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Letícia Santos – Medicina VASCULITES O que são vasculites? As vasculites são definidas pela presença de leucócitos inflamatórios nas paredes dos vasos com dano reativo às estruturas murais. Tanto a perda da integridade do vaso que leva ao sangramento, quanto o comprometimento do lúmen podem resultar em isquemia e necrose do tecido a jusante. Em geral, os vasos afetados variam em tamanho, tipo e localização em associação com o tipo específico de vasculite. A vasculite pode ocorrer como um processo primário ou secundária a outra doença subjacente. Os mecanismos patogenéticos exatos subjacentes a essas doenças são desconhecidos. (MERKEL, 2021) A classificação das vasculites é dificultada pela ausência de etiopatogênese bem estabelecida. Algumas vasculites primárias são consequências de depósitos de imunocomplexos e outras associadas à presença de anticorpo citoplasmático antineutrofílico. Esse grupo de doenças pode assumir diversas formas de apresentação clínica, desde uma forma autolimitada até um acometimento extenso e grave. (GONÇALVEZ, 2019) Portanto, vasos de qualquer tamanho e localização podem ser atingidos, incluindo artérias de grande, médio e pequeno calibre como arteríolas, capilares, vênulas e veias. Essa pluralidade de vasos afetados justifica a diversidade de manifestações clínicas e os desafios no diagnóstico. As vasculites são situações crônicas e várias doenças sistêmicas podem, não somente mimetizá-las, como também desenvolver vasculites secundárias, como exemplo, a vasculite da artrite reumatoide. Nesse sentido fica inegável a extrema importância do diagnóstico diferencial para a correta abordagem terapêutica. (GONÇALVEZ, 2019) FIGURA 1. Sítios vasculares envolvidos nas vasculites mais comuns e suas etiologias presuntivas. Observe que há sobreposição considerável nas distribuições. ANCA, anticorpo anticitoplasma de neutrófilos; IgA, imunoglobulina A; LES, lúpus eritematoso sistêmico. FONTE: ABBAS, 2018. Como podem ser diferenciadas clinicamente? Cerca de 20 formas primárias de vasculite são reconhecidas e os esquemas de classificação tentam (com sucesso variável) agrupá-las principalmente de acordo com o diâmetro do vaso, além de por meio do papel dos imunocomplexos, da presença de autoanticorpos específicos, da formação de granulomas, da especificidade de órgãos e até a demografia populacional. (ABBAS, 2018) Assim, determina-se a classificação de acordo com o diâmetro do vaso da seguinte maneira: Vasculites de grandes vasos: arterite de Takayasu e arterite temporal ou de células gigantes. Neste grupo de vasculites estão acometidas as grandes artérias, como a aorta e seus ramos na arterite de Takayasu, e a artéria temporal, no caso da arterite de células gigantes. Do ponto de vista histológico, ocorre caracteristicamente um infiltrado da parede vascular do tipo linfomonocitário, com formação de granulomas e presença de células gigantes. Em estágios avançados de cicatrização do processo inflamatório, podem ocorrer retrações e estenoses arteriais por fibrose da camada média e da íntima. As manifestações clínicas decorrentes destas lesões consistem em alterações isquêmicas no território dos ramos principais da aorta torácica e/ou abdominal. (ABBAS, 2018) Letícia Santos – Medicina Na arterite temporal ou de células gigantes, a inflamação vascular acomete principalmente os ramos cranianos das artérias que se originam da crossa aórtica, causando sintomas de cefaléia, distúrbios visuais e isquemia cerebral. Em ambas as patologias deste grupo, não estão comprometidas as artérias de pequeno calibre e capilares, assim como também a sorologia é negativa para anticorpos ANCA. (GONÇALVEZ, 2019) Vasculites de vasos de médio calibre: poliarterite nodosa clássica e doença de Kawasaki. O quadro clínico característico da poliarterite nodosa clássica (PAN) corresponde habitualmente ao território afetado pelo processo inflamatório. De um modo geral, a doença se inicia com sintomas constitucionais, tais como, febre, mal-estar geral, emagrecimento, mialgias e artralgias. A neuropatia periférica está presente em mais de 70% dos casos de PAN, sob a forma de mononeurite, ou de polineurite sensitivo-motora. A manifestação cutânea é bastante frequente, seguindo-se sintomas intestinais decorrentes de isquemia mesentérica, dor testicular, hipertensão, alterações da função renal e menos comumente, manifestações hepáticas, coronarianas e neurológicas. O Colégio Americano de Reumatologia (CAR) estabeleceu dez critérios para o diagnóstico de PAN; na presença de três destes critérios, o diagnóstico pode ser proposto, com uma sensibilidade de 82% e uma especifidade de 