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O Pensamento em Tempo Brasileiro
A Revista Tempo Brasileiro chega aos seus 40 anos de existência, fiel ao seu
compromisso inicial: trazer uma reflexão sobre e para o desenvolvimento
brasileiro que. guardando a sua força endógena, estivesse inscrita em um horizonte
universal.
1
Reflexão e Participação: 20 anos / Revista Tempo Brasileiro, 71
A reflexão crítica, o próprio avanço do conhecimento, a controvérsia cultural
do nosso tempo são temas da Revista Tempo Brasileiro, e se reafirma nesse número
comemorativo dos 20 anos de existência.
Reflexão e Participação/2: 25 anos / Revista Tempo Brasileiro, 90
A permanente abertura à pluralidade cultural da atualidade continua sendo d
núcleo central da razão de ser da Revista Tempo Brasileiro. Sempre que possível
sobre ou para a construção nacional, porém inscrita, de corpo e alma, vitalmente^
no horizonte do mundo.
Reflexão e Participação/3:30 anos / Revista Tempo Brasileiro, 111
Durante três décadas, a Revista Tempo Brasileiro tem lançado nomes
nacionais e internacionais, promovendo a circulação aberta das idéiaí
contemporâneas, procurando trabalhar com a memória e a esperança, insistindc
em desincompatibilizar disciplinas habitualmente distantes.
i
Reflexão e Participação/4 / Revista Tempo Brasileiro, 130-131
Neste número monográfico encontram-se textos que pertencem ao repertóridi
do projeto Caminhos do Pensamento Hoje. Pensar na "terceira margem do rio"
deixando de lado as dicotomias persistentes, e interminavelmente hegemônicasi;
constitui compromisso ético e aventura intelectual radicalmente plantados no
fundo da história dos nossos dias.
Friedrich Nietzsche//fcviv/í/ Tempo Brasileiro, 143
A Revista Tempo Brasileiro através deste número procura registrar, uma vez
mais, em meio à turbulência provocada pelo crepúsculo dos ídolos, o nasciment(p
insubmisso e provocador da palavra trágica de Nietzsche. Seu tema matricial foi O
nascimento: nascimento da tragédia, da verdade, dá linguagem. O pano de fundo
era sempre o desafio moral, jamais imune à vontade de potência. Sempre no
encalço do dissídio que reúne e dilacera as palavras e as coisas, o homem e o
mundo, para além do hem e do mal.
ISSN 0102-8782
tempo brasileiro
SOCIEDADE E SABER
BARBARA FREITAG, CLAUDIUS B. G. WADDINGTON,
EDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEÃO,
FATMA OUSSEDIK, GIANNIVATTIMO, HARRIS MEMEL-FOTE,
HOMIBHABHA, LIUBAVA MOREVA, MASAfflRO HAMASffiTA,
RAFAEL ARGULLOL, SÉRGIO PAULO ROUANET, ZYGMUNT
BAUMANN
Tempo Brasileiro: quarenta anos de
vida - de confronto crispado com a realida-
de brasileira, latino-americana e contempo-
rânea -, constituem o esforço reflexico,
aberto e livre, como também a vontade de
alargar o horizonte do pensar, não raro no
cerne do pensamento pós-metafísico.
Tempo Brasileiro vem criando novas
solidariedades em todos os cantos do mun-
do. E essas solidariedades, muitas vezes
apoiadas em diferenças complementares,
estão na base do seu trabalho reconstrutivo.
Já é um longo itinerário, mas ^Revista,
a Editora e o Colégio do Brasil (por ordem
de entrada em cena) estão presentes para
continuar o registro e o impulso do Tempo
Brasileiro, abertos à reflexão crítica, com-
promissados com o saber por vir, declarada-
mente plurais, no encalço da cidade cosmo-
polita.
TEMPO BRASILEIRO
148
JANEIRO-MARÇO DE 2002
Diretor: EDUARDO PORTELLA
Conselho Consultivo
ALFREDO BOSI
BARBARA FREITAG
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
EVALDO CABRAL DE MELLO
IVO PITANGUY
JOSÉ ISRAEL VARGAS
JOSÉ LEITE LOPES
JOSÉ PAULO MOREIRA DA FONSECA
MARIA YEDDA LINHARES
MOACYR SCLAIR
MUNIZ SODRÉ
NÉLIDA PINON
RAFAEL GUTIÈRREZ GIRARDOT
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA
RUBEM FONSECA
SÉRGIO PAULO ROUANET
Comissão Editorial
BEATRIZ RESENDE
CARLOS SEPÚLVEDA
CLAUDIUS WADDINGTON
EDUARDO COUTINHO
FLÁVIO BENO SIEBENEICHLER
GUSTAVO BAYER
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
MÁRCIO TAVARES D'AMAR AL
PAULO ROBERTO PEREIRA
PEDRO LYRA
RONALDES DE MELO E SOUZA
A editoração desta Revista, desde o
número 80, está entregue ao Colégio do
Brasil (ORDECC).
e-mail: ordecc@ colegiodobrasil.org.br
Revista Trimestral de Cultura
Os artigos assinados são da inteira
responsabilidade de seus Autores.
Direitos reservados às
EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA.
FRANCO PORTELLA
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Redação e Administração
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22221-070 - Laranjeiras
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Telefax: (21) 2205-5949
e-mail: tb@tempobrasileiro.com.br
SOCIEDADE E SABER
Esta monografia está centrada
na reunião de Nápoles, consagra-
da ao tema "Société, connaissan-
ce et savoir-faire", e realizada sob
os auspícios do "Comitê Cami-
nhos do Pensamento" (UNESCO),
do CIPSH e do Istituto Italiano per
gli Studi Filosofia de Naples. O
colóquio teve lugar nos dias 6 e 7 de
dezembro de 2001. Os pesquisado-
res do Colégio do Brasil, que já se
encontravam no número da revista
Diogène, n° 197 (Paris, 2002), pu-
blicada com o empenho de sua efi-
ciente redatora-chefe Paola Costa
Giovangigli, aumentaram as suas
presenças nesta edição da Revista
Tempo Brasileiro. Esta iniciativa,
de rever criticamente a noção e o
projeto da sociedade do conheci-
mento, contou com a valiosa coope-
ração da Representação da
UNESCO em Brasília, e obedeceu
à competência e à dedicação de
Francês Albernaz, Especialista de
Programa da UNESCO (Paris).
Ficha Catalográfica elaborada pela Equipe
de Pesquisa da ORDECC
Revista Tempo Brasileiro, jan.-mar. - n° 148 - 2002 - Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, ed.
Trimestral
1. Filosofia. 2. Sociologia. 3. Comunicação. 4. Educação.
CDD 100
301
302.2
370
ISSN 0102-8782
SUMÁRIO
liMMANUEL CARNEIRO LEÃO/A Salvação pelo Conhecimento... 5
BARBARA FREITAG/Cidades Globais em Sociedades
Informacionais 13
GIANNI VATTIMO/Sociedade do Conhecimento ou Sociedade do
Loisirl 33
ZYGMUNT BAUMANN/Desafios educacionais da modernidade
líquida 41
HARRIS MEMEL-FOTE/Sociedade de iniciação, Sociedade
erudita e Sociedade do saber 59
HOMI K. BHABHA/Democracia des-realizada 67
MASAHIRO HAMASHITA/Conhecimento proveniente do
exterior; Conhecimento por divertissement e por mais do que isto 81
RAFAEL ARGULLOL/Vislumbres sobre um século 95
SÉRGIO PAULO ROUANET/Religião e Conhecimento 107
FATMA OUS&EDIK/Saber e Razão no Ocidente Muçulmano.
O caso da Argélia 129
LIUBAVA MOREVA/Reflexões sobre os paradigmas do filosofar 147
CLAUDIUS B. G. WADDINGTON/Tradição, conhecimento e
interpretação 169
Cena Aberta
EDUARDO PORTELLA/Sociedade com e sem conhecimento 189
A SALVAÇÃO PELO CONHECIMENTO
Emmanuel Carneiro Leão
O fluxo da História no Ocidente nasceu de três fontes: de Jerusa-
lém, de Atenas e de Roma. Uma força de reunião e impulso recolheu,
numa corrente, as águas das fontes. Este ela de integração da História
Ocidental tem sido a busca da salvação para a humanidade.
A salvação pela Fé foi a primeira tentativa. Até o início da idade
moderna, todo processo histórico no Ocidente era atravessado, como
tal, por uma esperança religiosa: esperava-se da fé em Deus a
salvação dos homens. A história humana era, então, compreendida
toda pela religião. A primeira interpretação explícita da história foi
religiosa. Em De Civitate Dei, Santo Agostinho propõe uma teologia
da história. O movimento histórico repetia, no nível de feitos e fatos,
de instituições e procedimentos, os dias da criação do mundo. O
relato bíblico dos seis dias, no primeiro livro do Pentateuco, servia
de paradigma para se entender o sentido do que acontecia na História.
Era o famoso exemplarismo agostiniano. Neste entendimento da
História, preocupava-se mais com o organograma das formas e
épocas do que com a dinâmica do andamento da História. Trata-se
de uma teologia da História de natureza morfológica, uma espécie de
anatomia. A energia, o impulso e a orientação de todo processo
deixava-se entregue à Providência Divina, Deus cria o mundo con-tinuadamente e não pontualmente. O movimento da História é enten-
dido pelo modelo daquelas antigas máquinas de costura acionadas
por manivela. Para funcionar, necessitam do movimento da manive-
la. Para não voltar para o nada, o mundo exige que Deus o conserve
no ser. É a creatio contínua.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
No final do século XII, apareceu outra teologia da História
alternativa ao exemplarismo agostiniano. Esperava também uma
salvação pela fé, mas se preocupava mais com a dinâmica da
História. O abade do mosteiro de São João em Fiore, na Itália,
Joaquim di Fiore (1145-1202) propõe uma teologia da História
que, apesar de um exemplarismo trinitário, ocupa-se, sobretudo,
com o andamento do processo histórico. Principalmente nas suas
obras: "Saltério da Dez Cordas", "Livro da Figuras, "Tratado
Sobre os Quatro Evangelhos" e "Concordância do Novo e Antigo
Testamento", o abade divide a História em três eras: a Era do Pai,
a Era do Filho e a Era do Espírito Santo. Esta última começa em
1260 e tem sua força na sabedoria divina; em que tudo produz e
tudo controla. O impulso que aciona e impele todo processo de
sucessão, entre e dentro das Eras, é constituído por um princípio
dialético de declínio e superação. Esta dialética forma propriamen-
te o movimento da História. É a alavanca de sua movimentação.
Assim, a História não é uma máquina de costura, movida a mani-
vela. A História é um relógio que, ao criá-lo, Deus lhe deu corda
com a dialética de tensões e, então, anda por sua própria força.
Esta teologia dinâmica da História, embora alimentada pela espe-
rança de uma salvação pela fé, influenciou, com seu modelo
dialético, as interpretações da História desde Giovanni Battista
Viço e Thomas Muenzee até as Filosofias do Idealismo Alemão
de Marx e das revoluções do século XX.
A salvação pela produção foi a segunda tentativa. Com a derroca-
da da salvação pela fé, com as novas experiências históricas da idade
moderna, o homem ocidental volta-se para a produção. A salvação
viria de uma ordem que produziria tudo com o recurso da técnica e
da ciência de transformação do real.
Também esta salvação pela produção apresenta duas versões: a
versão capitalista, baseada num sistema de produção dominado pelo
capital, e a versão socialista, constituída por um sistema de produção
dominado pelo trabalho. Em ambos, a esperança da salvação viria da
sociedade de produção. Hegel e Marx desenvolveram, em seus
mecanismos, a dialética da produção, cobrindo toda a envergadura
do espectro social, embora seguindo pressupostos contrários do
idealismo e do materialismo.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
A salvação pelo conhecimento. É a terceira tentativa de salvação:
a sociedade do conhecimento. Com as revoluções e as guerras do
século XX, com o surto extraordinário de desenvolvimento da técni-
ca e da ciência, a esperança de uma salvação pela sociedade de
produção foi pouco a pouco esmaecendo.
O conhecimento torna-se um processo translúcido, fundamentado
e circunscrito a uma área bem definida de fenômenos transformados
em objetos de pesquisa e operação. A verdade deixa de ser uma
interpretação universal, necessária e uniforme, para tornar-se um
poder de operação dos fenômenos reais, precisamente definidos. Um
dos pressupostos desta transição para uma sociedade do conhecimen-
to é a falta do ela de questionar os pressupostos da técnica e da
ciência. Vivemos ainda dos rendimentos da criatividade, j á instalada.
Nietzsche diz, de certa feita, que o pensamento é uma festa. Pois,
na sociedade do conhecimento, estamos em fim de festa. Se outra
festa virá, não poderemos saber. Por isso, grande é o vazio de criação
nesta passagem de milênio para uma sociedade do conhecimento,
onde pontificam a técnica e a ciência informatizadas. Nesta informa-
tização generalizada, já não é possível sistematizar. Pois o que se
esboroa é precisamente a força dos sistemas de totalidade e o vigor
da sistematização universal. Num período histórico de transição, o
balanço se concentra em sondar questões. Estamos passando para
outra coisa que não sabemos qual seja. Apenas sentimos que já não
é possível controlar tudo, o presente, o passado e o futuro, pelo saber
da ciência e pelo poder da técnica. A contribuição do pensamento
hoje não pode ser sistemática. Só pode ser crítica. Aceita a fragmen-
taridade de questões e de perguntas a partir de uma experiência
comunitária de passagem e transição. O pensamento nunca foi uma
doutrina, nem uma ciência, nem um conhecimento. Sempre foi um
processo de libertação que se instala quando e como aprouver ao
envio da História. A grande dificuldade é que esta libertação não se
dá nem acontece no sentido de apagar, abolir ou desfazer. Por isso,
o grande desafio para o pensamento, numa sociedade informatizada
do conhecimento, está em deixar-se atravessar pelo movimento da
libertação. Pois liberdade não inclui negar dependência. É esta a
ilusão de uma libertação sem liberdade. Liberdade significa não se
deixar destruir pelas dependências. É que não pertence às possibili-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
dades históricas dos homens construir realização sem relação, sem
amarras, sem vínculos. A liberdade concreta é tanto negativa, inde-
pendência, como positiva, autonomia, como nem negativa, nem
positiva, mas criativa, justamente na dependência e na heteronomia.
Toda a provocação da liberdade criativa é aprender a desinstalar o
pensamento.
É tão difícil pensar, porque temos os ouvidos entupidos com o
ruído dos chips e com o alarido da computação. Trata-se de um
turbilhão curioso. Não se escuta o barulho que faz. É como se tudo
já tivesse incorporado a nossas entranhas e se feito assim não apenas
inaudito, como sobretudo inaudível, perdido no processamento auto-
matizado e no reprocessamento controlado.
Cada vez mais circulamos em circuitos integrados em sede de
escala global. O desafio que hoje nos atinge provém de uma autocra-
cia informacional. A informatização se torna um rolo compressor.
Em seu tropel, a sociedade do conhecimento vai rolando de alto a
baixo, Tudo se processa. Por toda parte opera um micro. Nenhuma
outra força parece resistir à atropelada da computação. As novas
gerações de computadores prometem e cumprem a promessa de
interface para tudo. Aumenta, sem cessar, o ruído de periféricos. Pois
o periférico visado é sempre o homem. Neste caso, nada poderia fugir
à informatização.
E que é informatizar?
Informatizar não é apenas o verbo que indica os fatos e feitos da
informática. Não nos remete apenas ao funcionamento de ferramen-
tas e aparelhos, não se refere a dispositivos de processamento ou a
instalação de computação microeletrônica. A informatização não é o
resultado da expansão global de uma parte, de sorte que a totalidade
resultante fosse o todo de uma parcialidade. A informatização não se
reduz a transferir determinada integração de ciência e técnica, de
conhecimento e ação para todas as áreas em que se distribuem os
homens histórica e socialmente organizados. Informatizar é o pro-
cesso metafísico de Fim da História do poder ocidental. Fim não no
sentido de término, mas no sentido de plenificação. Na informatiza-
ção e por ela, o poder de organização do Ocidente se torna planetário.
A globalização se instala. A dicotomia de teoria e prática, de mundo
dos objetos e mundo dos sujeitos vai sendo superada numa com-po-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
sição absorvente. Por ela se completam, numa equivalência de recí-
proca constituição, o sujeito e o objeto, o espírito e a matéria, a
informação e o conhecimento, o mundo dos cérebros e o mundo das
coisas. Ã luta entre materialismo e idealismo torna-se, então, uma
brincadeira de criança. O pessimismo e o otimismo transformam-se
em categorias inofensivas para classificar irmãos de uma mesma
família. Sendoum verbo de vigência essencial, informatizar nos
precipita na avalanche de um poder global de realização. Por isso,
não indica primordialmente o processamento automático de conjun-
turas, mas o processamento automático de estruturações que tudo
aplanam, tudo controlam e tudo contraem numa com-posição sem
lacunas. A terra e o mundo, a história e a natureza, o ser e o nada se
reduzem a componentes de compatibilidade universal. A informati-
zação é uma voracidade estrutural em que todas as coisas, todas as
causas e todos os valores são acolhidos, são defendidos, são promo-
vidos, mas, por isso mesmo, perdem sua autonomia e fenecem em
criatividade.
Neste sentido, informatizar é supermercado de organizar o
conhecimento e transformá-lo em poder de salvação. Tanto desen-
cadeia as forças produtivas como contém os modos de produção
no poder e não poder de uma ordem planetária de dominação. Os
modos automatizados ciberneticamente da organização recolhem
em si as condições de toda a vigência social, de toda a causalidade
histórica e de toda gama das demandas e solicitações individuais.
Ora, é no fluxo de uma socialização global, é na avalanche de uma
historização estandardizada que as ordens simbólicas se compõem
com as ordens práticas nas superestruturas da automação. Se
pensarmos, portanto, em toda envergadura o desafio da informa-
tização, não há cegueira que nos impeça de ver nela a realização
do vigor planetário da técnica. É a com-posição final de todas as
posições e de todas as oposições em sua dinâmica de locupletação.
E a síntese escatológica de todas as teses e de todas as antíteses em
seu percurso de complementação.
A informatização não é, pois, simples efeito da informática e sua
expansão. A informática e sua expansão é que nasceu, cresce e se
alimenta da informatização. O que está em jogo é um processo
totalitário de realização. Neste nível, abre-se todo um outro horizonte
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
para se pensar a força histórica da informatização em sua pretensão
de poder salvar a humanidade pelo conhecimento. É o horizonte da
realidade em seu movimento de realização. Na tela da história, então,
o real se faz espetáculo e demonstra todo o potencial de suas virtua-
lidades.
Neste caso, como é que informatizar chega a realizar?
De certo, realizar e informatizar não são a mesma palavra, mas,
se não são a mesma palavra, em todas as comunidades lingüísticas
em uso, pertencem à mesma língua de origem e dizem a mesma
coisa, a saber, a transformação do real numa forma controlada de
poder. Informatizar é um neologismo para designar toda uma ordem
de real, realização e realidade instaurada pelo processamento micro-
eletrônico das informações e dos conhecimentos. Com os recursos
eletrônicos, colocou-se em ação, nos dois eixos da modernidade, no
paradigmático e no sintagmático, um princípio de ordem e uma
força de organização total da sociedade. Para se avaliar a profundi-
dade das transformações históricas em causa, deve-se levar em conta
duas coisas: em primeiro lugar, a forma da informática não remete
apenas ao âmbito da mensagem. Remete também ao domínio de
qualquer criação, seja na arte, na ciência, na indústria, na organiza-
ção ou nos modos e valores da convivência. Em segundo lugar, a
forma da informática indica uma estrutura plural, composta de
circuitos e programações. De acordo com esta pluralidade, realiza-
se, numa com-posição capaz de processar, não apenas dados, mas
complexidades, conhecimentos, sentimentos, isto é, combinações
de referências. Tudo é, então, reduzido a formas, e somente a formas.
Nesta redução universal, a informatização não apenas realiza como,
sobretudo, desafia, em todos os níveis a criatividade e o mistério
inesperado de qualquer sociedade que se informatiza.
Contra esta maneira de se pensar a realização da informática como
informatização e de se fazer aparecer assim os desafios de estiola-
mento e dominação, de salvação e amparo, costuma-se levantar a
objeção de instrumento e ferramenta. A informática seria apenas
meio para o fim e, de forma alguma, fim em si mesma. Muito longe
de realização, cumpriria simples instrumentação da sociedade e do
homem. As ferramentas microeletrônicas liberariam ambos das tare-
fas subalternas de intermediação Com os mecanismos aplicados ao
10 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
sistema de produção, a mecânica clássica dispensou a força muscular.
Com os automatismos, a eletricidade possibilitou o progresso industrial
e a produtividade econômica. Com a automação, a inteligência
artificial e a robotização, a informática substituiu, num mesmo
circuito microeletrônico, Prometeu e Erimeteu, ao mesmo tempo,
isto é, tanto as funções projetivas da imaginação criadora como a
função executivas da ação transformadora.
Esta objeção sofre de cegueira radical.
A cegueira radical não impede de ver. Ao contrário, possibilita
ver qualquer coisa, por já ter reduzido tudo a formas padroniza-
das de visão. A cegueira radical só é cega para a essência das
coisas. Por isso, a objeção não vê que nos domínios da informa-
tização, já não é possível separar nem mesmo distinguir meio e
fim, instrumentação e realização, forma e substância. O homem
não vive primeiro e só depois existe. O homem não existe
primeiro e só depois observa, presta atenção, combina, inventa,
decide, sente e se relaciona. Não. É observando que ele existe. É
prestando atenção, combinando, inventando, é decidindo, é sentin-
do, etc. - que ele existe. Cego, portanto, e cego de cegueira radical,
é quem, vendo apenas formas processadas, não pode perceber a
mesma realização, superando as dicotomias pré-microeletrônicas,
nas próprias diferenças microeletrônicas. Trata-se do tipo de ceguei-
ra que o efeito da distorção da informatização espalha por toda parte
nas sociedades do conhecimento. De tanto processamento automá-
tico já não se consegue ver os processos essenciais. Tudo perde
substância e profundidade, tudo se dimensiona em formas com
função politécnicas, sejam binárias, sejam terciárias. A funcionali-
dade, ao invés de salvar, tornaria o destino histórico da humanidade
sem saída.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 11
CIDADES GLOBAIS EM SOCIEDADES
INFORMACIONAIS
Barbara Freitag
Introdução
Se é correta a suposição de serem as cidades o verdadeiro palco
(" Schauplatz") da sociedade contemporânea, como afirmou Sim-
mel, elas devem refletir as transformações das sociedades industriais
em sociedades informacionais, ocorridas na passagem do século XX
ao XXI. Isto implica um novo exame de nossas cidades e uma
mudança fundamental na abordagem teórica de suas origens, funcio-
namento e destino. Noutras palavras, é preciso rever as teorias sobre
as cidades e as formas tradicionais dos estudos urbanos e formular
novas categorias analíticas que permitam melhor entendimento das
mudanças que realmente ocorreram.
Esta proposição dá a entender que as abordagens teóricas até aqui
empregadas são insuficientes, senão mesmo inadequadas, para ana-
lisar os resultados dos processos de urbanização nas últimas décadas.
Elas podem, inclusive, levar-nos a tirar conclusões errôneas, caso
sejam mecanicamente aplicadas às novas realidades. As teorias que
eram válidas para a era industrial não podem ser simplesmente
"recicladas" para analisar a sociedade informacional e o que Saskia
Sassen chama de cidades globais.
Eu gostaria de ilustrar esta tese, examinando quatro abordagens
" clássicas". Começarei com (I) a tipologia das cidades e a análise da
especificidade das cidades do Ocidente, de Max Weber. Esta revisão
crítica será seguida pela (II) análise dos estudos de Walter Benjamin
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 13
sobre Paris, "a capital do século XIX", em seu "Passagenwerk"
(1977). Num terceiro momento (III), eu gostaria de recordar a con-
tribuiçãodo Socialismo utópico para o planejamento urbano como
parte integral do processo de modernização. Finalmente (IV), gosta-
ria de fazer algumas observações sobre a assim chamada Escola de
Chicago (de R. Park, G. Burguess e Louis Wirth).
Revendo quatro teorias do desenvolvimento urbano
I
Max Weber (1864-1920) desenvolveu a mais abrangente das ex-
plicações sobre a origem das cidades do Ocidente, no contexto de sua
sociologia da dominação (1961). Na verdade, o capítulo consagrado
à "tipologia das cidades" tem por objeto o tipo de dominação
ilegítima que surgiu, na Europa Central, antes da industrialização. As
pequenas cidades medievais representavam o resultado de um movi-
mento de cidadãos quase "revolucionário", que se opunha ao poder
feudal e à sociedade aristocrática.
A tipologia de Max Weber está baseada em critérios econômicos e
inclui (1) as Fürstenstãdte, as residências do Príncipe, (2) cidades de
consumo, (3) cidades de produção, (4) cidades comerciais e (5) cidades
mistas. Ele não estava satisfeito com esta tipologia, por julgar que estes
critérios econômicos eram insuficientes. Para uma definição mais plena
do fenômeno urbano, seria preciso levar em conta, também, os fatores
políticos. Assim, num sentido plenamente econômico e político, as
cidades são conglomerados de artesanatos, manufaturas, estabeleci-
mentos comerciais, localizados num local que desempenha diversas
funções, tais como praça forte, mercado, tribunal, e que desfrutam, em
larga medida, de autonomia jurídica. Rssas comunidades urbanas de-
vem estar baseadas na associação de cidadãos autogovernados que
aspiram à autonomia (Weber W&G, 2, p. 934). Neste sentido, as cidades
do Ocidente tiveram por pressuposto a existência de uma burguesia, o
verdadeiro pilar de seu poderio político e econômico. A sociedade
urbana burguesa era o resultado do declínio do sistema aristocrático
baseado no campo. O novo poder político emergiu da capacidade dos
14 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
cidadãos de organizarem a produção e o comércio, de desenvolver o
poderio militar, de impor a jurisdição territorial, e de criar novas
formas de auto-administração e autonomia política. Dentro das cida-
des, propriedade privada e altas rendas eram considerados critérios
centrais de cidadania. Ser um cidadão era condição essencial para
desempenhar funções políticas dentro da comunidade urbana.
Uma questão que permanece aberta: por que terá Max Weber dado
a seu famoso capítulo sobre as cidades o título principal de "Poder
Ilegítimo", reservando para uma cláusula parentética o subtítulo "A
Tipologia das Cidades" ? É bem possível que isto se deva ao fato de
que, como a ordem feudal recusava o dinheiro como a base principal
do poder, Weber considerasse que, do ponto de vista aristocrático, o
poder baseado na riqueza era ilegítimo.
Resumindo: a teoria urbana de Weber descreve a transformação
da sociedade feudal em sociedade burguesa, ou, como talvez ele
preferisse dizer, a passagem de formas tradicionais a formas racionais
de organizar a vida econômica e política na sociedade européia. Sua
tipologia urbana nunca se encontrou em estado "puro" na vida real.
Isto é particularmente verdadeiro nas condições contemporâneas,
que requerem novos instrumentos para estudar e analisar megalópo-
les, como Nova Iorque, Tóquio, a Cidade do México ou São Paulo.
II
Vamos dar, agora, uma olhada na flâneríe de Walter Benjamin
(1892-1940) através de seu Passagenwerk (1935, 1982). A extraordi-
nária influência exercida por este trabalho sobre o pensamento pós-mo-
derno a respeito de cidades compete com o encantamento suscitado por
Lê città invisibili (1972), de ítalo Calvino. Os dois textos têm em comum
a fascinação de seus autores por uma cidade paradigmática: Veneza para
Calvino, Paris para Benjamin. Se Veneza é o "cenário" do primeiro
contato do Ocidente com civilizações extra-européias (o mundo islâmi-
co, a China), Paris é o cenário para todas as manifestações da "moder-
nidade", incluindo a literatura, a arquitetura, o urbanismo, o capitalis-
mo, a organização política. Paris é a capital do século XIX, sobre a qual
Benjamim deita um olhar melancólico e nostálgico, por ser um mundo
ameaçado pelo nazismo alemão.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 15
Benjamin deu aoflâneur o mesmo status que Calvino deu a seu
" navegador", Marco Polo. Oflâneuré um pedestre que vagueia pelas
ruas, arcadas, pontes e jardins. Ele é um observador que não tem
dinheiro nem interesse em comprar o que quer que seja. Mas ele está
plenamente cônscio de todas as "manifestações" da cidade moderna
como expressões da sociedade capitalista. Em sua qualidade de
observador, oflâneur classifica os diversos "tipos" que povoam a
cidade: o jogador, o dândi, a rameira, o vagabundo, o coletor de lixo
(Lumpensammler). O foco de Benjamin não é sociológico, mas
alegórico. Ele não está interessado em categorias sociais, tais como
o operário ou o dono de fábrica, mas em tipos humanos abstratos,
que vivem nas ruas, nos lugares públicos, nas arcadas de Paris.
Ao descrever Paris como a capital do século XIX, ele focaliza a bolsa
de valores, as galerias, as lojas, as revistas ilustradas, os cafés e restauran-
tes, os edifícios do governo, as igrejas, os hospitais, os terminais ferroviá-
rios, as estações do metrô, as fábricas. Oflâneur tem tempo para olhar
para esses edifícios e admirar-lhes a beleza, para avaliar-lhes o valor em
bom estado e até mesmo reduzidos a ruínas, para estudar os materiais
empregados em sua construção, como vidro e ferro. Benjamim se sur-
preende com o fato de que os arcos e as colunas ainda copiam o desenho
de outros períodos arquitetônicos, como colunas greco-romanas, arcadas
góticas, etc. A seus olhos, as ruas falam por si mesmas, com seus tableaux
urbains, os anúncios, os quadros de avisos. As utilidades apregoam os
próprios preços nas vitrinas, toda a sorte de sinais explica a lógica da
cidade. Walter Benjamin, oflâneur por excelência, não é um sociólogo,
um político, um economista, mas um observador participante, um citadino
comprometido, cujo destino está indissoluvelmente ligado ao destino de
Paris, um amante apaixonado desta cidade ímpar, na qual ele encontrou
um lugar de refúgio, quando Hitier tornou impossível que ele, com
milhares de outros judeus, voltasse para Berlim, sua cidade natal.
A Paris de Benjamim pode ser vista como uma espécie de "tipo
ideal", no sentido que Max Weber dá a esta expressão, vale dizer,
é uma construção teórica diferente de qualquer cidade empírica.
Seus conceitos deflâneur, deflâneríe, a tipologia das personagens
e o uso de tableaux urbains, tomado de empréstimo a Baudelaire,
podem ser aplicados a outras cidades. Willy Bolle, por exemplo,
usou as categorias de Benjamin para estudar a emergência da moder-
16 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
nidade na cidade de São Paulo. Nada obstante, esses conceitos
tornaram-se pouco úteis para ajudar a compreender as mudanças
estruturais que ocorreram na sociedade e no ambiente urbano no
começo do século XXI. As massas, as flâneries, o prazer de olhar
vitrines, as arcadas são "fatos" que, um século depois, podem ser
incluídos na arqueologia da modernidade. As massas ficam em casa,
assistem à televisão e substituem as ruas e os lugares públicos pelo
aconchego dos bares da periferia urbana e da casa de cada um. Às
vezes as massas reaparecem em jogos de futebol ou beisebol e,
eventualmente, em arruaças e demonstrações violentas. Mas, tão
depressa como apareceram, voltam a desaparecer. Hoje em dia, as
ruas e avenidas de nossas grandes cidades estão vazias de pessoas,
mas cheias de carros, ônibus, motocicletas, etc. Fazem-se compras
por meio de catálogos, da Internet, por ofertas da televisão e chama-
das telefônicas. As pessoas perderam o hábito de andar. Deslocam-se
de um lugar para outro de trem, de metrô, deônibus, de carro. O ritmo
e a velocidade se intensificaram. Os malls e os centros comerciais
passaram a ocupar o lugar das lojas nos Passagen, que tanto encan-
tavam Benjamin. Lojas de departamentos, como "Lê bonheur dês
dames", de Zola, destruíram as pequenas lojas. Os McDonalds e os
Pizza Huts liquidaram com os pequenos bistrôs e restaurantes mo-
destos. Os arranha-céus de Montparnasse destruíram a intimidade do
antido bairro de pintores onde Picasso trabalhou, depois de deixar
Montmartre. "Lê vieux Paris nestplus, hélas!", já disse Baudelaire.
m
Passemos agora aos socialistas utópicos. Muitos deles são, ao mesmo
tempo, planejadores de novos espaços urbanos e inventores de novos
projetos para a sociedade. Platão, por exemplo, expôs suas idéias sobre
reforma social através da descrição de uma cidade ideal. Ele evocou a
lenda da Atlântida em dois de seus diálogos (Crítias e Jlmeu). Se a
Atlântida era o modelo de Atenas e Atenas, o modelo da polis grega, esse
modelo permeou muitos outros sonhos de uma sociedade perfeita. Basta
lembrar a Utopia, de Tomás Morus, a Cidade do Sol, de Campanella, a
Nova Atlântida, de Francis Bacon, e a Nova Harmonia, de Robert
Owen. (Freitag, 2001)
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 17
O "Falanstério", de Charles Fourier (1772-1830), deve ser men-
cionado, entre outras razões, porque um de seus sequazes, Jean-Bap-
tiste André Godin (1817-1888) logrou transformar o projeto em
realidade. Godin construiu, em Guise, no norte da França, o assim
chamado Familistério, um "palácio social" que sobreviveu até 1985,
quando foi convertido em museu a cargo da União Européia.
Charles Fourier estava convencido de que, depois dos processos de
urbanização e industrialização que se seguiram à Revolução Francesa,
urgia proceder a uma renovação urbana e social. Sua fantasia de um
"Falanstério"3 para camponeses, artesãos e operários, que integrasse
trabalhadores e empresários, deveria funcionar como uma "falange",
uma unidade de trabalho coletiva baseada no princípio da cooperação,
e não no da competição. O "Falanstério" ou "Familistério" parecia um
palácio real, como o de Vincennes ou o de Versalhes, mas cujo dia-a-dia
estivesse organizado de acordo com o Panopticum de Bentham, ou a
instituição total de Goffmann, ou ainda o modelo exposto por Foucault
em " Surveiller et Punir" (1972). Lewis Mumford foi o primeiro soció-
logo urbano a denunciar o caráter autoritário dos modelos utópicos. Os
utopistas concebiam a sociedade como um mecanismo de relógio, no
qual cada peça deve funcionar de modo preciso, sem conflitos, numa
microssociedade previsível e controlada, em perfeita harmonia. Tais
condições transformam a sociedade humana em comunidades de for-
migas ou abelhas.
