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A_Formação_da_Cristandade_Das_Origens

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Christopher Dawson pode ser descrito como o último exem­
plar de sua espécie. Altamente erudito e dono de uma visão his­
tórica monumental, Dawson era um intelectual consciencioso 
que buscava compreender as ações particulares do processo his­
tórico e encaixá-las em um contexto mais amplo, traços que lhe 
renderam a alcunha de historiador filosófico. 
Ainda que possamos chamá-lo de "gigante", pois permitiu 
que subissem em seus ombros grandes intelectuais contemporâ­
neos, como, por exemplo, T. S. Eliot e Russell Kirk, Dawson era 
um homem franzino, de saúde frágil, com capacidades oratórias 
e didáticas muito inferiores à sua magnífica prosa. 
Os anos de Harvard foram os mais produtivos de Dawson 
desde 1935. Um dos belos frutos do período é A Formação da 
Cristandade, primeira parte do tríptico que traça o rico processo 
histórico de constituição da identidade cultural cristã. Neste vo­
lume, Dawson delineia a formação cultural do cristianismo das 
raízes na tradição judaico-cristã até a ascenção e decadência da 
cristandade medieval, com incrível riqueza de detalhes, a par­
tir de um princípio que chama de "católico". A presente obra 
complementa e amplia escritos anteriores como The Making 
of Europe [A Criação da Europa], de 1932; Medieval Religion 
and Other Essays [Religião Medieval e Outros Ensaios], de 
1934; Religion and the Rise of Western Culture [Religião e o 
Nascimento da Cultura Ocidental], de 1950; e Medieval Essays 
[Ensaios Medievais], de 1954. 
Certa vez, uma revista de Boston referiu-se a ele como uma 
"antítese animadora [ ... ] ao acadêmico encastelado na torre de 
marfim'' , já que Dawson trazia consigo a marca do verdadeiro 
intelectual: a humildade. Não obstante, esse homem despreten­
sioso e frágil teve imensa coragem e excepcional domínio da His­
tória ao esboçá-la de um ponto de vista absolutamente inovador: 
a partir de um poder de expressão dinâmico, base de toda a cul­
tura do homem, a pedra angular que os homens de nosso tempo 
rejeitaram chamada religião. 
Márcia Xavier de Brito 
Vice-Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e 
Economia Personalista (CIEEP) . Editora Responsável de 
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura 
Christopher Dawson foi 
um dos historiadores mais 
influentes do século XX na 
Grã-Bretanhq, e nos Estados 
Unidos. Nasceu no dia 12 de 
outubro de 1889 em Hay-on­
-Wye, em Brecknockshire, no 
País de Gales. Até os dez anos 
foi educado exclusivamente 
em casa por tutores. Estu­
dou no Winchester College 
e cursou história no Trinity 
College da Universidade de 
Oxford. Notabilizou-se pela 
grande erudição e capaci­
dade de transitar com rara 
facilidade e sólida competência por quase todos os domínios 
das ciências humanas, ao abarcar, nos estudos históricos, pro­
fundas reflexões dos campos da Literatura, da Antropologia, da 
Sociologia, da Filosofia e da Teologia. Durante a maior parte 
da vida foi um pesquisador independente, no entanto, atuou 
como professor universitário do University College em Exeter 
(1930-1936), da Universidade de Liverpool (1934), da Uni­
versidade de Edinburgh (1947-1948) e da Universidade de 
Harvard (1958-1962). Faleceu no dia 25 de maio de 1970 em 
Budleigh Salterton, em Devonshire, na Inglaterra. Foi autor 
de 24 livros publicados originalmente em inglês entre 1928 e 
1975. Em língua portuguesa, além do livro A Formação da 
Cristandade (2014), a É Realizações já lançou Dinâmicas 
da História do Mundo (2010), Progresso e Religião (2012) e 
A Divisão da Cristandade (2014). 
Imagem da capa: © Cindy Pavlinac 
( www.sacred-land-photography.com) 
Impresso no Brasil, setembro de 2014. 
Título original: The Formation of Christendom 
Copyright © Julian Philip Scott, Literary Executor of the Sta te of Christopher 
Dawson, 2010 
Os direitos desta edição pertencem a 
É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. 
Caixa Postal 45321 - CEP 04010-970 - São Paulo, SP, Brasil 
Telefax: (5511) 5572-5363 
e@erealizacoes.com. br · www.erealizacoes.com. br 
Editor 
Edson Manoel de Oliveira Filho 
Gerente editorial 
Sonnini Ruiz 
Produção editorial 
William C. Cruz e Liliana Cruz 
Tradução 
Márcia Xavier de Brito 
Revisão técnica, preparação de texto e elaboração do índice remissivo 
Alex Catharino 
Revisão 
Cecília Madarás 
Projeto gráfico 
Mauricio Nisi Gonçalves/ Estúdio É 
Capa e diagramação 
André Cavalcante Gimenez / Estúdio É 
Pré-impressão e impressão 
Gráfica Vida & Consciência 
Reservados todos os direitos desta obra. 
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou 
forma, seja eletrônica ou mecânica fotocópia, gravação ou qualquer outro 
meio de reprodução sem permissão expressa do editor. 
A FORMAÇÃO DA 
CRISTANDADE 
Das Origens na Tradição 
Judaico-Cristã à Ascensão e 
Queda da Unidade Medieval 
Christopher Dawson 
TRADUÇÃO DE MÁRCIA XAVIER DE BRITO 
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MANUEL ROLPH CABECEIRAS 
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BRADLEY J. BIRZER 
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE DERMOT QUINN 
POSFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE ALEX CATHARINO 
Apresentação à Edição Brasileira: Christopher Dawson, 
Historiografia, Cristianismo e os Desafios de Nosso Tempo 
S u m á r i o 
Manuel Rolph Cabeceiras ..................................................................... 7 
Prefácio à Edição Brasileira: A Cristandade de Christopher Dawson 
Bradley ]. Birzer .................................................................................. 31 
Introdução à Edição Brasileira: Christopher Dawson e 
a Ideia Católica de História 
Dermot Quinn .................................................................................... 43 
Nota sobre a Tradução 
Márcia Xavier de Brito ....................................................................... 7 5 
Nota do Autor ......................................................................................... 81 
PARTE I - Apresentação 
Capítulo 1 1 Introdução ao Presente Estudo ............................................. 85 
Capítulo 2 1 O Cristianismo e a História da Cultura ............................. 101 
Capítulo 3 1 A Natureza da Cultura ...................................................... 115 
Capítulo 4 1 O Crescimento e a Difusão da Cultura .............................. 135 
PARTE II - Os Primórdios da Cultura Cristã 
Capítulo 5 1 As Ideias Cristã e Judaica de Revelação ............................. 153 
Capítulo 6 1 A Vinda do Reino de Deus ................................................. 171 
Capítulo 7 1 O Cristianismo e o Mundo Grego .......................... ............ 191 
Capítulo 8 1 O Império Cristão .............................................................. 207 
Capítulo 9 1 A Influência da Liturgia e da Teologia no Desenvolvimento 
da Cultura Bizantina ...................................... .................... 229 
Capítulo 1 O 1 A Igreja e a Conversão dos Bárbaros .............................. 249 
PARTE III - A Formação da Cristandade Medieval: Ascensão e Declínio 
Capítulo 11 A Fundação da Europa: Os Monges do Ocidente ........... 261 
Capítulo 12 A Era Carolíngia ............... .............................................. 277 
Capítulo 13 A Europa Feudal e a Era da Anarquia ............. ................ 291 
Capítulo 14 O Papado e a Europa Medieval ...................................... 303 
Capítulo 1 5 A Unidade da Cristandade Ocidental... ......... ............... . .. 317 
Capítulo 16 Os Feitos do Pensamento Medieval... ........................... ... 335 
Capítulo 17 Oriente e Ocidente na Idade Média ................................ 359 
Capítulo 18 O Declínio da Unidade Medieval .. ........................... .... . .. 375 
Epílogo 
Capítulo 19 1 A Ideia Católica de Sociedade Espiritual Universal......... 393 
Posfácio à Edição Brasileira: Teologia e História na 
Reconstrução da Unidade Cristã 
A/ex Catharino ............................... ........................... ....................... 411 
Índice Remissivo .................................................................................... 427 
Apr e s e n t a ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a 
CHRISTOPHER DAWSON, HISTORIOGRAFIA, 
CRISTIANISMO E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO 
MANUEL ROLPH CABECEIRAS 
1 7 
Natural do País de Gales, Christopher Henry Dawson nasceu em 
12 de outubro de 1 8 89, na pequena cidade de Hay-on-Wye (em ga­
lês "Y Gelli Gandryll " ) , também chamada simplesmente de "Hay" . 
À época pertencia a Brecknockshire (condado administrativo de 
Brecknock, extinto em 1 974) , exatamente na fronteira entre este e 
Herfordshire, no lado inglês. Pacata, transformou-se a partir dos 
anos 1 980, por conta das lojas de publicações usadas, na "Meca dos 
bibliófilos" , sendo muitas vezes descrita como "a cidade dos livros" . 
Embora tenha mudado algumas vezes de residência, a infância 
de Dawson sempre se passou nesse ambiente rural vitoriano (e ele 
próprio virá a destacar a importância deste fato em sua formação) , 
sendo educado exclusivamente por tutores, em casa, até os dez anos, 
quando passa a frequentar a escola preparatória . Em 1 908 , ingressou 
no Trinity College da University of Oxford, onde estudou História 
com o grande helenista Ernest Barker ( 1 874-1 960) . 
Em 1 909, acompanhado de seu melhor amigo, Edward 1. Watkin 
( 1 888-1981 ) , viajou para Roma e lá, nos degraus do Capitólio, no lugar 
mais sagrado das sete colinas da antiga Roma, para onde levam todas 
as ruas, sob o impacto da Cidade Eterna, sente-se desafiado a escrever a 
história da cultura; inspiração que seguirá pelo resto da vida. No mes­
mo ano, já de volta a Oxford, conheceu a futura esposa, Valery Mills, a 
caçula de três filhas de uma viúva, com quem, em 19 16, se casou e foi 
a companheira de toda a vida, sobrevivendo-lhe por mais quatro anos. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
Ao mesmo tempo, por volta dessa época, Dawson trilhava um iti­
nerário espiritual que veio a culminar na sua conversão de um angli­
canismo praticante a um catolicismo não menos engajado. Para a to­
mada de decisão, em 1 9 1 3 , não faltou o apoio do melhor amigo e da 
namorada, ambos católicos. No dia 5 de j aneiro de 1 9 14, Christopher 
Henry Dawson foi batizado na igreja, em Oxford. Iniciada a Primeira 
Guerra, tentou ingressar no serviço militar, mas é rejeitado em razão 
da saúde ( sempre debilitada ) . 
