questão: qual a origem do
social?
Buscando responder à questão do parágrafo anterior surgem duas correntes de
pensamento, quais sejam: os naturalistas e os contratualistas. Tais correntes de
pensamento se
propõem a construir ideias que expliquem/respondam como a nossa sociedade atual,
com todas
as suas imperfeições,
surgiu.
No decorrer desse trabalho realizaremos uma breve apresentação das referidas
correntes
de pensamento, bem como, exporemos as teses que tiveram maior impacto e aceitação
no
tratamento de nosso tema, fazendo referência a alguns dos principais autores de cada
corrente,
de modo que seja possível o alcance de uma compreensão acerca do tema e dos
reflexos de tais
teorias no esclarecimento da questão sobre a origem do
social.
NATURALISTAS
Uma das correntes de maior expressividade acerca da origem da vida social,
possuindo
um grande número de adeptos, é a que afirma a formação natural da sociedade
humana,
defendendo que o ser humano possui um impulso natural à vida em sociedade, ou seja,
que é
inerente ao ser humano a necessidade de coexistir em proximidade e em conjunto com
outros
seres humanos. Para essa corrente de pensamento, o ser humano possui mais que o
desejo de
viver em sociedade, em verdade, ele teria uma necessidade efetiva de viver com outros
seres
2
humanos. Sendo assim, o motivo da vida em sociedade seria o impulso associativo
natural
inerente à espécie e não um ato deliberado de
escolha.
Os naturalistas acreditam, portanto, que o fator responsável pela associação
humana
advém da própria constituição da espécie. Esta definiria o ser humano como um animal
gregário. É importante, contudo, salientarmos, que os naturalistas não se prendem à
crença de que
o ser humano é um ser social simplesmente por viver com seus semelhantes, antes o
que eles
defendem é que o ser humano apenas se torna realmente humano com a convivência
social.
Logo, o adjetivo “humano”, para os pensadores naturalistas, deve ser entendido como
produto
genuinamente coletivo da vida gregária dos seres humanos. Sendo assim, as
características que
diferenciam o ser humano dos outros animais – como, por exemplo, a produção e
expressão de
pensamentos em uma linguagem verbalmente diferenciada, o andar bípede ereto, ou a
produção
de artefatos culturais etc. – somente seriam adquiridas e plenamente desenvolvidas
com a vida
em sociedade.
Entretanto, precisamos lembrar que os naturalistas não creditam a diversidade
existente
de formas de organização humana apenas ao impulso associativo. Os naturalistas não
excluem
a participação da liberdade e da vontade na modelagem da forma de organização
social dos
agrupamentos humanos, haja vista que ambas são responsáveis pela diversidade de
formas de
organização socioculturais3.
ARISTÓTELES E SANTO TOMÁS DE AQUINO
A corrente naturalista de pensamento possui diversos pensadores de destaque,
dentre os
quais Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Para ambos só podemos entender a vida
social
3 Diferentemente dos animais gregários que devem sua organização coletiva unicamente aos instintos
naturais, como as abelhas, os lobos e os suricatos, a vida coletiva humana é marcada por uma
diversidade espacial e temporalmente muito grande na forma como a vida social se estrutura. Em sendo,
para os naturalistas, o instinto natural o mesmo em toda a espécie humana, a diversidade sociocultural só
pode ser explicada como produto da liberdade e vontade humanas.
3
humana se a concebermos como animada por uma necessidade intrínseca à própria
constituição
natural da espécie.
Aristóteles concebe o ser humano como um animal, mas um que se diferencia
dos
demais que agem puramente por instinto. O homem seria um animal racional, capaz de
discernir
e realizar escolhas livres. Por ser um animal político e racional, o homem precisaria
viver em
uma sociedade política/cidade (pólis) para concretizar sua natureza e sua essência4.
Desse
modo, é na cidade e por meio dela que a humanidade se torna capaz de atingir os fins
de sua
existência. Ou seja, é na cidade, e apenas nela, que os seres humanos se tornam seres
humanos,
podendo alcançar plenamente suas potencialidades (LOPES, ESTEVÃO, 2012, p.36).