Os projetos utópicos, do tipo do Familistério de Godin, introduzi-
ram certo grau de autonomia. Esta seria a razão pela qual o Familis-
tério, de Guise, sobreviveu e provou sua própria exeqüibilidade por
quase um século. Entretanto, a derrocada e queda das sociedades
socialistas na última década do século XX deveu-se, em parte, ao
pressuposto mecanicista e autoritário inerente a todos os projetos
utópicos. Sociedade alguma, em que tudo é passível de planejamento
e controle, pode ser considerada ideal.
Outro projeto utópico moderno tem demonstrado sua capacidade de
sobrevivência: Brasília, a capital do Brasil. Em contraste com Shandig-
har, a cidade indiana do Punjab planejada e realizada por Lê Corbusier,
Brasília tornou-se um símbolo para a sociedade moderna e a vida
citadina. O projeto urbano original de Lúcio Costa, fortemente influen-
ciado por Lê Corbusier, foi mais bem-sucedido que Shandighar. Em-
18 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31,jan.-mar., 2002
bora críticos, como James Holston (1984) afirmem que Brasília não
cumpri11 as promessas que fizera à sociedade brasileira e ao mundo,
ela é uma cidade viva em que as pessoas têm prazer em morar.
Temos de admitir, de modo geral, que a estratégia de planejar novas
cidades na esperança de que elas hão de criar uma sociedade nova
provou ser indefensável. As cidades são instituições sociais imersas
num contexto social mais amplo. Novas cidades não substituem novas
sociedades. Brasília não impediu a reprodução da pobreza, da injustiça
e da exclusão. Esta crítica dos esquemas utópicos já fora feita por Marx
e Engels e não perdeu nada de sua força nos dias que correm.
IV
A Escola de estudos urbanos de Chicago introduziu duas novas
dimensões de análise: a perspectiva ecológica e a abordagem jornalística.
R. Park, E. W. Burgess, L. Wirth, McKenzie foram os primeiros
sociólogos urbanos que chamaram a atenção para a importância da base
ecológica de nossas cidades, acentuando a necessidade de um equilíbrio
saudável entre as áreas residenciais e o ambiente natural. Park, além
disso, foi o primeiro autor a se valer do conceito de " áreas segregadas"
e "bairros isolados", baseado em sua abordagem jornalística, ao
descrever a vida urbana dos diferentes grupos e minorias que formam
a população urbana. Burgess introduziu o diagrama de uma cidade
grande ideal, tendo tomado Chicago por modelo. Discriminou ele,
ao menos, cinco anéis internos concêntricos, começando pela zona
central (I), a zona (II), um segundo anel, que contém o submundo, o
gueto, Chinatown, a Pequena Sicília, quarteirões miseráveis, casas
de cômodos, etc. Um terceiro anel (zona III) compreende "Deuts-
chland", a segunda leva de imigrantes, casas para a classe operária,
" áreas de dois apartamentos" ,4 um "Cinturão Negro", etc. O quarto
anel ou zona inclui os bairros residenciais, hotéis, a assim chamada
"área de luzes brilhantes",5 edifícios de apartamentos, casas de
família. Por último, o anel externo (V, a zona dos que viajam entre
casa e o trabalho6) foi designado como a seção dos bangalôs. A
segregação, tal como estudada em Chicago, foi interpretada como
conseqüência de fortes ondas migratórias de pessoas provenientes de
todos os países do mundo, especialmente da Europa no período
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 19
compreendido entre as duas Guerras Mundiais. Ao ocuparem as áreas
urbanas ao redor do centro de Chicago, os imigrantes não se mesclaram
com outros grupos sociais, culturais e religiosos e, assim fazendo, segre-
garam-se a si mesmos numa espécie de gueto (cf. Saint-Arnaud, 1997).
Novas formas de análise, recentemente introduzidas em urbanis-
mo e arquitetura, tais como a chamada análise sintática, sublinha os
efeitos negativos dessas comunidades isoladas.
A abordagem jornalística foi introduzida por Park. Sentava-se
ele a uma mesa de bar, com imigrantes das mais diversas origens,
e, enquanto bebiam cerveja, ia-se informando acerca do estilo de
vida urbano que levavam, dos problemas relacionados com seu
dia-a-dia e seu trabalho. Foi esta a matéria-prima de sua análise
urbana empírica. Para dar prosseguimento a seus estudos, Park
dirigiu-se a Berlim e a Estrasburgo, onde assistiu às aulas de Georg
Simmel. Sua dissertação doutorai foi submetida ao filósofo neo-
kantiano Wilhelm Windelband, em Heidelberg. Foi ele um dos
primeiros jornalistas a tornar-se membro do Departamento de
Sociologia da Universidade de Chicago. Park defendia a necessidade
de trabalhar empiricamente nas questões citadinas, utilizando técni-
cas como entrevistas e questionários. No começo, as principais fontes
de informação eram jornais e revistas ilustradas; mais tarde o rádio
e reportagens filmadas acerca dos estilos de vida nas modernas
cidades americanas tornaram-se modos privilegiados de coletar da-
dos empíricos. Esta nova escola de sociologia urbana denunciou a
violência e a injustiça presente nas grandes cidades, ao mesmo tempo
que reconhecia os aspetos positivos dos novos centros urbanos, como
conforto, água, eletricidade, diversões e acesso à informação. Cabe
recordar que a literatura, em particular os assim chamados romancesurbanos, tem-se dedicado a narrar a vida urbana desde o século XIX.
Os livros clássicos de Victor Hugo, Balzac, Zola, Dickens, Dõblin e
muitos outros informam-nos a respeito da vida nas cidades indus-
triais melhor até do que os estudos sistemáticos empreendidos por
Marx e Engels. Mas, na realidade, foi Park e seu grupo que introdu-
ziram a análise da vida urbana através da mídia.
Esta abordagem mediática apresenta dois problemas maiores. O
primeiro é que somente os aspetos da vida urbana apreendidos pela
mídia são incluídos na análise. O que quer que seja omitido ou
20 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
esquecido pela mídia será tratado como algo que não ocorreu. Em
segundo lugar, a abordagem de Park pode ser distorcida por um
preconceito "antropológico" que leve a atribuir valor intrínseco a
culturas e subculturas, bandos e tribos. Se essas subculturas são
compostas de grupos clandestinos ou terroristas, não integrados no
mais amplo sistema de valores da cidade oficial, eles podem agir
contra os interesses da sociedade mais largamente considerada, for-
mando um Estado dentro do Estado. Exemplos: as máfias da droga,
os cabeças-raspadas, e os grupos de jovens fascistas ou neonazistas.
Concluindo, podemos dizer que a Escola de estudos urbanos de
Chicago, apesar de ter uma perspectiva mais vasta e melhor metodo-
logia do que muitos de seus predecessores, não oferece processos
confiáveis para explicar as recentes mudanças urbanas e societárias.
Duas novas abordagens que sobrepujam os limites das teorias
precedentes
I
Recentemente Ronald Daus (1943- ), da Universidade Livre de
Berlim, introduziu pelo menos duas inovações na área da sociologia
urbana. Em primeiro lugar, ele focaliza cidades extra-européias, sobre-
tudo do hemisfério sul, realçando, assim, problemas geralmente negli-
genciados pela perspectiva etnocêntrica dos analistas do primeiro mun-
do. Ocupando-se de cidades quase sempre edificadas por poderes
coloniais, sua abordagem volta-se para a vida das ruas e não para os
interesses das velhas elites e oligarquias que sucederam o antigo gover-
no colonial. Em segundo lugar, a fim de escrever uma espécie de
etnografia das cidades negligenciadas, ele teve de diversificar suas
fontes e utilizar documentos não-convencionais. Seus materiais in-
cluem fotografias, filmes, programas de televisão, estatísticas e relató-
rios oficiais (Banco Mundial, Desenvolvimento Humano das Nações
Unidas, Fundo Monetário Internacional). Os materiais de Daus incluem
também ficção científica, literatura, poesia, diários íntimos, murais,
pinturas, plásticos,7 jornais, entrevistas, programas políticos, histórias
ern quadrinhos, pornografia (fotografias, literatura e filmes), aulas
, Rio de Janeiro, 148: 13/3 1, jan.-mar., 2002 21
universitárias e discussões. Suas fontes são completadas por infor-
mações coligidas em viagens a diversos países e cidades, observação
participante, conversas com amigos e colegas, leituras de livros
científicos e estudos. Nada é posto de lado, tudo provou ser útil no
retratar a vida citadina. Servindo-se deste material colhido ao acaso,
ele compôs uma espécie de colagem, uma colcha-de-retalhos que
incorpora os aspectos urbanos que não se enquadram nos diversos
modelos teóricos discutidos neste ensaio.
Sem negar forte influência européia, sua trilogia aborda, no primeiro
volume, O Fundamento Europeu (1995) e busca entender o funciona-
mento das cidades coloniais concebidas como instrumentos de domi-
nação e exploração em benefício das metrópoles européias. No segundo
volume, País em Construção (1997),8 as cidades se tornam centros da
consciência e do sentimento nacional, dando origem à idéia de liberdade
© autonomia. A antiga cidade colonial é investida de nova importância
e toma-se a nova capital de um país independente. No terceiro volume,
Vida, Prazer e Sofrimento (1999), Daus assinala a riqueza dos novos
estilos de vida que emergiram desse passado colonial, cheios de contra-
dições e caracterizado por uma fusio de culturas, raças e ideologias.
•Daus dedica sua atenção principalmente a cidades situadas na América
Latina, na África e na Ásia, como a Cidade do México, Havana, Lima,
Buenos Aires, Sio Paulo, Rio de Janeiro, Bombaim, Deli, Calcutá,
Bangladesh, Xangai, Dacar, Lagos e Luanda,
Daus chega a um resultado surpreendente: essas cidades extra-eu-
ropéias podem dar lições a suas antigas metrópoles. Seus habitantes
suo mais criativos, têm mais iniciativa, dlo provas dê maior tolerân-
cia cultural e religiosa, têm maior flexibilidade para enfrentar pro-
blemas inesperados, desenvolvem melhores formas de sustentabili-
dade, superam as erises políticas e econômicas mais facilmente e,
no Primeiro Mundo. E bem verdade que essas eidades novas têm de
enfrentar maior pobreia, menos demoerteia, mais poluiçlo, maiores
este fenômeno em breve se estenderá a eidades do Primeiro Mundo,
nas quais a tendência à exelusão e à pobreia também estão presentes,
Daus acrescenta quê os habitantes d© eidades nlo=©uropéias exibem
22 Revista 1B, Rio de Janeiro, 148:13/31, jan.-mar,, 2002
maior vitalidade, são mais inclinados ao prazer (futebol, carnaval,
sexo, etc) e, de modo geral, são mais felizes que os habitantes das
cidades européias. A expectativa de vida deles e o nível de segurança
podem ser mais baixos, mas a pirâmide demográfica é mais equili-
brada que suas contrapartes européias. Neste ponto, como é tão
comum acontecer com observadores europeus, Daus idealiza as
condições de vida nas cidades do Terceiro Mundo. Mas ele tem um
conhecimento profundo e sofisticado das cidades que discute.
De maneira própria e original, Daus segue a trilha aberta por
Robert Park. Também se inspira no método de Benjamin, ao criar
uma tipologia dos moradores da cidade, como o vagabundo, o
mendigo, a prostituta, o dândi, o esnobe, a estrela de cinema, o
político, o especialista, o funcionário público internacional, o turista,
o traficante de drogas. O contrabandista, o proprietário de hotel e o
menino que vive nas ruas. Uma vez que seus estudos abrangera pelo
menos metade do globo, podemos dizer que Daus oferece uma visão
globalizada de todas as cidades excluídas da economia global,
II
Á noção de " cidade global" foi trazida à baila pela primeira vez por
SasMa Sassen. Em seu primeiro livro acerca do assunto, Á Cidade
Global (1991), da analisa Nova Iorque, Londres e Tóquio como exem-
plos de eidades que, nas duas últimas décadas, atingiram a condiçSo de
cidades globais. Subseqüentemente, ela incluiu nesta categoria outras
cidades, como Miami, Toronto, Sidney, conforme assinala no livro
seguinte, Cidadis numa Economia Global (1994). Em certas circuns-
tâncias, Sassen também admite que Hong Kong, Los Angeles, Zurique,
Frankfurt, a Cidade do México e S8o Paulo podem ser incluídas na
categoria de cidades globais, visto que atendem aos pré-requisitos de
certas transações econômicas transnacionais. Á fim d© melhor entender
Segundo ela, "cidades globais slo lugares-ehaves para os serviços
avançados © as instalações de telecomunicações necessários à imple-
mentação © condução d©, op©raçõ©s econômicas globais, Elas tendem
Revista TB, Rio de Janeiro, 148; 13/31, jan,-mar., 2002
Depois da Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, nas
duas ou três últimas décadas do século XX, ocorreram importantes
transformações na economia mundial. A África e a América Latina
perderam seus vínculos, até então vigorosos, com o mercado mundial
de produtos primários e matérias-primas. O Investimento Exterior
Direto em serviços sofreu aumento impressionante. O papel desem-
penhado pelos mercados financeiros internacionais foi realçado. O
quadro institucional estabelecido pelos acordos de Bretton Woods
(1947-1948) começou a desfazer-se (cf. 1994, pp. 27-8).
Esses realinhamentos acarretaram profunda reestruturação na hie-
rarquia de todas as cidades do mundo e tambémna rede de cidades
existente num único e mesmo país. Surgiram novas desigualdades
entre as cidades. Os países e sua importância dentro de redes econô-
micas e comerciais tradicionais perderam sua posição privilegiada.
A importância dos estados nacionais começou a encolher e certas
"cidades globais" tornaram-se mais importantes, na paisagem glo-
balizada, do que países inteiros. Uma nova combinação de dispersão
espacial e integração global criou novos papéis estratégicos para
cidades como Nova Iorque, Londres e Tóquio.
" Além de sua longa história como centros de comércio internacional
e atividades bancárias, essas cidades funcionam agora de quatro manei-
ras novas: primeiro, como centros de comando altamente concentrados
na organização da economia mundial; segundo, como locais-chaves
para as finanças e firmas especializadas em serviços, que substituíram
as manufaturas na posição de setores econômicos principais; terceiro,
como lugares de produção, nisto se incluindo a produção de inovações
nas indústrias líderes; quarto, como mercados para os produtos e
inovações produzidas". (1991, pp. 3-4)
Em seus dois livros mais recentes, Saskia Sassen tenta responder
satisfatoriamente a várias perguntas, como: (a) Que papel as cidades
mais importantes realmente desempenham na organização e condu-
ção da economia mundial? (b) Por acaso a consolidação da economia
mundial afetou a ordem econômica, política e social nas cidades mais
importantes, a ponto de devermos ficar preocupados com a sustenta-
bilidade delas ? (c) De que modo a especificidade histórica, política,
econômica e social de determinada cidade (Paris, por exemplo)
resiste à sua incorporação na economia mundial? (d) Por acaso a
24 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
relação entre o Estado e a cidade muda, ao ocorrer forte articulação
entre a cidade e a economia mundial e, em caso afirmativo, de que
modo se dá tal mudança?
A fim de responder a essas perguntas, temos de dividir as cidades
mundiais por diferentes categorias ou criar novas tipologias, no
sentido que Max Weber dá à palavra. Ainda que não o faça explici-
tamente, Saskia Sassen permite-nos distinguir pelo menos cinco
diferentes tipos de cidades: (1) cidades globais; (2) megalópoles; (3)
metrópoles; (4) cidades periféricas, (5) cidades-dormitórios.
1) As cidades globais são os novos pilares da era informacional,
no sentido dado a este conceito por Manuel Castells (1995-1999).
Elas fornecem plenamente a infra-estrutura requerida pela economia
mundial para a realização de transações internacionais. Isto inclui
bons aeroportos, hotéis, telecomunicações, mídia, Internet, rede ban-
cária, segurança, bolsa de valores, etc. As cidades globais têm
significativo número de pessoas qualificadas e eficientes, capazes de
fornecer e produzir todos os serviços necessários. São mercados
capazes de absorver e reciclar todos os fluxos e transações financei-
ras. Exemplos: Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Los Angeles,
Toronto, Sidney, Zurique, Frankfurt. É importante lembrar que essa
hierarquia pode mudar muito depressa sob condições econômicas em
constante mudança. A posição de Nova Iorque pode ter mudado
depois dos ataques terroristas.
2) As megalópoles são definidas, essencialmente, pelo número de
seus habitantes, isto é, em geral mais de 10 milhões de pessoas. O
número de cidades, nessa categoria, aumentou nas duas ou três últimas
décadas. Essa explosão urbana causou sérios problemas: falta de em-
prego, de habitação, de transportes, de escolas, de serviços de saúde,
etc. O excesso de população dessas cidades acarretou o aumento da
violência e do consumo de drogas em relação às cidades menores. Nelas
coexistem riqueza e pobreza, arranha-céus e barracos. Exemplos: Bo-
gotá, Lima, Rio de Janeiro, Bombaim, etc.
3) As metrópoles são velhas cidades com longa história e impor-
tante tradição econômica, política e cultural, que se mostraram
capazes de adaptar-se à modernização e à nova economia mundial
sem perderem sua especificidade e dignidade como sítios culturais. Elas
são bem conhecidas e preservam sua aura de antigas capitais. São cidades
Avista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 25
grandes, com número significativo de habitantes, bons aeroportos,
sistemas de transportes, hotéis, instalações e autonomia política. Mas
não estão dispostas a serem transformadas em meros instrumentos
da economia global, ainda que sejam capazes de desempenhar todas
as funções esperadas de uma cidade global. O turismo representa
importante fonte de renda para seus moradores. Tal é o caso de Paris,
Roma, Berlim, Munique, Madri, Viena, Lisboa, Atenas, Praga, Bu-
dapeste, para só mencionar algumas das metrópoles ocidentais mais
conhecidas.
4) Cidades periféricas são todas as cidades que se tornaram
secundárias ou mesmo marginais, do ponto de vista da economia,
geografia ou cultura. Em tempos idos, essas cidades terão contribuído
para o progresso da civilização, mas, nos dias que correm, perderam
sua importância e prestígio. Algumas delas podem até ser conside-
radas decadentes, incapazes de restabelecer sua vineulação à rede
mundial das cidades mais importantes. Exemplos: Marselha, Glas-
gow, Porto, Sevilha, Bucarest.
5) Cidades-satélites e/ou cidades-dormitôríos são sítios urbanos
desprovidos de autonomia. Carecem de outras cidades vizinhas como
locais de trabalho, de entretenimento e de participação política.
Também elas são secundárias, mas têm contribuição estratégica a dar,
quando podem fornecer parte da mão-de-obra requerida por manu-
faturas e serviços. É o caso de Potsdam, perto de Berlim; de Campi-
nas, Osaseo e do assim chamado ABC (Santo André, São Bernardo
a Frankfurt, © assim por diante.
Como acontece com todas as demais tipologias, é mais fácil
encontrar uma mistura d© todos os cinco tipos ou diferentes combi-
naçQes de dois ou três deles, do qu© um caso "puro". É isto qu©
explica por quê a Cidad© do México © São Paulo pod©m s©r classifi-
cadas, ao mesmo tempo, como m©galópol©§ © cidades globais. Mas,
m©smo qu© Paris ou Berlim tenham algumas das características das
cidades globais, o fato é qu© são predominantemente metrópoles.
Importa t&mblm ter ©m ment© qu© a classificação é fl©xív©l. Uma
eidad© quê hoj© s© enquadra b©m ©m determinada categoria, amanhã
pod©rá vir a fasgr part© d© outra, como foi o caso dê Marselha, do
Porto ou d© Bue&rtst©,
Revistara, Ri© dê Janeiro, 148: 13/31,jan,-mar,, 2002
Não podemos esquecer que, não apenas as cidades, mas também
a área, a paisagem e a região onde estão situadas desenvolvem-se,
mudam e declinam. Não é, pois, de surpreender que a posição ou
classificação mude, mesmo que mudança alguma tenha ocorrido no
interior da cidade. Basta pensar no que sucedeu a Bonn após Berlim
ter voltado a ser a capitai da Alemanha.
A análise de Saskia Sassen dá a impressão de que as cidades são
arremessadas, ao mesmo tempo, como bolas num jogo de loteria. A
combinação daí resultante decorre de princípios estatísticos de pro-
babilidades, que escapam ao nosso controle.
Depois deste esclarecimento, estaremos capacitados a dar algumas
respostas as perguntas introdutórias de Sassen.
a) Entre todos os cinco tipos de cidades introduzidos pela tipologia
de Sassen, o mais importante para a economia mundial globalizada
é a cidade global. Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Toronto,
Sidney são indispensáveis para as transações econômicas internacio-
nais. Todas essas cidades globais dão contribuição vital à circulação
do capital financeiro ao redor do globo. Elas ocupam posição central
no sistema capitalista mundial chegado à fase de globalização. Se
uma dessas cidades for paralisada, como quase sucedeu a Nova
Iorque, em conseqüência dos ataques contra o WTC, o sistema inteiro
Nenhum dos demais tipos de cidades é tão estratégico. Sua impor-
tância para o mercado financeiro mundial decresce gradativamente,quando descemos na escala de metrópoles a cidades-satélites. Com
megalópoles, como São Paulo ou a Cidad© do México, os problemas
slo diferentes: por um lado, sua infra-estrutura qualifica-as para o
cos, econômicos © políticos geram demasiados riscos para o fluxo d©
capitais, como ©stá atualmente acontecendo a Bu©nos Air@s, outrora
çto da sociedade industrial ©m sociedade infomaeional ê o fato d© se
ter passado a atribuir maior importância à informação do qu© àproduçSo
determinaram mudanças estruturais profundas, qu© afetam a
oei©dad©s, suas estratégias relativas à força d© traba-
estruturas d© pod©r do Estado ©, aeimi d© tudo, a posiçio ©lho,
, Rio dê Janeiro, 148; 13/31, jan.=mar., 2002
hierarquia das cidades contemporâneas. Algumas delas têm qualifica-
ções para ocuparem a mais alta posição em poder e finanças, como Nova
Iorque, Londres e Tóquio. Como sabemos, outras perderam a impor-
tância de que gozavam. Localidades totalmente secundárias, como
Silicon Valley, surgem, de súbito, como importantes zonas financeiras,
tecnológicas e informacionais. Como Sassen admite, metrópoles euro-
péias como Paris, Madri, Berlim, Viena e Moscou não sofreram qual-
quer abalo na posição de prestígio histórico que adquiriram ao longo
dos séculos. Inevitavelmente há vencedores e perdedores, e não é fácil
prever quem ganhará e quem perderá nas próximas décadas, quem terá
sucesso e quem não terá. Algumas das cidades mais tradicionais, como
as capitais do mundo árabe, parecem felizes em não se envolverem num
certame cujos resultados são imprevisíveis.
c) As tradições econômicas, políticas e culturais das cidades até aqui
não tocadas pela economia global podem ser estudadas particularmente
bem, no caso de Lisboa (v. Freitag, 1999). Como se sabe, Lisboa
sobreviveu como uma pequena e pitoresca metrópole em Portugal,
mantendo-se afastada das duas Guerras Mundiais e permanecendo
como a metrópole algo decadente de um império colonial em declínio.
A partir da década de setenta, Lisboa foi inundada por gente que
retornava das antigas colônias. A redemocratização de Portugal tornou-
se mais fácil graças à generosa ajuda da União Européia. Reformas
tecnológicas, modernização dos sistemas de transportes e telecomuni-
cações e ambiciosos projetos urbanos (construiu-se uma segunda ponte
sobre o Tejo e recuperaram-se áreas portuárias decadentes para a
Expo-98) mudaram a encantadora capital de onde Vasco da Gama e
Cabral partiram para descobrir o caminho das índias e o Brasil. Lisboa
já não é a graciosa metrópole que Tanner e Wim Wenders se compra-
ziam em mostrar nos seus filmes. Ela mudou de rosto em resposta às
tendências mutantes da economia mundial e da era informacional. As
mudanças econômicas e políticas no contexto mundial inevitavelmente
afetam a estrutura interna e a dinâmica das cidades menores.
d) Enfim, para terminar, examinemos a última questão, a respeito
da relação entre as cidades globais e a estrutura de poder do estado.
Neste ponto, Sassen adota posição semelhante à defendida por Ma-
nuel Castells. Admitem ambos que o encolhimento do Estado nacio-
nal é inevitável. Em contraste, as cidades, especialmente as cidades
28 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
globais, crescem em importância. Mas isto não significa o fim do
Estado, o seu "minguar progressivo", no dizer de Marx. Sassen
argumenta que o estado é responsável pela organização e superinten-
dência do planejamento e da renovação das cidades, de tal sorte que
determinadas cidades possam ascender ao patamar de cidades glo-
bais, aptas a competir com suas irmãs na rede mundial de cidades
requeridas pela economia global. Michael Peter Smith (2001) em seu
último livro, Urbanismo Transnacional: Localizando a Globaliza-
ção, critica o preconceito econômico de Castell e a argumentação de
Sassen. No seu entender, os argumentos culturais, sociais e antropo-
lógicos devem ter prioridade na construção de teorias da cidade e
tipologias da cidade. (V. também Douglas & Friedmann, 1998).
Conclusão
Este estudo não é uma elegia por Tróia destruída ou pela Atlântida
submersa, mas também não é um hino de boas-vindas ao Admirável
Mundo Novo das cidades globais. As cidades não são apenas "Sitze dês
Geldes", o lugar do dinheiro, na terminologia de Georg Simmel, mas
capítulos na longa marcha da civilização, ecos de memórias que não se
devem perder. Acima de tudo, foram elas e continuam a ser o lar de
incontáveis seres humanos. Nas atuais condições, a maioria deles vive em
extrema pobreza, em cidades periféricas e marginais. Essas pessoas não
têm importância, do ponto de vista econômico. Elas são supérfluas, do
ponto de vista da racionalidade global. Mas é somente em benefício delas
que as atuais sugestões de rever nossas imagens de cidades ("Stadtbil-
der") e conceitos urbanos merecem ser levadas em consideração.
Notas:
Na verdade, o que Baudelaire disse é diferente e melhor: Lê vieux
Paris nestplus (Ia forme dune ville\Change plus vite, hélas! que lê
coeur dun mortet). Em português: "A velha Paris já não existe (a
forma de uma cidadeIMuda mais depressa, ai de mim, que o coração
de um mortal". Estes versos se encontram na segunda estrofe do
poema "Lê Cygne", de Lês Fleurs du Mal. (N. do T.)
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 29
2
Assim no original. Charles Fourier morreu em 1837. (N. do T.)
3
Em francês, Phalanstère, neologismo cunhado pelo próprio Fourier,
a partir de phalange (falange) e a terminação de monastère
(mosteiro). (N. do T.)
4
Em inglês, twoflat áreas. (N. do T.)
5
Em inglês, bright light área. (N. do T.)
Em inglês, commuters zone. (N. do T.)
7
A palavra plastic, em inglês, é uma designação corrente de cartão de
crédito. O contexto não permite dizer se é disto ou de alguma outra
coisa que se trata aqui. (N. do T.)
8
Em inglês, Nation Building. A expressão, usual naquele idioma, soaria
esdrúxula (quer-nos parecer), se traduzida literalmente em nossa
língua, Construção de País. Daí a solução aqui adotada, País em
Construção. (N. do T.)
9
Esta palavra, que traduz o inglês sustainability, está sendo empregada
no sentido específico de "capacidade de manter o equilíbrio
ecológico mediante o cuidado em evitar a exaustão dos recursos
naturais". (N. do T.)
10
V. a nota 9.
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pp. 923-1033).
(Tradução de Sérgio Pachá)
30 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:13/31, jan.-mar., 2002 31
SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
OU SOCIEDADE DO LOISIR11
Gianni Vattimo
Apercebo-me do caráter conscientemente provocador do título.
No entanto, considero que exprime bem a situação das nossas socie-
dades avançadas - sublinho que penso principalmente nestas socie-
dades - nas quais a quantidade de informação disponível e utilizável
para a produção de bens e de serviços já está tão desmedida a ponto
de ser necessário referir as máquinas, as memórias artificiais etc
como possível " sujeito", capaz de contê-la e de " dominá-la".
A modernidade foi também a época em que se desenvolveu a
noção, e depois o culto, do gênio; do gênio "universal" de um
Leonardo, e, depois, do gênio artístico como aquele no qual, e através
do qual, "a natureza dá a regra à arte".
As duas imagens do gênio - a mente capaz de um saber universal,
que já era o sonho da metafísica de Aristóteles, e o talento "inato"
do grande artista - parecem distantes entre si, mas talvez ambas
expressem a consciência moderna da extensão indominável das
possibilidades da ciência e também da arte. É como se, à medida que
a modernidade avançava, fosse também reduzida a distância entre as
duas concepções do gênio: o gênio da nossa época é alguém que sabe
tudo só na medida em que outro lhe dá a regra, não mais a natureza,
talvez, mas a calculadora, a rede em que circula. O saber universal
não é sabido, simultânea e articuladamente, por ninguém, por ne-
nhum sujeito finito, mesmo que dotado de talento.
Nessa transformação moderna do " sujeito" do saber são mormen-
e
características as pesquisas sempre renovadas de " artes da memó-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 33
ria" (de Bruno a Pietro Ramo...), a nostalgia romântica (e marxista)
de uma sociedade em que os indivíduos não estivessem atados à
corrente da divisão social do trabalho (manhã pescador, noite violi-
nista...), o grande projeto kantiano de reconduzir o saber a condições
a priorí na razão, renovado, já com certo pessimismo, pelo Husserl
da Crise das ciências européias.
Hoje, semelhantes projetos teóricos, em outra época mais ou
menos reservados ao mundo dos doutos, configuram-se também, e
legitimamente, como programas políticos. A União Européia fala
explicitamente de uma " sociedade do conhecimento" como horizon-
te diretivo das suas políticas comunitárias de instrução, divulgação,
educação continuada: também, e sobretudo, como se compreende,
com o propósito de vencer os desafios do mercado global, que exige
uma capacidade disseminada de utilização dos novos meios produ-
zidos pelas novas tecnologias.
É preciso que se organize a efetiva "reciclagem" de grandes massas
de trabalhadores da indústria, que devem adquirir novas especializações
para não serem excluídos na metade da vida, ou pouco depois, do
"mercado de trabalho". E é preciso que áreas nacionais ou supranacio-
nais, neste caso a Europa unida, tornem-se capazes de produzir autono-
mamente as inovações científico-tecnológicas que lhes permitam não
sucumbir na competição econômica mundial. Escopos sacrossantos,
nos quais todos como cidadãos estamos interessados. Da realização de
semelhantes metas depende, não só a nossa riqueza material, mas
também, por exemplo, o nosso destino de corpos viventes que têm
necessidade de dispor de novos fármacos para afastar a ameaça- sempre
menos "natural"-damorte.
A consciência filosófica (não de todas as filosofias) acerca do caráter
essencialmente "técnico" da ciência moderna não poderia ter uma
confirmação mais explícita e indubitável: quando falamos de sociedade
do conhecimento, falamos, em realidade, de uma sociedade do saber
tecnológico difuso e, por isto, mais rica de possibilidades "produtivas".
Se essas observações são tidas em conta, nasce pelo menos uma
dúvida sobre o significado a ser atribuído ao termo "sociedade do
conhecimento". Resulta, de fato, drasticamente limitado o implícito
sentido eulógico,2 conotado de valores positivos, que a expressão
imediatamente transmite.
34 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002
O conhecer (entenda-se: a verdade, a ordem das coisas, em última
nipótese Deus como supremo "objeto" da contemplação beatífíca)
sempre foi, na nossa tradição, sinônimo da atividade mais digna e
gratificante do homem. Todavia, se j á não antes, certamente pelo menos
em Kant, a filosofia entendeu e teorizou a diferença entre conhecer e
pensar. A esta diferença reporta-se evidentemente, também no século
XX, um filósofo como Heidegger, quando pronuncia a escandalosa
afirmação segundo a qual" a ciência não pensa", que lhe atraiu muitas
críticas, principalmente por parte de pessoas que nunca sonhariam em
colocar em dúvida, ao contrário, a palavra de Kant. Bem, em Kant o
númeno, o ser "pensado" é o ser-em-si do mundo, do qual não podemos
saber e conhecer nada, visto que o nosso conhecimento, aquele sobre o
qual se funda o saber, é limitado ao fenômeno, àquilo que se mostra.
As atividades "superiores", se as queremos chamar assim, da
razão humana se exercitam todas para além do mundo do fenômeno,
a começar pelo uso prático da razão, que é caracterizado por uma
capacidade de iniciativa não determinada casualmente pela cadeia
dos fenômenos, para terminar na contemplação estética que nada diz
a respeito de como estão as coisas, mas se coloca no âmbito de um
livre jogo da faculdade do sujeito, aqui entendido evidentemente
como alguma coisa de numênico.
Em geral, os intérpretes de Kant são unânimes - pelo menos eu
creio - em reconhecer que o mérito da sua crítica foi, certamente, o
de esclarecer os fundamentos do conhecimento; mas também, e
talvez sobretudo, o de limitar o terreno do conhecer científico,
deixando-o fora, sem condená-lo ao arbítrio e à irracionalidade; o
mundo da liberdade, dos valores, da experiência religiosa, em múl-
tiplos sentidos, só pode ser o "mundo", ou não-mundo, do númeno.
O título desta intervenção poderia, talvez, ser reformulado, neste
ponto, como: sociedade do conhecimento ou sociedade do pensa-
mento? Mas, se depois nos perguntamos um pouco mais especifica-
mente o que caracterizaria, nessa distinção de origem kantiana,
mesmo se não literalmente referível nos seus textos, o pensamento
eni relação ao conhecimento, não tardaremos a encontrar aquilo que
me
propus a indicar com a palavra loisir. Ou talvez também "jogo",
que novamente evoca o Kant estético, e ainda a hermenêutica de Hans
Georg Gadamer. Nessa acepção, jogo nos permite apreender pelo
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 35
menos duas importantes características do pensar enquanto não
redutível ao conhecer: a liberdade e o envolvimento emotivo. Por-
tanto, dois elementos que não é errado reportar também ao loisir.
Observar que esse modo de caracterizar o pensamento o reduz à
frivolidade dos comportamentos lúdicos e o faz perder o elemento de
seriedade, significa ser ainda prisioneiro da idéia de que a atividade
suprema do homem é o conhecer, que só pode ser a atividade suprema
se é contemplação de uma ordem divina na qual ver como as coisas
autenticamente estão significa também gozar da beatitude eterna.
Spinoza pensava assim: amor dos intellectualis. E nós? A luta que o
pensamento moderno, certamente também com Kant, mas depois, muito
mais radicalmente com Heidegger, conduziu contra a metafísica tem o
seu motivo exatamente na recusa de se imaginar o sentido da existência
como expressão de uma verdade dada como definitiva, que se trata só de
registrar e respeitar - dos procedimentos técnicos às escolhas morais.