Em breve, a s suas pesquisas começaram a dar frutos e sucederam 
as publicações: The Nature and Destiny of Man e The Passing of 
Industrialism ( 1 920) , Cycle of Civilizations ( 1 922 ) , The Age of Gods 
( 1 928 ) , Progress and Religion ( 1 929) , Christianity and the New Age 
( 1 93 1 ) , The Making of Europe e The Modern Dilemma ( 1 932), The 
Spirit of the Oxford Movement e Enquiries into Religion and Culture 
( 1 933 ) , Medieval Religion and Other Essays ( 1 934) , Religion and 
the Modern State ( 1 935 ) , Beyond Politics ( 1 939 ) , Judgment of the 
Nations ( 1 942 ) , Religion and Culture ( 1 948 ) , Religion and the Rise 
of Western Culture ( 1 950) , Medieval Essays ( 1 954), Dynamics of 
World History ( 1 956) , The Movement of World Revolution ( 1 959) , 
The Historie Reality of Christian Culture ( 1 960) , The Crisis of 
Western Education ( 1 96 1 ) , The Dividing of Christendom ( 1 965) , 
The Formation of Christendom ( 1 967) e, postumamente, The Gods 
of Revolution ( 1 972 ) e Religion and World History ( 1 975 ) . Para um 
público como o brasileiro, ao qual Dawson foi apresentado apenas 
recentemente, a relação visa a dar alguma ideia sobre os temas por 
ele investigados e o ritmo de produção, sem qualquer pretensão de 
esgotarmos a totalidade de sua obra. 
Entre tais títulos, alguns foram aclamados, desde o lançamento, 
como marcos fundamentais, o que enalteceu a amplitude do conhe­
cimento e a lucidez de estilo do autor. A repercussão dos trabalhos 
dawsonianos pode ser medida pela eleição do autor, em 1 943, para 
membro da British Academy. Apesar de atuar mais fora do ambiente 
8 1 9 
universitário, chegou a ocupar algumas vezes a cátedra no University 
College em Exeter ( 1 930-1 936) , na Universidade de Liverpool ( 1 934) 
e na Universidade de Edimburgo ( 1 947 e 1 948 ) no Reino Unido, bem 
como na Universidade de Harvard ( 1 958-1 962) nos Estados Unidos. 
No ambiente protestante da Universidade de Harvard, em Cambridge, 
Massachusetts, ministrou, como primeiro titular, um curso chamado 
Roman Catholic Studies [Estudos Católico-Romanos], criado por inicia­
tiva e a convite do benemérito católico, também convertido, Chauncey 
Devereux Stillman ( 1 907-1989) . Após a estada norte-americana, retor­
nou para a sua residência em Budleigh Salterton, Devon, na Inglaterra, 
cidade às margens do Canal da Mancha, onde passou os últimos anos, 
vindo a falecer em 25 de maio de 1 970. Seus restos mortais foram depo­
sitados em Bumsall, Yorkshire, no norte da Inglaterra, próximos aos dos 
pais, no local em que passou parte da infância. 
São partes do curso ministrado por Dawson na temporada esta­
dunidense as palestras transformadas em três livros, então entregues 
aos cuidados de Watkin, amigo de toda a vida, companheiro da via­
gem a Roma, e agora seu agente e editor literário. Diferente das outras 
obras anteriores, a publicação das referidas palestras repercutiu mui­
to pouco. Era o ocaso de um gênio e de um modo de fazer História . 
Dos três, o terceiro e último volume The Return to Christian Unity 
[O Retorno da Unidade Cristã] permanece ainda inédito mesmo em 
língua inglesa. Quanto aos dois primeiros, os já citados The Formation 
of Christendom [A Formação da Cristandade] e The Dividing of 
Christendom [A Divisão da Cristandade] , foram publicados respec­
tivamente em 1 967 e 1 965, assim mesmo, nessa ordem (para a qual, 
mais adiante, propomos uma leitura interpretativa dos motivos) . 
O público de língua portuguesa1 é agora, e m 2014, agraciado no 
1 A presente publicação - A Formação da Cristandade - e A Divisão da Cris­
tandade se somam aos outros livros do autor já traduzidos para o português 
e também publicados pela editora É Realizações: Dinâmicas da História do 
Mundo (2010) e Progresso e Religião (2012) . 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira 
Brasil com um lançamento simultâneo dessas duas obras, justamente 
no ano do centenário da conversão de Dawson ao catolicismo, oca­
sião em que assistimos a um renovado interesse pelo seu pensamento 
em meio aos impasses vividos na atualidade. Impasses historiográfi­
cos e civilizacionais, impasses sobre a presença cristã e, mais particu­
larmente, católica, em tais contextos. 
Fiel à inspiração inicial, temos nesse percurso uma vida dedica­
da ao estudo das culturas históricas, ao papel desempenhado pela 
religião, nesse caso visto como central, e, em particular, o exame do 
cristianismo histórico e da cristandade. Eis um historiador da cultura 
britânico; mas, o que significa ser um historiador da cultura ? 
Voltando ao público brasileiro, eis uma pergunta pertinente e res­
ta aqui um importante esclarecimento. Para quem, como nós, está ha­
bituado a combinar o binômio "História " e " Cultura " , nessa ordem, 
sob a etiqueta de "história cultural " , o termo "história da cultura " 
soa como algo estranho, completamente exótico. 
A história cultural no Brasil, no recorte teórico-metodológico, 
é suscetível às modas intelectuais. Estas vêm fundamentalmente dos 
franceses que, com Roger Chartier ( 1 945-) , ao tratar da chamada 
"nova história cultural "2 sentiu necessidade de fazer dois movimentos 
parademarcar o terreno: um interno, no bojo da Nouvelle Histoire 
[História Nova] , cujo objetivo era distingui-la da "história das menta­
lidades" , sem deixar de apresentar-se como seu herdeiro; e outro ex­
terno, ao identificar uma "história das ideias" e/ou " intelectual " (vez 
por outra esses termos se sobrepõem ou são pensados como campos 
distintos ) , assinalando-a como pertencente a um universo bastante 
diverso da sua proposta de pesquisa. 
Todavia, do outro lado do Canal da Mancha, apesar dessa história 
das ideias, independente do nome dado, se fazer hegemônica e usufruir 
2 Roger Chartier, A História Cultural entre Práticas e Representações. Trad. 
Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990. 
10 111 
de grande fortuna, o quadro guardava uma complexidade maior. Foi 
preciso esperar por outro prócer da "nova história cultural" , o in­
glês Peter Burke ( 1 937-) , cuja carreira teve início como professor de 
Intellectual History [História das Ideias] na Universidade de Sussex, 
em 1 962, e veio a assumir, em 1 979, a cadeira de História Cultural na 
Universidade de Cambridge, onde hoje é professor emérito. 
Pois bem, como parte do desafio do qual se desincumbe no livro 
O Que É História Cultural?,3 Peter Burke faz de seu eixo de argumen­
tação um esquema apresentado com o intuito de distinguir essa "nova 
história cultural" (NHC ou, em inglês, NCH), da "história cultural" 
que seria praticada nas " fases" anteriores. E, entre elas, a primeira se­
ria, justamente, mais amiúde chamada de "história da cultura " , apre­
sentada mais como uma "história de obras-primas" estudadas como 
expressão de determinada cultura seja nas artes, nas letras ou nas 
ciências, predominando em suas análises o tom filosófico, estetizante 
e elitista . Burke, ao identificá-la como a primeira fase da história da 
história cultural, denomina-a de "clássica" e marca o seu início na 
Alemanha dos anos 1 780, notando-a vigorosa até 1 950, quando seria 
suplantada pelo movimento da "história social da arte " . Este último, 
vindo de 1 930, seria representado, entre outros, por Arnold Hauser 
( 1 892-1 978 ) e Ernst Gombrich ( 1 909-200 1 ) , enquanto da fase clás­
sica, anterior, são destacadas as obras do suíço Jacob Burckhardt 
( 1 8 1 8-1 897) e do neerlandês Johan Huizinga ( 1 872- 1 945 ) como as 
maiores e mais emblemáticas. 
Segundo Peter Burke, a história da história cultural ainda teria mais 
duas fases: a terceira, caracterizada pela "descoberta da cultura popu­
lar" nos anos 1960 e a quarta, justamente a da "nova história cultural" , 
na qual se insere. Entre os primeiros relaciona E. P. Thompson ( 1924-
1 993) , Eric Hobsbawm ( 1 9 1 7-2012) e Christopher Hill ( 1 912-2003) . 
3 Peter Burke, O Que É História Cultural?. Trad. Sérgio Goes de Paula. Rio 
de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le ira 
Já, para a fase presente, iniciada nos anos 1980, aponta o G-4 das re­
ferências teóricas do movimento nas obras de Mikhail Bakhtin ( 1 895-
1 975 ) , Norbert Elias ( 1 897-1 990) , Michel Foucault ( 1 926-1 984) e Pier­
re Bourdieu ( 1 930-2002), distinguindo Chartier como um dos princi­
pais líderes. Completar-se-ia, então, o que Burke considera, numa visão 
panorâmica, o alargamento do escopo da história cultural, de restrita 
em sua fase clássica à alta cultura até a inclusão da cultura cotidiana, 
abrangendo os costumes, valores e modos de vida, convergindo com a 
maneira de ver a cultura dos antropólogos. 
Há sérios problemas nessa classificação, que pelo prestígio de seu 
autor vem se transformando em cânone, ao menos nas terras brasíli­
cas, tantas são as reduplicações e citações feitas sem qualquer crítica. 
Não sendo aqui o lugar para exercê-la sistematicamente, pontuare­
mos apenas aquilo que diz respeito ao nosso autor. 