87%: (ABBAS, 2018) Perda de peso acima de 4 kg Livedo reticularis Dor ou hipersensibilidade testicular mialgias, astenia ou polineuropatia mononeuropatia ou polineuropatia Elevação recente da pressão diastólica acima de 90 mmhg elevação da creatinina sérica acima de 1,5 mg/dl Sorologia positiva para o vírus da hepatite b Presença de microaneurismas em arteriografia Biópsia arterial com infiltrado contendo neutrófilos A doença de Kawasaki é uma forma de vasculite que acomete crianças, tendo como principais características sintomas semelhantes a infecções sistêmicas, exantema polimorfo, poliadenopatia e envolvimento das artérias coronárias. Histologicamente, a vasculite da doença de Kawasaki28 é semelhante à observada na PAN. Os critérios diagnósticos foram estabelecidos por Tomisaku Kawasaki em 1967, sendo requerida a presença de febre no mínimo por cinco dias, combinada a quatro dos seguintes critérios: (BARROS, 1998) Inflamação conjuntival bilateral Lesões na mucosa oral: fissuras nos lábios, língua ou faringite Eritema palmar ou plantar, Descamação periungueal Exantema polimorfo Linfoadenopatia cervical Vasculites de pequenos vasos: granulomatose de Wegener (GW), poliangeíte microscópica (PAM), síndrome de Churg-Strauss, vasculites de hipersensibilidade. Este importante grupo de doenças caracteriza-se pela gravidade do envolvimento sistêmico, destacando-se quadros freqüentes de insuficiência respiratória por alveolite hemorrágica e insuficiência renal decorrente de glomerulonefrite necrozante. Com exceção das vasculites de hipersensibilidade, as demais entidades são ANCA – positivas e guardam muitas semelhanças entre si, sendo comumente difícil o diagnóstico correto num determinado paciente. (ABBAS, 2018) A Granulomatose de Wegener (GW) consiste em inflamação granulomatosa que afeta o trato respiratório, ao lado de vasculite necrozante, que pode comprometer as artérias, arteriolas, vênulas e capilares, incluindo o capilar glomerular. Existem duas formas de expressão clínica da doença: uma forma difusa ou clássica, em que ocorrem sintomas gerais, alterações do trato respiratório alto, dos pulmões e dos rins; a outra é localizada, com lesões preferencialmente granulomatosas do trato respiratório alto e/ou pulmões, sem outras evidências de vasculite sistêmica. (GONÇALVEZ, 2019) Histologicamente, a lesão granulomatosa das vias respiratórias e do parênquima pulmonar se caracteriza por um exsudato inflamatório com predomínio de polimorfonucleares, vasculite necrozante e granuloma com células gigantes e epitelióides. O comprometimento pulmonar ocorre em aproximadamente 85% dos pacientes e constitui uma das manifestações iniciais desta doença. (GONÇALVEZ, 2019) A imagem radiológica mais característica é a de nódulos pulmonares que, ocasionalmente, evoluem para a cavitação. Observam se também infiltrados uni ou bilaterais, de distribuição irregular e que não se resolvem com a correção da hiperidratação, na eventual presença de insuficiência renal. Em 40% dos pacientes ocorre alveolite hemorrágica e insuficiência respiratória grave, frequentemente fatal. (GONÇALVEZ, 2019) O envolvimento das vias aéreas superiores manifesta-se por sinusopatia, otites e rinites purulentas e/ou hemorrágicas.Uma das lesões nasais mais típicas na GW avançada é a rotulada de "nariz em sela", decorrente da destruição Letícia Santos – Medicina da cartilagem nasal. O envolvimento renal se manifesta por microhematúria em praticamente todos os pacientes. A proteinúria também está presente, mas é raro o quadro de síndrome nefrótica. No momento do início da doença, mais da metade dos pacientes têm função renal normal; os demais apresentam disfunção moderada ou insuficiência renal grave, necessitando de suporte dialítico (10 a 20%). (GONÇALVEZ, 2019) A determinação do ANCA é praticamente sempre positiva na forma difusa da GW, sendo tipicamente observado o padrão citoplasmático (ANCA c) e especificidade antigênica para a proteinase-3 (PR 3). Na forma localizada, a determinação do ANCA nem sempre é positiva. O Colégio Americano de Reumatologia, em 1990, estabeleceu quatro critérios clínicos para o diagnóstico da GW34, antes que estivesse disponível o teste do ANCA: (BARROS, 1998) Processo inflamatório da mucosa oral ou nasal Imagens pulmonares de nódulos, infiltrados ou cavitações Sedimento urinário com hematúria ou cilindros hemáticos Vasculite granulomatosa demonstrada em biópsia A presença de dois ou mais destes critérios confere uma sensibilidade diagnóstica de 88% e uma especificidade de 92%. Desta forma, uma radiografia torácica alterada ou o achado de inflamação granulomatosa em biópsia não são requisitos absolutos para diferenciar a