O pensamento como jogo e loisir não está certamente desvinculado
da atividade cognitiva, mas a ela se liga como ensinaram Kant e depois
Heidegger: é o partilhar, já-sempredado com a nossa existência histó-
rica, de um horizonte no qual a experiência dos fenômenos e o conhecer
científico nos tornam possíveis. Visto que não é - nem em Kant e menos
ainda em Heidegger - um conhecimento preliminar, mas é, principal-
mente, uma "disposição" histórica da nossa razão, essa partilha tem as
marcas do vivido que, enquanto não determinado por um dado fenomê-
nico, é também essencial espontaneidade. Por isso, jogo é expressão de
liberdade; portanto uma forma de prazer, que é descrito no modo mais
icastico pelo Kant da Crítica do juízo, onde o prazer estético que nos
provoca a contemplação da obra de arte é o prazer de sentirmo-nos
capazes de partilhar com outros a nossa experiência, uma espécie de
sentimento de comunidade (em Kant: comunicabilidade pura, para além
de cada conteúdo específico).
A contemplação de Deus na teologia e na mística cristã nunca teve
efetivamente o sentido "cognitivo" do geometrismo de Spinoza; a
própria beatitude foi freqüentemente descrita como um banquete, um
estar-junto conversando, que a tradição cristã também chamou ágape
- algo não muito diferente do amor em todos os seus sentidos.
Não pretendo, naturalmente, insistir sobre esse lado místico da minha
exposição, e mesmo a evocação a Kant tem, antes de tudo, o sentido de
36 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002
buscar uma legitimação para a tese " escandalosa" que sei estar propondo.
Tá que um certo escândalo não pode deixar de surgir quando se passe das
(inócuas?) considerações filosóficas sobre pensar e conhecer para uma
tentativa de extrair delas conseqüências de tipo prático, social e político.
O que deveremos ensinar na escola? O j ogo no lugar da rígida disciplina
da aprendizagem de conhecimentos que são cada vez mais indispensáveis
à nossa vida individual e associada? O fato é que, com o conhecimento e
a sua difusão, acontece um pouco aquilo que ocorre com o conceito de
"desenvolvimento", ao qual cada vez mais, hoje, se associa o termo
"sustentável". Vem à mente aqui, de imediato, uma frase de Nietzsche:
Tudo depende de quanta verdade se está disposto a suportar (ou algo
parecido), que naturalmente nele tinha sentido diverso, mas que definiti-
vamente poderia não estar assim tão distante do nosso argumento.
Analogamente à questão do desenvolvimento, o problema social
do conhecimento é cada vez mais aquele dos seus limites " naturais".
Pensemos, por exemplo, na quantidade de informação que é distri-
buída cotidianamente pelos jornais e meios de comunicação de
massa. Quem procura manter-se "atualizado" - por exemplo, a
categoria dos ensaístas, dos políticos, dos críticos da sociedade à qual
muitos de nós pertencemos - encontra-se hoje muito freqüentemente
numa condição de saturação; deve recorrer a colaboradores ou a
"motores de pesquisa" que lhes forneçam uma pré-seleção do mate-
rial que, no final, procurará ler diretamente.
Afortunadamente (ou desafortunadamente), o público médio não lê
e não ouve tudo, ou não se preocupa, de fato, com a inteireza da própria
informação; tem mais o que fazer. E isso torna-se também um problema
para o funcionamento da democracia, como é bastante óbvio.
No tema democracia, outro aspecto relevante do problema do conhe-
cimento é o que se reflete sobre as sempre mais freqüentes decisões
públicas que implicam saberes especializados. Se há um referendum
sobre o problema das instalações nucleares, por exemplo, aqueles que
são chamados a votar têm suficiente conhecimento de física para poder
decidir com fundamento? Para saber do que se trata, os votantes
deveriam ser pequenos Leonardos da Vinci, e obviamente não o são.
Pode-se imaginar uma sociedade do conhecimento na qual, como no
caso do "desenvolvimento", se realiza progressivamente uma con-
dição de "leonardismo" generalizado? Mas se não, então o quê?
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 37
Neste ponto, a distinção entre pensar e conhecer, entre saber e fruir,
impõe-se em toda sua possível atualidade. Não pode, certamente,
induzir-nos a um apressado abandono do ideal do conhecer e da
promoção da ciência, como alguém suspeita, quando, a partir da filoso-
fia, se insiste sobre esse tema; mas pelo menos a uma inderrogável
redefinição do significado social do conhecer. Não é por acaso que a
sociedade na qual matura a crise do ideal do desenvolvimento quanti-
tativo do conhecimento seja também a sociedade da informática.
Um afortunado livro de Hubert Dreyfus, de há alguns anos, tinha como
título What computers can't do, ou seja Aquilo que os computadores não
sabem fazer. Oferece uma espécie de versão atualizada da famosa disputa
sobre Natur e Geisteswissenschaften do fim do Oitocentos.
Naturalmente, há coisas que os computadores não sabem fazer,
mas devemos cada vez mais prestar atenção àquilo que sabem fazer,
e servirmo-nos no modo mais eficaz. Não se trata somente, em suma,
de reivindicar o irredutível caráter humano da vida da mente, mas de
reconhecer e promover afirmativamente a possibilidade de reduzir
ao não-humano uma quantidade de atividades que, no passado,
ocupavam e oprimiam o lado propriamente humano da nossa vida.
Poderemos lembrar aqui muitos estudos sobre o hábito como
forma de liberar a atividade consciente das preocupações banais. Ou,
também, posições como as de Schiller e do idealismo alemão contra
o moralismo kantiano. A moralidade não é ameaçada pelo hábito de
se praticar o bem; ao contrário, resulta enriquecida a civilização.
Uma sociedade do conhecimento é uma sociedade na qual, como no
caso dos bons hábitos que nos fazem praticar o bem sem refletir, o
conhecimento está "disponível", nas redes, no sistema das memórias
artificiais, e " funciona" mesmo que não exista em nenhuma parte - talvez
nem acreditasse nisso verdadeiramente Hegel, que falava justamente
também de " espírito objetivo" - um sujeito " absoluto" capaz de possuir,
segundo o modo da concepção clássica do saber, todos os conhecimentos.
Preciso dizer que não sei bem, por ora, até onde conduz a estrada em
que me proponho a entrar. Sei que comporta riscos, mas estou conven-
cido (não posso dizer que sei, me contradiria) de que não há alternativas.
Promover uma sociedade do conhecimento como mundo no qual todos
saberão amanhã decidir com conhecimento de causa os mais variados
problemas da vida associada, que cada vez mais comportam o domínio
38 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002
He noções especializadas, parece-me umamistificação ideológica que revela
somente a incapacidade de repeasar o próprio conceito de conhecimento.
Hoje já acontece com mais freqüência que, quando se trata de decisões que
implicam o domínio de semelhantes noções, nos entregamos a especialistas
nue estimamos e nos quais confiamos por uma série de razões que não têm
relação direta com a avaliação (da qual não seremos capazes) da sua compe-
tência específica Os pares de conceitos aqui abordados se desenvolvem
sempre a partir da distinção entre peasar e conhecer, e chegam, por exemplo,
àquela entre técnica e política, entre economia e ética, entre "amizade" e
"verdade" (contra o dito tradicional "amigo Platão, mas mais amiga a
verdade"), não estaremos aqui numa situação simetricamente oposta?
A verdade que reconheço e posso reconhecer, em muitos campos
"especializados", é somente aquela que me é dita por quem sinto
"já" como amigo. É em relação a observações como essas que se
torna menos escandaloso falar de uma sociedade do loisir e do jogo
como a única possibilidade de representação do ideal de uma socie-
dade do conhecimento.
Tendo em consideração os elementos do conceito de jogo sobre o
qual chamei a atenção anteriormente: aqueles do "compartilhamen-
to" e da espontaneidade, portanto também do envolvimento afetivo.
Concretamente, significa que, no nosso futuro, há um saber que
ninguém individualmente será capaz de possuir; isto é, cada vez mais
emvastos setores da vida individual e associada deveremos "con-
fiar-nos" a um outro. Hoje isso já vale para a nossa própria sobrevi-
vência física: se quero fazer um "testamento biológico" que me
permita morrer com dignidade, pedindo que, em certas condições,
me deixe ou me faça morrer, devo entregar-me a alguém da minha
confiança que realize esta minha vontade; e ainda, se não subscrevo
um testamento semelhante, me confio implicitamente não à natureza,
mas aos médicos, à medicina social vigente, ainda assim a alguém,
talvez somente mais anônimo e por isso menos confiável.
A forma socialmente mais geral e visível de um semelhante
entregar-se é definitivamente a democracia política. É verdade que,
quando exerço o meu direito de cidadão eleitor, escolho entre pro-
gramas políticos explicitamente formulados; mas nesses não passo
além de certo grau de conhecimento. O contrato político que firmo
com os meus representantes parlamentares é um pouco como aquele
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 39
das companhias de seguro: contém muitas cláusulas escritas em
corpo menor, tanto que cada vez mais freqüentemente preciso de um
"broker", um especialista que me aconselhe qual é a apólice mais
conveniente, ou a companhia telefônica que me oferece maiores
vantagens. Uma razão iluministicamente vigilante dirá que, desse
modo, abdica-se a liberdade, mas se trata exatamente de levar a sério
as transformações - que a ciência e a tecnologia produziram - do
próprio conceito de conhecimento, de verdade, de liberdade.
A democracia e a liberdade política nunca se realizarão como compe-
tência científica disseminada, mas como possibilidade de cada pessoa
escolher os" especialistas" pelos quais se quer fazer guiar, e de escolhê-los
com base em uma afinidade complexa, que não é exagerado chamar
"existencial". Reconhecer isso significará ceder totalmente a uma demo-
cracia onde o carisma dos "capf, construídos pela mídia, e a força dos
slogans, superam totalmente o debate racional? Estamos conscientes do
risco; mas, mesmo em sociedades menos midiatizadas do que a nossa, a
pureza racional do debate político, onde se dava, era profundamente
condicionada pelas pertenças, amizades, confianças. Talvez tudo isso só
estivesse ideologicamente mascarado, como bem sabia Marx.
Na democracia, somos finalmente conscientes, não só negativamen-
te, na medida em que nos tornamos mais céticos em relação à possibi-
lidade de escolher "racionalmente" o caminho verdadeiro, mas também
na medida em que somos cada vez mais "objetivamente" chamados a
conceber e a viver a existência social como exercício de amizade na
qual consiste a única possível essência da própria civilização.
Notas
N.T. - lazer, ócio. Em francês no original.
9
N.T. - Neologismo do autor - abençoado. Derivado de eulógia, nome
dado ao sacramento da Eucaristia, depois ao pão que se distribuía aos
fiéis, não consagrado, mas simplesmente abençoado pelo padre.
(Silva, Antônio de Morais. II. Lisboa: Confluência, 1987)
(Tradução de Maria Lizete dos Santos)
DESAFIOS EDUCACIONAIS DA MODERNIDADE
LÍQUIDA
Zigmunt Baumann
Sendo a Polônia, naquele tempo, segundo um amplo consenso, "a
barraca mais livre e divertida no campo soviético", o departamento
de sociologia da Universidade de Varsóvia era, nos anos cinqüenta,
talvez o único lugar a leste e a oeste da "cortina de ferro" onde todas
as variedades da atual sabedoria das ciências sociais e humanas -
desde as versões mais petrificadas do dogma marxista soviético às
últimas modas da "ciência social burguesa" - eram ensinadas lado
a lado. Ficava a cargo dos alunos resolver as contradições e transpor
as vastas lacunas entre os pensamentos que seguiram seus pensadores
aos campos de batalha. Em algumas ocasiões, as diferenças entre
versões rivais da realidade humana pareciam esmagadoras e as
lacunas entre elas intransponíveis; as tropas fortemente armadas,
dispostas ao longo das barreiras de fronteira, acrescentavam uma
gravidade e uma urgência, de outra forma inconcebíveis, às disputas
acadêmicas mais tediosas, transformando, fora de qualquer propor-
ção, até mesmo os menores confrontos de opinião ou de abordagem
numa batalha de vida ou morte e numa causa belli para uma intermi-
nável guerra de atrito.
Recordo de forma distinta, contudo, duas visões supostamente
opostas, cada qual refugiando-se na autoridade de uma das duas
Superpotências em litígio, que, a despeito de toda a pressão amplifi-
cadora/inflacionária da mentalidade da guerra fria, a instigação e as
cutucadas de meus professores, eu não conseguia ver como mutua-
mente incompatíveis e exclusivas. Ambas as visões aspiravam des-
40 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 41
lindar os mistérios do comportamento humano, mas cada uma delas
baseava seus argumentos em experimentos de laboratório feitos com
animais. Uma era a teoria pavloviana do "reflexo condicionado"; a
outra era a "teoria do reforço", originária de uma longa sucessão de
psicólogos americanos, de Watson a Skinner. Cada teoria ocupava
uma posição dominante, incontestada e inatacável em seu próprio
campo (político), dentro do qual não tolerava nenhuma dissidência
nem nenhuma oposição. Os pregadores de cada teoria viam os
advogados da outra como agentes inimigos, charlatões ou defensores
de uma causa perdida, e seu evangelho como outra manifestação da
teimosia ou traição do inimigo. E, mesmo assim, repito, o conflito
me parecia claramente imaginário. Os adversários podiam estar
atracados em combate mortal, mas as imagens do estar-no-mundo
humano pregadas por ambos pareciam-me surpreendentemente simi-
lares - talvez indistinguíveis.
Ambas as teorias concordavam, em minha opinião, em vários
pontos verdadeiramente cruciais e decisivos. Primeiro: o modo hu-
mano de estar-no-mundo é o processo de aprendizagem. Segundo: a
aprendizagem dispara com o impulso do organismo para satisfazer
suas necessidades, as quais, enquanto não saciadas, causam desagra-
dável tensão que busca alívio e somente é aliviada com a satisfação
da necessidade. Terceiro: a aprendizagem consiste em reinventar a
regularidade do mundo pelo padrão da rotina behaviorista do orga-
nismo em aprendizagem. Quarto: mediante esta transformação, o
organismo se adapta ao mundo e adquire a habilidade de perseguir
seus objetivos com sucesso. Em resumo: para sobreviver no mundo,
o organismo tem que se submeter às suas regras. A hipótese subja-
cente a todos esses pontos era a essencial regularidade do mundo,
que somente poderia ser desafiada pondo em perigo o organismo vivo
e jamais seria bem-sucedida.
Para demonstrar estas proposições com as quais ambos os lados
concordavam, a versão "behaviorista" recorria principalmente a
experimentos com ratos-no-labirinto. O labirinto era feito de passa-
gens formadas por divisões firmemente fixas, opacas e inflexíveis.
Cada passagem conduzia a uma junção com mais de uma escolha,
das quais somente uma conduzia na direção correta: isto é, direto para
a bolinha de comida cobiçada pelo rato faminto. Os ratos procuravam
42 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002
o itinerário correto desordenadamente; por uma série de tentativas e
erros, elegiam a escolha certa em um feliz acidente - mas uma vez
descoberto o itinerário correto, a recompensa (o alívio da tensão
desagradável pela satisfação da necessidade que a causou) servia
como "reforço" da escolha inicialmente casual. Uma vez que as
divisões permaneciam nos mesmos lugares, durante todo o experi-
mento, e a comida era sempre colocada no mesmo canto do labirinto,
o impulso para repetir a escolha certa e rejeitar suas alternativas era
consistentemente reforçado a cada rodada. Os ratos aprendiam. Era
possível medir suas inteligências pelo número de vezes necessárias
para aprender e memorizar o itinerário correto e a velocidadecom
que o alvo era alcançado. O sucesso correspondia ao rápido ajuste do
comportamento do rato ao formato do mundo, o qual permanecia o
mesmo o tempo todo e não podia ser desafiado (qualquer tentativa
de desafiar ou ignorar o formato do mundo prolongaria indevidamen-
te o tempo de aprendizagem). E, dada a forma imutável do mundo,
os ratos bem-sucedidos (inteligentes, rápidos na aprendizagem e
capazes de reter o que foi aprendido) jamais ficariam com fome por
muito tempo de novo.
Pavlov prosseguiu demonstrando verdades similares por vias algo
diversas. Escolheu cães ao invés de ratos para seus experimentos.
Quando com fome, todos os cães salivavam à vista de comida. No
laboratório de Pavlov soava-se uma campainha antes de servir a
comida. Após repetir um número de vezes a seqüência campainha-
comida, os cães começaram a salivar "por antecipação" logo após
soar a campainha, quer o som fosse ou não seguido pela visão ou
cheiro da comida. Na tabela experimental pavloviana, a artificialida-
de e "manipulabilidade" da situação de aprendizagem, e, sobretudo,
a dimensão de semi-Deus de seu condutor, o verdadeiro Criador do
mundo do cão (afinal, era o experimentador quem decidia que a
campainha precederia o tempo de alimentação e quem estabelecia os
intervalos separando o soar da campainha do servir a comida), eram
mais proeminentes do que nos experimentos behavioristas.
Hoje, estou inclinado a pensar que essa era a razão para os
dirigentes de um estado totalitário preferirern-no ao método ameri-
cano. Afinal de contas, os dirigentes totalitários começaram a forjar
UHI mundo artificial e literalmente manipulável para o qual o labora-
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tório pavloviano servia como uma metáfora. Mantendo o papel do
experimentador à sombra, os experimentos americanos pareciam ao
contrário sustentar a crença fundamental do liberalismo de que
caberia aos indivíduos encontrar seus caminhos e fazê-lo por conta
própria. Os experimentos com ratos-no-labirinto ajustavam-se me-
lhor do que os testes com cães salivando ao cenário social que
pretendia encarnar esta crença. Não obstante, o axioma do mundo
como a estrutura de referência imutável para a aprendizagem, o
único guia confiável para as atividades de aprendizagem e juiz
supremo e incorruptível dos efeitos da aprendizagem, sustentava
ambas as estratégias experimentais de forma virtualmente idêntica.
Enquanto estudante, foi-me ensinado um conto de advertência,
mostrando as terríveis e finalmente mórbidas conseqüências da sus-
pensão do referido axioma e do mundo enviando sinais confusos e
ambivalentes sobre a diferença entre certo e errado. O herói do conto
era um peixe chamado engana-gata. Engana-gatas machos cons-
truíam ninhos para as fêmeas desovarem e guardarem as ovas. Os
machos guardam os ninhos até os ovos chocarem. Uma fronteira
invisível separa o "território doméstico" ao redor do ninho (o espaço
defendido pelo macho contra invasores, atacando todos os engana-
gatas machos que ultrapassarem a fronteira), do "território exterior"
(o espaço restante, de onde o macho foge se encontrar acidentalmente
um outro membro da espécie). Em experimentos de laboratório, dois
engana-gatas machos foram colocados, na época da desova, em um
tanque de água pequeno demais para manter seus respectivos "terri-
tórios domésticos" separados. Machos confusos, recebendo sinais
contraditórios e irreconciliáveis e, portanto, incapazes de escolher
decididamente entre lutar e fugir, tendiam a assumir uma postura
vertical de " nem um nem outro", enfiando as cabeças na areia -
obviamente uma resposta completamente inapropriada para o dile-
ma, que dizer para a sua solução. O engana-gata, assim nos contavam,
leva sua vida "normal", feliz e "que lhe convém" graças ao mundo
circundante manter-se objetivo (eindeutig, diriam os alemães), evi-
tando enviar sinais confusos, não tendo lugar para ambivalência;
também graças ao "encaixe perfeito" entre as rotinas behavioristas
e o mundo que permite com que elas sejam seguidas. Se tais condi-
ções não fossem preenchidas, a aprendizagem se transformaria, do
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ativo mais poderoso que os seres vivos desenvolvem para sobrevi-
verem, na mais formidável dependência que poderia pôr em risco a
sobrevivência.
Recordo sentir-me desconfortável ao ser ensinado sobre os modos
de vida humanos mediante experiências com cães, ratos e engana-
gatas... Da mesma forma que, provavelmente, muitos de meus cole-
gas estudantes, talvez até alguns de nossos conferencistas. Contudo,
não consigo lembrar-me de alguém pronunciando objeções, menos
ainda de estudantes se revoltando ou professores se retratando ou se
lamentando. Com freqüência me pergunto por que as histórias eram
engolidas literalmente e a explicação mais plausível que posso en-
contrar é que (apesar do desconforto espiritual) suspeitávamos que a
situação dos ratos e cães de laboratório era admiravelmente similar
a nossa, e que reconhecíamos nos tormentos dos engana-gatas nossa
própria ansiedade nos poucos e dolorosos momentos em que o mundo
parecia escapar à ordenada rotina de um laboratório.
Acreditávamos que o mundo ao redor era inalterável, duro, intra-
tável e impenetrável, mas também regular - com as rotas diretas e os
becos sem saída conduzindo sempre aos mesmos lugares, aguardan-
do para serem descobertos e mapeados. Cabia a nós aprender suas
posições de cor, seguir as primeiras e evitar os segundos, e talvez,
então, da mesma forma que os ratos e cães recompensados por sua
inteligência e empenho na aprendizagem, jamais precisaríamos te-
mer a fome... Desta forma o mundo tal como o visualizávamos
confirmava a regra aristotélica de que "o que temos que aprender a
fazer, aprendemos fazendo". O mundo e suas regras pareciam tam-
bém duráveis, de qualquer modo mais duráveis do que as nossas
vidas, risivelmente curtas e mortais, e acreditávamos que tudo que
aprendêssemos do mundo tinha boa chance de nos servir pelo resto
de nossas vidas. Esperávamos que jamais sobreviria o momento em
Que a aprendizagem surgiria, retrospectivamente, como uma perda
de tempo, menos ainda como uma receita para o fracasso em respon-
der propriamente aos desafios da vida.
Tendo comparado as idéias pedagógicas e sistemas educacionais
de treze civilizações diferentes, Edward D. Myers notou (em um livro
publicado em 1960)! "a crescente tendência para se conceber a
educação como um produto ao invés de um processo". Quando vista
Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 45
como um produto, a educação é concebida como algo que pode ser
"conseguido", completo e acabado, ao menos relativamente; por
exemplo, não é incomum, hoje, ouvir alguém perguntar " Onde você
obteve a sua educação?", esperando a resposta " Em tal e tal colégio".
Fica implícita a idéia de que o aluno aprendeu tudo o que precisa
saber das técnicas e habilidades da língua e da matemática e de todo
o conhecimento acumulado sobre as relações do homem com os
outros homens, seu débito para com o passado, a ordem natural e sua
relação com ela, e sobre o reino das aspirações e valores - tudo que
ele precisa saber, isto é, tudo que é requerido pelo seu trabalho em
particular.
Myers não gostou do que descobriu. Tendo ressentido a tendência
para se cortar o bolo do conhecimento em fatias finas, cada uma para
cada ofício ou profissão, preferia que a educação fosse tratada como
um empreendimento contínuo, para toda a vida. O conhecimento
objetivamente acumulado e potencialmente disponível já era enorme
e ainda em expansão, e o esforço para assimilá-lo não deveria se
encerrar no dia da colação de grau; a "fome de saber" deveria ser
impulsionada por toda a vida, a fim de o homem "prosseguir vivendo
e crescendo" e, desta forma, tornar-se uma pessoa melhor. Myers
tomou por certo, e sem contestar, que o conhecimento podiaser
apropriado e transformado em uma propriedade duradoura da pessoa.
Assim como com outras propriedades na era da modernidade "sóli-
da" , grande correspondia a bonito e mais era igual a melhor. O que
Myers achou errado foi a visão de que uma pessoa deveria "se
educar" de uma vez por todas, como em uma compra onde se paga
tudo de uma só vez, ao invés de estar em contínua procura por
possessões cada vez maiores e mais ricas.
Em seu estágio "sólido", hoje passado, a modernidade - em si
mesma uma reação à fragilidade do ancien regime pré-moderno que
rapidamente perdeu seu poder de controle - era obcecada pela
durabilidade. Por certo, a durabilidade era altamente valorizada
desde tempos imemoriais (todas as classes superiores na história
gostariam de cercar-se de possessões duradouras e fazer com que as
suas linhagens e a memória de seus feitos durassem pela eternidade;
o limite entre as classes superiores e inferiores coincidia, sob todos
os aspectos da vida, com a linha separando o duradouro do transien-
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te). Mas a acelerada decomposição do ancien regime adicionou
urgência e zelo particulares à preocupação com a durabilidade das
instituições sociais. A solidez, outrora comumente assegurada pela
autônoma reprodução da ordem social, parecia cada vez menos capaz
de cuidar de si mesma e, aparentemente, precisava de cuidados.
Invocando e desenvolvendo a famosa metáfora de Karl Marx, diría-
mos que a modernidade desmanchou os sólidos derretidos e já
deformados apenas para despejar a realidade dissolvida em moldes
mais bem desenhados, prometendo fazê-los durar mais. O horizonte
supremo da moderna revisão da condição humana era a sociedade
em "estado de perfeição", definida no limiar da era moderna por
Leon Battista Alberti como um estado no qual qualquer mudança
futura apenas poderia ser para pior. A transformação radical resulta-
ria em uma ordem construída à força, racionalmente concebida e
cientificamente desenhada, e que tornaria redundante e desnecessária
toda ulterior transformação.
Conseqüentemente, o direito de conservar a propriedade foi um
dos atributos humanos cruciais proclamados nos documentos funda-
dores do programa moderno. De John D. Rockefeller, provavelmente
a mais acabada encarnação de tudo o que a modernidade obcecada
pela solidez representava, Richard Sennett escreveria duzentos anos
mais tarde que ele "queria possuir máquinas a óleo, edifícios, ma-
quinarias e ferrovias por muito tempo". Rockefeller, como a sólida
modernidade cujo espírito e ambições encarnou, queria influenciar o
futuro, mas não poderia fazê-lo senão comprometendo-se com ele.
A imagem do conhecimento refletia este comprometimento, e a
visão da educação reduplicava as tarefas que este comprometimento
inscreveu na agenda da modernidade. O conhecimento tinha valor,
porque se esperava que ele durasse, e a educação tinha valor na
medida em que oferecia este conhecimento de valor duradouro. A
educação, quer vista como um episódio circunscrito, ou como um
empreendimento para toda a vida, seria uma atividade voltada para
a entrega de um produto que, como qualquer outra posse, poderia ser
possuída e desejada para sempre.
Aqui nos deparamos com o primeiro dos muitos desafios que a
educação contemporânea precisa encarar e opor. Em nossos tempos
de "modernidade líquida", possessões duráveis, produtos apropria-
ista TB, Rio de Janeiro, 148: 41/58, jan.-mar., 2002 47
dos de uma vez e jamais substituídos, perderam a passada atração.
Antes vistos como ativo, são agora mais provavelmente vistos como
passivo. Antes objetos de desejo, tornaram-se objetos de ressenti-
mento.
A história da educação é cheia de períodos críticos nos quais ficou
evidente que as premissas e estratégias testadas e aparentemente
confiáveis se perderam em fantasias e pedem revisão e reforma.
Parece, contudo, que a crise atual difere das crises passadas. Os
desafios do presente desferem pesados golpes na própria essência da
idéia de educação, tal qual formada no limiar da longa história da
civilização: eles questionam as invariantes da idéia, as características
constitutivas da educação, que até aqui resistiram a todos os desafios
passados e emergiram incólumes das crises anteriores - pressupostos
jamais postos em dúvida, que dirá sob a suspeita de terem cumprido
sua jornada e de estarem precisando ser substituídos.
No mundo da modernidade líquida, a solidez das coisas, tanto
quanto a solidez dos laços humanos, é ressentida como uma ameaça:
qualquer juramento de fidelidade, qualquer compromisso duradouro,
que dirá eterno, pressagia um futuro carregado com obrigações que
constrangem a liberdade de movimento e reduzem a habilidade de
aproveitar novas, ainda que desconhecidas, oportunidades, quando
elas, inevitavelmente, surgirem. A expectativa de permanecer preso
a alguma coisa durante toda a vida é francamente repulsiva e assus-
tadora. E não sem razão, visto que mesmo as coisas mais cobiçadas
envelhecem rápido, perdem seu brilho em pouquíssimo tempo e se
transformam de insígnia de honra em estigma de vergonha. Os
editores de revistas de moda ressentem a pulsação do tempo: ao lado
dos novos "você precisa fazer" e dos novos "você precisa ter",
regularmente aconselham seus leitores sobre o que "está fora de
moda" e tem que ser descartado. Nosso mundo lembra cada vez mais
Leonia, a " cidade invisível" de ítalo Calvino, onde " não é tanto pelas
coisas que cada dia são fabricadas, vendidas, compradas que se pode
medir a opulência;... antes pelas coisas que cada dia são jogadas fora
para dar lugar ao novo". A alegria de "livrar-se de", de descartar e
de jogar fora é a verdadeira paixão do nosso mundo.
A habilidade de durar por muito tempo não depõe mais em favor
das coisas. Espera-se que coisas e vínculos sirvam apenas por um
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"tempo determinado" e que se possa destruí-los ou desembaraçar-se
deles uma vez ultrapassada sua utilidade - o que freqüentemente
ocorre. De maneira que as posses, sobretudo as duradouras, de que
não podemos nos desfazer facilmente, devem ser evitadas. O consu-
mismo de hoje não visa ao acúmulo de coisas, mas ao gozo fugaz que
elas propiciam. Porque, então, o conjunto dos conhecimentos obti-
dos, durante a estadia na escola e no colégio, deveria fugir à regra
universal? No torvelinho da mudança, o conhecimento serve para uso
imediato e único; conhecimento pronto-para-o-uso e imediatamente
disponível, do tipo prometido pelos programas de software, que
entram e saem das prateleiras das lojas em sucessão sempre acelera-
da, parece muito mais atraente.
Assim, a idéia de que a educação pode ser um "produto" a ser
adquirido e conservado encontra-se em declínio e, certamente, não
mais depõe em favor da educação institucionalizada. A fim de
convencer seus filhos da utilidade da aprendizagem, os pais e mães
de antigamente costumavam dizer que "o que você aprender jamais
lhe será tirado por quem quer que seja"; esta poderia ser uma
promessa encorajadora para seus filhos, mas pareceria uma perspec-
tiva horripilante para os jovens contemporâneos. Compromissos
tendem a se tornar um fardo, a não ser que exibam a cláusula: "até
maiores esclarecimentos". Em um número crescente de cidades
americanas, não se emitem licenças de construção sem as correspon-
dentes licenças de demolição, enquanto, recentemente, os generais
americanos opuseram-se ao engajamento de suas tropas até que um
plano de retirada convincente fosse elaborado.
O segundo desafio para as premissas básicas da educação vem da
natureza errática e essencialmente imprevisível da mudança contem-
porânea e acresce o poder do primeiro desafio. O conhecimento
sempre foi valorizado por sua fiel re-presentação do mundo; mas, e
se o mundo mudar de forma a desafiar continuamente a verdade do
conhecimento existente, constantemente surpreendendoaté as pes-
soas "mais bem informadas" ? Werner Jaeger, autor de uma análise
clássica das antigas raízes do conceito de pedagogia e aprendiza-
gem, acreditava que a idéia de educação (Bildung, formação) nasceu
de duas hipóteses gêmeas: a da ordem imutável do mundo, subj acente
a
toda superficial variedade da experiência humana, e a da natureza
ista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 49
similarmente eterna das leis que governam a natureza humana. A
primeira hipótese justificava a necessidade e os benefícios da trans-
missão do conhecimento de professores para alunos. A segunda
imbuía o professor com a autoconfiança necessária para gravar na
personalidade dos alunos, como o escultor no mármore, a forma que
presumia ser, para todo o sempre, justa, bela e boa - e, por estas
razões, virtuosa e nobre. Se as descobertas de Jaeger estão corretas
(e elas não foram refutadas), então "a educação tal qual a conhece-
mos" encontra-se em apuros - visto que hoje seria difícil sustentar
qualquer uma destas hipóteses e, mais ainda, considerá-las evidentes.
Diferindo do labirinto behaviorista, o mundo tal qual hoje se vive
assemelha-se mais a um aparelho para esquecer do que um lugar de
aprendizagem. Divisões podem ser, como no labirinto do laboratório,
impenetráveis -, montadas sobre giratórias e em constante movimen-
to, levam consigo as passagens testadas e exploradas de ontem.
Desgraça ao homem de memória persistente - pois as sendas confiá-
veis de ontem, pouco tempo depois, terminam em um muro ou em
areia movediça, assim como os padrões habituais, consagrados, de
comportamento começam a trazer desastres ao invés de sucesso. Em
semelhante mundo, a aprendizagem está fadada a perseguir, sem fim,
objetos eternamente indefiníveis que, além do mais, começam a se
desmanchar, quando apanhados. Uma vez que as recompensas por
uma boa ação tendem a mudar diariamente para diferentes lugares,
reforços podem, tanto desencaminhar, quanto ratificar: constituem
armadilhas contra as quais devemos nos acautelar e que devem ser
evitadas, uma vez que podem incutir hábitos e impulsos que, em
pouco tempo, revelam-se inúteis, quando não nocivos.
Como observou Ralph Waldo Emerson, há muito tempo atrás, ao
patinar sobre gelo fino, a salvação está na velocidade. Aqueles que
procuram a salvação deveriam ser aconselhados a moverem-se bas-
tante rapidamente para não sobrecarregarem a capacidade de resis-
tência de nenhum ponto. No mundo volátil da modernidade líquida,
no qual dificilmente alguma coisa preserva sua forma o tempo
necessário para garantir a verdade e gelatinizar-se em algo confiável
por muito tempo (de qualquer forma, não há como prever quando e
se jamais se gelatinizará e há pouca probabilidade de que jamais o
faça), andar é melhor do que sentar, correr é melhor do que andar, e
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surfar é ainda melhor do que correr. O surfse beneficia com a leveza
6 vivacidade do surfista; mais ainda se ele não for muito exigente
com as ondas que surgem em seu caminho, e estiver sempre pronto
a pôr de lado as preferências que lhe foram inculcadas.
Tudo isso vai contra a natureza daquilo que aprendizagem e
educação representaram ao longo de sua história. Afinal de contas,
elas foram feitas sob medida para um mundo durável, que se esperava
permanecesse durável e que se pretendia tornar mais durável ainda
do que havia sido até então. Nesse mundo, a memória era um ativo
que, quanto mais para trás alcançasse e durasse, mais valioso se
tornava. Hoje, uma memória tão solidamente fortalecida parece
potencialmente incapacitante em muitos casos, desencaminhadora
em muitos mais, inútil na maioria. É surpreendente observar até que
ponto a rápida e espetacular evolução dos servidores e das redes de
informática se deve aos problemas de desperdício no armazenamen-
to, na disponibilização e na reciclagem que os servidores prometiam
resolver; com o trabalho da memorização resultando em mais des-
perdício do que produtos úteis e sem dispor de um meio confiável
para decidir com antecipação quem é quem (quais produtos aparen-
temente úteis irão cair fora de moda e quais os que aparentemente
inúteis serão novamente procurados), a possibilidade de estocar toda
a informação em contêineres mantidos em distância segura dos
cérebros (onde a informação armazenada poderia, sub-repticiamente,
voltar a controlar o comportamento) era uma proposta oportuna,
tentadora.