Peter Burke observa existir na anglofonia um importante con­
traste, nesse terreno, entre os Estados Unidos, marcado por uma tra­
dição de interesse nos estudos culturais, e a resistência a tal estudo, 
no lado britânico do Atlântico, mais afeito ao estudo das ideias. As 
principais e raras exceções listadas são o Christopher Dawson de The 
Making of Europe ( 1 932) , os doze volumes de A Study of History 
( 1 934- 1 96 1 ) escritos por Arnold Toynbee ( 1 8 89-1 975 ) e, o que mais 
impressiona a Burke, o projeto concebido e planejado, nos anos 1 930, 
pelo bioquímico Joseph Needham ( 1 900-1 995 ) , cujo resultado foi a 
publicação, iniciada por ele à frente de um grupo de colaboradores, 
de Science and Civilisation in China ( 1 954-200 8 ) . 
Ora, n o afã d e demarcar terrenos, guiados por afeições inte­
lectuais, muitas vezes a retórica passa a predominar, simplificando 
posições e, por consequência, aspectos importantes deixam de ser 
contemplados. Assim, por exemplo, a vitória obtida pelas duas pri­
meiras gerações dos Annales, revista em torno da qual se desenvol­
veu a História Nova, com proposições de enorme relevância para a 
historiografia contemporânea, deu-se acompanhada pelo desprezo 
12 l 13 
e abandono, por um bom tempo, de setores temáticos como o da 
política e o da guerra, denunciados no combate pela renovação 
teórico-metodológica como típicos de uma história acontecimental 
(événementielle ) , de uma história do tempo breve. No entanto, des­
de então, quando o tempo acentuou a relevância de tais domínios, 
surgiram diferentes iniciativas cujo objeto era a recuperação e reno­
vação dos referidos temas. 
À semelhança do ocorrido acima, por mais que Peter Burke te­
nha a delicadeza de afirmar o valor de todas as chamadas quatro 
fases da história da história cultural e o permanente interesse pelas 
principais obras de cada tradição (cada fase seria a expressão de uma 
determinada tradição nos estudos históricos da cultura ) , o resultado 
também aqui é a valorização daquilo que se revela próximo de suas 
afinidades intelectuais. Isso se revela na breve menção feita à obra de 
Christopher Dawson, reduzindo-a a um único título significativo e, 
apesar de positiva, vem acompanhada de um comentário que resume 
as investigações de Dawson nesse campo aos seis anos de atuação 
como conferencista de história da cultura em Exeter, ocasião em que 
teria produzido aquela mencionada obra. Tudo isso somente revela 
quão imenso é o desconhecimento de Burke a respeito da obra e do 
pensamento dawsoniano. 
O preço pago por tal lacuna mostra ser elevado quando pas­
samos a observar, nas citações e resenhas da revisão historiográ­
fica empreendida por Peter Burke, a tendência de transformar as 
simplificações presentes em seu texto, em algo caricatural . Enfati­
zando o exercício retórico promovido vemos, entre outras consi­
derações, a " história da cultura " ser chamada de " história das be­
las artes " . E bastaria trazer à memória nomes como os de Oswald 
Spengler ( 1 8 80- 1 93 6 ) e do já citado Arnold Toynbee, autores que 
o leitor brasileiro de história tem certa familiaridade, e que, ape­
sar da distância, tiveram várias obras traduzidas para o português 
(o que permite, pois, que sej am consultados nas boas bibliotecas ) 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra 
para perceber que esse não é o caso. Aliás, em ambos, Spengler e 
Toynbee, o nosso leitor pode vir a obter uma imagem pouco mais 
aproximada do tipo de trabalho empreendido por Christopher 
Dawson. No entanto, ainda assim, são obras bem distintas, sej a 
em muitos dos procedimentos, sej a mais ainda nas interpretações 
e conclusões. O próprio Dawson, ao dialogar com elas, mesmo em 
face da obra de Toynbee, de quem foi colega de classe, não deixa 
de criticá-las firmemente, e de indicar os pontos que as considerava 
deficientes ou contraditórias. 
Se voltarmos para a fonte das citações e resenhas - o próprio 
textode Peter Burke -, um olhar atento torna possível localizar a ra­
zão do desconhecimento e da pouca afeição pela obra de Christopher 
Dawson. A perspectiva de Burke ao abordar a cultura é a do viés 
econômico-social, num horizonte nitidamente marxista . Não há mo­
mento em que a dimensão religiosa é tratada com a atenção devida 
nas considerações e abordagem a respeito da cultura . É como se não 
houvesse lugar para esse campo de pesquisa . E de fato não há. Por 
não existir, Dawson permanece deslocado. 
Esse não deveria ser um problema para Burke, visto que intenta 
contemplar diferentes pontos de vista . Em época como a atual, em 
que os fenômenos religiosos ganham cada vez maior destaque, torna­
-se irrecusável a percepção de sua magnitude na realidade social, e 
um autor como Dawson, que concede primazia a esse plano na dinâ­
mica das culturas históricas, merece, ao menos, ser lido com um pou­
co mais de atenção. Isso sem contar que, ao continuarmos afastados 
de tal retórica de combate, entre a " história cultural " e a "história 
da cultura" , as propostas teórico-metodológicas subjazem variadas, 
guardando, cada uma, as suas virtudes. E Burke está certo; frequen­
tar as diferentes tradições intelectuais no campo da história cultural 
areja essa esfera de conhecimento e contribui para o desenvolvimento 
das investigações, refinando-nos o instrumental. E, entre os grandes 
expoentes, Dawson é um gigante. 
14 j 1 5 
Um tema, por exemplo, d a "história d a cultura" , não contem­
plado pela "história cultural " , é o das civilizações, que, pelo caráter 
compendioso, já foi objeto de estudo de dois dos nomes mais icônicos 
da História Nova, Fernand Braudel ( 1 902- 1985 ) e Jacques Le Goff 
( 1 924-2014 ) . Hoje, contudo, tornou-se marginal, em virtude daquilo 
que foi denominado de "história em migalhas" ,4 uma tendência que 
se mantém em razão da imensa e nebulosa pluralidade de novos pro­
blemas, novas abordagens e novos objetos que, desde os anos 1 970, 
quando foi inventariada, já era impactante.5 Essa perspectiva não 
para de crescer, fazendo-nos descrer da capacidade de uma só inteli­
gência abarcar todo esse universo com um só golpe de vista . 
Entre civilização e cultura, é costume aproveitar, em relação à pri­
meira noção, a rota inicialmente traçada pelos franceses e, em relação 
à segunda, a dada pelos alemães, demonstrando que ambas são oriun­
das de tradições distintas. A partir de tal operação, muitos se sentem 
autorizados a descolar da noção de cultura o aspecto de grande sínte­
se, o qual também lhe era e é próprio, tanto que, para muitos autores 
e circunstâncias, os vocábulos são intercambiáveis. Assim, deixam de 
lado a magistral lição de Fernand Braudel que, aproveitando a existên­
cia dos dois termos, fazia coincidir a ideia de civilização com um tipo 
específico de cultura, a urbana ( Grammaire des civilisations,6 de 1 987, 
ao retomar o núcleo de outra obra de sua autoria, datada de 1 963 ) . 
Não obstante, tal visão larga, abrangente, dotada de altos voos, 
característica dessa "história da cultura " , já tinha sofrido um grande 
4 François Dosse, A História em Migalhas. Trad. Dulce A. Silva Ramos. São 
Paulo/Campinas, Ensaio/Editora Universidade Estadual de Campinas, 1992. 
5 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dir. ) , História: Novos Problemas. 4. ed. Trad. 
Theo Santiago. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novos 
Objetos. Trad. Teresinha Marinho. 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 
1995; Idem, História: Novas Abordagens. 4. ed. Trad. Henrique Mesquita. 
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. 
6 Fernand Braudel, Gramática das Civilizações. 3. ed. Trad. Antônio de Pádua 
Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2004. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
estrago, resultado do combate da História Nova em torno das in­
terpretações filosóficas do processo histórico ou, mais precisamente, 
da energia despendida pelos historiadores em adequar os estudos à 
determinada filosofia da história . A isto, e assim designa o próprio 
Dawson, chamamos de meta-história . A ideia dos "novos historiado­
res" era, em troca, apostar no contato com as demais ciências sociais 
(a interdisciplinaridade) ; na prática da pesquisa problematizada; no 
desenvolvimento de técnicas mais rigorosas e controladas, no intui­
to de evitar interpretações impressionistas dos fenômenos históricos. 
Essa necessidade ingente de inculcar no historiador um refinamento 
teórico e metodológico testado na pesquisa sistemática das fontes le­
vava à necessidade de ostracizar a filosofia e, mais particularmente, a 
filosofia da história da cidadela de Clio, relegando a meta-história a 
assunto de filósofos . 
Ora, os resultados pretendidos foram alcançados . Já são quatro 
as gerações desde os Annales, a revista em torno da qual, desde 1 929, 
se desenvolveu a Nova História. As críticas dirigidas ao movimento 
nos anos 1 9 80 e 1 990 evidenciaram os limites da proposta e a ne­
cessidade de revisão crítica . Cada vez mais a revisão crítica se faz 
necessária, pois as questões seguem em aberto, a retomada de certos 
temas e autores esquecidos no fragor do combate, e é preciso dar-lhes 
nova dimensão. 
Christopher Dawson é um dos autores, como pode ser antevisto, 
que muito tem a dizer para aqueles que pertencem aos domínios da 
História . Estamos a falar de um dos pioneiros no diálogo com as 
Ciências Sociais, particularmente, com a Antropologia e a Sociologia, 
muitas décadas antes da História Nova. A virada, por exemplo, que 
Peter Burke identifica, entre os anos 1 960 a 1 990, da história cultural 
em direção à Antropologia, em decorrência dos problemas de defini­
ção daquilo que viria a ser cultura, encontra em Dawson um expe­
riente precursor, pois, na década de 1 920, inaugurara esse diálogo. De 
sua meta-história não estão ausentes tais diálogos; evita as excessivas 
1 6 l 1 7 
simplificações que ele mesmo denuncia em Oswald Spengler e Arnold 
Toynbee, mas também em Karl Marx ( 1 8 1 8- 1 8 8 3 ) . Aliás, um dos em­
bates da meta-história dawsoniana é contra as excessivas generaliza­
ções e o empenho em fixar leis da história, algo por ele descartado 
justamente graças à enraizada visão cristã e à profunda atenção para 
com as particularidades sociais. 
