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homem-pessoa, que se afirma como fundamento ético substancial indisponível da ordem jurídica, formando a densidade jurídico-axiológica exigida por um efetivo Estado democrático de direito. A condição de pessoa há de ser compreendida e afirmada nas relações concretas que o homem estabelece, tanto com as outras pessoas (pessoa é re-latio), quanto nas relações estabelecidas com os poderes públicos. Outrossim, impõe-se ante qualquer contexto social ou circunstância particular. Nesse sentido, trazemos à baila a posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro, no Processo de Extradição n.º 633, que teve por Relator o Ministro CELSO DE MELLO, em que a República da China requeria a extradição de um cidadão chinês residente no Brasil: EXTRADIÇÃO E RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS. - A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro - e, em particular, o Supremo Tribunal Federal - de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law. (...). É que o Estado brasileiro (...) assumiu, (...) o gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II). EXTRADIÇÃO E DUE PROCESS OF LAW. O extraditando assume, no processo extradicional, a condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a quem foi dirigido o pedido de extradição.(...). A nossa condição de pessoa ocorre pela justaposição do nosso ser pessoal em comunicação com a nossa dimensão social. Em uma relação dialética, a pessoa forma-se alimentada por essas duas dimensões. É como Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 8 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado se a pessoa humana fosse constituída por uma fina rede entretecida por duas linhas: a linha singular do próprio ser (o eu pessoal) e a linha da socialidade (o eu social). Se há o enfraquecimento de uma dessas linhas, ou se uma delas se torna mais forte que a outra, a rede se desfaz, decompondo substancialmente a pessoa humana. Há de haver uma simbiose entre o eu pessoal e o eu social, que, em proporções equilibradas, conjugam-se e forjam a essência da pessoa humana. Por via de conseqüência, não se trata de algo abstrato ou a- histórico – como se fosse um fato natural –, decorrente de enunciados apodíticos. Pessoa existe entre pessoas, na mediação do mundo com o(s) outro(s) e pelo reconhecimento do outro. Constituímo-nos como pessoa na medida em que nos relacionamos; fazemo-nos pessoa uns com os outros – o que implica, por certo, o reconhecimento do direito do outro. Ser pessoa não é ofício isolado, tarefa de um ser só: é um ato que se forma pelo reconhecimento do outro – também como pessoa –, igualmente um sujeito de direito, a impedir sua instrumentalização. A condição de pessoa não se paga e nem se apaga, afinal, a pessoa é valor não o tendo.10 A pessoa deve ser distinguida, identificando- se diante e graças a indicações peculiares e reais que tornam cada ser, no mundo, único. E isso afasta qualquer tipo de discriminação, ao mesmo tempo em que possibilita a diversidade na unidade. Ademais, discordamos de posicionamentos que inserem a pessoa na contingência de uma massa humana, bem assim de qualquer visão totalitária, que, muitas vezes, sob o pretexto de organizar as massas, obscurece a pessoa11. Seguindo as 10 Lembramos o poeta ANTONIO MACHADO: por mucho que un hombre valga, nunca tendrá valor más alto que el de ser hombre. 11 A propósito, recordamos a condição daquele prisioneiro de um campo de concentração que, ao ter seu nome perguntado, respondeu: Vier und sechzig, neun, ein und zwanzig. Imre Kertész. Sem destino. trad. Paulo Schiller. São Paulo: Planeta, 2003. p. 136. Não por acaso, o regime nazista tinha por princípio a seguinte afirmação: Tu não és nada; tu Povo és tudo. E, por essa via, anulava-se o sentido humano da pessoa, que deixava de ter sentido em si mesmo. Nesse sentido, ver Hans Hattenhauer. Los fundamentos historico-ideologicos del derecho aleman – entre la jerarquia y la democracia. trad. Miguel Macias-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981, p. 323 e seguintes. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 9 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado distinções propostas por MIGUEL REALE12, situamo-nos nos quadros do chamado personalismo – personalismo ético, se dissermos com KARL LARENZ, a implicar uma relação jurídica fundamental de respeito mútuo.13 Tudo, decerto, vinculado ao sentido da própria compreensão de seres humanos, colorida por nossas experiências históricas. Correlata a essa compreensão de pessoa, que em nenhum momento se compagina a qualquer visão individualista, emergem dois deveres: o de solidariedade – v. g. os direitos humanos de segunda dimensão – e o de responsabilidade – a se traduzir significativamente pelo dever de sermos responsáveis pelo(s) outro(s) e pelo mundo. Responsabilidade, portanto, não será apenas responder pelas conseqüências diretas dos nossos atos, senão cuidar do outro, reconhecendo-o como uma pessoa; enfim, um dever pela existência da humanidade – acaso não é isso o proclamado direito das futuras gerações? Como se as nossas mãos se estendessem, abrissem as portas do futuro para encontrar, do outro lado, um outro homem – a esperar a continuidade do mundo que construímos, afirmado pelo direito que queremos. Pelo que, ser pessoa é ser sujeito de direitos e, também, de deveres. Ao referirmo-nos ao dever de solidariedade, não o pensamos como um dever afirmado pelos fins perseguidos pelo Estado, que acabam por obscurecer totalitariamente a pessoa humana. Tampouco uma solidariedade buscada para atender fins específicos de algum grupo social, que queira se sobrepor aos pleiteados pelo amplo desenvolvimento humano. De fato, nos quadros da normatividade constitucional, compreendemos o dever de solidariedade como correlato ao princípio da igualdade e da equivalente dignidade social.14 Postula-se um dispositivo que conceda a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de ser 12 Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 277-279 passim. 13 Derecho civil – parte general. trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 44 e seguintes. 14 Cfe. Pietro Perlingieri. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991, p. 168. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 10 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado humano, e, além disso, a pretensão de ser posto em condições idôneas a cumprir as próprias inclinações pessoais assumindo a posição a estas correspondentes.15 Anotamos, recolhendo a seiva reflexiva de HANS JONAS, o entendimento segundo o qual a ética – que para nós é uma dimensão a