Em nosso mundo volátil de mudanças instantâneas e erráticas, os
hábitos arraigados, as estruturas cognitivas sólidas e a preferência
por valores estáveis, objetivos últimos da educação ortodoxa, trans-
formaram-se em desvantagens. Pelo menos foram assim rejeitados
pelo mercado do conhecimento, para o qual (da mesma forma que
para qualquer outro mercado) toda a lealdade, vínculos irrompíveis
e compromissos de longo prazo são anátema - obstáculos a serem
eliminados do caminho. Passamos do labirinto imutável dos beha-
vioristas e das monótonas rotinas pavlovianas para o mercado aberto,
°nde tudo pode acontecer a qualquer momento, mas nada é feito de
urna vez por todas e onde lances de sucesso são questão de sorte e de
forma alguma garantem sucesso, se repetidos. O ponto a relembrar e
Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 51
a considerar em todas as suas conseqüências é o fato de que, em nossa
época, o mercado e o copleat mappa mundi et vitae se sobrepõem.
Como Dany-Robert Dufour observou recentemente - "o capitalis-
mo sonha não apenas em ampliar o território no qual cada objeto é
uma mercadoria (direito de águas, direito de genoma, de espécies
vivas, bebês, órgãos humanos ...) aos limites do globo, mas igual-
mente expandi-lo em profundidade, de maneira a recobrir questões
outrora privadas, deixadas a cargo do indivíduo (subjetividade, se-
xualidade ...), mas que agora são incluídas entre as mercadorias".
Desta forma, somos todos, na maior parte do tempo e qualquer que
sejam nossas preocupações momentâneas, engana-gatas expostos a
sinais conflitantes e confusos. A conduta bizarra do engana-gata
macho, inseguro sobre os limites que separam o comportamento
padrão do contraditório, vem rapidamente se transformando na con-
duta mais comum de homens e mulheres. As respostas tendem a ser
tão confusas quanto os sinais. Na ausência de precedentes confiáveis
e de padrões de conduta testados, as respostas seguem o método
tentativa-e-erro. Mal saímos de uma enrascada (geralmente à manei-
ra do Barão de Münchhausen - pelo cadarço das botas), já entramos
em outra. Não aprendemos muito neste processo, a não ser a neces-
sidade de prepararmo-nos para situações ainda mais dúbias e arris-
cadas e de arcarmos com as conseqüências de novos passos em falso.
"Você vale tanto quanto o seu último sucesso" - essa é a sabedoria
da vida, num mundo onde as regras mudam durante o jogo e onde
poucas, para não dizer nenhuma, retém seu valor depois de aprendi-
das ou memorizadas. Taxas de sucesso obtido em resposta à apren-
dizagem, ao treinamento e à rotina caem rapidamente; hoje a pala-
vra-chave é 'flexibilidade'. A habilidade de se abandonar hábitos do
presente com rapidez torna-se mais importante do que a aprendiza-
gem de novos hábitos. Somos todos pressionados a praticar, como
norma, o estilo de vida que Soeren Kierkegaard, dois séculos atrás,
considerou patológico em Dom Giovanni: 'acabar rápido e começar
do começo'.
O problema é que pouco ou quase nada pode ser feito tão-somente
pela reforma, mesmo que engenhosa e completa, das estratégias
educacionais. A responsabilidade sobre a difícil situação do engana-
gata ou sobre a súbita atração da estratégia de vida de Dom Giovanni,
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•fl^ F
não pode ser atribuída aos educadores, jogando sobre eles a culpa ou
a negligência. Foi o mundo do lado de fora da escola que cresceu
muito diferentedo tipo de mundo para o qual as escolas, como
descritas por Myers ou Jaeger, costumavam preparar seus alunos.
Neste novo mundo, espera-se dos humanos que eles procurem solu-
ções privadas para os problemas gerados pela sociedade, e não que
eles procurem soluções sociais para os problemas de origem privada.
Durante a fase sólida da história moderna, a norma das ações
humanas era emular tanto quanto possível o padrão do labirinto
behaviorista, no qual a distinção entre o itinerário certo e o errado
era clara e permanente, de modo que aqueles que perdiam ou rejei-
tavam os caminhos seguros eram, invariável e imediatamente, puni-
dos e aqueles que os seguiam, obediente e prontamente, eram recom-
pensados. Fábricas maciçamente 'fordistas' e exércitos recrutados
em massa, os dois maiores braços do poder 'pan-óptico', constituí-
ram as realizações mais acabadas da tendência à rotinização dos
estímulos e das respostas. A 'dominação' consistia no direito de
impor regras inquebráveis, supervisionar sua implementação, sub-
meter aqueles obrigados a obedecer às regras à contínua vigilância,
trazer os desviados de volta à linha ou expulsá-los, se o esforço de
recuperação fracassasse. Esse padrão de dominação requeria o enga-
jamento mútuo e constante de dirigentes e dirigidos. Em toda estru-
tura pan-óptica havia um Pavlov que determinava a seqüência dos
movimentos e velava por sua monótona repetição, imune a toda
pressão contrária, presente ou futura. Com os designers e superviso-
res dos pan-ópticos garantindo a durabilidade das estruturas e a
repetição das situações e escolhas, valia a pena aprender as regras de
cor e reformulá-las em hábitos profundamente arraigados e seguidos
automaticamente. A modernidade sólida foi, na verdade, a era que
mais se aproximou dessas estruturas duráveis, fortemente dirigidas
e vigiadas.
No estágio 'líquido' da modernidade, declina rapidamente a de-
manda pelas funções ortodoxas da direção. O domínio pode ser ganho
e
assegurado com muito menos dispêndio de esforço, tempo e dinhei-
ro: mediante a ameaça de des-engajamento ou da recusa de engajar,
&o invés do controle e vigilância inoportunos. A ameaça de desenga-
jamento faz com que o onusprobandi recaia sobre o outro lado, o do
Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 53
dominado. Cabe agora ao subordinado adotar um comportamento
positivo aos olhos de seus superiores e induzi-los a 'comprar' seus
serviços e seus 'produtos' individualizados - da mesma forma que
outros produtores e negociantes levam seus prováveis clientes a
desejarem as mercadorias postas à venda. 'Seguir a rotina' não seria
suficiente para alcançar este propósito. Como descobriram Luc Bol-
tanski e Ève Chiapello, quem pretende vencer, no atual arranjo que
substituiu o 'labirinto de ratos' do antigo sistema de emprego, precisa
demonstrar capacidade de convívio e habilidade para se comunicar,
abertura e curiosidade - pondo à venda a sua própria pessoa, toda a
sua pessoa, como um valor único e insubstituível, que realçaria a
qualidade da equipe. Cabe agora ao atual ou eventual empregado
'monitorar-se' a fim de ter certeza de que a sua performance é
convincente e capaz de ser aprovada - e continuar a ser aprovada no
caso do gosto dos espectadores mudar; não cabendo mais aos chefes
reprimir as idiossincrasias de seus funcionários, de homogeneizar sua
conduta e de encerrar suas ações no rígido esquema da rotina.
A receita do sucesso é 'ser você mesmo', não 'ser como o resto'.
E a diferença, não a igualdade que vende melhor. Ter conhecimentos
ou habilidades 'adequados ao cargo' e exibidos por outros que já o
exerceram antes, ou que estão se candidatando agora, não seria
suficiente; provavelmente seria considerado desvantagem. Idéias
inusitadas, projetos excepcionais jamais sugeridos antes, e, acima de
tudo, a inclinação felina para trilhar seus próprios caminhos solitá-
rios, eis o que hoje é necessário. Virtudes como essas não são
encontradas nem aprendidas nos livros (com exceção dos manuais
cada vez mais numerosos que ensinam a desafiar o conhecimento e
a sabedoria recebidos e a reunir coragem para ir à luta sozinho). Por
definição, tais virtudes devem ser desenvolvidas 'de dentro', deixan-
do-se livre e expandindo-se as 'forças interiores', supostamente
escondidas na personalidade e aguardando serem despertas e postas
em ação.
Este é o tipo de conhecimento (ou melhor inspiração) cobiçado
por homens e mulheres dos tempos da modernidade líquida. Eles
preferem conselheiros que mostram como andar a professores que
asseguram que uma única estrada, já congestionada, seja seguida. Os
conselheiros que eles desejam, e pelos serviços dos quais estão
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dispostos a pagar qualquer preço, devem e precisam ajudá-los a cavar
as profundezas de seu caráter e personalidades, onde ricos depósitos
de' minerais preciosos supostamente jazem clamando para serem
escavados. Os conselheiros provavelmente repreenderiam os clientes
por preguiça ou negligência, não por ignorância; ofereceriam o saber
fazen ser ou vzver n^° ° 'saoer' que os educadores ortodoxos preten-
diam divulgar e eram bons em transmitir aos seus alunos. Ó atual
culto da 'educação por toda a vida' está parcialmente centrado na
necessidade de se aprimorar o 'state of art' da informação profissio-
nal - mas, em uma parte igual ou ainda maior, deve sua popularidade
à convicção de que a mina da personalidade jamais se exaure e que
os mestres espirituais, que sabem como atingir os depósitos ainda
inexplorados, que os outros guias não lograram alcançar ou subesti-
maram, ainda estão por serem encontrados - e serão encontrados com
o devido esforço e dinheiro suficiente para pagar por seus serviços.
A marcha triunfante do conhecimento através do mundo habitado
(vivido) por homens e mulheres modernos avançou em duas frentes.
Na primeira, novos e ainda inexplorados territórios do mundo foram
invadidos, capturados, domesticados e mapeados. O império erigido
graças ao avanço da primeira frente foi o da informação voltada para
a representação do mundo: no momento da representação, a parte do
mundo representada era dada por conquistada e reclamada para os
humanos. A segunda frente foi a da educação: progrediu pela expan-
são do cânone do 'homem educado' e pelo aumento de suas capaci-
dades perceptivas e de memorização. Em ambas as frentes, a 'linha
de chegada' do avanço - o fim da guerra - foi claramente visualizada
desde o início: todos os pontos vazios serão preenchidos um dia, um
complete tnappa mundi desenhado, e toda a informação necessária
para a livre locomoção através do mundo mapeado se tornará dispo-
nível para os membros da espécie humana mediante a provisão do
número necessário dos canais de transmissão da educação.
Enquanto a guerra avançava e a crônica das batalhas vitoriosas
tornava-se mais extensa, a 'linha de chegada' parecia, contudo,
recuar. Hoje estamos inclinados a crer que a guerra era e permanece
invencível, em ambas as frentes.
Para começar, mapear cada um dos territórios recentemente con-
quistados parecia ampliar, ao invés de diminuir, o tamanho e o
Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 55
número dos espaços vazios, e, portanto, o momento de desenhar um
complete mappa mundi não parece mais iminente. Por outro lado, o
mundo 'lá fora', que um dia se pretendeu encarcerar e imobilizar no
ato da representação, hoje parece se desvanecer em todas as formas
registradas; um jogador (certamente habilidoso e sagaz) no jogo da
verdade, ao invés da 'bolada', do prêmio que os jogadores humanos
esperavam partilhar. Na vivida descrição de Paul Virilio, " o mundo
de hoje não tem mais nenhuma forma de estabilidade; é mutável,
indeciso, deslizando o tempo todo".
Notícias ainda mais originais chegam da segunda frente da educa-
ção: a da distribuição do conhecimento. Para citar Virílioainda uma
vez mais7 - "O desconhecido mudou de posição: do mundo, por
demais vasto, misterioso e selvagem" para a "galáxia nebulosa da
imagem". Os exploradores sequiosos de examinar a galáxia em sua
inteireza são poucos e dispersos, e os verdadeiramente capazes de
fazê-lo são ainda mais raros ... 'Cientistas, artistas, filósofos ... nos
encontramos em um tipo de "nova aliança" para a exploração [desta
galáxia]" - um tipo de aliança na qual as pessoas comuns deveriam
abandonar a esperança de ingressar. A galáxia é, pura e simplesmen-
te, in-assimilável. Não tanto o mundo de que fala a informação, mas
a informação em si mesma tornou-se o primeiro lugar do 'desconhe-
cido'. É a informação que parece "por demais vasta, misteriosa,
selvagem". É o volume gigantesco da informação disputando aten-
ção que os homens e mulheres comuns de hoje sentem como consi-
deravelmente mais ameaçador do que os poucos 'mistérios do uni-
verso' remanescentes, que interessam somente a um pequeno número
de aficionados pela ciência e a um grupo ainda mais restrito de
concorrentes ao prêmio Nobel.
Todas as coisas desconhecidas parecem ameaçadoras, mas desen-
cadeiam reações diferentes. Os espaços vazios no mapa do universo
despertam a curiosidade, incitam à ação e dão determinação, coragem
e confiança ao aventureiro. Eles prometem uma vida de descobertas
interessantes, auguram um futuro melhor, liberto de cada um dos
empecilhos que envenenam a vida. Com a massa impenetrável de
informação é diferente: ela está toda aqui, disponível nesse minuto e
a nosso alcance, e, ao mesmo tempo, insultante, enfurecedoramente
distante, obstinadamente estranha, além da esperança de jamais ser
56 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002
alcançada. O futuro não é mais um tempo que se espera: isso apenas
arnpliará os problemas atuais, fazendo crescer exponencialmente a
massa já estultificante e sufocante do conhecimento, bloqueando a
salvação que sedutoramente oferece. A própria massa de conheci-
mento oferecida constitui o maior obstáculo para a aceitação da
oferta. Constitui, igualmente, a maior ameaça para a confiança:
certamente deve existir em algum lugar, nesta massa terrível de
informação, uma resposta para todos os problemas que nos assom-
bram, e, desta forma, se as soluções não forem encontradas, imediata
e conseqüentemente sobrevêm a autodepreciação e a autoderrisão.
É a massa de conhecimento acumulado que se tornou o epítome
contemporâneo da desordem e do caos. Nesta massa, todas as estra-
tégias ortodoxas de organização - a relevância dos tópicos, a atribui-
ção de importância, a necessidade determinada pela utilidade e a
autoridade determinada pelo valor - foram progressivamente rebai-
xadas e dissolvidas. A massa faz seus integrantes parecerem unifor-
memente incolores. Nela, todos os bites de informação fluem com a
mesma gravidade específica - e para as pessoas a quem se nega o
direito de reclamar reconhecimento para os seus julgamentos, mas
são bombardeadas pelas correntes cruzadas das reivindicações diver-
gentes dos especialistas, não há como separar o joio do trigo.
Na massa, a parcela de conhecimento separada para consumo e
uso pessoal somente pode ser avaliada por sua quantidade; não há
como comparar sua qualidade com o resto da massa. Um bit de
informação é igual a outro. Os programas de perguntas e respostas
na TV refletem fielmente esta nova aparência do conhecimento
humano: para cada resposta certa o mesmo número de pontos é dado
ao participante, independentemente do tema da questão.
Atribuir importância a vários bits de informação, e, mais ainda,
atribuir a uns mais importância que a outros, é talvez a mais embaraçosa
das tarefas e a mais difícil decisão a ser tomada. A única regra a servir
de guia é a momentânea relevância do assunto - mas a relevância muda
de um momento para o outro e os bits assimilados perdem sua signifi-
cância tão logo usados. Assim como outras mercadorias no comércio,
eles são para consumo imediato, no local e descartáveis.
A educação assumiu muitas formas no passado e provou ser capaz
de ajustar-se às circunstâncias cambiantes, estabelecendo novas me-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 57
tas e desenvolvendo novas estratégias. Devo, contudo, repetir - a
mudança atual não é como as anteriores. Em nenhum outro momento
decisivo da história, os educadores foram confrontados com um
desafio realmente comparável ao que o divisor de águas contempo-
râneo apresenta. Simplesmente, jamais estivemos nesta situação
antes. A arte de viver em um mundo supersaturado de informação
ainda está por ser aprendida. Da mesma forma que a arte, ainda mais
difícil, de preparar a humanidade para essa vida.
Notas
1
Edward D. Myers. Education in the Perspective ofHistory. New York:
Harper, 1960, pp. 262.
2
Richard Sennett. The Corrosion ofCharacter. London: W. W. Norton,
1998, p. 62.
3
Werner Jaeger. Paidea, Die Formung dês griechischen Menschen.
Berlin: Walterde Gruyter, 1958.
4
Dany-Robert Dufour. "Malaise dans 1'éducation", in: Lê Monde
Diplomatique, novembre 2001, p. 11.
5
Luc Boltanski e Ève Chiapello. Lê nouvel esprit du capitalisme. Paris:
Gallimard, 1999, p. 171.
6
'From modernism to hypermodernism and beyond', in: Virílio Live:
Selected Interviews, edited by John Armitage, London, Sage, 2001,
p. 40.
7
Entrevista com Jérôme Sans, in: ibid., p. 118.
(Traduzido do original inglês por Claudius B. G. Waddington)
SOCIEDADE DE INICIAÇÃO, SOCIEDADE ERUDITA E
SOCIEDADE DO SABER
Harrís Memel-Fote
(Universidade de Abidjan)
Conhecimento e saber
Conhecer e saber, enquanto dimensões estruturais de toda vida
individual e de toda gestão coletiva da sociedade, pressupõem insti-
tuições de formação, práticas discursivas e uma atividade social de
apropriação intelectual do mundo.
Se o conhecimento, noção um tanto ambígua em língua francesa,
consiste em uma atividade social de apropriação individual e objetiva
das coisas, o saber, na medida em que é resultado desta atividade,
parece ser mais impessoal e mais geral. A arqueologia das ciências
humanas o define como um domínio, objeto da prática discursiva,
como um espaço no qual o sujeito pode tomar posição para falar de
seus objetos, como um campo de coordenação e de subordinação dos
enunciados, como possibilidades de utilização e de apropriação
oferecidas pelos discursos. O saber pode determinar o conhecimento,
assim como pode ser a resultante ou o produto desse conhecimento.
Podem-se distinguir, neste caso, três grandes tipos de saberes: um
saber pré-moderno, de caráter mais ou menos metafísico e religioso,
wn saber moderno e um saber pós-moderno de cunho científico e
filosófico.
Ora, em todas as sociedades humanas conhecidas, existem três
traços caracterizando o conhecimento. Em princípio, neles se mani-
festam várias formas e vários modos de conhecimento; depois, uma
58 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:41/58, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002 59
hierarquia organiza estas formas; por fim, estas formas evoluem no
sentido do predomínio de uma forma sobre as outras.
Esta característica antropológica é bem ilustrada pelas sociedades
do Terceiro Mundo, em geral, e pelas sociedades da África contem-
porânea, em particular. Em todos estes casos, o primeiro problema é
o de saber que formas de conhecimento são, nesse caso, identificá-
veis; o segundo problema diz respeito à hierarquia que ordena estas
formas e à significação desta hierarquia; o terceiro problema tem a
ver, de um lado, com a forma dominante do conhecimento e, de outro,
com a diferença existente entre esta forma de conhecimento e a
sociedade do saber, horizonte da UNESCO e sonho dos homens
livres.
A ciência
Enquanto a iniciação é a aquisição de um conhecimento mais ou
menos sagrado, a ciência, em sua forma moderna, é uma atividade
social profana,objetiva e experimental que, progressivamente, pas-
sa do domínio ideal - objeto das ciências exatas - para a natureza,
a sociedade, a cultura, o homem. Ela é contemporânea das grandes
mutações históricas, dentro da ordem moral (ordem relativa aos
direitos e aos deveres da pessoa humana), da ordem política (ordem
relativa à organização da cidade e à democracia) e da ordem social
e econômica (ordem relativa às relações de produção, ao trabalho e
à divisão de riquezas).
As formas identificáveis de conhecimento
Em níveis diversos, todas as formas de conhecimento reconheci-
das na experiência humana podem ser encontradas nas sociedades da
África contemporânea.
- a iniciação através das sociedades de iniciação;
- a ciência através das sociedades eruditas e das Universidades;
- a filosofia através das mesmas instituições;
- a técnica científica através da sociedade industrial;
- o saber através da sociedade pós-industrial.
A iniciação
Antes de tudo, a iniciação é uma instituição de formação, domi-
nante em todos os tipos de sociedades antigas: na África, na Europa,
na Ásia, no Pacífico. Depois, a iniciação que introduz o neófito no
campo do conhecimento esotérico pressupõe segredo. Esta é a razão
pela qual o estudo das sociedades secretas, ou o estudo dos ritos
secretos, é sinônimo do estudo de iniciação; enfim, este modo de
revelação, que recapitula a história sagrada da tribo e do mundo, é
também a iniciação perpétua das desigualdades sociais, assegurando
aos iniciados certo poder dentro de suas sociedades, graças à apro-
priação e à manipulação de um saber e de um saber-fazer.
60 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002
A filosofia
Na medida em que é um saber racional, atribuindo sentido ao
mundo e à existência humana, a filosofia tem acompanhado o desen-
volvimento da ciência moderna. Como esta última, ela se distribui
segundo seus objetos: filosofia matemática, filosofia biológica, filo-
sofia social, etc.
A técnica científica
Na sociedade industrial, a técnica, ordem das competências, vin-
culou-se à atividade científica, ampliou-se e desenvolveu-se por
todos os domínios: agricultura, recursos hídricos, fauna, comércio,
jogos, cultura, etc.
A hierarquia relativa
Entendo por hierarquia a ordem de predomínio social na qual
aparecem e se ordenam as formas de conhecimento. Este predo-
mínio pode ser sociológico, quando a forma de conhecimento se
exerce, seja por meio de grande massa de atores na sociedade
global, seja por um grupo que domina o conjunto da sociedade,
segundo o critério de eficácia técnica ou política. Esta preponde-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002
61
rância pode ser também temporal, isto é, histórica, segundo se
considere a cronologia das formas de conhecimento, ou prospectiva,
na medida em que os homens apostem no futuro da sociedade para
determinar e informar a atualidade do presente.
Nessas duas acepções, podemos distinguir:
- uma hierarquia avançada nas sociedade pós-industriais;
- uma hierarquia inacabada nas sociedades pré ou proto-indus-
triais.
Ambas as hierarquias são consideradas relativas no sentido de que,
na história contemporânea, não estão definitivamente fixadas e po-
dem evoluir, passando de uma forma de conhecimento para outra,
segundo o predomínio na sociedade.
a) A hierarquia avançada
A hierarquização nas sociedades contemporâneas, industriais
e democráticas,é de tal ordem que os conhecimentos são nela
compartilhados por grande número de pessoas, aproximando-se
da experiência vital. Na Europa ocidental contemporânea, existe
verdadeiramente um conhecimento fundado na iniciação. A fran-
co-maçonaria, que tem raízes até na tradição egípcia, e a rosa-
cruz ainda fazem sucesso, mesmo não sendo predominantes na
sociedade. É nesta mesma Europa que todas as ciências moder-
nas, ciências exatas e naturais, ciências humanas e sociais, vie-
ram a lume, desenvolveram-se em centenas de universidades e
centros de pesquisas, difundiram-se por todo o ecúmeno. É assim
que as sociedades eruditas nasceram e floresceram, ou sob a
forma de escolas profissionais superiores, ou sob a forma de
academias, no sentido teórico. Aqui, nas sociedades democráti-
cas, encontra-se o epicentro do saber filosófico moderno. Aqui,
a industrialização floresceu e atingiu seu paroxismo com os
danos multiformes infligidos ao meio ambiente e as ameaças de
desumanização do homem. Estas conseqüências são de tal monta
que a industrialização sofreu, por sua vez, o impacto da crítica
radical, bem como a revolução dos ecologistas: é desta experiên-
cia pós-industrial na Europa Ocidental que nasceu o programa
avançado de uma sociedade do saber.
62 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002
\j) A hierarquia inacabada
Nas sociedades do Terceiro Mundo, em geral, e nas sociedades da
África contemporânea em particular, o objetivo predominante, hoje,
é a busca da técnica científica, expressão da sociedade industrial.
A iniciação
Se, antes das colonizações, a iniciação dominou as sociedades
como principal modo de formação, hoje isto já não acontece. Sem
dúvida, isto existe ainda, nos meios rurais, porém de modo precário:
primeiro, em razão do êxodo rural, que reduz parte da população,
segundo, pela deportação da cultura que constituiu uma espécie de
escola de inspiração colonial. Na medida em que estas sociedades
estão, total e definitivamente, dissolvidas, pode-se ainda encontrar,
como exceção, no meio rural, as mesmas estruturas de formação que
havia no passado. É o caso dos Bambara e Malinke, o n'domo dos
não circuncidados, o komo dos circuncidados, o korê dos iniciados.
Esta formação, destinada a arrancar o ser humano de sua animalidade
para elevá-lo à dignidade de pessoa consumada no e pelo conhecimento
de Deus, consiste numa pedagogia progressiva, cada vez mais intrqje-
tada, pela qual a pessoa humana começa por familiarizar-se com as
significações de seu próprio corpo, conhece, depois, a morte e uma
ressurreição simbólicas, constrói, por fim, sua figura física, sua perso-
nalidade moral, intelectual, política e espiritual, construindo, ao mesmo
tempo, seu espaço vital, isto é, o mundo que a cerca e do onde se torna
um microcosmo. A ética e a moral social, a educação física e a formação
paramilitar, a educação sexual, a educação cívica e religiosa concorrem
para a edificação conjunta da humanidade, do ecúmeno e do cosmos.
Hoje, esta formação está subordinada àquela que se adquiriu na
escola, na universidade e no exército nacional.
A ciência
As ciências modernas, perfeitamente adaptadas aos processos de
colonização, prosperam nas universidades e nos centros de pesquisas,
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002 63
na medida em que são estruturas principalmente urbanas. Na África
contemporânea, é de tal ordem o atraso do desenvolvimento cientí-
fico, que existe não mais do que uma dezena de academias, no sentido
formal, nos cinqüenta e três Estados independentes. Na Costa do
Marfim, esta instituição que, na verdade, deve fazer a síntese das
ciências, das artes e da cultura só existirá em 2002. Isto significa que
a ciência só funciona para uma elite de letrados e a expensas de uma
economia voltada para o exterior.
Como as ciências, a filosofia moderna, que se difundiu com a
colonização, não é mais um fenômeno de massa, tanto mais que seu
exercício é ainda mais limitado, nos locais de produção restrita do
conhecimento e no espaço social em geral.
A técnica científica
Em relação ao frágil desenvolvimento das ciências, é claro que a
técnica científica, expressão da sociedade industrial, é subdesenvol-
vida nas sociedades africanas, salvo exceção. Todavia, o anseio pelo
desenvolvimento, que é, ao mesmo tempo, anseio de emancipação e
de independência, determinou, como projeto não completamente
realizado, a sociedade industrial.
Sociedade industriale sociedade do saber
Que diferenças existem entre a sociedade do saber e a sociedade
industrial, projeto do Terceiro Mundo em geral e da África em
particular?
Comecemos por eliminar, antes de tudo, uma ambigüidade relativa
à noção de sociedade. No caso da sociedade de iniciação e da
sociedade erudita, esta noção nos remete a grupos elementares,
constitutivos da sociedade global. Contrariamente, no caso da socie-
dade industrial e da sociedade do saber, a noção se refere à sociedade
global.
Porém, enquanto a idéia de industria amplia, implicitamente, o que
se entende por ciência e, explicitamente, o de técnica cientifica em
todos os domínios - economia, sociedade, política, cultura - o saber
64 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002
de que se trata ~ ° saber tal e qual - se reporta, explicitamente, de
uin lado, à ciência e à filosofia modernas e, de outro, à era pós-in-
dustrial.
Do mesmo modo que na sociedade industrial, ao lado dos empre-
sários, dos engenheiros, dos operários especializados e dos trabalha-
dores informais, a grande massa é consumidora de todos os produtos
da indústria. Também na sociedade do saber, a grande massa dos
atores sociais consome o saber que os sábios, os filósofos, os escri-
tores, os artistas, os adivinhos e os profetas produzem.
Se as sociedades africanas ainda não alcançaram inteiramente as
ciências modernas e as técnicas científicas (em resumo: a era indus-
trial) afortiorí elas alcançaram a sociedade do saber. Estas socieda-
des compartilham, a despeito de tudo, com as sociedades industriais,
uma elite de técnicos, como dividem com a sociedade do saber uma
elite intelectual. Esta elite é seguramente uma ponte entre o passado
da sociedade africana e seu horizonte imediato, que é a sociedade
industrial e seu horizonte mais remoto: a sociedade do saber.
As características desta sociedade do saber parecem ser, pelo
menos, de quatro tipos: em primeiro lugar, a importância atribuída
ao plano social e político do saber que convém ao século XXI e aos
produtores deste saber. Em segundo lugar, a paz duradoura, necessá-
ria à elaboração e ao usufruto deste saber. Em terceiro lugar, a
solidariedade que beneficia todos os grupos, no interior de uma
sociedade, e todos os povos do ecúmeno, com um saber elaborado
por um ou por alguns dentre eles. Em quarto lugar, a sabedoria que
pacifica e regula os três sentidos do conceito, a saber: discernimento
(sentido teórico), virtude ou excelência (sentido ético) e performance
(sentido técnico).
*
* *
O interesse de uma sociedade do saber é sobretudo teórico. Com
efeito, ele diz respeito tanto à natureza da sociedade e à natureza do
Saber, quanto ao modo de aquisição deste mesmo saber.
A juízo nosso, a idéia de uma sociedade do saber só é legítima no
contexto de uma sociedade democrática, familiarizada com o conhe-
vista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002 65
cimento científico moderno, ligada ao progresso e à prosperidade
industrial, tanto quanto à idéia de uma relatividade humana relacio-
nada a este progresso e a esta prosperidade.
Se hoje a questão se coloca na sociedade do saber, é precisamente
porque o conceito é difícil de ser pensado dentro desta quádrupla
articulação.
Entretanto, os elementos constitutivos deste tipo de sociedade
estão em seu início nos grupos sociais existentes. Ao norte, é a
invenção da república democrática como sistema aberto, incluindo a
liberdade, igualdade e fraternidade como valores de salvação indivi-
dual e coletiva, sistema que reduz, cada vez mais, à sua expressão
mais simples, a instituição monárquica. É a invenção das formas
experimentais da ciência que reduz, à sua expressão mais simples, a
instituição iniciática. É o desenvolvimento de uma industrialização
total e sistemática, cujos efeitos negativos, prematuramente, deni-
grem o fenômeno, seja na condição de ideologia dos ecologistas, seja
como filosofia da comunicação... Ao sul, estes elementos de moder-
nização apresentam três características principais. Num sentido,
coexistem, mesmo não tendo a mesma idade. Em seguida, o objeto
de sua aspiração atual, a industrialização, não está ainda consolidado
e ainda resta um sonho para algumas gerações.
Entretanto, a elite intelectual do sul permanece exatamente como
uma ponte entre a sociedade do saber e as sociedades contemporâ-
neas, tanto do norte quanto do próprio sul. Na sociedade do saber há
apenas um interesse teórico, que ela assume como medida, mas que
é também um interesse prático: é na ação histórica que os povos do
sul suprirão as lacunas ou os vazios que os separam, tanto da
sociedade industrial, quanto da sociedade do saber...
(Tradução do original francês por Carlos Sepúlveda)
66 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 59/66, jan.-mar., 2002
DEMOCRACIA DES-REALIZADA
Homi K. Bhabha
Estamos testemunhando a globalização da economia?
Certamente.
A globalização das artimanhas políticas? Sem dúvida.
Mas a universalização da consciência política: claro
que não.
Michel FOUCAULT, in Por uma ética do desconforto.
(1979)
As imagens de morte, destruição e pavor que invadiram nossos
lares em 11 de setembro, deixaram-nos com a certeza de que aquelas
cenas inacreditáveis fazem parte de um universo moral alheio ao
nosso; atos perpetrados por um povo estrangeiro, que tocaram cada
fibra de nosso ser. Mas a CNN tinha uma história muito bem
comportada para contar. Enquanto os créditos das notícias pululavam
enlouquecidos, de um inferno na torre para o outro, a barra de
notícias, na base da telinha, divulgava, em seu estilo nervoso, a
chamada dos bravos e dos mortos, como se fosse um filme de
Hollywood - filmes que já narraram esta mesma história e, de novo,
surpreendentemente, filmes que começaram a contar tudo outra vez.
O que era apenas cinema de ação, como tantas e tantas vezes, acabou
virando ato de guerra. O filme é diferente, mas a mise-en-scène é a
mesma.
Não pretendo implodir Hollywood, nem expressar meu descon-
forto com a violência da mídia. Não estou, tampouco, sugerindo,
Pretensiosamente, que a arte imita a vida, porque isto só acontece
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 67
raramente. Escolhi começar com o gênero global dos filmes de ação
sobre terrorismo, a fim de pôr em questão a ampla circulação das
certezas culturais que cercaram aqueles eventos mortais.
A história limitada e sitiada por um choque de civilizações é
sempre convocada para justificar a destruição indiscriminada de civis
que são suspeitos, em razão de sua cultura (considerada uma segunda
natureza), imediatamente culpada por causa de suas tradições e
temperamento. Somente as sociedades do Norte e do Sul, do Leste e
do Oeste, que asseguram a mais ampla participação democrática e
proteção de seus cidadãos - tanto para as maiorias quanto para as
minorias - estão em condições de tomar as difíceis decisões que as
guerras justas necessitam. Confrontar o terror a partir de um senso
de solidariedade democrática, e não da simples retaliação, nos dá
alguma pálida esperança de futuro. Esperança que deveria ser capaz
de estabelecer a visão de uma sociedade global, constituída pelas
liberdades civis e pelos direitos humanos, que trazem consigo obri-
gações compartilhadas e responsabilidades de cidadania, comuns e
solidárias.
O argumento civilizacional é menos visível, mas não menos
insidioso em tempos de paz e prosperidade. A defesa do mundo
ocidental civilizado está construída em consonância com o que John
Gray, o especialista britânico em filosofia política, descreve como a
prioridade em proteger uma civilização burguesa preservada. Por
exemplo, Falso Crepúsculo, as desilusões do capitalismo global, a
inspirada catilinária de John Gray contra a tirania do mercado global
americano, lamenta a perda de um edênico ocidente preservado na
civilização burguesa, agora refém do grande Anarca Americano, em
cujastetas pouco confiáveis os combalidos tigres asiáticos ainda
sugam. Gray argumenta que, com a globalização do mundo, uma
contradição emergiu entre as precondições de uma civilização bur-
guesa preservada e os imperativos do capitalismo global... No fim
das contas, contrastes reconhecidos entre a vida da classe média e
do operariado perderam sua realidade. A tendência do pós-guerra
ao aburguesamento está se revertendo e as pessoas da classe operá-
ria estão sendo, em certo nível, reproletarizadas.