Muitas vezes somos levados a pensar que a meta-história está 
ausente da prática historiográfica vigente. O sucesso das lutas anna­
lesistas nos distrai do fato que as teorias sociais de dois dos autores 
teóricos mais frequentados por quem pratica História no Brasil, o já 
citado Karl Marx e Max Weber ( 1 864- 1 920) , têm subjacente às suas 
propostas interpretativas também uma meta-história . Aliás, à medi­
da que se constata ser crescente o renovado interesse pelas obras de 
Dawson mundo afora (há um reviva/ dawsoniano) , Weber tem sido 
reiteradamente comparado a Dawson, e com razão, não quanto à 
meta-história, mas no diálogo entre a história e outras ciências huma­
nas, bem como no interesse do papel da religião na cultura ocidental . 
Retornar à ambição pela síntese, tê-la em mente no horizonte 
investigativo: é preciso reatar essa conexão que se manteve presente 
até a terceira geração dos Annales, com Jacques Le Goff, por exem­
plo, como tivemos ocasião de citar. É preciso recordar às raízes dos 
Annales, recordar Henri Berr ( 1 863- 1 954 ), para quem, sem tergiver­
sações, a síntese ocupava papel central . Daí a sua Revue de Synthese 
Historique ( 1 900, após 1 930, simplesmente, Revue de Synthese) e 
o Centre International de Synthese ( 1 925 ) , ambos frequentados por 
Marc Bloch ( 1 8 86-1 944 ) e Lucien Febvre ( 1 878- 1 95 6 ) . A evocação 
aqui, porém, é a da exigência, esgotado o caminho, de resultar na 
"História em migalhas" . E aqui também Dawson fornece inestimá­
vel contribuição. 
O que sustenta a meta-históriade Dawson e qualquer meta-his­
tória e qualquer análise relevante dos fenômenos sociais e históricos 
é a imaginação criativa. O caminho da síntese é o da " imaginação 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
criativa " , de visões inspiradoras que nos lançam para frente e nos 
permite contemplar grandes horizontes. Quem a estudou suficiente­
mente bem no campo das ciências sociais foi Charles Wright Mills 
( 1 9 1 6- 1 962 ) , chamando-a de " imaginação sociológica " . 7 A " imagi­
nação sociológica" é um ato que permite a quem a pratica partir do 
horizonte imediato, no qual se acham as vivências e constatações 
pessoais, até as grandes questões públicas, inserindo-se compreen­
sivamente no contexto maior da própria sociedade. Por ser uma 
prática criativa, Mills fala de uma qualidade de espírito que permite 
ao sujeito usar a informação de que dispõe e desenvolver a própria 
razão de modo a obter maior clareza acerca do que ocorre no mun­
do e consigo mesmo. 
Analogamente, em cada campo, podemos encontrar uma feição 
dessa " imaginação criativa " . Toda grande obra intelectual, científica 
ou artística é alimentada e sustentada por tal visão. Principia, dentre 
os procedimentos de conhecimento, muitas vezes em um insight, uma 
intuição, favorecida por um ambiente, pelo contato com os clássicos, 
o exercício da fantasia e do jogo, na projeção refletida e vivenciada de 
nossas ações em um quadro informado por determinada ideologia ou 
religião. Experiências de construção de sentido. Há, outrossim, uma 
" imaginação histórica" . 
Falamos em ideologia e religião como fontes da imaginação cria­
tiva. Entretanto, não só é fundamental esclarecer o papel desses ele­
mentos em tal processo, como também é crucial ilustrá-lo na obra 
historiográfica ou em qualquer interpretação a respeito da realidade. 
No empenho de apresentar Dawson ao público brasileiro e conceder­
-lhe o devido e inestimável valor, é preciso que nos acautelemos dian­
te da leitura fácil e tentadora que pretende encerrá-lo, atendendo a 
uma perspectiva apologética, em determinado nicho: o do historiador 
7 C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra . Rio 
de Janeiro, Zahar Editores, 1982. 
1 8 l 19 
conservador e partidariamente católico, como pretendem alguns da­
queles que o têm resgatado recentemente. 
A apologética possui função e valor, mas, para ela, a História 
interessa apenas de maneira instrumental, pragmática, quando está 
a serviço de determinada causa ou interesse. Não lhe interessa a His­
tória na qualidade de um campo de investigação próprio. Assim o é 
quando muito abrangida pelo que convencionalmente designamos, 
hoje, de "história pública " , ou sej a, o uso social das investigações 
históricas. Uma vez restritos a tal gênero de história pública, não de­
vemos confundir os campos: a história profissional/acadêmica e tal 
uso instrumental da tarefa do historiador na defesa de determinada 
fé, seja ideológica ou religiosa . 
A despeito dos historiadores adotarem ideologias e estas inspi­
rarem as suas pesquisas, interpretações e análises, as investigações 
não são, ou ao menos não deveriam ser, direcionadas por esse mesmo 
ideário particular. Um trabalho profissional de qualidade ultrapassa 
as ideologias, seguindo regras próprias do ofício. 
Inspirar significa sugerir o que está na raiz dos dilemas e dos ques­
tionamentos do historiador, manifestando o quanto estamos imersos 
e comprometidos na própria época. Significa dizer, igualmente, que as 
ideologias estão mediadas por nossas teorias sociais, estão no cerne 
das hipóteses ou das respostas dadas aos dilemas e questionamentos 
anteriormente propostos. A ideologia tem relação clara com a per­
cepção da política, no modo como são justificadas e projetadas as 
ações nesse campo. Já a religião, quando é mais que uma palavra na 
boca do fiel, extravasa o campo da política e passa a ter um cará­
ter mais existencial, abarcando a vida em todas as suas dimensões, 
fornecendo-lhe respostas de maior amplitude, capazes de adequada­
mente conferir sentindo ao seu viver. Cumpre observar que apenas 
uma ou outra possui tal condição - não estamos aqui sectarizando. 
É da própria vida, da reflexão que fazemos a seu respeito que proce­
dem as questões e hipóteses acerca dessas dimensões. O fundamental 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Bras i le i ra 
aqui é que sejam construídas e testadas conforme os procedimentos 
de cada disciplina . 
Ideologias e religiões, cada uma a seu modo, podem alimentar a 
imaginação criativa do pesquisador do fenômeno humano, o qual, 
por natureza, é social e histórico. Se Wright Mills nos fala em ima­
ginação sociológica e igualmente constatamos que não estão des­
providas de imaginação as grandes obras no campo historiográfico, 
insistimos que uma e outra são formas da imaginação criativa que 
alicerçam qualquer investimento sério e sistemático em determinado 
ramo de pesquisa ou saber. Ora, em toda forma de saber, há regras 
e procedimentos que devem ser seguidos, a despeito das ideologias e 
das religiões, e a imaginação criativa expressada nas teorias e hipóte­
ses é constantemente posta à prova. Desse modo, apenas resultam, so­
brevivem e se tornam clássicas as teorias e hipóteses que se coadunam 
em escala significativa com os dados disponíveis. Se a imaginação 
sociológica é um exercício de construção de sentido social, por via da 
imaginação histórica opera-se a construção de sentido ao longo do 
tempo, unindo-nos não só às pessoas, às sociedades e às culturas nas 
quais vivemos na dimensão temporal mais estrita, como também a 
outras épocas em perspectivas mais longas. 
Assim, é empobrecedor reduzir Christopher Dawson, ou qual­
quer grande autor, ao campo ideológico . Uma boa obra se faz clás­
sica por ultrapassar tal bairrismo sectário, por iluminar desassom­
bradamente aspectos fundamentais da realidade humana . O mes­
mo se pode dizer da religião. Se Dawson é um historiador católico 
e esta identidade se constitui em chave de sua obra, não o é por 
atender interesses apologéticos, mas pelo fato de ter tal vivência 
como ponto de partida das inspirações, dos questionamentos e das 
hipóteses de um modo que falta, em tempos pós-iluministas, aos 
intelectuais cristãos em geral , salvo honrosas exceções. Uma delas é 
a vida, a carreira e a obra de Christopher Dawson que nos trazem 
riquíssimas lições ! 
20 121 
Como vimos, o livro que ora temos em mãos, A Formação da Cris­
tandade ( 1 967) , foi originalmente lançado após, não antes, o volume 
A Divisão da Cristandade ( 1 965 ) , que aborda os acontecimentos que 
lhe são posteriores. A narrativa deste último inicia com um olhar de 
conjunto sobre a época contemplada no volume, examinando, no Oci­
dente, os impactos culturais da quebra da unidade cristã . A seguir, des­
creve as manifestações dolorosas de declínio dessa unidade em pleno 
século XIV até a consumação da Cristandade dividida, passando pela 
Renascença, pelo Barroco e pelo Iluminismo. O Cisma Protestante, a 
Reforma e as monarquias nacionais são examinados detalhadamente 
em seus desdobramentos culturais em um e outro lado do Atlântico. 
Já n'A Formação da Cristandade, especial importância adqui­
rem os prolegômenos, de cunho nitidamente teórico, que podem ser 
divididos em duas partes: uma primeira, histórico-cultural, sobre o 
cristianismo e a história da cultura, as culturas históricas e sua di­
nâmica; e outro segmento, teológico, sobre Revelação e o Reino de 
Deus. A seguir, a narrativa acompanha a Cristandade Medieval em 
seus primórdios, a ascensão e o declínio, examinando os elementos de 
integração e de dissolução e as manifestações culturais no Ocidente 
e no Oriente. Ao fim, após apresentar as primeiras fissuras ( séculos 
XIII e XIV), expõe uma análise acerca da ideiacatólica de sociedade 
espiritual universal (epílogo) . 