Conforme o filosófo grego:
Toda Cidade é um tipo de associação, e toda associação é estabelecida tendo em vista algum
bem (pois os homens sempre agem visando a algo que considerem ser um bem); por
conseguinte, a sociedade política [pólis], é a mais alta dentre todas as associações, e que abarca
todas as outras, tem em vista a maior vantagem possível, o bem mais alto dentre todos
(ARISTÓTELES, 2001, p.53). Ou seja, o ser humano é mais que um animal gregário
movido unicamente pelo instinto,
ele é um animal político, que precisa viver em uma pólis em busca de um bem maior,
pois este
é o lugar natural do ser humano, em decorrência de sua racionalidade. O que o
distingue dos
demais animais seria a linguagem, que lhe possibilitaria discernir o bem do mal, o justo
do
injusto, o certo do errado. Dessa forma, “pensar a cidade como existindo por natureza
equivale
a vincular a natureza humana à cidade: [o ser humano seria então] um ser
intermediário, nem
deus nem besta, que pode escolher viver em conformidade com a virtude e a justiça e,
então,
realizar sua essência segundo o melhor fim, a eudaimonia.” (LOPES,ESTEVÃO, 2012,
p. 41).
Santo Tomás de Aquino, pensador que também defende a posição naturalista,
afirma
que o ser humano é um animal social e político, sendo natural que viva em sociedade.
Expressivo seguidor de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino concorda com o filósofo
grego
4 Sobre a concepção naturalista da vida em sociedade de Aristóteles, afirma MACIEL (2013, p.10):
“Aristóteles inicia a obra [A Política] discutindo acerca da origem do Estado, ou seja, da sociedade política
e revela que tal origem remonta às leis naturais. O Estado teria um fundamento natural, pois seria o
resultado de um processo desencadeado por força da natureza.”.
4
quanto ao caráter natural da associação, do social. Para ele, a cidade representa a
suprema
sociedade/comunidade humana, a mais completa e perfeita. Sendo um animal racional,
a
existência do ser humano estaria diretamente ligada à vida conjunta, que é possibilitada
pela
presença da linguagem. Esta seria algo próprio dos seres humanos, haja vista que,
diferentemente dos demais animais que possuem apenas a voz, o ser humano é
detentor da
capacidade de se comunicar por meio de símbolos convencionais aptos a adquirir
determinados
significados em dadas
situações.
Uma vez que o ser humano possui essa qualidade essencial, a cidade se torna
necessária
e natural, pois constitui o local em que ele poderá efetuá-la, já que a comunicação é
uma ação
dependente da vida em comunidade.5 Com isso, é licito afirmar que o social é algo
natural ao
ser humano, sendo a cidade a mais perfeita e ampla comunidade, na qual o ser
humano é capaz
de atingir sua essência (LOPES, ESTEVÃO, 2012, p.
39).
Conforme Santo Tomás de Aquino, o ser humano seria um animal social que
necessitaria mais que os outros da vida em sociedade. O notável italiano ainda
acrescenta que
o ser humano somente viveria isoladamente em três hipóteses, quais sejam: excelentia
naturae
– caso de ser humano extremamente virtuoso vivendo em comunhão com a própria
divindade;
corruptio naturae – que envolveria os casos de anomalia mental; e mala fortuna – que
abrangeria, os casos de acidente que obrigam os seres humanos, por circunstâncias
alheias à
sua vontade, a viver só.
Assim, podemos concluir que, segundo as principais ideias avançadas pelo
pensamento
naturalista, o ser humano vive em sociedade por um impulso intrínseco à constituição
natural
de nossa espécie, mas que, diferentemente dos demais animais gregários, esse instinto
é
complementado pela vontade, liberdade e racionalidade humanas, que faz com que o
ser
humano em sociedade não seja simplesmente mais um animal gregário, mas se torne
um animal
5 Como afirma OLIVEIRA (2012, p.58), para Santo Tomaz de Aquino “. . . a fala humana auxilia o homem
a realizar aquilo que o distingue dos demais animais: a capacidade de entender e comunicar o útil e o
nocivo, o justo e o injusto. E como a natureza nada faz em vão, quando ela dá ao homem a capacidade
de comunicar o útil e o nocivo, o justo e o injusto, ela dá ao homem a capacidade de se comunicar com
outro homem. Ora, é evidente que o homem só é capaz de se comunicar quando vive em comunidade . .
.”.
5
político que busca comunicar-se com os outros seres humanos e alcançar sua
perfeição na vida
coletiva.
CONTRATUALISTAS
Os autores contratualistas rejeitam veementemente a existência de um impulso
associativo natural ou de qualquer instinto natural que seja responsável pela
associação humana.
Para eles, as sociedades não foram formadas de modo natural/instintivo, houve, em
verdade,
um momento no qual os seres humanos por um ato deliberado de vontade decidiram se
associar.
A corrente de pensamento contratualista acredita, em geral, que houve um
momento na
história humana em que os seres humanos, embora vivessem próximos uns dos outros,
viveriam
isolados, isto é, sem que houvesse um contato duradouro de modo a se organizarem
socialmente. Esse momento anterior à formação da sociedade seria o estado de
natureza.