Retomando a questão da contradição global no que se refere ao
problema da moral em uma civilização burguesa preservada, Gray
68 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002
sugere que o problema crítico reside no nível das origens cultural/ci-
vilizacional. É essa perspectiva, na contabilidade do titânico choque
de civilizações, que caracteriza este choque como uma margem
eurocêntrica desconfortável. A aurora dos mercados globais acelera
o processo através do qual os Estados Unidos cessam de ser umpais
europeu ocidental. No extremo oposto do mundo, habitam os mer-
cados globais asiáticos, anárquicos, e as economias dos Tigres que
destroem os velhos capitalismos e dão origem a outros, enquanto
sujeitam tudo a uma instabilidade incessante. Embora as instituições
asiáticas tenham sido modernizadas (ou ocidentalizadas) durante
séculos, gerando seu próprio sentido de esferas públicas alternativas
ou contramodernas, Gray desenha os problemas intratáveis dos
mercados asiáticos como parte de um mundo cinzento da sociedade
privada da Ásia, não inteiramente social, não-ainda civil, instituições
de âmbito amplamente sociais e culturais cujas práticas estão satu-
radas com a história local e o conhecimento tradicional... Tendo a
história como nosso guia... os capitalismos asiáticos emergem das
crises correntes imprevisivelmente alteradas, mais do que recons-
truídos a partir do modelo ocidental. Porém, mesmo se os capitalis-
mos asiáticos convergissem com os do ocidente, seria dentro de um
processo traumático que envolveria mudanças culturais e políticas
por várias gerações.
Histórias de quem? Que tipos de entendimento e de crítica cultural
podemos convocar neste hora comum de nossas necessidades? Por
muito tempo argumentei que, quando frente a frente com crises de
progresso e riscos para a democracia, aprendemos melhor nossas
lições de igualdade e justiça com os que estão à margem, dos povos
que colheram o fruto amargo do liberalismo em seu projeto de
colonização e escravização, do que com as nações imperialistas e
estados soberanos que se autoproclamam berços da Democracia.
A crise da democracia, posta em termos de seus ideais não reali-
zados, não põe em questão, de maneira adequada, o fracasso de suas
promessas. Pequenos acidentes de percurso são freqüentemente uma
necessidade estratégica para o discurso da democracia, que reconhe-
ce o fracasso como um capítulo de sua narrativa utópica e evolutiva.
A argumentação é mais ou menos a seguinte: falhamos porque somos
mortais e porque temos senso histórico; a crença na democracia
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 69
reside, não na perfeição, mas em nossa perseverança e progresso, em
nosso compromisso de construir ideais elevados para nós mesmos e
lutar nessa direção para rever e reformatar o melhor de nós mesmos.
Tal dialética interna entre o não-realizado e o utópico reconhece o
exemplo negativo do fracasso apenas para fornecer uma estranha
coerência moral e consolação para si próprio.
Gostaria, então, de propor que consideremos democracia como
algo des-realizado, e não irrealizado. Utilizo des-realização no sen-
tido do conceito de distanciamento, segundo Bertold Brecht: uma
distância crítica ou alienação desvelada no início da nomeação da
construção da experiência democrática e suas expressões de igualda-
de. Também utilizo des-realização no sentido surrealista, isto é,
situar um objeto, idéia, imagem ou gesto num contexto que não lhe
é próprio, com o propósito de desfamiliarizá-lo, para frustrar sua
referência naturalística ou normativa e examinar que potencial ou
idéia ou insight pode ter como tradução,tanto no sentido de gênero
e geopolítica, quanto no de território e temporalidade. Se pretende-
mos uma democracia des-realizada, desfamiliarizando sua história
ou projeto político, reconhecemos, não o fracasso, mas sua fragilida-
de, suas margens desgastadas e limites que impõem sua vontade de
inclusão e exclusão sobre os que são considerados - no campo da
raça, cultura, gênero ou classe - indignos de processo democrático.
Nesses tempos calamitosos de intransigência global e de guerra,
reconhecemos que a democracia é coisa muito frágil; que fardo
pesado! que de limitações e contradições; no entanto, é nesta fragi-
lidade, e não exatamente no fracasso, que está seu potencial criativo
para lidar com os desafios de nosso século.
As transformações de nosso século global formam parte de uma
linhagem mais antiga de esgarçamento e fragilidade que nos devolve
a uma fase anterior da governança global: os impérios coloniais. Com
o ressurgimento do neoliberalismo, após a Guerra Fria, torna-se
especialmente importante apreender as des-realizações internas da-
quela ideologia global e delinear suas genealogias coloniais. Por
exemplo: o grande filósofo liberal John Stuart Mill imaginou que um
dos maiores quebra-cabeças da célebre teoria liberal consistia no fato
de que Mill era um democrata em seu país, porém um déspota em
outro - na índia. Pois o cânone da cultura literária britânica, para
70 Revista TB, Rio de Janeiro, 148:67/80, jan.-mar., 2002
assumir a responsabilidade por tal passado, duplo e bifurcado,
necessita de uma crítica revisionista da democracia liberal como
urna ideologia de conquista, ou um instrumento político, na cultura
de apropriação colonial. O que tem de ser reconhecido, na medida
em que Mill não foi capaz de fazer no grandioso documento da
democracia moderna, Sobre a liberdade, são as implicações da
autocontradição da democracia liberal, que supõe uma guerra
surda em seu centro. Esta guerra interna à democracia é uma luta
entre um universalismo sinceramente admitido como um princípio
de comparação cultural e estudo acadêmico, e etnocentrismo, ou
mesmo racismo, como uma condição de prescrição política e
prática, eticamente justificada. No centro mesmo da democracia,
testemunhamos este esgarçamento, a des-realização dialética entre
o epistemológico e o ético, entre a descrição cultural e o julgamen-
to político.
Aqueles que vivem no norte e no sul, nas metrópoles e nas
periferias, que têm sido vítimas da democracia des-realizada, têm
suas próprias lições para ensinar. Porque eles não apenas experimen-
tam a injustiça da colonização e escravidão, como também sabem,
de um modo singularmente profundo, a impossibilidade ética de
perpetuar a discriminação, segregação ou injustiça global no mundo
moderno. Não é possível, no mundo moderno, separar pessoas em
estratos verticais, escreveu W. E. B Du Bois, o grande poeta e político
afro-americano, em 1929. Quem foi que tornou impossível a separa-
ção de tal grupo e raça sob métodos modernos? Quem foi que trouxe
15 milhões de negros de além mar?... O mundo se integrou em tal
organização, que não pode mais ser mexido da mesma maneira,
como não se pode recompor ovos mexidos. Os entrelaçamentos
espaciais e as contradições da moldura mais recente do mundo -
refletida nos discursos gargantuescos do que chamamos global -
devem ser postos em confronto numa relação de continuidade ética
com os espaços da diversidade sujeitos à segregação racial, bem
como discriminação cultural. A menos que reconheçamos o que é
velho e gasto acerca do mundo - a velha história da escravidão,
colonização, diáspora, não estaremos em posição de representar o
que é emergente ou novo dentro de nosso momento global contem-
porâneo. O que significa, afinal, parecer globalizadohoje? Que
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 71
medidas podemos aplicar para termos acesso às transformações
viabilizadas pela mudança global?
O novo é apenas um destino histórico que está no meio de nós
como o fantasma do futuro; leve como uma folha do tempo que se
esvai, uma folha de papel no espaço, que se desdobra, inscrita, apenas
de um lado, pelo passado, e, no outro lado, pelo presente. O advento
do novo - semelhante à nova ordem mundial, ou à nova economia
global - é quase sempre o reconhecimento de um ponto de inflexão
na história, a experiência de um momento de transição, ou de incu-
bação, como descreveu Antônio Gramsci, o filósofo italiano: O que
existe, num dado momento, [em nome do novo] é uma variável
combinatória entre o velho e o novo, um equilíbrio precário de
relações culturais. Os discursos da incubação conduzem-nos por
avanços e recuos conceituais, enquanto tentamos deduzir um voca-
bulário crítico e epistemológico capaz de mensurar o que advém do
discurso global em si. [O] advento da globalização (ou mundializa-
ção) do mundo não deriva do desdobramento da normalidade, do
normativo ou do processo da norma, alerta Jacques Derrida. As
contingências e contigüidades da nova cartografia do globalismo
sofrem mutações e vacilam, escamoteiam e se metamorfoseiam: o
eixo norte-sul do globo se desloca para o Global e o Local, daí para
a relação privilegiada Local-Global que prevalece no Sul (trata-se de
uma nomenclatura pós-colonial). Para alguns, globalismo é o adven-
to do capital desorganizado, apostando nos riscos sociais; para
outros, é uma rede flutuante de conexões entre as regiões metropo-
litanas e as periferias passíveis de exploração. A soberania nacional
fragilizada, associada ao regime de internacionalização, deixa o
compromisso do estado-nação sofrendo de uma espécie de esquizo-
frenia social (Gasteis), a força de seus laços de solidariedade está
agora metonimicamente deslocada no sentido da cidade global, que
revela o campo de jogo desequilibrado entre o crescimento do capital
global e os reclamos das populações marginalizadas O território do
cidadão global é, concorrentemente, pós-nacional, desnacional ou
transnacional. Os ativistas militantes e os intelectuais argumentam,
consistentemente, com o que chamam de nacionalidade efetiva, que
contesta os estatísticos discursos de cidadania, ao enfatizar as articu-
lações cívico/vida civil, que permanecem adjacentes às considerações
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da nacionalidade formal e o estatuto da lei. Sem dúvida, os argumen-
tos para uma mudança de definição do que é cidadania estão funda-
mentados em contextos da experiência cotidiana e são melhor arti-
culados nos casos clássicos de inter-relaçõespessoais concretas, isto
é, inter-relações sociais, políticas e psicológicas da própria pessoa.
Finalmente, de acordo com o intelectual especialista em temas jurí-
dicos - Larry Lessig -, o ator no ciberespaço está, na verdade,
vivendo em dois lugares ao mesmo tempo, sem qualquer princípio
de supremacia entre jurisdições múltiplas não coordenadas.
Jurisdições múltiplas não coordenadas, que incorporam/ormai' de
práticas e conhecimento globais, não estão adequadamente repre-
sentadas em medida escalar que vai do gigantesco ao progressiva-
mente menor. A conexão entre estas jurisdições discordantes - con-
flituais embora comunicativas - emerge da estrutura da política
econômica global, que o historiador da economia, Saskia Sassen,
descreve como as inserções do Global na invenção do nacional...
uma desnacionalização parcial e incipiente do que historicamente
tem sido construído como nacional, ou melhor, certas propriedades
do nacional. Os discursos globais citados, acima de tudo, repre-
sentam um duplo movimento: os espaços contestatórios e dissemi-
nados de jurisdição global são, simultaneamente, marcados pelo
desejo ético e analítico de proximidade. Temos de aprender a nego-
ciar sem cessar com os conflitos sociais e diferenças culturais,
enquanto mantemos a individualidade de nossa existência intercul-
tural e relações transnacionais. O campo de jogo desigual e assimé-
trico, no mundo global - parcial e incipiente — nem passado, nem
presente, porém incubacional - é, no entanto, encontrável e experi-
mentado no espaço vital, e através dele, como se fosse um tempo de
transição historicamente compartilhado. Para onde quer que nos
tornemos, enquanto o mundo global nos cerca, resta a questão: onde
encontrar a tradição crítica necessária a nosso tempo?
Não há, é claro, qualquer analogia estrutural evidente entre a
situação colonial e a desnacionalização do estado global. As lutas
antiimperialistas não podem ser simplesmente equiparadas à resis-
tência do Império global (como Nigri e Hardt recentemente intitula-
ram). Nem, claro, como é o caso do estado colonial pré-nacional, que
se assemelha ao estado global desnacionalizado. Mas custa só um
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 73
pouquinho de nossa imaginação observar que, em ambos os casos,
agências culturais minoritárias e marginalizadas, bem como organi-
zações de defesa têm de ser operadas desde as fronteiras ou limites
das formações do Estado. Trabalhar para a liberdade, desde uma
posição oblíqua ou extraterritorial contígua ao Estado - porém des-
contínua com este - é o que torna o grupo social subalterno um lugar
privilegiado para aqueles que estão envolvidos nas lutas pela repre-
sentação das minorias e organizações de direitos humanos. Meu
retorno revisionista a Antônio Gramsci, dentro da perspectiva de uma
desnacionalização parcial da condição global, baseia-se em espe-
culações sem fundamento acerca do que significa criar uma frente
cultural. Uma frente cultural não é necessariamente um partido
político, é mais um movimento ou aliança de grupos cuja luta por
justiça e eqüidade enfatiza a colaboração profunda entre estética,
ética e ativismo. Uma frente cultural não tem visão de mundo
homogênea e totalizante. De fato, orienta-se pelo que Gramsci des-
creve como a filosofia parcial (que) sempre precede a filosofia da
totalidade, não somente como seu pressuposto teórico, como tam-
bém uma necessidade da vida real. Hoje, estamos confrontados com
um choque de civilizações - entre Fiéis e Infiéis, ou entre Terror e a
Democracia, pretende-se lançar luz sobre algo que necessita de
algum entendimento, que é menos dogmático e totalizante - uma
filosofia do parcial - uma perspectiva que reconhece sua própria
parcialidade como exigência da vida.
O grupo subalterno é destituído do (controle) histórico e de
iniciativa, normalmente num Estado em expansão contínua, mas
desorganizada, sem uma necessária organização partidária e [de
modo crucial nas questões que envolvem desnacionalização] sua
autoridade pode não ser capaz de ir além de certo nível qualitativo
que ainda permanece abaixo do nível de apropriação da idéia de
Estado. Isto inclui os que estão comprometidos com a justiça cultural
e com o trabalho emancipatório da imaginação. O sonho utópico da
transformação total pode não ser visível para o ponto de vista dos
subalternos, mas está, no entanto, comprometido com ambas as lutas,
como um inventário ativo de emancipação e sobrevivência, tanto
como modos de abstenção que unem a memória da história ao futuro
da liberdade. Discursos que reivindicam a contradição social com o
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motor a priori da transformação histórica são impulsionados, direta
e linearmente, no sentido do fim do Estado. A imaginação dos
subalternos, destituída de poder político e ainda buscando transfor-
mar esta desvantagem numa nova possibilidade de vantagem tem de
seguir adiante, num ângulo oblíquo e adjacente em referência à sua
relação antagônica, até o nível qualitativo do Estado. Subalternidade
representa uma forma de contestação ou desafioao status quo que
não homogeiniza nem sataniza o Estado ao formular uma oposição
a ele. A estratégia do subalterno intervém nas práticas do Estado
desde uma posição que é contínua ou tangencial às autoritárias
instituições do Estado - em vôo rasante, logo abaixo do nível do
Estado.
Neste sentido, o grupo subalterno não é uma classe sub-ordinada.
Ela propaga uma prática ético-política, em nome do humano, onde
os direitos não são nem simplesmente universalistas nem individua-
listas. O humano significa um sinal estratégico e em translação que
oferece fundamento para, ou constrói fundamento para as demandas
urgentes de representação, redistribuição e responsabilidade - exi-
gências dos excluídos que vêm desde baixo, desde o nível qualitativo
do Estado; modos de comunidade e solidariedade que não estão
inteiramente sancionados pela soberania do Estado; formas de liber-
dade não protegidas por ele. Tal oposição em termos dos direitos
humanos, conforme argumenta Claude Lefort, toma forma nos cen-
tros onde o poder não consegue dominar inteiramente... Desde o
reconhecimento legal às greves e aos sindicatos, aos direitos dos
trabalhadores à previdência social, desenvolve-se, baseado nos di-
reitos do homem, uma história completa que ultrapassou as frontei-
ras que o Estado exigiu para autodefinir-se, uma história que per-
manece em aberto.
Contigüidade, como mensuração crítica, nos habilita a avaliar o
movimento que existe em meio aos limites jurisdicionais - nacionais,
desnacionais, transnacionais, pós-nacionais - do regime global. Mi-
nhas próprias especulações acerca do lugar existencial e ético de tais
culturas, vivendo no limite, devem algo ao trabalho do psicanalista
D. W. Winnicot e suas meditações acerca do processo de contigüi-
dade como uma forma de espaço-tempo (dentro) do mundo real onde
vive o indivíduo e que pode ser objetivamente percebido. Contigüi-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 75
dade que, segundo Winnicot, explora uma terceira área da vida, no
entremeio entre o indivíduo e o ambiente. É uma área intermediá-
ria, ou espaço potencial (inter)mediariamente situada entre sujeito e
objeto, onde fica localizada a experiência cultural. Uma área da vida
intermediada é, ainda segundo o autor, um terceiro espaço da varia*
bilidade psíquica e social, cujo agenciamento e criatividade repou-
sam em experiências que pontilham como galáxias ou unem passado,
presente e futuro. É a contigüidade dessas molduras espaço-tempo-
rais que constitui o cultural como uma prática que pode tanto dar
sentido, e sobreviver, às guinadas da história e seus sujeitos e objetos
transacionais.
Meu interesse na vida intermediada pela experiência global -
aquele terceiro espaço em algum lugar entre o velho e o novo - não
começou com a arte ou literatura, ou mesmo filosofia. Aconteceu
através de minhas leituras dos debates jurídicos e econômicos, em
torno da cidadania global e dos direitos culturais, quando me dei
conta de uma espécie de horizonte contíguo e duplo que pairava por
sobre o discurso global. Era um ir-e-vir entre continuidade e conti-
güidade, a tensão da nova ordem mundial sobrevivendo num movi-
mento entre a persistência do nacional e do futurismo antecipador
existente na sociedade civil, transnacional e internacional. Dentre
elas, emerge este terceiro espaço, uma relação de contigüidade entre
as forças sociais e psíquicas, mais velhas e mais novas.
É com as linguagens e culturas, contíguas e descontíguas, que a
construção do mundo moderno atravessa e corta, que Derek Walcott
opera a ética e a política do mundo contemporâneo, como se fora
uma terrível encruzilhada em translação:
Éramos órfãos do século dezenove,
Fiéis seguidores da moral e dos bons costumes,
Vivíamos por uma outra lei,
Órfãos vitorianos, esperando na beira do caminho.
Libélulas, libélula.
Presos na lâmpada de Giorgione,
Libélula, em nossos ouvidos
Martelavam as exortações de Baudelaire: embriaguem-se
Gritava o estilo Gauguin: merecemos a orelha de Vincent.
Entrei no mundo dos livros como um intruso.
Larápio feito um pivete,
E o jovem escravo tomava
Os bens herdados, tentadoramente largados,
Junto com as homílias vitorianas do No li Tangere.
Este é meu corpo. Bebam
Este é meu vinho...
No princípio,
Toda bebedeira é Dionisíaca, divina.
Então, uma certa noite, em algum lugar,
Um breve grito cortou o ar,
A língua áspera de uma lâmpada, bêbada e largada,
Lambeu o álcool do chão, esparramado,
E com o crepitar feroz de uma porta crematória,
Subitamente escancarada, a história estava ali...
Gregorias. Ouçam, iluminem.
Nós éramos a luz do mundo!
Nós éramos abençoados por um mundo virginal e intocado,
Pelo trabalho de Adão a dar nome às coisas,
Pelas suaves paredes brancas de nuvens e cidades
Onde se podia antever o incansável
E impossível Renascimento -
Os anjos morenos de Giotto e Massacio,
Com o vento ácido pela janela,
Cheirando a aguarrás, nada tão antigo
Que não possa ser inventado.1
As contigüidades de nosso próprio momento global incubacional,
tanto velho quanto novo, retornam nas linhas que vêm ecoando
através de toda minha fala: NADA É TÃO VELHO QUE NÃO
POSSA SER INVENTADO. Esta é a exigência translacional de
Walcott, como ele se esforça em realizar no seu direito ético e político
de narrar, revisando os grandes afrescos do Impossível Renascimen-
to, cuja originalidade é, hoje, impossível de se afirmar depois da
tarefa tardia do tradutor que inscreve, através das origens do Renas-
cimento, a história da passagem estreita da vida intermediada; as
jurisdições imprecisas de nossas vidas política e cultural ecoam por
76 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 77
entre as fraturas e deslocamentos do Império. Utilizei o termo direito
de narrar para significar um ato de comunicação por meio do qual a
narrativa de temas, histórias e memórias é parte de um processo que
revela a transformação do agenciamento humano. O que quero dizer
com narração é muito próximo da avaliação de Hanna Arendt sobre
a capacidade de ação e de discurso dos agentes emancipados nos
grupos sociais. Acao e discurso estão no meio dos homens, na medida
em que estão direcionados para eles e revelam a capacidade de seus
agentes emancipados mesmo se o conteúdo é exclusivamente objeti-
vo, concernente a assuntos do mundo das coisas. Então, a narrativa
como ação comunicativa ou performática diz respeito ao que perma-
nece no meio do povo, algo que inter-essa, que está entre o povo e,
portanto, pode relacionar-se e mantê-los juntos. Tal direito não é
matéria apenas legal e formal, é também questão de formalização
ética e estética. Liberdade de expressão é um direito individual; o
direito de narrar, se me permitem a licença poética, é um direito de
enunciação mais do que um direito de expressão - o direito dialógico
de as comunidades ou grupos falarem e serem falados, significarem
e serem interpretados, dizer e ouvir, produzir sentido e saber que
receberão a mais respeitosa atenção. Esta relação social - relatar,
narrar, comunicar - torna-se nossa jurís-dictio, quase literalmente o
lugar de onde se fala.
Na medida em que termino, permitam-me voltar ao início de meu
artigo, às torres derrubadas e ao crepúsculo dos ídolos. O que teria
destruído os ideais e as idéias do progresso global, agora que o Novo
Mundo está desprovido de suas torres, as ruínas das torres-escadas,
sem degraus, tomadas como símbolo de nossos tempos? Tais dias
que fantasmagoricamente assombram nosso tempo e nossas pátrias
confrontam nosso senso de progresso com o desafio do escombro.
Escombro não é um lugar, diz Wittgenstein, aonde se pode chegar
com uma escada; o de que se necessita é uma visão percuciente que
revele um espaço, um caminho no mundo, que é normalmente
ofuscado pelas idas e vindas do progresso:
Nossa civilização se caracteriza pelapalavra progresso.
Progresso é sua forma, menos do que progredir, que é uma de
suas faces. Tipicamente, ele vive de construir. Ocupa-se em
erguer estruturas cada vez mais complicadas. Não estou
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interessado em construir um edifício, tanto quanto em ter um
visão percuciente da fundação de possíveis edifícios.
(Cultura e valor, 7e, 1930)
Nem construção, nem desconstrução, o escombro é a criação de
uma forma cuja ausência virtual levanta a questão do que quer dizer
começar de novo, no mesmo lugar, como se fosse noutro lugar, sítio
adjacente ao desastre histórico ou trauma pessoal. O resto da ruína
que acaso sobrevive carrega a memória das torres caídas: Babel, por
exemplo, e as lições de infinitas escadas que subitamente desabam
sob nossos pés. Não temos opções, exceto a de nos interessarmos por
construir edifícios; ao mesmo tempo, não temos alternativa, senão
situar, em visão panorâmica a partir de nossos edifícios, a visão do
Escombro - a fundação de possíveis edifícios, outras fundações,
outras palavras outras. Talvez, então, não nos esqueçamos de medir
o Progresso desde sua base, de outros pontos de vista, outras possí-
veis fundações, mesmo quando nós, em vão, acreditemos que esta-
mos, nós mesmos, de pé, no topo da torre.
Notas
But we were orphans of the nineteenth century/Sedulous to the morais
of a style,/We lived by another light,/Victoria's orphans, bats in the
banyan boughs/Dragonfly, dragonfly/(...)/Caught in the lamp of
Giorgione,/Dragonfly, in our ears/Sang Baudelaire's exhortations to
stay drunk,/Sang Gauguin's style, awarded Vincent's ear./I had
entered the house of literature as a houseboy,/Filched as the slum
child stole,/As the young slave approriated/Those heirlooms
temptingly left/With the Victorian homilies of Noli Tangere/Hús is
my body. Drink/This is my wine.../In the beginning,/All Drunkeness
is Dionysica, divine./And then one night, somewhere,/A single
outcry rocketed in air,/The thick tongue of a fallen, drunken
lamp/Licked at ús(sic) alcohol ringing the floor,/And with the fierce
rush of a furnace door/Suddenly opened, history was
here.../Gregorias. Listen, lit/We were the lightof the worldl/We were
blest with a virginal, unpainted world/With Adam's task of giving
things their names,AVith the smooth white walls of clouds and
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002 79
villages/Where you devised your inexhaustible/Impossible
Renaissence,/Brown cherubs of Giotto and Massacio/With the salt
wind coming through the window,/Smelling of turpentine, with
nothing só old/That it could not be invented. (294)
(Tradução do original inglês de Carlos Sepúlveda)
80 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 67/80, jan.-mar., 2002
CONHECIMENTO PROVENIENTE DO EXTERIOR;
CONHECIMENTO POR DIVERTISSEMENT
E POR MAIS DO QUE ISTO
Masahiro Hamashita
Sumário. O significado da palavra conhecimento varia de socie-
dade a sociedade e de uma a outra época. A transmissão do conheci-
mento reflete um poder maior ou menor na política internacional. Na
época moderna do Japão, converteu-se numa como política nacional
os japoneses adquirirem muito da tradição cultural do Ocidente,
absorvida a fim de promover sua civilização, deixando de lado algo
de sua própria tradição. Assim, a maior parte dos conhecimentos veio
do exterior, como se fossem apenas know-how destinado a moderni-
zar e ocidentalizar a sociedade. Não se sabe ao certo se o projeto dos
japoneses modernos deu certo, ou não. Eles criaram uma sociedade
única à custa do mérito e da sabedoria nacionais, visto que o conhe-
cimento vindo do exterior leva, principalmente, a nada mais que
divertissement (no sentido pascaliano da palavra). O conhecimento
que vem de dentro j á parece melhor. Mas em que sentido? Até mesmo
o conhecimento vindo de fora deveria ajudar-nos a refletir sobre o
nosso conhecimento vindo de dentro. É preferível um hibridismo de
conhecimento mediante atitudes de pesquisa intensivas e extensivas.
Introdução
Ouvi, certa feita, um professor de Cambridge referir-se à menta-
lidade dos professores de Oxford nos seguintes termos: " Sempre que
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 81
eles não sabem alguma coisa, dizem que não é algo que valha a pena
saber". Semelhante atitude mental é chamada de "ignorância arrogante"
e pode ser detestável. Mas, em certo sentido, a ignorância é permissível
e até, por vezes, necessária: particularmente, ouso dizer, em nossa pavo-
rosa sociedade, dita da informação. Melhor seria que o rei Édipo jamais
tivesse sabido quem era, a quem matara, com quem se casara. O conhe-
cimento levou-o à ruína fatal. Não obstante, na realidade e por natureza
desejamos saber, como lá diz Aristóteles (Metaphysica, 980a 23).
Cabe-nos decidir qual conhecimento seja digno de ser conhecido
e qual não o seja. É provável que já conheçamos muita coisa que se
inclui na segunda categoria.
A transferência de informações e conhecimento reflete as relações de
poder entre as nações. Nos tempos modernos e ainda nos dias que correm,
gente de muitos países viu-se obrigada a aprender, através de ensino
obrigatório, coisas que lhe eram pouco ou nada familiares, geralmente
conhecimento proveniente de países mais poderosos em termos de polí-
tica, economia e proeminência militar. O conhecimento proveniente do
exterior haveria de ser útil para o indivíduo galgar posições de importância
na sociedade e para o enriquecimento nacional com um exército poderoso.
Mas esse conhecimento difere inteiramente da cultura que cada qual
adquire por esforço próprio e serve apenas como know-how.
1. O Conhecimento Proveniente do Exterior: o caso do Japão
moderno
Gostaria de tratar do caso da modernidade do Japão. No ano de 1543,
o Império Bizantino declinou, ao mesmo tempo que alguns náufragos
portugueses trouxeram um mosquete para a ilha de Tanegashima, no
Japão. Dentro de um ano, o mosquete fora duplicado e usado com
resultados espetaculares na batalha de Nagashino, em 1575. Seu uso
mudou de todo em todo a tática e a estratégia usadas até então.
Não só aquela arma de fogo, chamada Tanegashima em japonês,
mas também muitos outros objetos, palavras e idéias foram introdu-
zidas no Japão a partir do mundo exterior. Para os japoneses, a
presença de estrangeiros vindos da China, da Coréia ou do Ocidente
associava-se à idéia de que eles traziam algo novo e, em muitos casos,
82 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
útil- Em situações de política de poder nos negócios internacionais,
as pessoas dos países em desenvolvimento respeitam a linguagem,
os conhecimentos e as coisas efetivas em países mais poderosos.
Como lá diz Okakura Tenshin (1862-1913), "o céu da humanidade
moderna foi, realmente, estilhaçado na luta ciclópica pela riqueza e
o poder. O mundo tateia na sombra do egotismo e da vulgaridade.
Compra-se o conhecimento pelo preço da má consciência, pratica-se
a benevolência pelo fato de ser útil". (Okakura, 209)
Desde a restauração Meiji, em 1868, o Japão fez todos os esforços
necessários para seguir e alcançar os países ocidentais, entre outras
coisas no campo do poder econômico e de forças armadas poderosas.
O Reverendo Nikolai (1836-1912), bispo da Igreja Ortodoxa Russa,
disse: "Até agora os japoneses consagraram sua atenção apenas à
superfície da civilização européia, como navios a vapor, canhões,
sistemas de instituições jurídicas; mas, uma vez que milhares de
jovens aplicam-se a aprender línguas européias, eles estão certos de
progredir para além de navios a vapor e canhões". (Nikolai, 93)
Na verdade, tal como previra o Bispo Nikolai, os japoneses vieram
a enfronhar-se com mais empenho na cultura ocidental. Esperava-se,
contudo, que as filosofias ocidentais viessem a ser recebidas "apenas
[como] filosofias estabelecidas e completas, sem um processo de sur-
gimento e desenvolvimentológico"; (Shimomura 13) noutras palavras,
eram elas apenas o conhecimento do know-how necessário ao estudo
das disciplinas humanísticas do Ocidente. Assim, a situação acadêmica
poderia ter sido descrita como se houvesse não historiadores, mas
editores de materiais históricos; não filósofos, mas historiadores da
filosofia; não educadores, mas conhecedores teóricos de educação; e
não homens virtuosos, mas professores de doutrinas morais. Os acon-
tecimentos marcantes dessa época foram a guerra sino-japonesa (1894-
5) e a guerra russo-japonesa (1904-5); e, no período entre as duas
guerras, a jovem geração de intelectuais passou pela fase critica do
pensamento considerado como sustentáculo da vida real. A fim de
enfrentar essa consciência crítica, introduziram-se, primeiramente, as
idéias britânicas e anglo-americanas de liberdade e independência, bem
como o utilitarismo de Bentham, Mill e Spencer, e as idéias francesas
acerca dos direitos do homem e do cidadão. Enquanto tantos e tão
variados conhecimentos, informações eruditas, belas-artes e literatu-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 83
rãs eram importados, "a moralidade e as crenças religiosas tradicionais
foram destruídas e negligenciadas e muita gente ficou totalmente deso-
rientada no que diz respeito às idéias de bem e de mal, de certo e de
errado". (Inoue, 57) Tamanha confusão era, provavelmente, inevitável.
Em resumo, como deplorou Natsume Soseki (1867-1916), um dos
maiores romancistas do Japão moderno, " a civilização no Ocidente
tem sido espontânea e proveniente de dentro, ao passo que, no Japão
da era Meiji, vem do exterior. [...] A civilização ocidental é como
nuvens erradias e água corrente, funciona naturalmente, enquanto a
civilização japonesa de hoje, posterior à Restauração e à retomada
de relações com outros países, tem caráter diferente. [...] Os japone-
ses foram forçados a seguir, irrestrita e obrigatoriamente, as tendên-
cias surgidas nos países ocidentais, perdendo, deste modo, o poder
da espontaneidade e autocentralidade,3 não obstante o fato de o
Japão, até a era Meiji, ter criado sua civilização à sua própria maneira
e de dentro". (Natsume, 26-27)
O conhecimento proveniente do exterior corrompeu o quê? A
atitude mental e o orgulho nacional, que ficaram viciados. "Quando
os forasteiros discutem a respeito disto ou daquilo, os japoneses
também discutem, indo-lhes no encalço. Particularmente no começo
da era Meiji, os japoneses obedeciam cegamente a quanto lhes diziam
os ocidentais e, fingindo que as observações dos estrangeiros coin-
cidiam com as suas próprias, vangloriavam-se de seus conhecimen-
tos, embora diferissem muito dos conhecimentos que lhes couberam
por legítima herança.4 O conhecimento que agora possuíam não era
mais que roupas emprestadas e, por isso mesmo, nunca lhes permitia
se sentirem à vontade". (Natsume, 112-113)
Também Raphael Koeber (1848-1923), professor-visitante de Fi-
losofia na Universidade de Tóquio, exprimiu sua censura: "O que
prejudica e torna detestável a mentalidade e o caráter dos japoneses
são a vaidade, a falta de conhecimento próprio e, mais ainda, de senso
crítico. Estes defeitos da mente e do caráter saltam aos olhos de
maneira ridícula, particularmente naqueles que só conhecem pela
metade as artes e as ciências do Ocidente. Vale dizer: entre os assim
chamados 'eruditos' e entre os 'líderes'". (Koeber, 87)
Já Lafcadio Hearn (1850-1904) demonstrou simpatia para com
os japoneses que sofriam com o compulsório aprendizado ocidental.