Enfim, The Return to Christian Unity [ O Retorno à Unidade 
Cristã] , ainda inédito e no aguardo de publicação, completa o per­
curso ao abranger o final do século XVIII e os séculos XIX e XX. No 
título, indica mais um desejo, um empenho e um projeto que uma 
efetiva realização, ao mesmo tempo aponta, também, ao encaminhar 
às duas obras anteriores, tratar-se de um conjunto único, centrado na 
ação da unidade cristã : na necessidade de retomada e de iniciativas 
nessa direção, o que o remete a analisar o modo como se deu tal perda 
e seus desdobramentos, bem como recorda sua constituição primeva 
e a manifestação da força dessa unidade. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
Um único argumento, uma única ação a costurar os três volumes, 
os quais, portanto, fazem parte de um único canto. Assim como a Ilíada 
narra a ira de Aquiles e a Odisseia, a volta de Odisseu (Ulisses ) a Ítaca, 
ou seja, ao lar, temos também uma única ação, como nos ensina a poé­
tica clássica, a presidir a grande epopeia que Dawson nos lega, como a 
nos deixar um testamento: a grande série de acontecimentos grandio­
sos da unidade cristã no Ocidente, a Cristandade Europeia. 
As palestras ministradas entre 1 958 e 1 962, e publicadas em 
1 965 e 1 967, ocorrem no contexto do Concílio Vaticano II: eleito 
pontífice romano o cardeal Angelo Roncalli ( 1 8 8 1 - 1 963 ) em fins de 
1 958 (em 28 de outubro, e assumindo o pontificado em 4 de no­
vembro ) com o nome de João XXIII, o novo papa convoca, com a 
bula papal Humanae Salutis, o Concílio em 25 de dezembro de 1 96 1 , 
cujas sessões ocorrem de 1 1 de outubro de 1 962 a 8 de dezembro 
de 1 965, encerrando já no pontificado de Paulo VI ( 1 897- 1 978 ) . 
O ecumenismo que sempre estivera no foco das ações de Dawson, e 
fora promovido por intermédio das mais diversas iniciativas, encon­
trava em João XXIII largos e decisivos gestos, como a criação, em 
1 960, do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. As 
palestras em Harvard, portanto, mostravam-se bem oportunas. 
À decisão de lançar A Divisão da Cristandade antes de A For­
mação da Cristandade, provavelmente tomada por Watkin, não deve 
ter faltado certo senso de dramaticidade, pois visava a introduzir o 
leitor in media res, no meio dos eventos que acabaram por cindir 
a cristandade e, por tabela, favorecer culturalmente a cristandade, 
ganhando espaço para uma modernidade que dela estava ausente, 
apesar do vigor cultural que ainda demonstrava. Essa publicação foi 
seguida d' A Formação da Cristandade, como digressão retrospectiva 
que pretendia exibir o remédio ao mal, cuja visão da unidade perdi­
da deveria contribuir para o retorno. A fria recepção na ocasião do 
lançamento dos dois primeiros volumes, e um Dawson cada vez mais 
doente, somou-se ao acentuado pessimismo de Watkin em face dos 
22 l 23 
novos tempos: tais ingredientes compuseram o quadro que conduziu 
à decisão pela não publicação do terceiro volume, deixando-nos ór­
fãos da obra completa. 
Até que venha o terceiro livro temos naquilo que foi publicado 
um tesouro inestimável, em dois volumes que se justificam por si sós e 
podem ser lidos independentemente ou na sequência, se o leitor assim 
desejar. Quanto ao ecumenismo, este continua a ser um desafio para 
os cristãos. Além da urgência da unidade, dado o avanço do secula­
rismo que alcança no Ocidente uma capilaridade nunca antes vista, 
a fragmentação da unidade da Igreja revela-se como um espinho à 
medida que o amor-caridade entre os irmãos não se mostra capaz, 
dados os limites humanos, de demonstrar, no tempo, sinais mais pa­
tentes da unidade. A ruptura da união desejada pelo Cristo para a Sua 
Igreja veio a se constituir num doloroso óbice à atividade missionária 
e à obra de construção do Reino de Deus. Um escândalo. Como co­
adunar unidade e diversidade quando as manifestações culturais e as 
culturas históricas são plurais ? 
Nas pesquisas, Dawson demonstra como os fatores de ordem 
cultural tiveram forte atuação nos desentendimentos entre cristãos. 
Logo, compreender as culturas, as dinâmicas e as histórias passa a 
ser um empreendimento decisivo e central . Isso não significa fazer 
dos cristãos, historiadores; mas, o cristianismo nunca deixou de 
ter uma dimensão efetivamente histórica. Eis a compreensão que 
Dawson pretende proporcionar, não só aos católicos, mas também 
aos protestantes, pois não podemos esquecer o ambiente no qual as 
palestras foram originalmente ministradas. Há no historiador galês 
um empenho em construir pontes, visando ao entendimento mútuo 
entre os irmãos em Cristo. 
A memória sempre foi uma característica decisiva na experiência 
cristã : Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Atas dos Mártires, História 
Eclesiástica . . . A própria celebração litúrgica é memorial. Distintas em 
sua dinâmica, memória e história coletivas também se cruzam e tecem 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le i ra 
relações entre si, nutrindo-se mutuamente. Isso está presente desde 
o primeiro momento da caminhada do povo cristão. Em diferentes 
sentidos, o cristianismo é uma religião histórica, e isso pode ser dito 
de modo mais preciso ao dizer que a todos cabe ter, desta história, 
algum conhecimento. 
Na obra de Christopher Dawson, ao falar de História, podemos 
entendê-la de três modos diferentes. 
1 º ) No plano da Fé cristã, a história pode ser vista como uma 
perspectiva interna à comunidade de crentes, hermenêutica da me­
mória, na qual, apesar de distinta da memória, não deixa de atuar 
subsidiariamente, forjando o que podemos chamar de uma "história 
sagrada" , ou seja, de uma História como alimento da Fé. Neste siste­
ma, estuda como se dá a intervenção divina na história. É a crônica de 
um povo e de sua Fé, sem dúvida, mas não apenas isso. 
Interessa-se, todavia, por constatar a intervenção de Deus na his­
tória. Em A Formação da Cristandade, há a nota particular da busca 
de uma base comum. Aí, Dawson relembra o ensinamento de Santo 
Tomás de Aquino ( 1225-1 274 ) , em que é essencial, ao entabular um 
diálogo com aqueles de quem guardamos diferenças, principiar re­
tomando o patrimônio comum, além disso, mostra ser igualmente 
necessário identificar a ação de sal da Terra . 
Por outro lado, e aqui se faz também presente algo do interesse 
de quem não pertence à comunidade cristã : tomar Cristo como "ca­
minho, verdade e vida" , critério para a ação, alfa e ômega, senhor da 
História, significa que essa Fé se encarna e se assume como manifes­
tação cultural, informando e conformando a cultura. Não só tal fé 
transforma por dentro como cria o novo. Para o cristão isso ocorre 
em virtude do Criador fazer dele o Seu instrumento. A justificativa 
dada, porém, não importa : o fato é que mudanças históricas e cultu­
rais têm registro. Isso é o que melhor nos permite compreender o pa­
pel da religião nos fenômenos histórico-culturais e, ao mesmo tempo, 
torna patente ao próprio cristão tais desdobramentos da experiência 
24 l 25 
cristã . Então, a história cultural passa, também, a revelar um valor 
sagrado, ressaltando o sentido pouco aprofundado, mas importante, 
de testemunho de uma fé. 
2º) Há o plano do fazer historiográfico, a dimensão prática. Já o 
vimos exaustivamente, todavia, vale retomar alguns pontos. Ao his­
toriador católico ou protestante, ao pesquisador cristão em geral, é 
exigida a feitura de uma " boa" história, rigorosa, como é exigido de 
qualquer historiador que queira ter o trabalho validado, o que en­
globa o modo como opera suas generalizações. Conceitos, modelos e 
problemas, tudo é o resultado de generalizações sistemáticas e cons­
cientes, as quais são aplicadas a estudos particulares e bem delimita­
dos. Se assim não fosse, a História não passariade crônica . 
As análises e interpretações, por seu turno, bem como, por sua 
vez, as sínteses, são interdependentes e uma não subsiste adequada­
mente sem a outra. É fundamental recuperar tal exercício que tam­
bém faz parte da prática historiográfica. 
Voltando a Santo Tomás de Aquino, ou à Razão, aquele sabendo-a 
limitada, faz com que siga autônoma em relação à Fé; caso contrário, 
não haveria sentido em dela sermos dotados . Assim, da mesma ma­
neira como a filosofia e a teologia possuem suas autonomias, seguin­
do cada uma procedimentos próprios, o mesmo também é válido para 
a História. Claro que não é suficiente para um historiador católico ser 
um bom historiador no sentido de aplicar correta e rigorosamente os 
métodos e técnicas próprios desse campo do saber. No entanto, tal 
condição é necessária e imprescindível. Igualmente aqui, o agostia­
nismo de Dawson é exemplar ao empregar não só os instrumentos 
proporcionados pela historiografia do período, como ao atuar pionei­
ramente numa perspectiva interdisciplinar. 
3º) Há ainda o plano propriamente da razão histórica como pro­
cedimento interpretativo, vista como um sério empenho de compreen­
são do processos históricos conforme as regras próprias e autonomias 
desse tipo de investigação. Acima, no plano do fazer historiográfico 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
foram mais considerados os meios; neste campo particular é levado 
em conta o conteúdo a ser examinado e os resultados obtidos, o co­
nhecimento alcançado, as teorias formuladas e as propostas interpre­
tativas. Sem desdizer a importância de qualquer um desses planos, é 
deste quesito que mais carecemos. E é aqui que a leitura de Dawson, 
talvez, mais possa nos ajudar. 
A respeito da razão histórica, o católico e o protestante, o cris­
tão em geral carece de uma reassunção de áreas do pensamento em 
que parece ter abdicado do exercício da cidadania. É preciso uma 
retomada efetiva. Abrimos mão da formulação de teorias sociais e 
de hipóteses interpretativas próprias com a marca de uma reflexão 
genuinamente cristã . Não se assume seriamente o desafio do Cristo, 
alfa e ômega, do Cristo critério de apreensão da realidade. Quando 
dizemos apreensão da realidade não é somente no julgar, mas também 
no ver, no modo de entendê-la e interpretá-la. 
Cedemos terreno diante dos ataques da modernidade iluminista. 
Sem deixar de reconhecer, na atualidade, o empenho dialogal estabe­
lecido entre a cristandade e a presente modernidade, não podemos es­
quecer a virulência dos ataques passados movidos contra a cristandade. 
E, não obstante a identificação de elementos profundamente humanos 
em tal perspectiva de modernidade, a esta também são próprios os fa­
tores que, mesmo hoje, a mantém em rota de colisão com a cristandade. 