GW de outras formas de vasculites. A poliangeíte microscópica caracteriza-se por vasculite necrozante que acomete pequenos vasos, principalmente arteríolas de pequeno calibre, vênulas e capilares, com especial predileção para o território glomerular e pulmonar. As manifestações renais da poliangeíte são semelhantes às descritas na GW16; a insuficiência renal pode estar presente, sendo tanto mais severa quanto maior o retardo no diagnóstico da doença. O acometimento pulmonar ocorre em 40 % dos pacientes, geralmente sob a forma de infiltrados e quadro de alveolite hemorrágica. As manifestações cutâneas são comuns, na forma de púrpura palpável e de lesões necrozantes. Tanto a sintomatologia renal, como a de outros órgãos, costuma ser acompanhada ou precedida por sintomas constitucionais como febre, mal estar geral, artralgias e perda de peso. A determinação do ANCA é quase sempre positiva, podendo ocorrer tanto o padrão citoplasmático quanto o padrão perinuclear (ANCA- p), com especificidade antigênica para a mieloperoxidase. Na síndrome de Churg-Strauss, o envolvimento respiratório ocorre em 100 % dos casos, manifestando-se por asma acompanhada de eosinofilia. Outros sintomas importantes são de natureza neurológica (polineurites), cutânea (úlceras necrotizantes) e cardíaca (arritmias, angina e infarto do miocárdio). O Colégio Americano de Reumatologia propôs seis critérios para o diagnótico da arterite de ChurgStrauss; a presença de quatro ou mais destes critérios fornece uma sensibilidade diagnóstica de 85% e uma especificidade de 99,7 %: (BARROS, 1998) Presença de asma Eosinofilia > de 10 % na contagem leucocitária diferencial Mononeuropatia ou polineuropatia Opacidades pulmonares migratórias ou transitórias Sinusopatia Biópsia com acúmulo de eosinófilos em áreas extravasculares A determinação do ANCA pode ser positiva em 60 a 75 % dos casos, geralmente apresentando o padrão perinuclear (ANCA p) à imunofluorescência, com especificidade antigênica para a mieloperoxidase. (BARROS, 1998) Vasculites de hipersensibilidade (pequenos vasos): púrpura de Henoch-Schonlein, crioglobulinemia mista, vasculite leucocitoclástica cutânea isolada ou secundária a doenças do tecido conectivo. Trata-se de um grupo heterogêneo de doenças que acomete principalmente as vênulas do território pós-capilar e que tem em comum um quadro de vasculite cutânea que, de modo característico, se manifesta por púrpura palpável. A biópsia desta lesão revela infiltrado inflamatório com fragmentação de neutrófilos na parede vascular, denominada vasculite leucocitoclástica. A púrpura cutânea, por sua vez, é um achado incomum na granulomatose de Wegener e na poliarterite nodosa, exceto nos pacientes que têm as chamadas síndromes de superposição ("overlap"). O Colégio Americano de Reumatologia definiu os seguintes critérios para a classificação de vasculite de hipersensibilidade em pacientes com esta suspeita diagnóstica: (ABBAS, 2018) Púrpura palpável Exantema maculopapular Relação temporal com uso de droga Biópsia de pele com vasculite leucocitoclástica Uma classificação alternativa tem sido proposta para este grupo, levando-se em conta a presença ou ausência de envolvimento visceral sistêmico. Desta forma, pacientes com púrpura cutânea isolada seriam portadores de vasculite leucocito-clástica propriamente dita, invariavelmente associada a fenômenos de hipersensibilidade a drogas e, mais raramente, a infecções. Nas demais situações, a púrpura palpável associada a manifestações sistêmicas, definiria as demais Letícia Santos – Medicina entidades conhecidas: a púrpura de Henoch-Schonlein (com dor abdominal, artralgias, hematúria e deposição de IgA na pele e no glomérulo renal) e a crioglobulinemia mista (livedo reticularis, alterações renais, crioglobulinas circulantes, hipocomplementemia e depósitos de imunocomplexos em tecidos). Em doenças do tecido conectivo, como o lúpus eritematoso sistêmico e a artrite reumatóide, pode ocorrer um quadro de vasculite de hipersensibilidade secundário, cujo diagnóstico é relativamente fácil, no contexto do quadro clínico e das alterações imunológicas subjacentes. (GONÇALVEZ, 2019) REFERÊNCIAS: ABBAS, Abul K. et al. Robbins patologia básica. Elsevier Brasil, 2018. BARROS, Myrthes Toledo; BARROS, Ri Toledo. Vasculites: classificaçäo, patogênese e tratamento. Rev. bras. alergia imunopatol, p. 128-38, 1998. GONÇALVES, Mellina Silva. Vasculites: desafio diagnóstico e terapêutico. Arquivos Catarinenses de Medicina, v. 48, n. 4, p. 174-190, 2019. MERKEL, Peter A.; HUNDER, G. G.; CURTIS, M. R. Overview of and approach to the vasculitides in adults. UPTODATE. 2021.
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