84 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
"A idéia de obrigar estudantes orientais a seguir um programa de
estudos acima da capacidade média dos estudantes ocidentais; a idéia
de fazer do inglês a língua ou, quando menos, uma das línguas do país;
e a idéia de mudar nos melhores os modos ancestrais de sentir e de
pensar foram excessos absurdos. O Japão tem de desenvolver sua
própria alma, não pode tomar de empréstimo outra alma. Um amigo
muito caro, que consagrou sua vida à Filologia, disse-me, certa feita,
ao comentarmos a decadência das boas maneiras entre os estudantes
japoneses: "Ora, se a própria língua inglesa tem concorrido para
corrompê-los!" (Hearn, 152) "Pode ser que, no século XX, o Japão
venha a lembrar-se, com mais indulgência, de seus professores estran-
geiros. Mas jamais experimentará, em relação ao Ocidente, os senti-
mentos que lhe inspirava a China, antes da era Meiji, o respeito
reverenciai que os antigos costumes votavam a um mestre querido;
pois a sabedoria da China era buscada espontaneamente, ao passo que
a do Ocidente foi imposta por meios violentos. Ele virá a ter suas
próprias seitas cristãs; mas não se lembrará dos nossos missionários
americanos e ingleses como, ainda hoje, se lembra daqueles notáveis
sacerdotes chineses que lhe educavam a juventude. E não preservará
as relíquias de nossa estada cuidadosamente envoltas em sete panos
de seda e cuidadosamente guardadas em mimosas caixas de pau
branco, porque não trouxemos nenhuma nova lição de beleza que lhe
déssemos - nada que lhe fizesse apelo às emoções". (Hearn, 154)
Apesar da ansiedade de Hearn, os japoneses vieram a tornar-se
cada vez mais curiosos a respeito das coisas do Ocidente e acabaram
por adquirir conhecimentos sem utilidade nem sentido, coisa que não
precisavam ter feito.
2.0 desafio representado pela necessidade de um conhecimento
proveniente do interior
Será que é impossível aos países em desenvolvimento cultivarem
e obterem um conhecimento proveniente do interior?
Há três métodos de explorar o conhecimento proveniente do
interior: (1) penetrar no mundo da intimidade privada ; (2) focalizar
exclusivamente o ponto de vista nacional, ou local, ou vernáculo; (3)
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 85
í
avaliar o interesse biológico relacionado com o crescimento orgânico
de dentro para fora. Neste ponto, gostaria de deter-me nos números
(2) e (3) e mencionar duas pensadoras japonesas.
Contra os adeptos do modelo delineado pela sociologia ocidental, uma
socióloga japonesa, Kazuko Tsurumi (1918- ...) concebeu a idéia de
desenvolvimento endógeno. Ela deu início à sua carreira acadêmica, na
década de sessenta, nos Estados Unidos, focalizando a teoria da moder-
nização. Ela supunha, então, que a modernização do Japão deveria seguir
o modelo da sociedade industrial civilizada na Europa e nos Estados
Unidos. Segundo a sociologia norte-americana da época, quatro elemen-
tos deveriam ser levados em conta por quem considerasse a questão da
modernização: (1) a modernização econômica, que promove o capitalis-
mo baseado na moderna organização administrativa e no crescimento
econômico; (2) a modernização política, que consiste no desenvolvimento
legal e govemável sob uma burocracia moderna e, através dela, a demo-
cratização; (3) a modernização social, que desconstrói a Gemeinschaft,
a sociedade relacionada ao solo e ao sangue, e, em seu lugar, organiza a
Gesellschaft, a sociedade orientada funcionalmente por interesse próprio,
dando origem a uma sociedade civil livre e igualitária; (4) modernização
cultural, que alforria de restrições oriundas da tradição e dos costumes
(restrições mágicas) e introduz a racionalização no campo das idéias e do
modo de vida. (Tominaga, 27-28)
Suspeitando dessa idéia de modernização, ao realizar um trabalho
de campo sobre a doença de Minamata, uma tragédia de envenena-
mento por mercúrio, Tsurumi concluiu ser a doença de Minamata
conseqüência da modernização, isto é, o resultado inevitável da
economia, indústria e tecnologia da civilização moderna, destruidora
não apenas da mente e do corpo de suas vítimas, mas também das
relações humanas de pais e filhos, de irmãos e irmãs, da comunidade
das aldeias. Ela percebeu que tais fatos não poderiam ser explicados
pela teoria da modernização. (Tsurumi, 120-194)
Em primeiro lugar, a teoria da modernizaçãonão leva em conta a
conexão das pessoas com a natureza e os problemas ligados à vida.8
Tsurumi esforçou-se por descobrir o defeito da teoria da modern-
ização. Pareceu-lhe que a tragédia de Minamata fora causada pelo
conhecimento precário da tecnologia, isto é, terem as pessoas equivo-
cadamente acreditado que podiam livrar-se das sobras de mercúrio da
fábrica de nitrogênio lançando-as ao mar, na suposição de que o mar
as absorveria e diluiria. Mas foi o contrário que sucedeu: os peixes
comeram o mercúrio que, ainda por cima, se concentrou no organis-
mo deles, uma vez que não pôde ser eliminado. Por último, os seres
humanos, últimos elos da cadeia de alimentos no mundo biológico,
comeram os peixes e vieram a sofrer da doença de Minamata.
A modernização trouxe prosperidade econômica e estabilidade
política, ao mesmo tempo que destruiu os sistemas ecológicos e os
costumes tradicionais.
A modernização é avaliada pelo grau de crescimento da economia,
ao passo que, do ponto de vista do desenvolvimento endógeno, a
auto-realização é muito importante. Enquanto o desenvolvimento
linear define a modernização, o desenvolvimento endógeno afirma
que a variedade na esfera da vida é condição indispensável para o
crescimento do indivíduo.
No entender de Tsurumi, o darwinismo social está por trás da
modernização e da globalização, ao passo que o desenvolvimento
endógeno pressupõe a teoria da evolução.
O Japão importou do Ocidente uma quantidade de conhecimen-
tos e técnicas, desde a tecnologia militar, o Direito Internacional
e o sistema parlamentar até o estilo de vida ocidental, consoante
o interesse do país. O problema é que os j aponeses não se tornaram,
necessariamente, muito mais inteligentes e sábios em virtude
dessa apropriação. A civilização moderna veio do exterior do
Japão e, no interior, os japoneses sofreram, física e mentalmente,
em conseqüência do público dano e corrupção da cultura e menta-
lidade tradicionais.
Tsurumi discute o significado da modernização do Japão, adotan-
do o modelo da sociedade e da civilização ocidental, buscando
conhecimento a partir de dentro da identidade nacional e propondo
a teoria do desenvolvimento endógeno.
A outra pens adora a que me vou referir é uma bióloga.
Keiko Nakamura começou suas pesquisas no campo da Biologia
Molecular; em seguida, estendeu seus interesses às áreas da Ciência
da Vida, da Ecologia e, mais recentemente, da Bio-História. Diz
Nakamura em Bio-História: Novas Perspectivas na Relação entre
a Ciência e a Sociedade: "Há duas maneiras pelas quais se pode,
86 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 87
através da análise dos genomas, examinar a história da vida e as
relações das criaturas vivas. Uma consiste em elucidar o processo
da evolução; outra, em examinar o processo de desenvolvimento.
Examinar a história dos organismos vivos (evolução) e o processo
de desenvolvimento é ver o organismo vivo em sua totalidade e
prestar atenção à sua diversidade. [...] A este campo de pesquisa de
campo que busca penetrar a história das criaturas vivas denomina-
mos "bio-história". Embora a bio-história se utilize de técnicas
biológicas modernas, como a análise do ADN, ela não se restringe
à ciência, no sentido mais limitado do vocábulo". (Nakamura) O
que Nakamura critica na ciência moderna é o fato de tratar seus
objetos colocando-se "exo" (do lado de fora); ao invés disso,
sustenta ela, a atitude científica que cabe adotar no século XXI
deveria ser a pesquisa feita "endo" (do lado de dentro), que abor-
dasse seu objeto imanentemente, do interior. O conceito de Bio-His-
tória envolve uma combinação de História Natural mais Biologia,
com o objetivo de entender o que seja a vida em sua totalidade, a
fim de garantir a qualidade de vida, resolvendo questões relativas
ao meio ambiente, à população, à alimentação, à medicina, à educa-
ção, etc. Assim sendo, está ela convencida de que "a Bio-História
tem a potencialidade de unir as ciências e as Humanidades". (Na-
kamura)
O que há de comum entre as duas pensadoras acima menciona-
das? Em primeiro lugar, são ambas pesquisadoras. Em segundo
lugar, ambas se mostram interessadas na vida e na totalidade orgâ-
nica, especialmente no que diz respeito às relações entre a socie-
dade, a vida e a ciência. Em terceiro lugar, ambas têm em vista a
possibilidade da eficácia da ciência na sociedade. Ainda assim,
sinto-me cético quanto à validade do argumento de Tsurumi, o qual,
segundo entendo, ainda precisa demonstrar, não material, mas logi-
camente, de que modo o desenvolvimento endógeno é possível sem
o menor estímulo do poderoso mundo exterior. Embora eu admita
que sua teoria é válida enquanto alternativa do conceito de moder-
nização, como evitar retroceder à pré-modernidade? Em oposição
ao universalismo baseado na biologia que sugere Nakamura, per-
gunto-me até que ponto os genes ou genomas são capazes de
explicar as realidades culturais.
88 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
3. Um modo híbrido de conhecer
Há méritos no conhecimento procedente do exterior. Ele nos
mantém modestos, na posição de estudantes obedientes, sincera-
mente ávidos por conhecer. Capacita-nos a refletir sobre o conhe-
cimento que procede exclusivamente do interior. O problema é que
tal conhecimento tende a confundir a identidade da mentalidade.
Para a maioria dos japoneses, uma coisa é adquirir conhecimentos
provenientes do exterior, outra é mudar os próprios usos e costu-
mes, para acomodá-los a esses conhecimentos. Eles nunca pensa-
ram em unir os dois num corpo só. O conhecimento vindo do
exterior serve, em geral, de know-how para fins utilitários, não se
levando em conta os pressupostos e as idéias básicas que o acom-
panham.
Provavelmente por necessidade, os japoneses armaram uma estru-
tura dual de hábitos tradicionais e conhecimentos procedentes do
exterior. Porventura ter-lhes-á sido este um modo sábio de sobrevi-
verem. A mais de um estrangeiro tais atitudes se afiguraram curiosas.
Conta-se que Karl Lõwith (1897-1973), antigo aluno de Heidegger
e professor visitante da Universidade Imperial de Tohoku, teria dito:
"Parece que os professores de Filosofia japoneses moram em casas
de dois andares. No andar de baixo, eles sentem e pensam à japonesa;
no de cima, muitos livros europeus, de Platão a Heidegger, cobrem
longas paredes. Eu me pergunto onde está a escada que liga o andar
de baixo ao andar de cima". (Hirakawa, 9)
Já no fim do período Edo, Sakuma Shozan (1811-1864), precursor
da cultura ocidental no Japão, afirmava que deveríamos usar da
moralidade do Oriente e da tecnologia do Ocidente. (Sakuma, 25) O
que ele queria dizer era que o alicerce de nosso espírito está no
Oriente e que o conhecimento importado do Ocidente tem por
finalidade concorrer para a elaboração do espírito oriental.
Desde que eu era criança, acho a cultura japonesa interessante por
mostrar, sem quaisquer reservas, de um lado costumes tradicionais,
como as cerimônias do dia de Ano-Bom e os festivais comunitários
ao longo das estações; e, de outro, toda a sorte de elementos culturais
estrangeiros tomados à China, à Coréia e aos países ocidentais. O
Japão conhece, por experiência, os rangidos e discórdias causados
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 89
pelo choque de culturas diferentes e, tendo adotado outras previa-
mente, tentou amalgamá-las.
Assim, pode ser que eu esteja equivocado ao dividir os tipos de conhe-
cimento em conhecimento importado de fora e conhecimento proveniente
de dentro. Pode ser que se trate, apenas, de uma questão de grau.
Deixando de lado o nacionalismo e o amor-próprio nacional, toda
nação e todo povo, ao longo da História, importou conhecimentos do
exterior e, depois de torná-los seus, criou sucessivas culturas pró-
prias. A influência exercida por conhecimentos doexterior não deve
ser confundida com sujeição política. Pois, como já disse Arnold
Toynbee (1889-1875), toda cultura resulta de estímulos do exterior
e respostas do interior. Nenhuma cultura nativa subsistirá como é,
isolada das outras culturas.
Conclusão
O problema deve consistir na relação de poderes, em termos de
conhecimento. Por exemplo, a difusão de uma língua qualquer re-
presenta uma força, em termos de política, economia e poderio
militar. O antagonismo entre fortes e fracos, ricos e pobres, grandes
e pequenos, os que são mais e os que são menos leva à hegemonia
sobre o conhecimento e a informação por parte dos primeiros. A
mídia mais rica e poderosa, como a CNN, controla a informação.
Assim, a administração e o controle do conhecimento estão nas mãos
de um número limitado de poderosos.
Os emergentes nos países menores, mais fracos ou subdesenvolvi-
dos, irão em busca de know-how enquanto meio de emergir e, assim
fazendo, adquirem uma mentalidade autocolonizada. Nesse caso, o
fluxo de conhecimentos terá sentido único. Os indivíduos instalados no
poder podem não demonstrar interesse pelos demais ou pelos opostos,
exceto quando exclusivamente estimulados pela curiosidade por coisas
exóticas. O que ainda demonstra "ignorância arrogante".
Em ambos os casos o conhecimento procedente do exterior vem a
identificar-se com o divertissement pascaliano.
Ao contrário, para quem deseja criar um conhecimento híbrido, o
conhecimento provindo do exterior é indispensável. Ele induzirá à
90 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
reflexão sobre o conhecimento oriundo do interior, fazendo progredir
a qualidade do conhecimento.
A aquisição do conhecimento não deve ser feita por meio de coloniza-
ção política, militar ou intelectual. Melhor faríamos em meditar sobre o
modo genuíno de atingir e adquirir um conhecimento digno de ser
conhecido. De acordo com Santo Tomás de Aquino, "cognito enim
contingit secundwn quod cognitum est in cognoscente; cognitwn autem
estincognoscentesecundummodumcognoscentis". (Thomas 14) ["Uma
coisa é conhecida quando está presente no cognoscente; o modo como é
conhecida depende do modo de ser do cognoscente". (Thomas, 15)]
Para terminar este ensaio, seja-me lícito referir-me a Nishi Amane
(1829-1897), um dos insignes eruditos e pensadores que viveram numa
época de mudanças violentas na história do Japão. A fim de transpor
para japonês a erudição ocidental, cunhou ele muitos termos traduzidos
em caracteres chineses (Kanjí), muitos dos quais, por sua vez, foram
exportados para a China e a Coréia. Curiosamente, ele manifestava
otimismo a respeito de trabalhos de pesquisa criativa realizados por
intelectuais japoneses. "Os ocidentais e os japoneses pouco diferem
entre si, suas diferenças provêm da história e da tradição. Herdaram os
primeiros as artes e ciências dos gregos e romanos, ao passo que, em
tempos antigos, os segundos importaram coisas da China, em tempos
antigos". (Nishi, 570) Faz tão pouco tempo que importamos as artes e
ciências ocidentais, que ainda não produzimos pesquisas originais no
campo do saber do Ocidente. Esta é a razão por que as artes e ciências
ocidentais podem ser consideradas inúteis. Para que melhoremos a
qualidade de nossas artes e ciências e evitemos cópia, é necessário
aprofundar e estender o interesse e o âmbito da pesquisa, mediante o
julgamento do interesse nacional do Japão e uma pesquisa levada a
efeito de modo cabal e profundo".15 (Nishi, 571 -2) Nishi poderia sugerir
que a aquisição e apropriação de um genuíno conhecimento requer
sólida disciplina e que melhor faríamos em conhecermos bem a coisa
antes de conhecermos o como.16
Notas
Assim no original. Na verdade o declínio do Império Bizantino,
iniciado séculos antes, chegou ao fim aos 29 de maio de 1453, dia em
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 91
que as tropas otomanas de Maomé II entraram em Constantinopla.
Cem anos, portanto, antes da data mencionada pelo autor deste
ensaio. (N. do T.)
2
O texto inglês é obscuro, até certo ponto em virtude do modo bastante
peculiar como o A. combina determinados vocábulos e omite outros:
at theperiod between the two wars, young generation ofintellectuals
experíenced the criticai phase of thought in terms of sustaining
existential life. A tradução que dele me aventurei a dar não passa de
conjectura razoável. (N. do T.)
3
Em inglês, self-centeredness. O Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (3a ed., 1999),
consigna o adjetivo autocêntrico. O substantivo com que traduzimos
o vocábulo inglês self-centeredness está cunhado de acordo com as
regras de derivação de nosso idioma. (N. do T.)
4
Em inglês: Especially at early Meiji era, Japanese obeyed blindly
wfiat Westerners told, andpretending as ifforeigners' remarks were
the same with tfieirs, such Japanese boasted of their knowledge,
thoughfarfmm their own and not appropríated.
5
A pontuação deste período deixa a desejar. Assim, a última oração,
which they need not have done, que ao tradutor se afigura claramente
apositiva, não vem separada por uma vírgula do membro de frase que
a precede. (N. do T.)
6
O pleonasmo intimidade privada corre por conta do autor deste texto:
To draw into the world ofprívate intimacy. Pergunta-se, já agora, em
que haveria de consistir uma intimidade pública. (N. do T.)
7
Supõe o tradutor que o antecedente do pronome it, na frase under
modem bureaucracy and through it democratization é modem
bureaucracy, ou seja, uma burocracia moderna. (N. do T.)
8
Em inglês: Initially, the modernization theory disregards the
connection ofpeople and nature and the problem around life. Duas
observações cabem aqui. A primeira é sobre o uso do advérbio
Initially, a princípio, onde o contexto parece pedir In thefirstplace,
ou equivalente. A segunda é sobre a obscuridade do sintagma the
problem around life. A tradução que dele se dá aqui não passa de uma
tentativa defensável. (N. do T.)
92 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
9
Em inglês: Tsurumi argues about the meaning of modernization ofJapan
adopting the model of Western civilization and society, seeking for
knowledge from within national identity and proposing theory of
endogenous development. Outro período de tradução problemática: o
sujeito das três orações de gerúndio parece ser o mesmo da oração
principal, Tsurumi. Mas, consideradas as deficiências do próprio texto
original, quem haverá que o afirme sem sombra de dúvida? (N. do T.)
O original traz interest in life and organist whole. Sucede que organist ê
um substantivo e significa exclusivamente alguém que se dedica a tocar o
órgão, organista. Daí inferirmos, a partir do próprio contexto, que o A.
pretendeu empregar o adjetivo organic para determinar o substantivo
whole, e traduzirmos o enunciado de acordo com esta suposição. (N. do T.)
11
O A. escreve how endogenous development is possible without least
stimulus from the powerful outside. Tudo parece indicar que ele quis
dizer without the least stimulus, etc. (N. do T.)
O texto original é menos do que claro, em virtude do uso
idiossincrático da língua inglesa pelo autor: Japan hás experíenced
creaking and discord caused by the clash between different cultures,
and taking before others, tried to blend thern. A tradução que se lê
acima não é, portanto, mais que uma tentativa de entendimento de um
enunciado pouco inteligível: o que em inglês se chamaria an educated
guess. (N. do T.)
13 Em inglês: Tliose who are inpower may show no interest in others or
the opposites. O sentido de opposites neste enunciado anda longe de
ser claro. (N. do T.)
Para Blaise Pascal, matemático, filósofo e místico francês
(1623-1662), consiste esta forma de divertimento nas ocupações que
impedem o homem de ocupar-se dos problemas essenciais. (N. do T.)
Em inglês: To improvethe quality ofour arts and sciences and preveni
copying, it is required to deepen and extend the research interest and
field by judging the national interest of Japan and doing research
thoroughly to the depth. (N. do T.)
Joga o A. com as palavras de um modo que não se presta a tradução
perfeita em português: we had better accomplish know-that before
getting know-how. (N. do T.)
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002 93
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(Tradução de Sérgio Pachá).
94 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 81/94, jan.-mar., 2002
VISLUMBRES SOBRE UM SÉCULO
Rafael Argullol
Para todos nós que durante tanto tempo chamamos de "nosso
século" o século XX, não deixa de ser paradoxal referirmo-nos a ele,
com certo desdém, como o " século passado". Entretanto, creio que,
em geral, há pouca nostalgia no ar. Ao contrário, propaga-se a idéia
de que, não somente deixamos para trás uma época, como também
nos livramos dela.
Parece difícil aceitar, sem mais, essa idéia, visto que, para a
maioria da humanidade, o século XX continua sendo o único cenário
vital; e, não obstante, a transição de uma centúria a outra se realizou
com uma mescla de inércia, frivolidade e alívio que nos informa,
tanto sobre nossas perplexidades atuais, quanto sobre fardos passa-
dos, que queremos esquecer. O século XX foi um período apaixo-
nante sob muitos ângulos, mas foi também duro, cruel, sangrento.
A Europa deixou o século XVIII sob a promessa das Luzes e o
século XIX sob o signo das Utopias. O mundo -já não somente a
Europa - abandonou o último século sem horizontes proféticos
definidos no âmbito social, se bem que com poderosas visões no
terreno científico. Em certo modo, o século XX forçou tanto as
engrenagens do "humanismo", que pôs o homem à beira do precipí-
cio e o despojou de referentes morais que se supunham intocáveis.
Isso faz com que avancemos no novo século com uma estranha
combinação de energia transformadora e desconcerto ético.
No entanto, aquilo que agora percebemos e que, na maioria das
ocasiões, ainda se encontra necessitado de palavras e conceitos que o
definam, é a conseqüência direta da grandeza e miséria de um período
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 95/105, jan.-mar., 2002 95
histórico caracterizado por tensões gigantescas. Prometeu e Mefistófeles
partilharam o simbolismo mais profundo do século: prometéicos foram
os quase inimagináveis avanços da técnica e da ciência, a desmedida
construção de cidades, a derribada de fronteiras, os sonhos de imortalida-
de; mefistofélicos e simétricos foram os poderes de destruição da guerra
massiva, a tortura refinada, o envenenamento do ar e do espírito.
Superamos, em muito, a ameaça de Babel e o desafio de ícaro, e,
inclusive, experimentamos todos os delírios de Fausto. As edifica-
ções do século XX não têm precedentes em nenhum dos campos nos
quais o homem lutou contra seus limites. Porém, o preço pago foi
muito alto. A Segunda Guerra Mundial somou mais cadáveres que
todas as guerras anteriores juntas. Em Hiroshima, num único dia,
morreu um número de homens tão elevado que a cifra só é compará-
vel aos extermínios divinos que nos contam as mitologias. A própria
respiração do planeta que habitamos foi posta sob interdição.
Sem nos distanciarmos das visões mitológicas, seria possível ver
esse século inovador e desgraçado como um cavalo que corre,
desenfreado, pela História, movido por nobres objetivos, enquanto
pisoteia tudo que encontra pela frente. Sua corrida deixou no caminho
uma densa poeira, na qual torna-se difícil distinguir sonhos e pesa-
delos. Nascido como século da utopia, crescido como século do
apocalipse, envelhecido, no final, como século da sobrevivência, o
século XX sofreu transtornos demasiadamente profundos para man-
ter as ilusões forjadas pelo antigo humanismo.
Auschwitz, os Gulag, o Terror Frio das décadas seguintes: boa
parte dos projetos ilustrados e românticos, das idéias "modernas",
ficou submersa no lodaçal. A segunda metade do século XX viveu
mortalmente a partir do arrependimento pelo que havia acontecido
na primeira metade. Foi um duro caminho de expiação que implicou
o fim, mais ou menos turbulento, dos "grandes ideais". Mas foi
também um tempo de aprendizagem. As novas ilusões que implaca-
velmente surgirão - sempre acontece assim na história humana - se
terão incubado, com toda probabilidade, nesse segmento externa-
mente pouco brilhante, pós-utópico e pós-apocalíptico, do século
recentemente concluído.
Todos os centros de gravidade do nosso claro-escuro atual foram
fixados nesse percurso frio do século XX: a explosão demográfica,
96 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 95/105, jan.-mar., 2002
cujo estouro exige colossais migrações; a comunicação de dimensões
universais; a osmose de culturas; a modificação da natureza sob
intervenções tecnológicas; a criação de realidades espectrais; os
proclamas científicos contra a velhice, a enfermidade e a morte. E,
na mesma medida, também, a radical transformação de nossas per-
cepções da "verdade" com a demolição dos antigos modelos -
religiosos, míticos, ideológicos - sob a pressão do novo modelo
icônico da publicidade e atualidade planetárias, que nos mergulham
cotidianamente no espetáculo total.
Foi precisamente esse espetáculo total - polvo que abraça o planeta
com tentáculos asfixiantes e quase ilimitados - que a partir dos recentes
acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e
Washington nos introduziu de modo irreversível no século XXI. Pare-
ce-nos que, de repente, fomos submetidos a um trauma sem preceden-
tes; e talvez isso seja certo, se atentarmos para a dimensão imediata-
mente global de suas repercussões. Porém, quando repousarmos nosso
olhar sobre os fatos, é muito provável que comprovemos que bruscas
mudanças desse tipo são inerentes a qualquer história humana.
Depois das grandes tempestades do século XX, propagou-se a
bonança de um suposto modelo único de progresso. No entanto,
como aconteceu tantas vezes, "quando se supõe que a casa esteja
mais sólida, é quando se descuida do trabalho dos cupins".
Até 10 de setembro deste 2001 tudo parecia estável, promissor,
um caminho livre quedeixava definitivamente para trás as soçobras
do passado. Vinte e quatro horas depois a carcoma tinha-se apoderado
da casa e, sem prévio aviso, o céu apareceu cheio de nuvens sombrias.
Falou-se da "guerra do século XXI", do "medo do século XXI", de
novos tambores apocalípticos.
Não obstante, apesar de tudo, as imagens das máquinas extermi-
nadoras chocando-se contra o World Trade Center de Nova Iorque,
embora já pertençam ao futuro - foram gravadas em nossas retinas
com uma insistência demolidora -, ainda estão conotadas da memó-
ria, do ódio, da raiva e da crueldade do século recentemente acabado.
O Pentágono era um dos principais símbolos das guerras desse
século; as Torres Gêmeas se erguiam como o máximo expoente do
capital triunfante; o terror trazia o signo da marginalização, do
fanatismo, da violência que o século XX excitou até o paroxismo; os
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 95/105, jan.-mar., 2002 97
anjos de aço, os aviões utilizados como bombas, formavam parte dos
grandes orgulhos técnicos do século; e a cidade golpeada, Nova
Iorque, brutal, fascinante, não violada até então, como tinham sido
as demais capitais imperiais da história-Roma, Bizâncio, Berlim ou
Londres -, a cidade mais prometéica e mais mefistofélica, tinha sido
reconhecida merecidamente como a capital do século XX, do mesmo
modo que Paris havia sido a do século XIX.
Nada compreenderemos, portanto, das incertezas atuais, se não
aceitarmos que nossos signos do presente e nossos indícios do futuro
tenham sido incubados totalmente nas centúrias passadas e, particular-
mente, na última. A "ditadura da atualidade", à qual estamos subjuga-
dos por meios de informação muito mais poderosos do que nossa
barreira de resistência crítica, nos condena irremediavelmente à amné-
sia. O poder, em boa medida totalitário, da atualidade, implica o convite
ao esquecimento. Porém, aperdadas perspectivas múltiplas da memória
não pode senão impelir à repetição dos piores erros do passado.
Daí a pertinência de indagar na Imago Mundi do século XX, não
por nostalgia, possivelmente inexistente, senão por responsabilidade
com nossa existência para o porvir. A elaboração de um pequeno
cânone visual que aglutine os fluxos mais vigorosos do passado
imediato - fluxos visíveis ou subterrâneos - pode contribuir para a
rebeldia da memória diante do esquecimento, assim como para a
explicação complexa, a contracorrente com o simplismo da civiliza-
ção do espetáculo, dos fenômenos que determinam nossos movimen-
tos e condutas atuais.
No que me diz respeito, este pequeno cânone visual, este breviário
de imagens, concebido em forma de vislumbres sobre um século, tem
necessariamente um sabor agridoce, cheio de luzes e sombras, fiel ao
duelo, cruzamento, aversão e afinidade entre Mefistófeles e Prometeu.
Não sou otimista nem pessimista, não acaricio imagens unicamente
terríveis ou unicamente idílicas, não penso que tenhamos deixado para
trás um inferno exclusivo nem uma idade de ouro irrecuperável.
Ademais - muito além da fórmula fácil e ingênua: "qualquer
tempo passado foi melhor" - não creio que nenhuma época tenha
estado em condições de estabelecer um balanço de seu passado
imediato que não tenha sido em claro-escuro. Acima das grandes
elaborações míticas e religiosas, dos grandes projetos ideais, das
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l
grandes construções técnicas, domina o instinto, a consciência e o
destino do homem. E estes não são iluminados de outra maneira
senão em claro-escuro.
A partir dele proponho meus ícones, peculiar dança de construções
e destruições, começando quase num exercício de pedagogia sobre
nossa excitação coletiva mais recente, com o símbolo de construção-
destruição convertido já em representante universal da transição de
séculos: as desvanecidas Torres Gêmeas de Nova Iorque.
1. Grandeza e miséria de Babel
A corrida pela construção dos edifícios mais altos do mundo foi
um dos indícios mais extraordinários do século. Contrariando a
advertência bíblica, quisemos desafiar os céus, subindo além dos
campanários religiosos de antanho e explorando o horizonte com
expectativas quase ilimitadas.
Todos os grandes protagonistas ideológicos do século estiveram
imiscuídos nessa corrida. Misterioso, fantasmal e abominável é o
duelo entre Stalin e Hitler para construir o "maior edifício do
mundo", duelo nunca materializado pela guerra e queda posteriores
dos grandes totalitarismos. Porém, como ícone capitalista, Babel
chegou a cotas impossíveis de se imaginar no século XIX: do Empire
State Building às Twin Towers, enquanto Nova Iorque conservou seu
triunfo sobre Moscou e Berlim. No final, no entanto, o transborda-
mento global do capitalismo fez acabar o século com os arranha-céus,
também gêmeos, de Kuala Lumpur e o projeto, já ultrababélico, da
"torre mundial" de São Paulo.
2. A megalópole
Projeto realmente representativo porque, provavelmente, não há
nenhuma outra cidade que traduza, como São Paulo, a idéia do mundo
concentrado em uma estrutura urbana que já não é nem a antiga
cidade nem a antiga metrópole, senão que, em realidade, é uma teia
de aranha monstruosa que agarra todos os mundos que dela se
aproximam. São Paulo, como a maioria das grandes megalópoles, é
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 95/105, jan.-mar., 2002 99
um "universo em miniatura", no qual se concentram religiões,
culturas, raças, tradições em estranhos e, às vezes, imprevisíveis
movimentos centrípetos e centrífugos. Fusão e confusão, simbiose e
particularismo. Encruzilhadas de um mundo, o nosso, naquele em
que se superpõem a Aldeia Global e a Metrópole Tribal, as transbor-
dadas megalópoles são o ponto de encontro, e seguramente de
imprevisível fricção, onde convergem as grandes migrações que
dominam nossa época.
O reino das massas, previsto em princípios do século XX, sujeito
à grande hipótese da revolução social, foi substituído por uma tran-
sumância massiva que provocará, sem duvidar, as maiores alterações
espirituais dos últimos milênios.
3. A utopia violada
O século XIX acabou entre proclamas proféticas, com Nietzsche
como visionário definitivo. Criações e destruições, apocalipse e utopias,
ocasos e auroras. A arte e suas vanguardas refletem isso, logo, com
lucidez quase excessiva. Porém os profetas da emancipação consegui-
ram consensos desconhecidos desde a época da eclosão das grandes
religiões. Um novo mundo, um novo homem, o paraíso na terra.
Moscou simboliza, até nas entranhas de seus edifícios, a radical
nutrição revolucionária e o terrível colapso posterior. A Terceira
Roma - atrás da primitiva Roma e Bizâncio - chegou a ser entendida
como a capital do Império da igualdade, uma violação sem preceden-
tes de todas as idealizações sociais da História. Provavelmente ne-
nhum fenômeno ideológico havia gozado de tal massividade desde
a expansão do Islã: o comunismo atravessa o século XX como uma
promessa descomunal e, simultaneamente, como uma ferida de pro-
porções devastadoras.
Estamos longe de ter conseguido sobreviver à cicatriz. A revelação
do Gulag, o desenlace trágico da grande profecia social européia,
empurrou o mundo na direção de cenografias totalmente distintas. A
queda do muro de Berlim não foi senão a ruptura última do dique que
continha as águas revolucionárias de uma época que se tinha asfixia-
do em suas próprias ilusões.
100
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A conquista do Paraíso na Terra, concluída em implacável desas-
tre, nos introduziu num novo período de domínio de uma razão
pragmática e utilitarista. Entretanto, no fundo, com a passagem de
uma miserabilidade crescente de amplas zonas do planeta, surgem
novas fogueiras que, talvez por terem brasas mais antigas em suas
origens, podem ser ainda mais descontroladas do que as que se
acenderam na Ilustração e no Romantismo.
4. A morte massiva
Provavelmente, nuncacomo no século XX o homem havia consu-
mado de tal forma seus sonhos em pesadelos. Do lado da vida, já
estamos em condições de afrontar, pelo menos imaginativamente, as
metamorfoses mais extremas. Do lado da morte, experimentamos
limites insuspeitados, tanto no refinamento como na quantidade.
Sobretudo na quantidade: a morte massiva, por excelência. Temos
notícias de milhares de guerras ao longo da História. Numa só delas
- a Segunda Guerra Mundial - o século XX somou mais cadáveres
do que em todas as outras juntas. Levamos à prática a mobilização
absoluta e a guerra total: os números destrutivos acumularam-se até
limites só previstos pelas mitologias aniquiladoras. A combinação
entre totalitarismo e tecnologia foi extraordinariamente letal.
Auschwitz é a ponta do iceberg da morte massiva. Em suas
imagens - e na difusão universal dessas imagens - convergem os
caudais da morte programada que começam nos genocídios étnicos
e culminam com a destruição sistemática de toda diferença.
A peste do século XX foi a imposição de uma capacidade técnica
nova, gélida, indiferente, para provocar uma morte massiva que, sem
marcos transcendentes, apareceu subjugada somente à Lei dos Gran-
des Números: muitos milhões não são nada no transcorrer mecânico
do mundo.
5.0 nascimento de um deus
Hiroshima e o ícone do Cogumelo Nuclear representam um capí-
tulo especial, qualitativamente distinto, dessa engrenagem. Por um
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 95/105, jan.-mar., 2002 101
lado, é um episódio a mais, por acaso o de maior crueldade, daquela
Peste: o balanço mortal está na linha das grandes façanhas tenebrosas
da centúria. Por outro lado, no entanto, implica uma dimensão
completamente diferente: mais pura, mais universal, mais essencial.
A morte massiva dos campos de batalha e dos campos de concentra-
ção é barroca, produto da superacumulação; o perfil do Cogumelo
Nuclear é abstrato, fruto do minimalismo e da estilização. Nunca
umas linhas tão puras tinham matado tanto.