A vitalidade demonstrada, por exemplo, na modernidade barroca 
parece ter se assustado diante do desencadeamento, a partir de 1 789, 
dos ventos revolucionários e do furor das guerras que lhes acompa­
nhavam. A resposta do romantismo em sua vertente católica é tímida 
e acanhada, está mais preocupada em justificar-se e em lutar pela pró­
pria defesa e sobrevivência . De certo modo, mesmo não tendo faltado 
santos e profetas, a cristandade encastelou-se. 
O campo das ciências humanas, salvo raríssimas exceções, foi de 
tal modo preterido no exercício intelectual criativo que os pressupos­
tos e leituras secularistas, materialistas e ateus parecem fazer mais 
26 1 27 
sentido e parecem mostrar ser os mais adequados. Uma vez que na 
vertente protestante, para ficarmos em um exemplo, os abusos subje­
tivistas da teologia liberal resultaram na reação do fundamentalismo; 
no meio católico, a resposta mais emblemática veio, em 1 864, com o 
Syllabus Errorum Modernorum [Sílaba dos Erros de Nossa Época] , 
uma enumeração sumária dos erros modernos apensada à encíclica 
Quanta Cura, promulgada pelo papa Pio IX ( 1 792-1 878 ) em 8 de 
dezembro de 1 864. 
Essas reações costumam ser vilipendiadas ou enaltecidas, num 
confronto ideológico que nada acrescenta à cristandade, mas é pre­
ciso compreendê-las em seu contexto. Restringindo-nos ao caso da 
encíclica e do respectivo anexo, havia tamanha indigência intelectual 
entre os católicos, que o papa, como diz a linha inicial do documento 
pontifício, "movido por grande solicitude e zelo pastoral " , não podia 
omitir-se, oferecendo a orientação possível no momento (D-2890 ) . 8 
Era e é preciso sair do castelo. Uma tentativa que se alastrou 
rapidamente foi a iniciativa do sacerdote belga Josef Cardijn ( 1 8 82-
1 967) , coadjutor em sua paróquia, que começou, em 1 9 1 2, a desen­
volver um trabalho pastoral entre os jovens operários que acabou 
por ser o embrião da Ação Católica, fundada por ele em 1 920. Em 
pouco tempo outros núcleos se disseminaram, chegando ao Brasil em 
1 935 . Uma das razões de seu sucesso foi o método de análise da rea­
lidade incutido em seu seio: o ver-julgar-agir. Este método, apesar de 
desempenhar um relevante papel na recomposição do diálogo com as 
ciências humanas, em si traz um vício de origem, revelador da mes­
ma indigência no meio intelectual católico demonstrada pela encíclica 
Quanta Cura e o seu Sílabo. Na maneira como o método é aplicado, 
o ver se remete aos instrumentos de leitura das ciências, ao passo que 
atribui à Bíblia o julgar. Ou sej a, a Bíblia nada teria a dizer em relação 
8 Pio IX, Encíclica Quanta Cura de 8 de dezembro de 1 864. ln: Heinrich 
Denzinger, Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral. 
São Paulo, Paulinas/Loyola, 2007. 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Ed ição Brasi le ira 
ao ver, deixando o terreno aberto, nesse particular, para a semeadura 
de teorias que em muitas situações não guardam nenhuma relação 
com a experiência cristã, a exemplo das teorias forjadas no horizonte 
materialista e ateu. 
É um equívoco imaginar tais respostas como permanentes ou 
ideais. Em ambos os casos, elas tiveram os seus momentos nos respecti­
vos anos de 1 864 e 1 9 1 2 (os anos aqui são apenas simbólicos) , e devem 
ser superadas. Ser católico, como o cristão, em geral, é consequência 
do seguimento a Cristo e n'Ele nos orientamos, tomando o Evangelho 
como inspiração ao elaborarmos as nossas teorias e interpretações. 
Christopher Dawson, como dissemos, é um exemplo de exercí­
cio vigoroso nesse aspecto. O encontro com a sua obra nos oferece 
modelos, interpretações e hipóteses, toda uma problemática orgânica 
e genuinamente cristã, que usufrui de uma tradição de pensar que 
procede de um período muito anterior. Há temas próprios introdu­
zidos na reflexão historiográfica e há frutos da experiência cristã . 
O mestre Étienne Gilson ( 1 8 84-1 978 ) , com extraordinário sucesso, 
demonstrou algo análogo para a Filosofia: a existência, com foros le­
gítimos, de uma filosofia caracteristicamente cristã, iluminada por tal 
experiência. São várias as obras do eminente filósofo nas quais pode­
mos encontrar uma sistematização a esse respeito, mas em particular 
cito O Espírito da Filosofia Medieval,9 obra toda dedicada ao tema 
da natureza da filosofia cristã e de suas características; vemos isso, 
igualmente, na obra História da Filosofia Cristã, escrita juntamente 
com Philotheus Boehner ( 1 90 1 - 1 955 ) . 1º 
Como aqui não é o lugar para um tratado de maior fôlego, ca­
bem apenas rápidas e modestas anotações de quais seriam alguns 
9 Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. 
São Paulo, Martins Fontes, 2006. 
10 Philotheus Boehner e Étienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde 
as Origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, 
Vozes, 2003 . 
28 l 29 
dos temas trazidos pela experiência cristã à escrita da História e 
que, portanto, podem ser encontrados em Dawson: o humanismoou a dignidade própria do aspecto cultural e a autonomia do reli­
gioso; a exigência de síntese ou de perspectiva integral (holística ) 
da realidade; a relação entre espírito e matéria, o u como atuam as 
condicionantes ( fatores ) materiais e imateriais - como desdobra­
mento desses temas; a relevância e a efetiva dimensão da liberdade 
humana na ação histórica; o caráter dramático da síntese apre­
sentada como a luta entre forças de integração e de dissolução. 
Nesses contributos, fundamentalmente enraizados numa antropo­
logia filosófica coerentemente evangélica, pode-se afirmar, indubi­
tavelmente, haver uma História com uma propriedade dita cristã a 
irradiar-se para outras historiografias . 
Não é, pois, menor dizer que, independente da crença (ou mesmo 
na ausência desta ) , quem quer que se interesse tanto pela história 
do cristianismo, bem como pela história da cristandade - esta vis­
ta como expressão cultural daquele -, sairá beneficiado pela leitura 
d'A Formação da Cristandade: uma obra única, construída em aten­
ção às exigências íntimas de uma humanidade que anseia por reali­
zação plena, que não abre mão de compreender o seu lugar e se sente 
chamada à ação. A História de Dawson fala-nos ainda hoje, mais que 
nunca, não só ao cristão, mas ao homem de boa vontade, afirmando­
-se como uma obra clássica e de referência para quem quer que se 
interesse pela dinâmica das culturas históricas - aqui também inde­
pendente das diferentes filiações teórico-metodológicas que possamos 
vir a ter nesse campo de estudo. Como se vê, o pensamento e a obra 
Dawson seguem palpitando de vibrante atualidade. 
Uma palavra final de agradecimento e louvor ao empenho de 
Alex Catharino e de Márcia Xavier de Brito, bem como da É Realiza­
ções Editora, na figura de seu editor Edson Manoel de Oliveira Filho, 
ao trazer para o Brasil uma obra que não só enriquecerá o leitor como 
também a nossa cultura, pelo contato mais extenso e intenso com o 
A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasi le ira 
pensamento dawsoniano, em uma edição tão bem cuidada quanto a 
presente e que o caro leitor, agora, tem o privilégio de ter em mãos. 
Rio de Janeiro, RJ, Brasil 
Na festa dos Santos Mártires Marcelino e Pedro 
Manuel Rolph Cabeceiras 
Cursou o bacharelado e a licenciatura em História e o mestrado em História 
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , com a dissertação As 
Metamorphoses de Ovídio e as Lutas de Representação na Roma Antiga, e o dou­
torado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Urbi et 
Orbi, Nós e os Outros: Romanidade(s), Fronteira Étnica e a História como escrita 
dos dilemas pátrios. Professor, entre outras instituições, da Universidade Estadual do 
Sudoeste da Bahia (UESB, 1 986-1 997) e da UFF (desde 1 997), onde fundou, com ou­
tros docentes, estudantes e pesquisadores, o Centro de Estudos Interdisciplinares da 
Antiguidade (CEIA-UFF) . Atua na área de História da Antiguidade Greco-romana e 
da Alta Idade Média, com ênfase nos seguintes temas: Mediterrâneo, História Cultu­
ral, Discurso e História, Etnicidade, Mitologias, Tradições Clássicas, História Militar, 
História das Religiões e Paleocristianismo. Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de 
Estudos Clássicos (SBEC) e membro da Associação Nacional de História (ANPUH) 
e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) . Sócio emérito do Instituto 
de Geografia e História Militar do Brasil ( IGHMB), ocupando a cadeira 89, cujo 
patrono é Olavo Bilac. Editor assistente e membro do Conselho Editorial da edição 
brasileira de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura. 
P r e f á c i o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a 
A CRIS TAN D A D E D E CHRIS TOPH ER D AWSON -
POR BRA DLEY J . BIRZER 
1 3 1 
Como verificamos, a trilogia da cristandade foi a última gran­
de obra do historiador anglo-galês e l iterato Christopher Dawson 
( 1 8 89-1 970 ) . Mais ou menos . A trilogia surgiu, originalmente, das 
palestras que Dawson ministrara enquanto lecionou na Universidade 
de Harvard, entre 1 95 8 e 1 962. Desej ava que fizessem parte da trilo­
gia da cristandade o presente livro, The Formation of Christendom 
[A Formação da Cristandade] , lançado originalmente em 1 967; The 
Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade] , publicado em 
1 9651 , e The Return to Christian Unity [O Retorno à Unidade Cris­
tã] . No geral, cada volume representava um dos grandes períodos 
do mundo cristão: o vínculo entre os períodos antigo e medieval; a 
Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica; e a Igreja na era 
da democracia, dos nacionalismos e das ideologias. 