Conforme o pensador contratualista analisado, a concepção do modo como se deu o
estado de
natureza pode variar drasticamente, assim como as razões para a assinatura do
contrato social
e o modo como se estabeleceria o estado civil. Dessa forma, precisamos lembrar que
existe uma
diversidade de autores contratualistas, que articulam de maneira distinta as ideias
fundamentais
do contratualismo. Entretanto, todos concordam em dizer que a vida em sociedade não
se deu
em decorrência de um impulso associativo natural, mas sim por um ato livre de escolha
humana.
HOBBES Dentre os autores que defendem essa corrente contratualista destaca-se
Thomas Hobbes.
Para ele, o estado de natureza não apenas significava o momento anterior à formação
da
sociedade, mas também o momento mais embrutecido da história da humanidade, no
qual os
indivíduos possuíam uma vida breve, animalesca, sórdida e bestial. O estado de
natureza
caracteriza-se, para esse pensador, como o momento em que imperava o caos. Além
disso,
Hobbes entende o estado de natureza como uma ameaça constante que paira sobre a
sociedade,
6
ou seja, a ameaça de retorno do caos e desordem caso falte uma autoridade capaz de
conter as
más paixões humanas, impondo-lhes restrições e
limites.6
Para Hobbes, o estado de natureza seria produto necessário de quatro fatores,
quais
sejam: a natureza vil da humanidade, a natureza desejante dos indivíduos, a igualdade
de todos
entre si e a escassez de bens aptos a satisfazerem as necessidades e os desejos de
todos os
indivíduos.
Em sendo vil, o ser humano sempre estaria disposto a praticar os atos mais
sórdidos para
atingir seus objetivos. Lembremos que no estado de natureza não há instituições
sociais aptas a
controlar as más paixões dos seres humanos, o que oferece um campo livre de atuação
para as
maldades inerentes ao nosso
ser.
Em sendo um ser desejante, o ser humano nunca se sentiria satisfeito com o que
tem e
sempre procuraria ter mais na tentativa inglória de aplainar seus desejos. Ora, a lógica
do desejo
é ser insaciável, posto que todo apaziguamento de um desejo é sempre temporário e
tende a
intensificar o desejo tão logo a sensação de saciedade tenha evanescido com o
tempo.
Ao tratar da igualdade, é perceptível que Hobbes a compreende de forma
negativa. Para
o filósofo, embora os seres humanos não fossem absolutamente iguais, eles eram
iguais o
suficiente para que nenhum pudesse triunfar sobre o outro (RIBEIRO, 2005, p. 55).
Sendo
assim, vivendo em constante estado de temor, já que todos eram iguais na capacidade
de
prejudicarem-se mutuamente, e por não saber o que o outro faria, visando preservar
sua vida,
Hobbes acredita que a escolha do ser humano nesta situação seria atacar seu
semelhante mesmo
antes de ser atacado.
Por sua vez, a escassez de bens exige que a satisfação temporária de um
desejo ou
necessidade se dê por meio do impedimento de que os outros indivíduos apossem-se
primeiramente do objeto visado.
6 Sobre o estatuto teórico da referência ao estado de natureza em Hobbes, BRANCO (2013, p.60) alega:
“Na filosofia política de Hobbes podemos (. . .) encontrar dois tipos de estados de natureza. O primeiro
fictício ou hipotético e o segundo histórico. O primeiro é alcançado por meio da imaginação da ausência
do Estado. Já o segundo, o estado de natureza histórico, indica o estágio inicial da humanidade cuja
existência antecede a fundação do Estado.”.
7
Hobbes tem ainda uma concepção negativa da liberdade humana, haja vista
que, por
meio dela o ser humano possuiria o direito de tudo querer e poder, sendo possível fazer
o uso
de todas as suas forças e capacidades para alcançar seus
objetivos.
A soma desses fatores supracitados levaria à instauração da chamada "guerra
de todos
contra todos". O caos constituiria uma consequência necessária do estado de natureza.
Pela
conjunção dos elementos nele presentes, a guerra seria uma necessidade de
sobrevivência e não
uma escolha opcional para os
indivíduos.
Todavia, conforme o filósofoinglês, o ser humano, apesar de tudo, é um ser
dotado de
razão e percebe a inviabilidade de permanecer nesse estado em que seu bem mais
precioso –
sua própria vida – está sob constate ameaça. Isso o leva a imaginar uma situação na
qual esta
ameaça seja eliminada. Para Hobbes, chegado a esse ponto, os indivíduos vislumbram
que a
única forma de escaparem do estado de natureza é por meio da mútua associação,
tendo em
vista a implementação de uma coexistência pacífica. A formulação do pacto social se
dá,
portanto, no exato momento em que a razão humana subordina o lado vil e desejante
do ser
humano, e institui as regras e instituições necessárias para a convivência pacífica.