Só Deus ou a Natureza, com suas vinganças e cataclismos, tinham
provocado, até o século XX, aquilo que o homem nesse momento
havia realizado por si mesmo. Apesar de tecnicamente liberada pelo
ser humano, a energia nuclear significou um salto tão maravilhoso e
monstruoso nas potencialidades de destruição e construção que eqüi-
valeu a uma autêntica teofania: o século XX assistiu ao conhecimento
de um deus de terrível ambivalência, e nós vivemos sob a sombra
ampliada desse acontecimento.
6. A busca do Grande Interlocutor
No entanto, não podemos ser injustos conosco. Se nos livramos
de Mefistófeles, consciente ou inconscientemente, é porque cultua-
mos Prometeu. Talvez o século XX tenha sido o mais tenebroso da
História, porém também o que procurou mais denodadamente rom-
per a solidão do homem através da precipitada diáspora dos deuses.
A travessia do espaço é, nesse sentido, uma das grandes senhas de
identidade. Mas é verdade que, nessa aventura essencial, os caminhos
foram mais sinuosos do que se acreditava no final otimista do século
XIX. Aventuramo-nos pelo espaço cósmico, porém, na medida em
que realizamos novas colonizações, apareceram espaços ainda mais
devastados. Lançamos nossas primeiras naves, apesar de os oceanos
permanecerem quase inalcançáveis. Fora do nosso próprio ruído só
há silêncio.
Do vôo de Gagarin à chegada à Lua: um desejo de aventura e de
exploração, mas, talvez, acima de tudo, a necessidade de alimentar
o jogo de um Diálogo que reunia a notícia mais sensacional da
história da humanidade. Sempre nos debatemos como prisioneiros
de nosso monólogo irremediável e, para nos consolarmos, criamos
uma enorme fileira de deuses.
Freqüentemente, continuamos recorrendo a eles, mas, no momen-
to, apostamos em procurar por nossa própria conta o Grande Interlo-
cutor. E, enquanto confiamos em instrumentos mais potentes, o
telescópio Hubble é nosso olho esquadrinhador.
7. O cosmo interior
Olhamos com paixão idêntica para nossas entranhas. O século
XIX terminou acariciando a colonização espacial, que se demonstrou
infinitamente distante. No momento, parece que nossas esperanças
mais vivas se voltam para colonizar nosso próprio corpo, dotando-o
de poderes revolucionários diante da velhice, da enfermidade e da
morte. Subtraídas outras, nossa principal utopia na atualidade é a
utopia biológica.
Se a civilização sempre foi intervenção na natureza, não há dúvida
de que a crescente capacidade de transformação do corpo do mundo,
e de nosso próprio corpo, abre expectativas inéditas. Se as engenha-
rias biogenéticas redundam em alterações essenciais do transcorrer
da vida, nos encontraremos diante de revoluções e dilemas sem
precedentes: talvez o sonho, amplamente acariciado, de moldar a
própria existência.
Uma herança crucial do século terminado, e que guiará nossos
passos até perfis difíceis de se determinar, é uma nova simbiose entre
macrocosmos e microcosmos: nossa aventura espacial é, em certo
sentido, idêntica à nossa aventura mental. Cérebro e universo se
tocam nas apostas da ciência vindoura, dando nova perspectiva
simbólica a velhas palavras - como "alma" - e a velhas expressões
- como "alma do mundo".
8. Os novos oráculos
No terreno das experiências, o século XX esgotou sua singradura,
oferecendo a imagem de um gigante manco, com uma perna, a
científica e técnica, cada vez mais musculosa, e outra, a "espiritual",
102 Revista
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cada vez mais atrofiada. O naufrágio dos grandes discursos ideoló-
gicos, a catástrofe prática das utopias, a deriva fanática de certos
ressurgimentos religiosos empurraram o homem finissecular para
apatias espirituais e renúncias críticas. No meio de uma "idade do
ouro" da verdade científica, encontramo-nos numa espécie de "idade
do bronze" da verdade moral.
Ninguém, por assim dizer, se atreve a propor estratégias éticas de
longo alcance ou alternativas mais ou menos totalizadoras aos com-
portamentos coletivos de nossa época. Nesse contexto, prevalece o
homem imediato, aquele que se entregou a uma razão instrumental,
pragmática, utilitária.
Não é de estranhar, portanto, que a figura cotidiana do humano
que sobressai na paisagem seja o homus econômicas, mais do que
"ser de desejo", "ser de produção" (inclusive quando se trata de
produzir ócio). Acostumado a fixar sua saúde pública através da
saúde econômica, o homem dessa transição de séculos dirige-se,
ansiosamente, aos tabuleiros eletrônicos dos valores da Bolsa, da
mesma forma que, anteriormente, seus predecessores se dirigiam a
ídolos e oráculos. O próprio modelo capitalista da economia, assu-
mido sem perspectivas alternativas, aparece tão óbvio e natural que
já não é nem sequer nomeado. É o inominável.
9. A realidade sem limites
Em certo modo, o grande ícone que nos liga ao século XX é a
ausência de um ícone definido e definível, visto que nosso poder de
transformação e manipulação sabotou todos os limites da realidade.
Kafka tinha razão, quando provocava a metamorfose de Gregório
Samsa. Nosso mundo é um mundo alimentado por uma metamorfose
permanente.
Se, conforme Paracelso, a imaginação era o poder de criar "mun-
dos imaginários", nossa imaginação já quase não possui tecnicamen-
te qualquer limite. Nesse sentido, a partir do momento em que
tivemos a mente suficientemente educada pela potência mágica do
cinema, surgiram ferramentas ainda mais poderosas e eficazes para
a alquimia visual.
O horizonte da virtualidade é, para todos os efeitos, uma nova e
mítica caixa de Pandora em cujo fundo qualquer vislumbre de
"princípio de realidade" j az entre sombras de ambigüidade extrema.
O nosso é o mais alquímico dos mundos possíveis, com retortas que
conduzem nossas visões de um extremo a outro de nossa imaginação.
O curioso, não obstante, ao dispor de meios tão sofisticados,é que
ninguém parece procurar a pedra filosofal.
10. A verdade espectral
Não sabemos se foi Prometeu ou Mefistófeles quem vestiu a roupa
de prestidigitador, mas a verdade é que, encantados por sua magia -
por "nossa magia" -, nos esquecemos da importância de fazer essa
verificação. Não procuramos a verdade: a aceitamos.
E a verdade que aceitamos implica uma mudança profunda das
idéias humanas de verdade até agora concebidas. É uma verdade
funcional, imediata, tecnicamente construída sobre a marcha, estrei-
tamente vinculada aos mecanismos de produção de atualidade.
É uma verdade espectral, fria, que nos compromete pouco, mas
aparentemente tampouco nos condena. É a verdade dos titãs da
informação, dos exércitos da publicidade total. Diante dela, a verdade
ardente, secreta, difícil, complexa, que exige conhecimento e exige
liberdade, parece viver forçadamente em contracorrente.
No entanto, se tratamos de averiguar os signos de uma época, se
buscamos projetar a Imago Mundi desse século, que era nosso, é
porque, apesar de tudo, queremos saber, na medida do possível, onde
nos encontramos. E não por razões teóricas, acadêmicas; não com o
ânimo do taxidermista sobre a pele do tempo, senão para continuar
a viagem e conservar o desejo de conhecer.
Nossa principal fonte de erro, porém, também, nossa justificativa
suprema.
(Tradução do original espanhol de Maria Lizete dos Santos)
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jfiSb.
RELIGIÃO E CONHECIMENTO
Sérgio Paulo Rouanet
É possível que haja algum exagero na afirmação de que os atentados
de 11 de setembro de 2001 introduziram uma guinada fundamental na
história contemporânea, mas não há dúvida de que eles nos obrigaram
a repensar várias questões, uma das quais tem especial pertinência para
o tema do simpósio de Nápoles, dedicado à sociedade do conhecimento.
A questão é a seguinte: qual seria o papel da religião nessa sociedade?
Em geral, acreditava-se que esse papel seria nulo, primeiro porque
a religião, relegada à esfera da vida privada, tinha se transformado
num arcaísmo inofensivo, e segundo porque, por sua própria natureza,
ela era incompatível com qualquer forma de conhecimento racional.
Os atentados abalaram esses dois pressupostos. Em primeiro
lugar, deram visibilidade brutal a algo de que já se suspeitava há
muito, desde que o fenômeno do fundamentalismo passou a despertar
a atenção da mídia e da academia: a religião não estava tão domesti-
cada quanto o Ocidente acreditava. O setembro negro americano teve
toda a fúria de um retorno do recalcado, toda a violência destrutiva
de uma erupção vulcânica, como a que soterrou, há dois mil anos,
uma cidade situada a poucos quilômetros daqui, Pompéia. Em segun-
do lugar, a barbárie terrorista foi altamente técnica, e teve todas as
características de uma operação científica.
Em vista do nosso tema, quero me concentrar, aqui, nesse segundo
aspecto. Teria o desmoronamento do Trade Center refutado o axioma
de uma incompatibilidade de princípio entre a ciência e a religião?
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 107
É uma tese clássica do Iluminismo europeu. Para ele, a esfera
mítico-religiosa e a esfera da técnica e da ciência se opõem. Onde a
tradição religiosa permanece hegemônica, não há processos cumula-
tivos de desenvolvimento técnico; onde esses processos se desenvol-
vem, juntamente com o saber empírico que os viabiliza, não há
tradição religiosa intacta.
Max Weber levou adiante essa concepção, em sua análise do processo
de secularização. A ciência, inicialmente embutida na religião, diferen-
cia-se, como esfera de valor autônoma (Wertssphtire), juntamente com
outras esferas de valor - a arte, a moral, o direito. A ciência se instala
no espaço profano deixado pelo recuo do mito. É o desencantamento -
a Entzauberung. O progresso técnico-científico, possibilitado pelo de-
sencantamento, é, ao mesmo tempo, agente do desencantamento, pois
cada avanço do conhecimento empírico e da dominação sobre a natureza
representa um retrocesso do universo mítico-religioso.
Na descrição desse processo, Weber não toma necessariamente
partido pelo desencantamento. Pode-se até mesmo dizer que ele
demonstra certa nostalgia pelo mundo pré-secular, pois, segundo ele,
a Entzauberung teria exposto o homem à "perda de sentido", ao
Sinnverlust. Mas, de modo geral, os partidários da visão científica do
mundo não escondem sua hostilidade à religião, considerada incom-
patível com o conhecimento racional do mundo.
Na origem dessa atitude, está a campanha anti-religiosa dos filó-
sofos da Ilustração. A palavra de ordem de Voltaire - écrazez l 'infame
- resume a luta contra o obscurantismo religioso, que bloqueava o
pensamento independente. Kant transpõe a mesma idéia na forma só
aparentemente menos belicosa de um verso de Horácio: sapere aude,
ousa fazer uso de tua razão. Para ele, a religião oficial inibia e
censurava o entendimento, submetia a espírito a uma tutela ilegítima,
perpetuava a minoridade humana, e com isso paralisava o processo
do conhecimento.
De modo geral, esse modelo se manteve nos séculos 19 e 20.
Estimular o conhecimento significa libertar o homem dos grilhões
religiosos. É o que pensa Feuerbach, para quem a religião é a forma
alienada da essência humana, e para quem o saber passa pela supe-
ração dessa consciência alienada, reconduzindo o espírito ao solo de
onde brotou a ilusão religiosa, o firme chão da vida material.
108 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
Marx partilha a idéia feuerbachiana de que a religião é a simples
projeção de carências reais. Ela é "o suspiro da criatura oprimida, a
emoção de um mundo sem coração, a expressão espiritual de condi-
ções sociais desprovidas de espiritualidade". É certo que a crítica da
ilusão religiosa não é tarefa política prioritária, pois o alvo deve ser
a transformação das próprias relações das quais a religião é um
simples "aroma espiritual". Mas não resta dúvida de que para Marx
a religião continuava sendo a antítese da verdade científica. De um
lado, está a ciência do materialismo histórico, que dá acesso à
realidade, devassando as leis do movimento do capital, e, de outro,
a religião, que apresenta dessa realidade uma leitura mistificada, e
que mergulha os atores sociais na "falsa consciência", funcionando,
nesse sentido, como " ópio do povo".
Freud é herdeiro direto dessa tradição. Também para ele a religião
é uma ilusão, cuja razão de ser é prolongar o estado de infância,
fazendo o homem acreditar num pai supra-sensível, e tornar supor-
táveis, tanto os sofrimentos naturais, quanto os impostos por uma
sociedade injusta. A religião é um obstáculo para o progresso cien-
tífico, na medida em que oferece um atalho para pseudoverdades, em
detrimento do caminho longo e tortuoso que leva às modestas certe-
zas da ciência. Por isso, na melhor tradição do Iluminismo, Freud
endossa a opinião de Heine de que devemos abandonar o céu aos
anjos e aos pardais.
Segundo a tese da incompatibilidade entre a ciência e a religião,
o caminho está naturalmente traçado para os que desejam extirpar o
fanatismo religioso: basta desenvolver, ao máximo, o ensino cientí-
fico, mesmo que não se chegue ao extremo de adotar o ateísmo como
filosofia do Estado, como fez a União Soviética.
Ora, o drama de 11 de setembro submeteu a um duro golpe a tese
da incompatibilidade. Ficou evidente que a tecnociência e a religião
podem coabitar, sem grandes sobressaltos. Os terroristas conhecem
todos os segredos do capitalismo financeiro, porque seus líderes têm
contas em todos os países desenvolvidos e jogam na Bolsa com
extrema habilidade. Recrutam seus militantes através da Internet.
Têm, em seus quadros, técnicos formados no MIT e especialistas em
análise de sistemas. Osama bin Laden é engenheiro civil.Segundo
fitas gravadas depois da tragédia, gabou-se de ter usado seu ktiow-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 109
how para provocar o máximo de vítimas. Um dos seqüestradores
estudou numa universidade técnica alemã. Os autores dos atentados,
não somente sabiam pilotar os aviões que derrubaram as torres, como
tinham calculado exatamente a velocidade que os aparelhos deveriam
atingir no momento do impacto, a fim de que o desmoronamento
fosse total. E, para que não se diga que o radicalismo religioso é
compatível com o uso de uma tecnologia desenvolvida por cientistas
ocidentais, mas não com uma pesquisa científica de base capaz de
criar uma tecnologia própria, lembro que um dos físicos nucleares
mais brilhantes da Ásia, co-responsável pela fabricação da bomba
atômica do Paquistão, e que, segundo se afirma, teria vínculos com
a organização terrorista Al Qaeda, escreveu uma obra destinada a
provar cientificamente a existência dos seres imateriais mencionados
no Corão, os djinni.
Diante disso, teríamos que abandonar de todo a tese da incompa-
tibilidade, admitindo que ela traduz uma visão racionalista superada,
ou um anticlericalismo do século 19?
Não creio. Basta relativizar a tese, reafirmando que existe, sim,
contradição, mas somente entre certos tipos de conhecimento e a
religião, ou entre certos tipos de religião e o conhecimento. O conflito
desapareceria, quando entrassem em jogo outros tipos de conheci-
mento e outros tipos de religião.
Essa linha de análise nos leva a reexaminar cada um dos pólos que
constitui a relação entre conhecimento e religião.
II
Quanto ao primeiro pólo, sentimo-nos tentados a hierarquizar os
vários tipos de conhecimento segundo sua maior ou menor distância
com relação à religião.
Chamemos de conhecimentos do primeiro tipo aqueles em que
essa distância é mínima, ou inexistente. É o caso, em geral, da
teologia, que não pressupõe uma investigação neutra do seu objeto,
como a sociologia ou a psicologia da religião, e sim a adesão de
princípio aos conteúdos de uma religião revelada. No caso do extre-
mismo religioso, trata-se, sobretudo, do gênero de conhecimento que
se obtém nas escolas destinadas à preparação dos militantes. No
110 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
mundo muçulmano, essa escola é a madrash, em que os ulemás
ensinam o Corão e a lei islâmica, a chariah. Uma dessas escolas, na
cidade sagrada de Qum, no Irã, tornou-se célebre, porque uma de
suas estrelas era o ayatollah Khomeini. No mundo judaico, é a
yeshiva, onde os rabinos ensinam a Torah, o Talmude e a Cabala.
Essas escolas sempre foram bastiões da ortodoxia, a princípio diri-
gidas contra heresias, como a hassídica, depois contra o judaísmo
reformado, como o defendido por Moses Mendelsohn, a haskallah,
equivalente do Iluminismo, e hoje, no estado de Israel, contra o
estado secular. É nas yeshivot (plural de yeshiva) que se formam os
principais adeptos do sionismo messiânico, os mais fanáticos dos
fundamentalistas judeus. Finalmente, no mundo cristão, são as esco-
las bíblicas, como a Northwestern Bible School, o Moody Bible
Institute, e, em nossos dias, a Regent University, fundada pelo
tele-evangelista Pat Roberson, que, como indica o nome, prepara os
alunos para exercerem uma espécie de "regência", ocupando o poder
até a segunda vinda de Cristo.
Os conhecimentos ligados à tecnologia e, em parte, à ciência
natural configuram o que podemos denominar conhecimentos de
segundo tipo. São, ética e politicamente, neutros, limitando-se a
postular regularidades causais entre fenômenos da natureza ou a
extrair desse saber conseqüências instrumentalmente úteis. Esse tipo
de saber é, em princípio, indiferente a valores, e por isso pode ser
posto imparcialmente a serviço de todas as causas. As biociências
podem produzir microorganismos para uma guerra bacteriológica ou
medicamentos para o tratamento do câncer, e as novas tecnologias
de informação e comunicação servem para arrasar um país ou para
compor sinfonias, para a venda de mercadorias ou para acessar os
arquivos da Biblioteca do Congresso. É desse tipo de conhecimentos
que dispõem os extremistas religiosos. Tais conhecimentos são mais
distantes da religião que no caso anterior, porque sua produção e
disseminação não se destinam a fins religiosos, e podem ser mobili-
zados com a mesma facilidade pelos adversários dos movimentos
religiosos. Mas têm, apesar de tudo, forte relação com a religião, não
somente no sentido instrumental - não há extremismo religioso, hoje
em dia, sem armas modernas e sem a "espetacularização" mediática
que só pode ser produzida pelo que Derrida chama de tele-tecnociên-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 111
cia - mas no sentido negativo de não proporcionarem qualquer
imunização contra o irracionalismo religioso. São conhecimentos
que em nada contribuem para libertar a razão, desmentindo assim,
em parte, a convicção iluminista de que cada progresso do saber
significa vitória sobre os poderes irracionais do mito.
Enfim, a distância é máxima, no caso dos conhecimentos do
terceiro tipo. São os vinculados às ciências sociais, à filosofia e às
humanidades. Lidando com valores, inclusive com valores humanos
universais, transcendendo especificidades nacionais e culturais, tais
conhecimentos têm um compromisso com a razão e com a liberdade,
e, por isso, levam-nos a esperar que não possam ser facilmente
mobilizados pelo obscurantismo religioso. Uma sociologia de orien-
tação crítica, por exemplo, diria que se não estivessem imersos no
mito e na "falsa consciência" correspondente, os terroristas de
setembro teriam podido identificar as verdadeiras raízes do estado
de coisas contra o qual se batiam, e, em vez de lutarem contra o
Grande Satã e uma imaginária Cruzada antiislâmica, teriam concen-
trado seu combate numa luta a favor da democracia interna, contra
as tiranias teocráticas, sempre mais ou menos cúmplices dos interes-
ses imperialistas. O que vale, no campo cognitivo, vale, no campo
da avaliação moral. Uma imersão ampla nas humanidades, com tudo
o que elas comportam de questionamento e crítica, ou na história,
com seus inesgotáveis ensinamentos sobre a tirania e a resistência à
tirania, cria pelo menos uma presunção de que os indivíduos sujeitos
a esse processo não serão presas fáceis do fanatismo religioso. São
os conhecimentos de terceiro tipo que ilustram, de modo paradigmá-
tico, a relação contraditória entre saber e obscurantismo religioso,
postulada pelo Iluminismo. Há um antagonismo de princípio entre o
extremismo religioso e uma ciência social crítica, entre uma ideolo-
gia religiosa que bloqueia o pensamento e uma ciência que dá acesso
às verdadeiras relações sociais, além de todas as mistificações ideo-
lógicas. Há um conflito insuperável entre uma concepção heterôno-
ma da moralidade, em que os princípios da ação derivam da vontade
de Deus, e uma filosofia moral secular, pós-kantiana, em que a lei
moral é descoberta pela própria razão.
Dito isto, é preciso admitir que essas correspondências são muito
relativas, sobretudo no que diz respeito ao terceiro tipo de conheci-
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r
rnento. Por que reivindicar para a filosofia, as ciências sociais e as
humanidades um privilégio de extraterritorialidade com relação às
legiões de Deus? A tese de sua "imunidade" ao irracional se baseia
no pressuposto discutível de que os cultores dessas disciplinas pre-
servaram melhor que seus colegas dos Departamentos de Engenharia
ou de informática reservas intactas de consciência crítica, mas a
história não corrobora essa afirmação. Ela está cheia de exemplos de
coexistência pacífica entre uma rica civilização humanística e um
regime absolutista - basta lembrar a Florença dos Médicis, a França
de Luís XIV e a Áustria de Maria Teresa. A extraordinária tradiçãohumanística da Alemanha nada fez para impedir o nazismo. A
conivência de Heidegger com o Terceiro Reich não foi um caso
isolado. Tudo indica que as humanidades conviveram, sem grandes
atritos, com o Estado nacional-socialista. Dachau ficava a poucos
quilômetros de Munique, com suas pinacotecas e suas salas de
concerto, e Weimar, a cidade de Goethe, não ficava longe de Buchen-
wald. Alguns dos maiores carrascos nazistas, encarregados da "so-
lução final", na Europa do Leste, eram intérpretes sensíveis de Bach
e leitores atentos de Rilke. Durante a ditadura militar brasileira,
professores de latim denunciaram estudantes, psicanalistas transmi-
tiam dados sobre seus pacientes aos órgãos de informação e um
torturador aplicava choques elétricos ouvindo Beethoven. Por que os
cientistas humanos e os filósofos, que não demonstraram nenhuma
imunidade ao totalitarismo político, haveriam de desenvolver anti-
corpos contra o totalitarismo religioso? Basta lembrar os jovens
marxistas dos anos 70, que liam Marcuse em Berkeley e Stanford,
depois aderiram a seitas hindus, e hoje estão entre os partidários de
seitas apocalípticas, aguardando o fim do mundo e o advento do
Milênio.
Por que não se verifica uma correlação mais forte entre o conhe-
cimento secular do terceiro tipo e uma consciência crítica suscetível
de imunizar o homem contra a desrazão e a afastá-lo da ação irracio-
nal? Há quatro respostas para isso. A primeira vem do repertório do
freudo-marxismo. A razão pode ser desativada por mecanismos
afetivos (fenômenos de psicologia de massas, pulsão da morte,
racionalização e outros dispositivos de defesa) ou sociais (falsa
consciência e ideologia), levando o indivíduo, por maiores que sejam
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os conhecimentos de que dispõe, à não-percepção do real, ou à
percepção deformada. A segunda resposta é epistemológica. Não é
toda ciência social que predispõe para a atitude crítica, mas somente
a que abandonou o paradigma positivista. A terceira resposta tem a
ver com a filosofia moral. Só um platonismo muito dogmático
poderia fazer-nos crer, hoje em dia, na coincidência necessária entre
conhecimento e comportamento moral. Precisamos ser mais aristo-
télicos que socráticos, confiar no conhecimento, mas confiar mais
ainda no habitus, na disposição para a ação moral, para a virtude, que
não se adquire pela simples visão teórica do bem. E talvez precisemos
de boa dose de kantismo, voltando à idéia de uma concepção amplia-
da de razão, abrangendo, tanto a razão teórica, quanto a prática. À
luz dessa razão ampliada, uma tecnociência dissociada de valores
universais, justificáveis pela argumentação, seria tão unilateral e,
portanto, tão "irracional"quanto uma moralidade que recuse a ciên-
cia ou se prive dos meios de agir no universo da técnica. Essa
concepção ampliada de razão permite compreender por que o extre-
mismo religioso é congruente com os conhecimentos do primeiro
tipo; por que o fanatismo não é inibido pelos conhecimentos do
segundo tipo; e por que a "vocação" humanista e libertadora dos
conhecimentos do terceiro tipo é posta fora de circuito. É que, nos
três casos, há um déficit de racionalidade, que faz com que o vetor
técnico-cognitivo da razão seja mobilizado, mas não seu vetor nor-
mativo, que julga a legitimidade das ações à luz de critérios univer-
sais. A quarta resposta é política. O livre debate democrático é
condição essencial para evitar todas as patologias do pensamento,
inclusive a patologia religiosa. A democracia pode favorecer a pre-
gação pela televisão do extremismo religioso, mas somente a demo-
cracia permite o pluralismo, sem o qual a mensagem dos fanáticos
poderia se tornar hegemônica. A falta de cultura democrática na
Alemanha pode ajudar a entender por que tantos filósofos faziam
seminários sobre Platão, enquanto a barbárie urrava às suas portas.
III
Passemos agora ao segundo pólo da nossa relação. Assim como
distinguimos entre tipos de conhecimento, precisamos agora distin-
114 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
r
guir entre tipos de religião. Para nossos fins, basta diferenciar entre
a variante fundamentalista, que se baseia numa interpretação literal
dos textos sagrados, em práticas rituais rigorosas, derivadas desses
textos, numa visão idealizada do passado, supostamente livre da
corrupção contemporânea, e num desejo de reorganizar a sociedade
e o Estado à luz da lei divina; e a variante racional, baseada numa
interpretação flexível das Escrituras, e que aceita plenamente o
secularismo moderno.
Foi a variante fundamentalista que ocupou a primeira página de
todos os jornais, depois dos acontecimentos de 11 de setembro, mas
é preciso dizer que a expressão foi usada principalmente para desig-
nar o fundamentalismo islâmico. Esse uso é correto, mas limitado.
Se quisermos entender a dimensão ideológica da crise, precisamos
dar-nos conta de que houve três fundamentalismos envolvidos no
conflito, e não apenas um: o fundamentalismo islâmico, sem dúvida,
mas também o judaico e o cristão.
Em sua acepção mais geral, o fundamentalismo islâmico prega
uma volta às origens religiosas do Islã e uma reforma dos costumes
e da sociedade segundo os preceitos da shar'ia, da lei do Corão. O
termo recobre uma multiplicidade de tendências. Entre elas, há uma
orientação radical, que recorre à violência para atingir seus fins. O
fundamentalismo radical operou, a princípio, num quadro nacional.
Foi o caso de movimentos como o Al Jihad, baseado no Egito,
responsável pelo assassinato de Sadat, e o GLA, da Argélia, autor de
inúmeros massacres. Mas, com o tempo, o fundamentalismo radical
passou a atuar num quadro internacional. O exemplo mais espetacu-
lar foi o do Al Qaeda, dirigido por Osama bin Laden, que queria
fundar um califado pan-islâmico, tinha em seus quadros, entre outros,
egípcios, jordanianos, iemenistas e sauditas, e instalou pontos de
apoio em quase 50 países.
O fundamentalismo judaico se manifesta sob a forma de uma
ritualização escrupulosa da vida cotidiana segundo todos os preceitos
da lei religiosa, da Hálachá. Podemos distinguir entre dois agrupa-
mentos fundamentalistas. Por um lado, há os judeus Haredim, basi-
camente apolíticos, que, em geral, rejeitam o próprio Estado de Israel,
considerando-o excessivamente secular. Para eles, a lei de Deus tem
valor absoluto, e deve ser observada em todos os seus detalhes. A
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 115
^
atividade central dos homens é a oração, e o papel das mulheres é
procriar e assegurar pelo seu trabalho a vida material da família,
liberando o homem para o cumprimento dos seus deveres religiosos.
A educação dos filhos se esgota na educação religiosa. Devem-se
evitar contatos com pessoas alheias à própria comunidade. Contra os
judeus liberais, que propugnam a integração com a sociedade local,
os fundamentalistas cultivam uma atitude sistemática de auto-segre-
gação, tanto com relação aos gentios como com relação a outras
tendências do próprio judaísmo. O outro grupo fundamentalista é
constituído pelos sionistas religiosos, muito diferentes dos primeiros
sionistas, nacionalistas e seculares. É desse grupo, partidário feroz
da colonização na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, e hostil a qualquer
tipo de negociação de paz, que vieram fanáticos como Baruch Golds-
tein, que massacrou dezenas de árabes na gruta dos Patriarcas, em
Hebron, e Yigal Amir, que assassinou o primeiro Ministro Rabin.
O fundamentalismo cristão tem uma vertente católica, o integris-
mo, que remonta ao antiliberalismo e ao antimodernismo do Sylla-
bus, de Pio IX. No entanto, foi no protestantismo norte-americano
que o fundamentalismo floresceu. O próprio nome nasceu nos Esta-
dos Unidos, a partir de uma série de fascículos publicados entre 1909
e 1915, em que pastores de várias denominações relacionaram os
fundamentais,ou pontos fundamentais, da fé cristã, dos quais nenhu-
ma das igrejas poderia se desviar. O principal desses pontos era a
infalibilidade da Bíblia. O fundamentalismo protestante expôs-se ao
ridículo mundial, quando um professor secundário do estado de
Tennessee foi processado por ter ensinado o evolucionismo na escola,
contrariando uma lei estadual. Mas os fundamentalistas continuam
vivos e atuantes. Durante a guerra fria, desfraldaram a bandeira do
anticomunismo e hoje combatem o feminismo e o homossexualismo.
Como os fundamentalistas islâmicos e judaicos, têm uma corrente
violenta, que pratica atentados contra clínicas de aborto. Em geral
são pré-milenaristas, isto é, acreditam na volta de Cristo antes do
início do Milênio, profetizado no Apocalipse. Defendem um patrio-
tismo messiânico, vendo a América como a nação eleita. A direita
religiosa fundamentalista transformou-se numa irresistível força
eleitoral, impondo sua ideologia a todos os candidatos a cargos
eletivos. Seu poder já ultrapassa os Estados Unidos. Muitas das seitas
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evangélicas e pentescostais que hoje atuam no Brasil, por exemplo,
são ramificações do fundamentalismo norte-americano.
Direta ou indiretamente, os três fundamentalismos estiveram pre-
sentes na tragédia do dia 11 de setembro e em suas seqüelas.
Na origem, está o conflito árabe-israelense, porque foi principal-
mente na qualidade de "cúmplices" do Estado de Israel que os
americanos foram "punidos". Ora, esse conflito está sendo condu-
zido, em grande parte, por facções fundamentalistas islâmicas (Ha-
mas, que atua nos territórios palestinos, Hisbollah, com base no
Líbano), e por fundamentalistas judeus, alguns atuando através de
organizações extremistas inspiradas por radicais como o rabino Meir
Kahane, que pretende restaurar o estado de Israel tal como descrito
na Bíblia. O mínimo que se pode dizer é que esses dois fundamenta-
lismos dificultam o processo de paz. Quanto ao fundamentalismo
islâmico, não é preciso acentuar a irracionalidade de um movimento,
por mais justificados que sejam os seus fins, que opera através do
suicídio dos seus militantes. Mas os judeus fundamentalistas, mesmo
quando não-violentos, também não são exemplos de lucidez. Suas
opiniões sobre temas gravíssimos, como os limites territoriais do
estado de Israel e a questão correlata da legitimidade dos assenta-
mentos em territórios ocupados, são mais influenciadas pelas pro-
messas feitas por Deus aos patriarcas que pelas realidades contem-
porâneas do conflito com os árabes. É o peso eleitoral dos partidos
religiosos ultra-ortodoxos, que impossibilita a formação de um go-
verno estável de centro-esquerda, sem o qual uma verdadeira nego-
ciação com os palestinos não pode ser bem-sucedida.
As primeiras reações oficiais e populares aos atentados nos Esta-
dos Unidos deram a impressão de que entrara em cena um terceiro
fundamentalismo, o cristão. Os valores seculares que sempre carac-
terizaram a democracia americana pareciam estar sendo erodidos
com um fervor bíblico digno dos puritanos que chegaram à América
no "Mayflower". O Presidente da maior potência da terra disse que
o conflito que se aproxima será uma guerra monumental do bem
contra o mal, e que Deus, cujo direito à neutralidade o Presidente
contestou, estava do lado dos americanos. Os ayatollahs do Pentá-
gono não fizeram por menos: batizaram a operação antiterrorista de
Justiça Infinita, termo de origem claramente bíblica, porque só a
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justiça divina pode ser considerada infinita. Em suma, a direita
religiosa americana, sempre influente na vidapolítica do país, parecia
ter tomado o poder. Talvez houvesse o dedo dos fundamentalistas até
no superpatriotismo com que a nação inteira reagiu à crise, porque
vimos que, para eles, a América é a nação eleita: amar Deus e amar
a América são duas faces da mesma moeda.
Se os atentados de setembro acentuaram a aversão da opinião pública
ocidental ao fundamentalismo, tem-se a impressão de que, em compen-
sação, aumentaram a receptividade para a variante racional da religião.
Não se pode mais dizer o que um famoso jornalista do século 19 alegou,
ao recusar a publicação de um artigo sobre a religião: "Dieu n'estpás
un sujet d'actualité". Surgiu um novo estado de espírito, que não é a
nem anti-religioso, como no Iluminismo e no século 19, nem apologé-
tico, como na vaga neotomista do período de entre-guerras (Maritain)
ou na trilha de Jean Guitton ou Teilhard de Chardin, com suas tentativas
de reconciliar a ciência e a fé.
Em nenhum momento, o secularismo moderno é posto em xeque,
mas ele se torna agora curiosamente hospitaleiro a formas "civiliza-
das" de religiosidade. O modelo remoto talvez seja "A religião
dentro dos limites da simples razão", de Kant, em que o filósofo
tentou traduzir em termos morais, segundo categorias puramente
seculares, os principais conceitos do cristianismo, como o mal, o
pecado e a expiação.
Os primeiros sintomas do que poderíamos chamar, com algum
sensacionalismo, a volta de Deus, antecederam de pouco os atenta-
dos, e talvez tenham servido como sismógrafos dos novos tempos.
Entre os textos mais interessantes que se publicaram a respeito,
está o livro de Luc Ferry, " O Homem-Deus ou o sentido da vida". É
certo, diz o autor, que a modernidade acarretou uma "perda de
sentido", porém ela pode ser compensada graças aos recursos forne-
cidos pela própria modernidade. A modernidade, com efeito, signi-
fica a humanização do divino, a ascensão irreversível do secularismo.