Embora A Formação da Cristandade sej a , tecnicamente, o pri­
meiro volume da série, a obra surgiu dois anos após o lançamento 
do segundo volume, A Divisão da Cristandade. A ideia de publi­
car as conferências como trilogia ocorreu a Dawson em 1 96 3 . Seu 
editor, Frank Sheed ( 1 8 97-1 9 8 1 ) , prontamente concordou. A úni­
ca questão era se os publicariam separadamente, como três obras 
1 Os dois livros foram relançados em inglês nas respectivas edições: Christo­
pher Dawson, The Formation of Christendom. San Francisco, lgnatius Press, 
2008; Idem, The Dividing of Christendom. Pref. James Hitchcock; intr. David 
Knowles. San Francisco, lgnatius Press, 2008. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le i ra 
distintas, ou logo corno urna trilogia . 2 Sheed gostaria de publicá­
-las o quanto antes, pois esperava que os livros pudessem servir de 
base para os debates do Concílio Vaticano II, realizado entre 1 962 
e 1 96 5 . Não sem razão, Sheed acreditava que Dawson - j unta­
mente com urna série de outros humanistas cristãos corno Jacques 
Maritain ( 1 8 82- 1 973 ) e Étienne Gilson ( 1 8 84- 1 97 8 ) - pudesse ser­
vir corno pedra angular e manancial para as importantes delibe­
rações e reformas do Concílio. Afinal, figuras importantes, corno 
Romano Guardini ( 1 8 85 - 1 96 8 ), clamavam por reformas litúrgicas 
desde a década de 1 920 . 3 
Nada, corno de fato aconteceu, poderia estar mais distante da 
verdade. Corno acreditava a maioria dos teólogos e das editoras ca­
tólicas nos anos 1 960, o Espírito Santo abolira muito do passado 
recente, e poucos, afora um pequeno número de fiéis, ainda pensavam 
que Dawson tinha muito a contribuir para o futuro do catolicismo. 
O próprio sucesso que obtivera corno pensador católico de 1 928 a 
1 962, nesse momento, contava negativamente, e muitos o viam corno 
urna relíquia da geração passada e um símbolo daquilo que acabara 
de ser superado. Corno posteriormente explicou o teólogo neocon­
servador Michael Novak: "É corno se todos aqueles escritos potentes 
de Dawson, Maritain, Guardini e de tantos outros nunca tivessem 
realmente criado raízes" . 4 
Além disso, Frank Sheed se aposentou em 1 963, saindo quase to­
talmente do caminho de seus sucessores. Sem Sheed na editora Sheed 
and Ward, não restava ninguém no mundo editorial que promovesse, 
2 Carta de Frank Sheed para Christopher Dawson, de 16 de dezembro de 
1 963 . ln: Box 1 , Folder 13 , Sheed and Ward Family Papers, Archives of the 
University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana. 
3 Carta de Sheed para Dawson, 10 de dezembro de 1 963 . ln: Box 1, Folder 13 , 
Sheed and Ward Family Papers, Notre Dame. 
4 Michael Novak, "The Political Identity of Catholics" . Commonweal 97, 
16 de fevereiro de 1 973, p. 44 1 . 
32 l 33 
ativa e significativamente, as obras de Dawson. Quando incitado a 
responder por que a editora Sheed and Ward fez tão pouco para pro­
mover A Formação da Cristandade, o sucessor de Sheed desculpou-se: 
"Há, como sabem, uma falta de interesse nesta obra que acho extre­
mamente lamentável. Ao mesmo tempo, só posso sugerir que, em ge­
ral, parece existir uma total falta de interesse na Históriada Igreja " , 
escreveu numa carta privada o editor-chefe Philip Scharper ( 1 9 1 9-
1 985 ) . Quase ninguém prestou atenção n'A Divisão da Cristandade, 
observou, e, provavelmente, um número muito menor de pessoas se 
importariam com A Formação da Cristandade. 5 Infelizmente, fosse 
ou não autorrealizável a profecia de Scharper, muito poucos se deram 
conta dessa obra quando foi lançada . 
A imprensa mainstream norte-americana, como o New York 
Times e o Wall Street ]ournal, ignorou-a completamente. Somen­
te duas revistas acadêmicas, a Sociological Analysis e a Catholic 
Historical Review escreveram resenhas a respeito do livro de 1 967.6 
Os resenhistas apresentaram pontos de vista opostos aos de Daw­
son. Werner Stark ( 1 909- 1 985 ) , da universidade j esuíta Fordham 
em Nova York, nitidamente queria gostar do livro, ao chamar o 
autor de "distinto" e ao saudar a intenção de escrever uma história 
a partir da perspectiva católica como algo admirável e louvável. "A 
questão é, certamente, quão bem tal programa foi implementado e, 
a esse respeito, infelizmente, não posso negar certo desapontamen­
to" , afirmou Stark . As próprias visões datadas de Dawson de uma 
"teoria da história de grandes homens" já estavam morrendo, la­
mentou o resenhista . O maior problema de Dawson, contudo, vinha 
de sua incapacidade de explicar o catolicismo e sua profundidade 
aos protestantes. "A discussão sobre o monaquismo, por exemplo, 
5 Carta de Philip Scharper para John Mulloy, de 29 de novembro de 1 967. ln: 
Box 1 1 3, Folder 44, Sheed and Ward Business Collection, Notre Dame. 
6 Ver: Werner Stark, Sociological Analysis 28, Outono, 1 967, p. 1 72-73; 
Martin R. P. McGuire, Catholic Historical Re11iew 56, Abril, 1 970, p. 2 1 9-20. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Brasi le ira 
deixa de transmitir o que era seu significado mais profundo " , escre­
veu Stark. "O professor Dawson não disse aos alunos que os pio­
neiros do monaquismo queriam provar para Deus e para os homens 
que, na verdade, homens podiam ser divinos e, mesmo decaídos, 
podiam ser como Adão fora antes do Pecado Original " . 7 O pro­
fessor da Catholic University of America ( CUA) , Martin McGuire 
( 1 897- 1 969 ) , no entanto, não encontrou erros na obra A Formação 
da Cristandade. Representava o historiador galês "em sua melhor 
forma " , oferecendo "profundos insights e grande poder de síntese" . 
O leitor, McGuire entusiasma, "é arrebatado não só pela profundi­
dade das reflexões, mas pela concretude dos exemplos " . Compará­
vel à originalidade do pensamento de Dawson, conclui, está o estilo 
de escrita "cativante" do autor. 8 
Devemos notar que, apesar de Sheed ter-se aposentado da editora 
Sheed and Ward, nunca perdeu a fé em Dawson. Desde o primeiro 
encontro, os dois iniciaram uma amizade rápida e, por vezes, frus­
trante. Sheed não só encorajou Dawson profissionalmente, ao editar 
significativa parcela da obra do amigo, mas também ajudou a dar 
alguma estabilidade ao maníaco-depressivo Dawson. Se existiu um 
"renascimento literário católico" no mundo de língua inglesa após 
a Primeira Guerra Mundial, Sheed o creditou a seis homens: Hilaire 
Belloc ( 1 870- 1 953 ) , G. K. Chesterton ( 1 874-1 936 ) , C. C. Martindale 
( 1 879- 1 963 ) , Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957) , Christopher Dawson e ao 
inspirador de todos, o maior teólogo de todos os tempos, Santo Agos­
tinho de Hipona ( 354-430) . 9 Sheed, no entanto, tinha perdido a fé no 
renascimento pleno do catolicismo já em 1 958 . A mentalidade cató­
lica provara, repetidas vezes, a própria genialidade em autores como 
Dawson, mas nunca se estendeu além das letras para os domínios 
7 Werner Stark, Sociological Analysis, p. 1 72-73 . 
8 Martin McGuire, Catholic Historical Review, p. 220. 
9 Frank Sheed, The Church and I. Garden City, Doubleday, 1 974, p. 107-29. 
34 l 35 
da arte e da arquitetura, lamentava . Tal limitação levaria, por fim, à 
implosão do movimento. 10 
Igualmente prejudicial a Dawson foi a indicação de seu melhor anú­
go, E. I. Watkin ( 1 888-1981 ), como seu agente e editor literário. Dawson 
sofrera uma série de derrames devastadores ao longo da década de 1960, 
perdendo, por fim, a capacidade de escrever e falar. Certamente precisava 
indicar alguém para ternúnar a obra. Watkin, entretanto, pernútiu que suas 
paixões roubassem o que tinha de melhor a oferecer. O Concílio Vatica­
no II o enfureceu. Rotulou o concílio e suas conclusões de "deformação" . 
A nova Igreja, preocupava-se Watkin, tinha retornado ao barbarismo 
e nunca entenderia as nuances de um pensador tão profundo quanto 
Dawson.1 1 Desencorajado, Watkin editou as últimas duas obras de Da­
wson, mas com pouco entusiasmo. Em 1969, um ano antes da morte de 
Dawson, seu melhor anúgo escreveu a respeito dele e das últimas obras. 
O Vaticano II nunca poderia refutar Dawson, mesmo se tentasse fazê-lo: 
"Não pode, pois suas interpretações estão seguramente ancoradas no fato 
histórico. Ele é, simplesmente, descartado" . 12 Apesar de Dawson também 
crer que o Vaticano II estava repleto de erros, aceitara o concílio e seus 
ensinamentos por questão de autoridade. Watkin nunca o aceitou. 13 
1 0 Idem, "I am a Catholic Publisher" . Westminster Cathedral Chronicle, set./ 
out. , 1 959, p. 1 37. 
1 1 Carta de E. 1. Watkin para Bernard Wall, de 28 de fevereiro de 1 969. ln: 
Box 1, Folder 24, Bernard Wall Papers, Archives of Georgetown University, 
Georgetown, Washington, D.C. 
1 2 E. 1 . Watkin, "Tribute to Christopher Dawson" , The Tablet, 1 969, p. 974. 
1 3 Watkin é uma figura fascinante por si mesma. Escreveu inúmeras obras críti­
cas sobre arte e cultura na mesma época em que Dawson escrevera suas obras. 