Assim, a
função do pacto social é a preservação da segurança humana, e sua manutenção não
se dá por
outro motivo além da preservação da vida e dos bens dos
indivíduos.
Através dessa associação tem origem o estado civil, no qual o Soberano – o
Estado –
seria a autoridade responsável por garantir a segurança dos indivíduos, devendo punir
severamente quem descumprisse quaisquer de suas normas, haja vista que ele seria a
única
garantia do não retorno ao estado de natureza. Desse modo, os seres humanos, no
momento da
instituição do pacto social, teriam transferido seu direito de autodefesa para o
Soberano. Logo,
os seres humanos não mais lutariam entre si para preservar o que lhes é mais
precioso, este
poder pertenceria unicamente ao Soberano (BRITO, 2012, p.
121).
Para Hobbes, no estado civil, os seres humanos de fato não possuiriam uma
gama ampla
de direitos e os direitos existentes poderiam ser excluídos se necessário à conservação
do corpo
8
político. A liberdade dos indivíduos, no estado civil, seria a possibilidade de fazer o que
a lei
não proíbe.
Hobbes recusa aceitar qualquer confrontação ao Soberano, uma vez que, para
ele,
mesmo um governo ruim ainda é melhor que o caos representado pelo estado de
natureza. Em
consequência disso não haveriam limites ao Soberano, salvo os que ele mesmo se
impusesse.
Por conta da concepção de poder dada ao Estado, por Hobbes, podemos dizer
que ele
manifestou grande apoio à forma absolutista de governo, como bem detectou Dalmo de
Abreu
Dallari (2005, p. 14):
encontra-se na obra de Hobbes uma clara sugestão ao absolutismo, sendo certo que suas ideias
exerceram grande influência prática, tanto por seu prestígio pessoal junto à nobreza inglesa [...],
como pelas circunstâncias de que tais ideias ofereciam uma solução para conflitos de autoridade,
de ordem e de segurança, de grande intensidade no século XVII. A sistematização das
ideias contratualistas realizada por Hobbes permitiu um grande
avanço na discussão política acerca da natureza do social. Outros autores que vieram
depois de
Hobbes aderiram ao contratualismo, mas rejeitaram veementemente o conteúdo que
Hobbes
deu a essa estrutura conceitual de compreensão da origem do social. Vejamos a seguir
um
grande continuador das ideias contratualistas, mas opositor ferrenho do pensamento
hobbesiano, Jean-Jacques
Rousseau.
ROUSSEAU
Rousseau acredita que no estado de natureza os seres humanos não
estabeleceriam
qualquer vínculo social com seus semelhantes a não ser aqueles estritamente
necessários à sua
sobrevivência. Os seres humanos não só não possuiriam vínculos entre si, mas
também não
necessitariam destes. Todavia, a inexistência de vínculos não significa necessariamente
a
desordem, pois, para Rousseau, a única preocupação humana, nesse estado, seria
com a sua
autopreservação, sendo que, por possuir natureza essencialmente boa, o ser humano
não
possuiria qualquer predisposição de atacar seu semelhante (ROMÊO, 2013, p. 170).
Desse
9
modo, considerando as aspirações e natureza humanas, inexistiria a "guerra de todos
contra
todos" afirmada por Hobbes. O ser humano, embora sozinho, viveria em
paz.
Para Rousseau, o ser humano possuiria duas características próprias ao estado
de
natureza: liberdade e igualdade. Os indivíduos seriam livres, pois a inexistência de
vínculos
garantiria também a ausência de qualquer obrigação e restrição. Eles seriam ainda
iguais pela
falta de qualquer autoridade superior capaz de submetê-los à sua vontade. Os
indivíduos teriam
direito a tudo querer e poder, mediante o uso da
razão.
O aparecimento da linguagem adquire, em Rousseau, uma significação
importante no
que concerne à criação de laços e regras. Através da linguagem, em algum momento,
um dos
seres humanos decidiu instituir através de convenções a ideia de propriedade, que
possui estreita
ligação com a desigualdade, ao passo que retira algo do coletivo transformando em
individual.
Segundo Rousseau, haveria dois tipos de igualdade/desigualdade: as físicas e as
sociais.
Estas se radicam nas convenções impostas pelos seres humanos e, por não serem
fruto da
natureza, não possuem legitimidade. Desse modo, a sociedade traz a infelicidade, dá
origem à
corrupção humana. Isso porque, inicialmente feliz no estado de natureza, o ser humano
decide
por meio de seu egoísmo instituir noções individualistas que geram sua própria
decadência.
