em reconhecê-los. Afinal, seriam apenas os valores expressos pelo legislador constituinte que devem informar o sistema como um todo?34 Sustentamos que não. Para tanto, basta pensarmos o seguinte: e se o legislador constitucional brasileiro de 1988 não houvesse constitucionalizado o princípio da isonomia, significaria que tal princípio não valeria no Brasil? E se não estivesse escrito no inciso III, do artigo 1º que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil? E se no inciso II, do artigo 4º não constasse a referência aos direitos humanos? Significa que as nossas relações não estariam fundadas sobre o lastro axiológico da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos? Não estamos a negar a existência de um processo de constitucionalização do direito privado, de um modo geral, e, particularmente, do direito civil. Um ligeiro passar de olhos sobre a Constituição brasileira é suficiente para que isso se evidencie. Senão, vejamos: o inciso X do artigo 5º preceitua a reparação do dano moral, bem como estabelece a inviolabilidade da vida privada, da imagem e da honra das pessoas; o art. 226 estabelece os princípios institucionais da família, e, em seu parágrafo 3º, reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Com efeito, advogamos, para além da constitucionalização, uma efetiva e substancial jus-humanização do Direito Civil, cujo sentido será caracterizado pela densidade material dos princípios 34 Cfe. Maria Celina Bodin de Moraes, op. cit., p. 107. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 17 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado normativos, escritos ou não,35 e que oferecem o sentido axiológico- normativo da resposta do direito aos casos concretos que postulam a sua mediação. Na esteira do considerado, alcançamos o ponto concernente à legitimidade constitucional. E, nesse terreno, pensamos em um fundamento de validade material, em que não basta o manto da mera legalidade ou da simples positivação de um poder. Ao contrário, a legitimidade constitucional deve fixar-se sobre a correspondência da Constituição com o estrato axiológico de uma cultura em um certo momento histórico. Noutros termos, propugnamos que o critério de validade de uma Carta Magna caracteriza-se pela sua adequabilidade à respectiva compreensão de justiça de um dado ciclo histórico-cultural. Decerto que isso nos remete a uma instância que ultrapassa o próprio texto. Como noutro espaço sustentamos,36 uma Carta Constitucional não se autofundamenta, mas, antes e sobretudo, envia-nos a um nível axiológico substancial que a transcende. O que nos leva a posicionar,37 agora em um âmbito mais específico, a seguinte questão: o direito civil encontra em uma Constituição o último ou penúltimo critério de sua normatividade?38 De outra parte, não se deve incorrer no equívoco de pensar a Constituição como diretriz ou fundamento exclusivo da juridicidade39 – ou ainda critério jurídico-político exclusivo para a atividade jurisdicional. A história deve sempre nos lembrar – até porque isto não nos é muito distante – que ordens arbitrárias também possuem Constituições; que é 35 Segundo o magistério de Orlando de Carvalho: o Direito não é simplesmente a letra dos dispositivos (...); é também o que está para além dos dispositivos – quer se trate de princípios informadores das disposições existentes, quer de disposições ainda inexistentes ou não postas. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. 2a ed. Coimbra: Centelha, 1981, p 50. 36 Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 139. 37 A questão acima, embora noutro contexto, é feita pelo Professor António Castanheira Neves, Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 2º, Coimbra, 1995p. 408. 38 Lembramos a palavra de Gustavo Zagrebelsky, no discurso proferido em homenagem ao XX aniversário do Tribunal Constitucional Português, em 28/11/2003: As Cartas Constitucionais são de facto uma garantia, mas não a última, apenas a penúltima. E, citando Joseph De Maistre, lembra: Uma constituição escrita é um concurso sempre aberto a quem escrever uma melhor. 39 Tratamos com mais vagar desse tema em Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 134 e seguintes. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 18 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado formalmente possível a uma Constituição estabelecer o sacrifício de alguma etnia ou alguma ordem discriminatória que viole os direitos de uma minoria. Outrossim, há Constituições de ruptura, a expressar, mesmo com apoio da vontade popular, ordens ideológicas excludentes e totalitárias. Com efeito, o que sustentamos, portanto, é uma axiologia superior e transpositiva do direito, em que o absoluto não [seja] a constituição, [mas] absoluto [seja] o direito.40 5 – OS DIREITOS DE PERSONALIDADE Decorrente da jus-humanização supra-referida, que reconhece a pessoa humana como núcleo axiológico do direito,41 encontramos no Código Civil Brasileiro, de modo inovador, um capítulo destinado aos direitos de personalidade. O reconhecimento desses direitos encontra-se historicamente vinculado à compreensão ética do ser humano como um sujeito de direitos, portador de uma dignidade intrínseca. Nada obstante a possibilidade de encontrarmos remotas raízes jurídicas de proteção ao homem e de sua personalidade, a Segunda Guerra Mundial, a barbárie produzida pelo nacional-socialismo, bem como o advento de outras cruentas ordens totalitárias e ditatoriais, evidenciaram o largo horizonte de possibilidades de desprezo à dignidade humana e à sua personalidade. Demais disso, descortinou-se, no panorama das relações intersubjetivas, que essas possibilidades podem igualmente ser efetivadas não apenas pelo Estado, mas também por parte de sujeitos particulares – e hoje, com o desenvolver da tecnologia, acentua-se essa possibilidade. Assim, impõe-se a plena afirmação dos direitos da personalidade e sua ampla tutela jurídica, a se estender tanto no âmbito das relações do direito público quanto do direito privado.42 40 Cfe. René Marcic apud Castanheira Neves, op. cit. p. 325. 41 Vale lembrar a alteração do Código Civil de 2002, que em seus dois primeiros artigos substitui a palavra homem, utilizado pelo Código de 1916, pela expressão pessoa. Tal alteração não é apenas de forma, senão que de substância, ante a compreensão da expressão pessoa humana, cuja situação basilar é relacional – se é pessoa entre outra(s) pessoa(s), em lugar do indivíduo isolado em si mesmo e em seus próprios interesses. 42 Assim, por exemplo, dentre tantos, Luis Díez-Picazo e Antonio Gullon. Sistema de Derecho Civil, v. 1, 9ª ed., 2 ª reimpressão, Tecnos: Madri, 2000, p. 324. Como nota de circunstância, vale a lembrança do escólio de Pontes de Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. 19 A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado Decorrentes, pois, da dignidade da pessoa humana, valor-fonte do direito, valendo-nos de uma feliz expressão de MIGUEL REALE,43 podemos entender por direito geral da personalidade um certo número de poderes