Frequentaram a mesma escola quando crianças e mantiveram uma amizade 
muito próxima por toda a vida. Watkin, certa vez, descrevera o relacionamento 
deles em termos clássicos. Ele era grego e Dawson, romano. Watkin, no entan­
to, sempre fora um tanto heterodoxo. Manteve um estrito pacifismo e viveu 
de modo quase bígamo durante a maior parte da vida adulta. A seu respeito 
só existe uma biografia, escrita pela própria filha. Ver: Magdalen Goffin, The 
Watkin Path: An Approach to Belie(. Eastbourne, Sussex Academic Press, 2006. 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Bras i le i ra 
Não é de espantar que Watkin também nunca tenha editado o ter­
ceiro volume, O Retorno à Unidade Cristã. Inédito, o único manuscrito 
da conclusão da trilogia - que necessita urgentemente de revisão, edição 
e organização - repousa na Harvard Theological Library. Fragmentos 
apareceram como artigos em vários periódicos acadêmicos da década 
de 1 960, mas apenas pequenos trechos. Algum dia, quem sabe, um edi­
tor possa comprar os direitos autorais e, apropriadamente, lançá-lo. Até 
que isso aconteça, devemos nos contentar com o que Dawson nos legou. 
Decerto, deixou-nos uma herança riquíssima ! 
Dawson, ou, mais provavelmente, Watkin organizou A Formação 
da Cristandade em quatro partes: Apresentação, Os Primórdios da 
Cultura Cristã, A Formação da Cristandade Medieval e um Epílogo. 
Ainda que a história de Dawson seja, é claro, excelente e suas conferên­
cias bela e cuidadosamente preparadas, a verdadeira importância de 
A Formação da Cristandade não está em narrar novamente a história 
da civilização ocidental, mas na teoria que apresenta a respeito da 
natureza e filosofia da história, o papel fundamental da Igreja em 
reconciliar o pensamento clássico com o cristianismo e, em especial, 
no primado da cultura. De fato, muito daquilo que Dawson escreve 
ao detalhar a história da civilização ocidental pode ser facilmente en­
contrado em suas obras anteriores, desde meados da Primeira Guerra 
Mundial. Em vez disso, o que torna A Formação da Cristandade tão 
fundamental, não somente como uma parte do corpus dawsoniano, 
mastambém como uma das grandes obras de todo o século XX, é a 
longa seção introdutória. O professor McGuire estava correto. Isso 
é Christopher Dawson em sua melhor forma em termos de lógica e 
retórica. A seção introdutória reflete toda a vida de reflexão de uma 
das maiores mentes de sua época, uma mente católica cheia de vida, 
no auge da capacidade. 
"A cultura" , Dawson explicou com falaz simplicidade n' A For­
mação da Cristandade, "é o modo de vida humano comunicado por 
uma língua, de modo que a palavra do homem tanto é criadora como 
36 l 37 
transmissora de cultura" . 1 4 Não interessa quão fáceis possam parecer 
tais palavras, a profundidade paira em cada fragmento dessa afirmação 
de Dawson. Ao mesmo tempo que Dawson ministrava essas famosas 
conferências em Harvard, também tentava fomentar suas interpretações 
pessoais por vários empreendimentos educacionais. A cultura, afirma­
va juntamente com o grande estadista irlandês Edmund Burke ( 1 729-
1797) e com o filósofo francês Alexis de Tocqueville ( 1 805-1 859) : 
é um produto artificial. É como uma cidade laboriosamente construída 
pela obra de sucessivas gerações, não uma floresta que cresceu espon­
taneamente pela pressão cega de forças naturais. A essência da cultura 
que é comunicada e adquirida e, ainda que seja legada de uma geração 
para outra, é uma herança social e não biológica, uma tradição de 
aprendizado, um capital de conhecimento acumulado e uma comuni­
dade de "costumes" em que o indivíduo tem de ser iniciado. Por isso, é 
evidente que a cultura é inseparável da educação. 15 
Como Dawson sempre afirmou, a cultura encontra suas expres­
sões mais significativas nas coisas mais humanas, em gestos e, espe­
cialmente, na liturgia religiosa. 
Desde o primeiro livro, The Age of the Gods16 [A Era dos Deu­
ses] , publicado em 1 928, Dawson promoveu, incessantemente, uma 
análise da cultura como o fundamento mais importante de compreen­
são da sociedade, da família e da pessoa. Nisso, Dawson contrariou 
a obsessão do século XX com ideologias fanáticas e política. De fato, 
Dawson acreditava que o desejo de dar primazia à política e ao pen­
samento político levou, inevitavelmente, na pessoa individual, à perda 
1 4 Ver na presente obra o capítulo V (As Ideias Cristã e Judaica de Revelação), 
p. 153 . 
1 5 Christopher Dawson, The Crisis o( Western Education. Steubenville, 
Franciscan University Press, 1 989, p. 3 . 
1 6 Idem, The Age o( the Gods: A Study in the Origins o( Culture in Prehistoric 
Europe and Ancient Egypt. Intr. Dermot Quinn. Washington, D.C., The 
Catholic University of America Press, 2012 . 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Ed ição Bras i le i ra 
da imaginação e, nas sociedades humanas, ao empobrecimento do ra­
ciocínio superior. Sem nuance e sempre, e em todos os lugares, tendo 
algo de imperial, a política tenta expandir a própria esfera de influên­
cia em todos os aspectos da vida. Em última análise, porém, a política 
só pode ser bem-sucedida ao neutralizar a pessoa, rotulando-a como 
algo inferior do que fora pretendido por Deus ou pela natureza . "Te­
mos de encarar o fato de que houve um declínio nas ideias" , confiden­
ciou a um amigo íntimo, Bernard Wall ( 1 894-1 976 ) , "há não só uma 
falta positiva de novas ideias, mas, também, uma perda subjetiva de 
interesse nas ideias como tal" . 1 7 Por certo, Marte e Demos apressaram 
o crescimento do Leviatã, temia Dawson. "Ainda vivemos à sombra 
da guerra e na incerteza do futuro da Europa ser favorável à obra 
criativa " , 18 afligia-se. As limitações ideológicas e a propaganda polí­
tica rapidamente se infiltraram no pensamento, nas artes e na música 
de várias igrejas cristãs, católicas e protestantes, afirmava Dawson. 
"Os teólogos modernos, ao deixarem de ser poetas, também deixa­
ram de ser filósofos." 1 9 
Embora Dawson tenha gasto um tempo considerável analisando 
a política e a ideologia, especialmente entre os anos de 1 93 1 e 1 942, 
ele sempre se ressentiu desse aspecto de seus escritos, acreditando 
que eram necessários somente para combater os erros do século XX. 
De modo algum, temeu e lamentou; argumentos políticos pró ou 
contra fizeram progredir a causa de Deus, a cristandade ou a pessoa . 
A política serviu somente como uma distração neste mundo de so­
frimentos, mas uma distração mortal como provaram ser os campos 
de concentração e os gulags. Ainda assim, a análise política deve ser 
feita, mas sempre no sentido de explicar sua insignificância se com­
parada à cultura . Na última de suas obras declaradamente políticas, 
1 7 Carta de Dawson para Bernard Wall de 26 de agosto de 1 946. 
1 8 Carta de Dawson para Bernard Wall de 9 de setembro de 1 946. 
1 9 Carta de Dawson para Bernard Wall de 28 de julho de 1 946. 
38 l 39 
The Judgment of the Nations20 [O Julgamento das Nações] , de 1 942, 
Dawson, de modo surpreendente, dedica a obra "a todos os que não 
perderam a esperança na república, na comunidade dos povos cris­
tãos, nesses tempos sombrios" . 
Apesar do projeto dawsoniano de reforma d o mundo ocidental 
nunca ter tido êxito, sem dúvida, aj udou a preservar a melhor parte 
da civilização ocidental . Certamente seria muito difícil exagerar a 
importância de Dawson ao inspirar vários dos melhores pensado­
res do século passado. Dentre eles, temos poetas, romancistas, crí­
ticos culturais e artistas como T. S . Eliot ( 1 8 8 8- 1 965 ) , David Jones 
( 1 895-1 974 ) , C . S . Lewis ( 1 898 - 1 963 ) , J. R. R. Tolkien ( 1 8 92- 1 973 ) , 
Thomas Merton ( 1 9 1 5- 1 9 6 8 ) e Russell Kirk ( 1 9 1 8 - 1 994 ) , e todos, 
durante suas vidas, adotaram abertamente a posição de Dawson a 
respeito de cultura . 
Bastam dois exemplos. No poema Four Quartets [Quatro Quar­
tetos] de T. S. Eliot, indiscutivelmente, a maior obra de arte do século 
XX, quase ao final do quarto poema, "Little Gidding" , publicado em 
1 94 2, escreveu Eliot: 
E cada frase 
Ou sentença de rigor (onde cada palavra se familiariza, 
Assumindo seu posto para suportar as demais, 
A palavra sem pompa ou timidez, 
Um natural intercâmbio do antigo e do novo 
A palavra corrente, correta, digna, 
A palavra essencial e exata, mas sem pedanteria, 
O íntegro consórcio de um bailado unívoco)2 1 
20 Christopher Dawson, The ]udgment of the Nations. lntr. Michael J. Kea­
ting. Washington, D.C., The Catholic University of America Press, 201 1 . 
21 No original: And every phrase / And sentence that is right (where every 
word is at home, / Taking its place to support the others / The word neither 
diffident nor ostentatious / An easy commerce of the old and the new / The 
common word exact without vulgarity / The formal word precise but not 
pedantic / The complete consort dancing together) . (T. S. Eliot, "Little Gidding" . 
A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Brasi le ira 
De maneira menos poética, mas com palavras igualmente pro­
fundas, o crítico cultural e historiador norte-americano Russell Kirk 
escreveu em seu livro sobre liberdade acadêmica de 1 955: 
O principal sustentáculo da liberdade acadêmica, no mundo antigo, 
no mundo medieval e na tradição educacional norte-americana foi a 
convicção, entre estudiosos e professores, de que eram os Portadores 
da Palavra - homens consagrados, cuja primeira obrigação é com a 
Verdade, e que a Verdade deriva da apreensão de uma ordem superior 
à natural ou à material .22 
Tanto Eliot quanto Kirk refletiram diretamente um sentimento 
muito joanino e a argumentação de Dawson. Corno escreveu no iní­
cio do capítulo II d'A Formação da Cristandade: 
A história do cristianismo é a história de uma intervenção divina na 
história, e não podemos estudá-la à parte da história da cultura no 
sentido mais amplo do termo. A palavra de Deus foi primeiramente 
revelada ao povo de Israel e se incorporou na lei e na sociedade.

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