Rousseau compreende que o ser humano não poderia voltar ao seu estado
natural, isso
porque voltar no tempo é algo impossível. Contudo, o ser humano não poderia
permanecer na
decadência instituída pela sua individualidade e, por meio de um artifício, buscou a
recuperações de seus princípios naturais. Assim, haveria chegado um momento em
que as
dificuldades de manutenção tornaram-se crescentes de modo a dificultar ou mesmo
impedir que
o ser permanecesse naquele estado. Por ser dotado de razão, o ser humano teria se
conscientizado da impossibilidade de vencer sozinho tais dificuldades e, tendo
consciência de
que a liberdade e a força são as chaves para a sua conservação, decidiu unir forças
com seus
semelhantes formando a
sociedade.
Com o objetivo de recuperar a liberdade natural por meio da instituição da
liberdade
civil e de ampliar a igualdade natural, o ser humano teria assinado um pacto social.
Todos os
10
seres humanos, na condição de iguais, teriam decidido pela alienação total de seus
direitos em
favor da criação de uma autoridade formada por eles mesmos. Isto é, a elaboração de
leis e
regras se daria pelo povo e este mesmo povo seria sujeito passivo de tais regramentos
(NASCIMENTO, 2005). Desse modo, ao obedecer a si mesmo, por meio da vontade
geral, o
ser humano permanece tão livre e igual como dantes. Logo, o pacto seria responsável
pela
instauração do Estado, que por sua vez, deveria estruturar-se de modo a ser um mero
representante da vontade geral, que não se resume a qualquer vontade
individual.
Para Dalmo de Abreu Dallari, as bases das ideias afirmadas por Rousseau
tiveram
determinante importância para o movimento que realizou a defesa da forma
democrática de
governo, pois:
verifica-se que várias das ideias que constituem a base de pensamento de Rousseau são hoje
consideradas fundamentos da democracia. É o que se dá, por exemplo, com a afirmação da
predominância da vontade popular, com o reconhecimento de uma liberdade natural e com a
busca da igualdade, que se reflete, inclusive, na aceitação da vontade da maioria como critério
para obrigar o todo . . . (DALLARI, 2005, p.18).7 Rousseau, como apresentado acima,
mesmo utilizando a mesma arquitetura teórica do
contratualismo, que pressupõe a existência de um momento anterior à vida social no
qual os
indivíduos viviam próximos mas isolados, momento que seria superado pela celebração
de um
pacto social entre os indivíduos para a constituição da vida político-social, desenvolve
um
conjunto de ideias abertamente contrárias às conclusões avançadas por Hobbes no
que concerne
à natureza da organização político-social
humana.
CONCLUSÃO
As teorias expostas ao longo desse trabalho nos mostram que a pergunta pela
origem do
social pode obter respostas bem díspares entre si. Enquanto a corrente de pensamento
naturalista
centra-se na tese de que a vida social é produto de uma necessidade intrínsecaà
espécie humana,
7 Rousseau chega em sua obra a uma conclusão basilar para a fundamentação da democracia quando
afirma que é somente ao poder legítimo que devemos obediência. “Convenhamos, pois, que a força não
faz o direito e que não se é obrigado a obedecer senão a poderes legítimos.” (ROUSSEAU, 2014, p.30)
11
que só realizaria plenamente todas as suas capacidades por meio da vida coletiva, a
corrente de
pensamento contratualista centra sua resposta na ideia de que somente a vontade e
liberdade
humanas podem dar origem ao social e estão aptas a explicar a natureza de nossas
instituições.
Apesar de o contratualismo, como explicação historicamente válida da emergência da
vida em
sociedade, não possuir adeptos declarados atualmente, suas ideias têm grande valor
como
justificativa filosófica das instituições sociais. O contratualismo de Rousseau, por
exemplo,
possui manifesta influência no que hoje convencionamos chamar de
democracia.
Seria plenamente factível, em um movimento dialético de síntese, entendermos
que
ambas as teorias possuem ideias relevantes para o esclarecimento do caráter social da
vida
humana. Assim, poderíamos dizer que a sociedade humana é fruto tanto do instinto
quanto do
desejo humano. Instinto de sobrevivência e desejo de formar um grupo para que unidos
os
indivíduos possam transpor os obstáculos que ameaçam sua existência. Dessa forma,
concluímos que a sociedade é resultado tanto da natureza, quanto da vontade,
liberdade e
inteligência humanas.
REFERÊNCIAS
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