Foi um extraordinário progresso para o espírito humano, porque
permitiu ao homem, enfim, pensar por si mesmo. Mas a modernidade
também comporta um movimento oposto, que Ferry chama de divi-
nização do humano. A humanização do divino implica o fim das
transcendências "verticais", autoritárias, situadas fora e acima do
118 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
sujeito. Nesse sentido, a modernidade é o reino da imanência. Mas é
possível, também, nas entranhas da imanência, pensar algo que a
transborda, um estar-fora-dela, um extravasamento em direção a
transcendências "horizontais", livremente consentidas, puramente
humanas. É a divinização do humano. A força motriz da transcen-
dência horizontal é o amor, que leva os sujeitos a ultrapassarem sua
interioridade monádica para alcançarem o Outro. Ora, é a moderni-
dade que permite o advento desse amor.
Baseando-se nas análises de Philippe Aries, Ferry afirma que o
amor sentimental, conjugai e parental não existia em épocas pré-mo-
dernas, em que o desejo físico reinava sem partilha e a família era
uma entidade predominantemente patrimonial. A modernidade en-
gendrou uma forma específica de amor. O amor moderno não deve
ser pensado como Eros, pois este pressupõe a falta do objeto amado
e se extingue com a gratificação do desejo, e sim como philia, no
sentido de Aristóteles, como uma afeição que exige, pelo contrário,
a presença viva e constante do ser amado. A philia, por sua vez,
remete a outro tipo de amor, o agape cristão, sentimento que nos liga
mesmo aos que nos são indiferentes, mesmo aos nossos inimigos, e
tem como horizonte virtual a humanidade inteira.
Ferry chama de "humanismo transcendental" essa perspectiva
que parte da imanência moderna para chegar a uma transcendência
cujas condições de possibilidade são dadas pela própria modernida-
de. Humanismo, porque não é mais possível recuar para posições
pré-modernas, em que o homem ocupava lugar secundário com
relação ao divino. Mas humanismo transcendental, porque instaura-
dor de valores que excedem uma definição puramente imanentista
do humano. O homem não é o produto cego de uma rede de causali-
dades que se dão à sua revelia, e é por isso que essa imanência se
abre para a liberdade e para a esperança.
Mas, com isso,se põe a questão das relações entre o humanismo
transcendental e a religião cristã. Esse homem divinizado que a
reflexão imanente encontra, no fim do seu percurso, não é um
Prometeu que roubou o fogo do Olimpo, nem um Lúcifer que usurpou
o trono de Deus, e sim, muito cristãmente, um ser capaz de amor e
de caridade, que quer completar a philia com o agape e estender a
todo o gênero humano o amor que ele tem pelos seus próximos. Ferry
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 119
não recua diante dessas implicações religiosas. Como o Cristianismo,
o novo humanismo sustenta a existência de valores transcendentais
a partir do amor; acha que esses valores não podem sempre ser
explicados pela razão; acredita que esses valores são religiosos no
sentido etimológico de religare, de criarem um vínculo entre todos
os homens; afirma que eles constituem um domínio que deve ser visto
como sagrado; e pensa que eles fundam um vínculo com a eternidade
e com a imortalidade, porque são valores pelos quais vale a pena lutar
e morrer, e, portanto, se situam além da vida terrena. Somente, não
se trata de uma religião a priôri, que vem antes do humano para
dar-lhe uma legitimidade, mas a posteriori, pois é descoberta pelo
homem no interior da imanência. Ela não está na origem, mas no fim.
Não está numa tradição, a montante da consciência, mas a jusante,
como algo a ser construído e pensado. Não é mais possível aceitar a
religião cristã em sua forma, que é a da heteronomia, baseada num
magistério ex cathedra, inadmissível desde que a modernidade fun-
dou a liberdade da razão. Mas convém meditá-la em seu conteúdo,
enquanto mensagem de amor. As relações sociais da época não
permitiram concretizar esse conteúdo, mas emancipado de sua forma
pelo advento dos novos tempos, ele pode finalmente se realizar, como
conseqüência paradoxal daquela mesma modernidade que aparente-
mente deveria tê-lo esvaziado. Desse modo, torna-se de novo possí-
vel pensar a questão do sentido, porque o humanismo transcendental,
lidando com princípios e valores últimos, pode responder a perguntas
que não estão ao alcance do mero saber empírico.
O livro de Ferry foi um precursor importante do novo Zeitgeist,
mas foi depois dos atentados que esse espírito adquiriu contornos
mais nítidos.
Impossível mencionar todas as publicações pós-setembro de 2001
que têm se ocupado com a religião, e que culminaram com o lança-
mento, em novembro, do volumoso volume de Régis Debray, "Dieu,
un itinérairé". Por isso, quero limitar-me a três textos.
O discurso de Jürgen Habermas, ao receber o Prêmio da Paz,
concedido em outubro de 2001 pela Câmara alemã do livro, foi dos
mais significativos. Habermas não faz, pura e simplesmente, o elogio
do laicismo, como seria de esperar num sociólogo de origens mar-
xistas, mas fala numa sociedade pós-secular, em que não há nenhum
120 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
sinal do desaparecimento da religião, apesar de todas as pressões
secularizadoras. Sem dúvida, a religião precisa aprender a conviver
com outras igrejas, tem que aceitar a autoridade da ciência, e deve
aceitar as regras do jogo democrático, que obrigam o Estado a seguir
os ditames de uma moral profana. Além disso, os crentes devem
"traduzir" suas convicções religiosas numa linguagem leiga, se
quiserem que seus argumentos sejam debatidos no espaço público.
E o que ocorre, por exemplo, quando católicos e protestantes articu-
lam sua visão religiosa da sacralidade do feto na linguagem secular
dos direitos humanos. Mas o processo de aprendizado não pode ser
uma rua de mão única. Os não-crentes devem também fazer um
esforço de aproximação, tornando-se sensíveis aos potenciais semân-
ticos da tradição religiosa, que muitas vezes se perdem quando
transpostos na linguagem profana. É o que acontece, quando o
pecado se converte em culpa, e a transgressão dos mandamentos
divinos é transformada em violação das leis humanas. Não há equi-
valente secular para o conceito de perdão, que envolve a anulação do
sofrimento imposto aos outros, e não a mera reparação de uma
injustiça. O fim da idéia de ressurreição torna irrealizável aquela
esperança desesperada de Walter Benjamin, ele próprio profunda-
mente influenciado pela religião, de salvar os mortos, corrigindo,
pela rememoração, todos os massacres da história. Por isso, Haber-
mas é a favor, sim, da secularização, mas de uma secularização que
preserve os conteúdos da religião, em vez de aniquilá-los. Essa forma
de secularização nos induz a distanciar-nos da fé, sem nos fecharmos
às suas intuições. Uma sociedade civil pós-secular, conclui Haber-
mas, pode haurir na religião, mesmo quando dela se afasta, os
recursos de sentido que se tornam cada vez mais escassos numa
sociedade dominada pelo mercado.
Dois meses depois dessa palestra, em dezembro do mesmo ano,
Habermas fazia a laudatio de Richard Rorty, por ocasião da outorga
do Prêmio Mestre Eckhart ao filósofo americano. Havia um certo
humor surrealista na concessão de um prêmio com o nome do místico
alemão a um pensador declaradamente ateu, como Rorty. O filósofo
não deixou de salientar esse paradoxo, mas isso não o impediu de
consagrar a totalidade de sua conferência à religião. Sinal dos tem-
pos? Talvez, porque em vez de argumentar a favor do ateísmo, Rorty
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 121
referiu-se com muita simpatia a um texto do filósofo italiano Gianni
Vattimo, em que ele faz uma profissão de fé católica. Para Vattimo,
o cristianismo não tem nenhuma relação com a verdade, e, por isso,
não pode ser refutado, (posição digna de aplauso para um filósofo,
como Rorty, treinado na tradição da filosofia analítica), mas tem
relação com o amor, nos termos do capítulo 13 da primeira epístola
de São Paulo aos Coríntios. No momento de tornar-se homem, Deus
abriu mão, por amor, em favor dos homens, de todo o seu poder e de
toda a sua autoridade. O cristianismo consiste nessa auto-alienação
de Deus, e, por isso, a secularização é a característica constitutiva da
experiência religiosa autêntica. O divino está justamente nessa au-
sência de Deus. Rorty conclui dizendo que sua principal divergência
com Vattimo está em que para o italiano o sagrado está no passado,
no ato amoroso pelo qual Deus renuncia à sua dominação sobre os
homens, enquanto para ele, Rorty, está numa esperança futura, num
estado de coisas em que os homens fossem livres e tanto quanto
possível iguais. Não sei se Rorty leu "A missa de um ateu", de
Balzac, mas a conclusão do seu discurso poderia ter como título "A
profecia de um ateu". Seu ateísmo soa estranhamente religioso. Sua
utopia se parece nos mínimos pormenores com uma utopia messiâ-
nica, e, para não deixar dúvida, faz questão de usar, para descrevê-la,
o adjetivo " sagrado".
Que dizer, agora, da relação desses dois tipos de religião com o
conhecimento?
No que diz respeito ao fundamentalismo, há um nexo óbvio de
congruência com o conhecimento do primeiro tipo, pela razão per-
feitamente circular de que este destina-se a preparar quadros para a
militância fundamentalista. Quanto ao conhecimento do segundo
tipo, vimos que não há nenhuma incompatibilidade com a tecnologia
mais avançada, nem com as ciências naturais que possam ser instru-
mentalizadas para as ações fundamentalistas, mas há uma resistência
tenaz às doutrinas científicas que estejam em contradição com uma
interpretação literal dos textos sagrados. Foi o que aconteceu no
passado quando os guardiões da ortodoxia católica condenaram o
heliocentrismo, ou quando as descobertas da geologia passaram a
entrar em choque com a cronologia bíblica. E é o que acontece até
hoje no fundamentalismo protestante, que recusa o evolucionismo
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de Darwin em nome de um criacionismo dogmático, ignora a medi-
cina e a psiquiatria moderna, praticandoo exorcismo, e contesta
todos os princípios da atual hermenêutica da Bíblia. Enfim, o funda-
mentalismo tem hostilidade de princípio aos conhecimentos do ter-
ceiro tipo, compostos ou de ciências humanas comprometidas com
a visão secular do mundo, ou com valores humanistas que, por isso
mesmo, são alheios ao sagrado. Por isso, o fundamentalismo condena
o feminismo, o homossexualismo, a tolerância religiosa, a educação
leiga. Os mais desinibidos dentre os fundamentalistas não hesitam
em chamar esses valores de diabólicos.
Quanto à religião racional, podemos afirmar, depois que Roma
desistiu de condenar as proposições científicas que estivessem em
desacordo com as Escrituras, que essa forma de religião só está em
contradição (em tese) com os conhecimentos de primeiro tipo trans-
mitidos pelas seitas fundamentalistas.
IV
Esclarecida a relação entre conhecimento e religião, voltemos ao
ponto de partida, especulando sobre o lugar da religião na sociedade
do conhecimento.
Mas, antes, é preciso elucidar esse conceito. Podemos definir a socie-
dade do conhecimento por analogia com a "sociedade informacional",
conceito criado por Manuel Castells. Segundo Castells, ela designa a
"forma específica de organização social em que a geração, o processa-
mento e a transmissão da informação transformam-se nas fontes funda-
mentais da produtividade e do poder, devido às novas condições tecnoló-
gicas que emergiram no período histórico considerado".
Analogicamente, podemos dizer que uma sociedade de conheci-
mento seria aquela em que o conhecimento fosse o principal deter-
minante da organização social, e em que todas as camadas sociais,
em todos os países do mundo, tivessem chances simétricas, assegu-
radas por processos democráticos, de âmbito tanto nacional quanto
global, de participar da geração, processamento, transmissão e apro-
priação do conhecimento, considerado em seu sentido integral,
abrangendo, não somente as disciplinas técnico-científicas, como a
filosofia e as humanidades.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 123
Como se vê, não se contesta a importância atribuída por Castells
à informação, mas não é ela, nas condições contemporâneas, que
determina os rumos do todo social, e sim o conhecimento. A infor-
mação é indispensável para assegurar a gestão da economia e para
facilitar o processo de aquisição e difusão do conhecimento, mas é
este, e não a informação, por mais indispensável que ela seja, que
constitui a força motriz do desenvolvimento capitalista, em sua fase
atual. Sem a informação, sem sua difusão instantânea em todas as
articulações do capitalismo global, não seria possível mobilizar os
fluxos financeiros que se deslocam através das fronteiras, nem tomar
as decisões transnacionais sobre localização e deslocalização de
empresas, sobre criação e fragmentação de conglomerados, ou sobre
políticas de contratação e demissão de mão-de-obra, que constituem
a essência da gestão econômica, na fase do capitalismo globalizado.
Sem a informação, as decisões políticas não teriam a velocidade neces-
sária. Sem ela, nenhuma guerra moderna poderia ser conduzida. Sem
ela, enfim, os pólos de geração do conhecimento não poderiam funcio-
nar. Mas é este que desempenha o papel decisivo, e não a informação,
que tem função importantíssima, mas ancilar. Sabe-se, desde muito, que
os cientistas e técnicos constituem a força de trabalho fundamental na
nova etapa do capitalismo, o que significa que o conhecimento conver-
teu-se no input estratégico da nova sociedade.
Meu conceito de sociedade do conhecimento parte dessa realidade,
mas tenta diminuir seus aspectos negativos. Para que os técnicos e
cientistas, civis e militares, não se transformem em nova e assustadora
elite de poder, com jurisdição sobre a terra inteira, é preciso destacar a
importância da democracia e do estado de direito, as únicas instâncias
capazes de impor freios à dominação ilegítima. Em vista dos limites das
democracias nacionais, que não têm nenhum poder sobre as decisões
tomadas nos estados hegemônicos, é preciso pensar numa democracia
mundial, em que o demos seria a humanidade como um todo. Para que
o gap digital, que separa os países detentores das novas tecnologias dos
demais membros da comunidade internacional, não se transforme numa
versão ainda mais sinistra do gap de renda, que separava e continua
separando os países industrializados dos países em desenvolvimento, é
preciso prever mecanismos que eliminem as assimetrias de conheci-
mento entre os países. Para corrigir as características excludentes do
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capitalismo global, é preciso imaginar o acesso igualitário de todos
ao estoque universal de conhecimento. Finalmente, para que o co-
nhecimento não se limite à ciência natural e à técnica, o que daria
traços odiosamente tecnocráticos ao novo modelo de sociedade,
transformando-a num paraíso de engenheiros e de analistas de siste-
mas, é preciso dar ênfase idêntica a outros tipos de conhecimento,
como as ciências humanas, a filosofia e as humanidades.
Utopia? Sem dúvida. Mas há boas e más utopias, e a nossa procura
ser uma utopia concreta, no sentido de Ernst Bloch, uma utopia
movimentada pela esperança, mas uma esperança instruída por ten-
dências já presentes no real, uma docta spes, e não uma simples
fantasmagoria subjetiva.
Podemos agora reformular nossa pergunta: haveria um lugar para
a religião na sociedade de conhecimento, assim definida?
Não, no caso do fundamentalismo; sim, tratando-se da religião
racional.
,/
No entanto, não basta dizer não ao fundamentalismo. E preciso
combatê-lo. E não basta combatê-lo no plano das idéias, como se o
esplendor da ciência fosse suficiente para dissipar as trevas da
ignorância, no gênero da Flauta Mágica, de Mozart: "Die Strahlen
der Sonne vertreiben die Nacht", os raios do sol expulsam a noite. É
preciso um esforço para identificar as causas desse fenômeno e adotar
as ações necessárias para removê-las.
Quais as causas do fundamentalismo? Há fatores conjunturais. A
guerra no Oriente Médio estimula a fuga para soluções irracionais,
quando todas as vias políticas parecem estar bloqueadas. É um
processo circular, segundo o qual a paz é dificultada pelo fanatismo
religioso dos dois campos, e a total falta de perspectivas de uma paz
durável favorece a exacerbação religiosa. Mas há fatores estruturais,
alguns dos quais são específicos e outros se aplicam a todas as
variantes do fundamentalismo. No caso do fundamentalismo islâmi-
co e do fundamentalismo "pentecostal" brasileiro, podemos apontar
a anomia resultante do processo de urbanização, a dissolução dos
vínculos tradicionais de solidariedade, a discriminação étnica, a
marginalidade social, e a perda de prestígio do marxismo como
religião laica. Entre os fatores comuns, aplicáveis a todas as variantes
do fundamentalismo, estão a dificuldade de inserção na economia,
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 125
numa fase em que o capitalismo tem características estruturalmente
excludentes, e a desorientação diante do desaparecimento dos valores
tradicionais, em conseqüência do processo de globalização. Com sua
capacidade de recriar nexos de solidariedade grupai, de dotar a vida
de sentido e finalidade, de inventar um passado mítico em que não
existiam as tensões e as incertezas do mundo contemporâneo, de
alimentar a esperança numa vida futura que possa compensar todas
as humilhações do presente, e de fazer da religião uma trincheira de
resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras pro-
vocadas pela globalização, o fundamentalismo parece constituir uma
resposta para todas as frustrações da vida moderna.
Muito pode ser feito, mesmo nas condições atuais, para atenuar os
males do fundamentalismo, mas é evidente que só a democracia
mundial pressuposta por nosso modelo de sociedadedo conhecimen-
to terá os meios de ação necessários para agir sobre as causas. Ela
poderá atuar no plano conjuntural, através de uma pressão multilate-
ral efetiva sobre as partes envolvidas, que permita solucionar confli-
tos como o do Oriente Médio. E poderá atuar sobre os fatores
estruturais, através de uma educação leiga para todos, que permita
neutralizar os efeitos negativos da tradição religiosa, através de
programas de desenvolvimento econômico, que corrijam os efeitos
da exclusão social, através da implantação generalizada de processos
democráticos, que assegurem uma participação política comunitária,
capaz de superar o isolamento decorrente de uma urbanização preci-
pitada, e, sobretudo, através de medidas internacionais capazes de
lidar com as patologias sociais e culturais geradas pela globalização.
É uma agenda colossal, mas talvez só a esse preço seja possível
inserir bilhões de seres humanos nos circuitos da sociedade do
conhecimento, tornando irrelevante o fundamentalismo.
Quanto à religião racional, ela pode ser acolhida de pleno direito na
sociedade do conhecimento, porque aceita o princípio básico da moder-
nidade político-cultural, o respeito aos princípios seculares. A dar
crédito a Ferry, é mesmo a secularização que permite dar corpo a um
ideal cristão que até então tinha ficado irrealizável, o ideal da fraterni-
dade universal. Vattimo chega ao ponto de ver no secularismo a própria
marca do divino. Nesse sentido, a religião não constitui nenhum obs-
táculo à plena implantação da sociedade do conhecimento.
126 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
Mas a religião está condenada apenas ao papel negativo de não
interferir com a sociedade do conhecimento, ou teria também um
papel positivo nessa sociedade? Noutras palavras, além de não inibir
o conhecimento secular, poderia ela também contribuir com um saber
específico, que pudesse enriquecer a sociedade do conhecimento?
Habermas nos permite entrever uma resposta positiva. Sim, a
religião pode ser uma voz que vem do sagrado, de um mundo
imemorial muito anterior à secularização, trazendo-nos uma mensa-
gem de sabedoria que se perdeu na tradução moderna. Podemos
compreender Eichmann sem usar a linguagem religiosa do mal, do
diabólico? Podemos levar a sério o Presidente dos Estados Unidos,
quando ele pede desculpas, apologizes, pela escravidão, em vez de
pedir perdão? Podemos abrir mão, na política moderna, das catego-
rias de remorso, expiação e promessa? Se considerarmos que essas
e outras categorias são importantes, temos que reconhecer à fé um
papel na sociedade de conhecimento. A religião estaria contribuindo
com um conhecimento próprio, com uma antiga fronesis, diferente
da mera episteme moderna, com uma sagesse, que pode complemen-
tar a ciência, sem deformá-la. Podemos, assim, emendar nossa defi-
nição da sociedade do conhecimento, incluindo entre os conhecimen-
tos que ela comporta os de caráter religioso, respeitados os preceitos
do secularismo moderno.
O próprio conceito de sociedade do conhecimento talvez possa ser
visto como a secularização de um dos atributos do divino, a oniciên-
cia. Essa idéia pode impelir sempre para a frente a sociedade do
conhecimento, movida pela miragem de um saber absoluto. Mas o
repertório simbólico da religião pode fornecer também um corretivo
para o que essa noção tenha de desmedido. Há uma autolimitação
que também vem do sagrado, de uma religiosidade paga expressa no
conceito de hubrís, orgulho insensato que expõe o homem à punição
dos deuses, e de uma religiosidade bíblica expressa na idéia do
pecado original, castigo hereditário resultante da pretensão sacrflega
de aceder a uma ciência reservada a Deus. Como impulso utópico e
como consciência dos limites, a religião tem um lugar assegurado na
sociedade do conhecimento." Com a passagem da nostalgia religiosa
para a práxis social consciente", escreveu Horkheimer, em 1935,
"sobrevive sempre uma ilusão, que pode ser refutada, mas não
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002 127
exorcizada. ... A humanidade perde a religião ao longo do seu
caminho, porém ela não desaparece sem deixar vestígios. Em parte,
os impulsos e desejos que a crença religiosa preservou se desprendem
da fôrma que os tolhia, e ingressam, como forças produtivas, na
prática social".
128 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 107/128, jan.-mar., 2002
SABER E RAZÃO NO OCIDENTE MUÇULMANO
O CASO DA ARGÉLIA
Fatrna Oussedik
Pode parecer estranho, neste começo do século XXI, apresentar uma
comunicação cujo objeto central é uma interrogação sobre o caráter
legal de um saber fundado na razão, em determinada cultura. No caso,
a dos mundos muçulmanos. É evidente que não é esta a questão a que
desejo responder, dado que ela corresponderia à pergunta "Os muçul-
manos são capazes de fazer uso da razão?" (Por muçulmanos entendo
aqueles que reconhecem no Livro seu ponto de referência)
Entretanto, sob os bombardeios maciços que se observam no
Afeganistão e nos comentários a respeito das imagens de jovens
correndo em direção à morte, esta pergunta é feita aos muçulmanos,
da mesma forma que se pergunta se a cultura ocidental está apta a
registrar o exercício da razão pelos muçulmanos.
Ao mesmo tempo, o Ocidente registra que ele não conseguiu
assimilar (no sentido de deglutir) culturas tão ricas quanto pode ser
a muçulmana.
Não existe uma razão muçulmana, mas sim condições de exercício
da razão como categoria de pensamento nos países muçulmanos.
Tampouco essas sociedades deram globalmente seu assentimento a
uma cultura "mundo". Não se trata do Islã, mas dos muçulmanos,
das sociedades em que vivem e das relações que mantêm com as
categorias do Saber e da Razão.
Nesta comunicação, gostaríamos de apresentar definições e metodolo-
gias do saber que se empregaram no Ocidente muçulmano, suas incidências
sociais e o estado de sua transmissão através dos sistemas de ensino.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 129
Estas atestações dizem respeito particularmente a um país como a
Argélia, que será o ponto de partida de nossa reflexão.
Metodologia do Saber: o assentimento e a controvérsia
A história do pensamento muçulmano refere-se, pelo menos, a três
modos maiores de conhecimento, que definiremos a seguir:
1) O do comentário, que tem como ponto de referência a obra de
Ibn Taymiya (661-728), "Epístola sobre o Sentido da Analogia"
(rissalatoun fi mana-l-qiyas). O qiyâss, a analogia, é utilizada no
comentário pelos primeiros pensadores. Ela é, necessariamente, eru-
dita, visto que ela pressupõe, quando menos, um conhecimento da
língua e da tradição dos comentadores, mais elevada que a da média.
2) O do racionalismo contido na obra " O Discurso Decisivo" (fasl
elmaqal), de Ibn Rochd1 (l 126-1198), que se apoia na demonstração
e que consigna a diversidade nos modos de saber de acordo com a
seguinte distinção: "Há uma hierarquia das naturezas humanas, no
que diz respeito ao assentimento: certos homens assentem em virtude
da demonstração; outros assentem em virtude dos argumentos dialé-
ticos, com um assentimento semelhante ao dos primeiros ..." (pará-
grafos 14 e 15 do "Discurso Decisivo").
3) O que combina a mística e o racionalismo, contido no livro " O
Vivo, Filho do Desperto" (Hay ibn Yaqdhari), de Ibn Tofail, contem-
porâneo de Ibn Rochd (1100-1181), que se serve da referência à
intuição sensível.
Podemos reter que o acesso ao saber se manifesta pelo assentimen-
to e que a capacidade de conhecer implica o emprego de meios
intelectuais diversos, entre os quais se encontram os argumentos
dialéticos, a intuição e a controvérsia.
Assentimento e controvérsia representam duas ordens que nos
falam de sociedades e de condições de acesso e exercício do pensa-
mento: uma delas nos remete à relação de submissão diante do saber
e, talvez, de seu detentor; outra, à utilização de capacidadese, por
conseguinte, à liberdade de pensamento.
4) A controvérsia é pré-condição do assentimento: os ditos de Ibn
Rochd, com efeito, foram formulados num contexto intelectual em
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
que o debate, ou, mais precisamente, a controvérsia entre o exercício
da razão, o comentário e a utilização das categorias do sensível
existem há muito tempo. O conceito de saber a que ele recorre traz
em si a exigência de uma superioridade no conhecimento, senão
mesmo de uma ascensão, e esvazia de fato as noções de rai, isto é,
de opinião comum.
Hoje em dia, contudo, a determinação de um rai, de uma Lei
comum, predomina na referência ao conhecimento no Islã: o assen-
timento é, portanto, a expressão de uma renúncia ao exercício de um
pensamento individual. O recurso ao rai jamai, a opinião comum,
constituiria a figura intelectual da democracia.
Gostaríamos de mostrar como a utilização de tal definição de
assentimento ao rai jamai pelos muçulmanos implica, na realidade,
uma renúncia, no decorrer do tempo, a uma longa tradição de debate
e controvérsia por incapacidade, social e política, de praticá-los.
Parece-nos que a melhor maneira de falar daquilo que une a Lei e
a Fé enquanto modo de relação com o mundo é a questão do Direito.
Tentaremos, portanto, aprofundar este ponto do ensino e da prática
do direito no Islã, colocando-nos na perspectiva do assentimento, da
controvérsia como precondição do assentimento.
Estado da Controvérsia
Desde os primórdios do Islã, o saber se inscreve numa religião,
numa cultura cuja matriz se tece na controvérsia e pela controvérsia,
que revela os obstáculos opostos à liberdade de pensamento.
/) A batalha de Sif-fin (Maraket Sif-fin) e os debates de Kouff
Trinta anos depois da morte do Profeta, a batalha por sua sucessão,
que foi sif-fin, haveria de decidir "uma sociologia do mundo muçul-
mano", segundo a expressão de Burhan Ghalioun, e esta produção
de um mundo estruturado se estabeleceu através do momento da
batalha em que Ali, genro do Profeta, aceita um cessar-fogo a fim de
debater com seus adversários, precisamente quando as armas o
favorecem e um bom número de seus homens julgam que somente
Deus pode determinar o sucesso dos combates. Rejeitando a noção
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 131
de arbitragem humana, parte das tropas deixa sif-fín e vai para Koufa,
no Iraque. Passaram estes a ser conhecidos por caridjitas - os que saíram
-, do verbo Kharadja. Outros, rejeitando a derrota de Ali, depois de
reiniciados os combates, vieram a ser os xiítas. Dos combates de sif-fin,
dos debates de Koufa, que se seguiram, nasceria aquelas que vieram a
ser escolas de pensamento muçulmano. O Islã, portanto, desde seus
primeiros tempos, traz as marcas da diversidade; essas escolas tiveram
destinos diversos, consoante as diferentes sociedades e objetivos com
que se confrontaram. Em cada uma dessas escolas a liberdade de pensar
tornou-se um objetivo de poder, visto que a comunidade e as regras da
sucessão no poder dependiam do rito religioso. Aqui o poder absoluto
só se exerce num campo já marcado pela diversidade, nascida da
confrontação e da controvérsia entre escolas doutrinais.
Desde então encontra-se o mundo muçulmano estruturado em
escolas distintas: principalmente os sunitas (malequitas, hanefitas,
xafaítas, hambalitas), xiítas, caridjitas, fato este que, associado a
outras condições (tais como a extensão e a natureza das diferentes
populações), autoriza a falar dos mundos muçulmanos. Falaremos
sobretudo de uma Argélia situada num Ocidente muçulmano povoa-
do de mediterrâneos berberes, árabes, turcos, hispanos, que viveram
e, por vezes, ainda vivem sua relação com o mundo elegendo leituras
hanefitas, malequitas, ibaditas, sufis...
//) O racionalismo muçulmano: os mutazüitas
Trata-se de uma escola de kalam (comentário teológico) dita
racionalista, surgida no século VIII. Tornou-se a doutrina oficial do
califado abássida no reinado do califa al-Maimoun (827), mas foi
ulteriormente reprimida e majoritariamente tachada de heterodoxa.
Quando no poder, legitimou a repressão de seus adversários. Esta
doutrina, da qual foi dito que assentava no uso da razão, estabelece no
plano da justiça - ei 'adi - a liberdade e a responsabilidade humanas. Mas,
para nós, o interesse dessa escola deriva do fato de ela servir de introdução
a um debate sobre o Livro e o caráter sagrado do Livro; ela marcou todas
as tentativas de renovação do pensamento no mundo muçulmano. O
grande debate que os mutazüitas promoveram diz respeito à natureza do
Alcorão: criado ou incriado, makhlouq ou ghair makhlouql Essa per-
gunta dirige-se ao conjunto da relação com o Texto.
132 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
Com efeito, a classificação dos versículos (suratas) tem variado. Para
os muçulmanos, o Alcorão é um texto oralmente revelado ao profeta
Maomépelo anjo Gabriel. Não há qualquer recensão dos versículos pelo
Profeta ou por alguém que dele recebesse autoridade para fazê-lo.
Apesar dos numerosos debates, há um consenso no datar a primeira
recensão por 'Othman, em 653. Malik Ibn nas [sic], o comentador cuja
leitura predomina no Magrebe, morreu em 710. O texto foi totalmente
vocalizado no século X. E, durante todos esses anos, sofreu variações.
Há, realmente, uma distância que permite debater a questão, pois,
se para os muçulmanos a revelação permitiu a passagem da ignorân-
cia ao saber, essa revelação foi e ainda é uma conquista, visto que,
conforme dissemos, nada se sabe de seguro relativamente à ordem
das suratas reveladas pelo anjo Gabriel. Somente depois de discutida
a questão é que o assentimento pode ter lugar.
Isto nos leva ao debate sobre o caráter " sagrado" da língua (Abdeldjabiri)
ou ao Livro enquanto garantia na sociedade muçulmana (Legendre).
///) Uma escola dominante na Argélia: o malequismo
Entre os malequitas a referência se enuncia como um conjunto de regras
rígidas saídas do texto alcorânico, o Alcorão, da tradição transmitida pelos
companheiros do Profeta (hadith), dos atos de sua vida quotidiana (sunna\
e mais de duas regras essenciais do direito religioso, que dão grande
importância às opiniões dos doutores da fé: El Ijtihad e El Ijmah. Corres-
pondem estas duas a um momento de coasulta aparente, e tudo o que está
em jogo diz respeito à natureza dos participantes dessa consulta. Até o
segundo século da Hégira, El Ijmah foi o estabelecimento de um consenso
na comunidade muçulmana. A partir do século ni, os ulemás, ou doutores
da fé, organizam seu poder e El Ijmah passa a ser o coasenso bayn ei oulema,
vale dizer, entre os sábios. As mesmas reflexões aplicam-se ao que diz
respeito a uma noção afim: o ithifaq, isto é, o acordo harmonioso deve ser
baseado entre os "melhores" ou entre a maioria? El Ijtihad é o esforço de
interpretação e adaptação pelos sábios - ei moujtahidoun - dos textos que
se referem a situações e questões contemporâneas.
Esta escola abre o caminho à constituição de um corpo de sábios
cuja legitimidade assenta num saber que não se baseia apenas na
leitura do texto. Ibn Rochd foi um jurista malequita.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 133
C) Os detentores do saber ou a capacidade de praticar a controvérsia
1) Afigura do clérigo, o corpo de ulemás
Este termo - clérigo -, ao conferir a qualidade de sábio, vincula-a
ao conhecimento a partir do exercício do comentário. Ora, o comen-
tário, em Córdoba, como em outros lugares, pressupunha o ijtihad e
o ijma, ei instintej. Ele integrava, portanto, o exercício do pensamen-
to com a analogia como método dominante. El qiyas. Nesta defini-
ção, o saber pressupõe uma tradição, uma inscrição genealógica.
O jurista tradicional mais freqüentemente citado é Ibn Taymiya.
Para ele, "a analogia é uma das ciências mais nobres. Nela só
descobrem a verdade osque penetraram os fins derradeiros e velados
da Lei, os que são sensíveis à sua infinita beleza; os que compreen-
deram a suprema utilidade que ela tem para os homens, neste mundo
e no outro" ... Ele preconiza a aplicação do método ortodoxo pelo
conhecimento da tradição: "tudo, inclusive o método, deve estar
justificado pelo Alcorão, a Sunna e a tradição dos melhores antigos".
Estas regras, contudo, constituem uma defesa contra a obediência
cega aos poderosos, em primeiro lugar por meio do Livro, última
garantia do saber: "Quando sabemos que um texto contradiz um
raciocínio, sabemos de ciência certa que se trata de uma analogia
errada: vale dizer que os casos considerados diferem daqueles aos
quais se cria poder assimilarem-se e apresentam uma qualidade
considerada pelo legislador que acarreta um estatuto jurídico dife-
rente". Neste contexto, a ciência não tem sentido e não leva à
"verdade", a menos que ela seja enriquecida pela infinita sabedoria
de Deus. Ibn Taymiya escreve mais precisamente, a propósito disto:
"só podem descobrir a verdade nela [isto é, na ciência] os que
penetraram os fins derradeiros e velados da Charla [a Lei], os que
são sensíveis a sua infinita beleza, os que compreenderam a suprema
utilidade que ela tem para os homens neste mundo e no outro... É de
Deus que tudo procede e é a Ele que tudo retorna".
Com tais sentenças e com a defesa de uma analogia baseada no fato certo,
poder-se-ia dizer - o Alcorão, a Sunna e a tradição dos melhores antigos -
Ibn Taymiya criou uma escola de pensamento ainda hoje viva Veremos o
papel quase de proteção que pode desempenhar uma noção de " medida"
tal como o qyass num contexto de fragilidade do grupo social.
134 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar, 2002
Mas, desde as origens, ela permite a contestação ou a aliança,
inclusive dos detentores do poder, a partir da referência ao texto. Ela
cria, também, uma categoria social poderosa: "os que penetraram os
fins derradeiros e velados da Charla". Pode-se dizer que, hoje em
dia, no Islã magrebino, se trata dos ulemás.
A constituição de um corpo de ulemás
A ciência número um para os muçulmanos, estruturados em escolas
doutrinais, é a que poderia chamar-se de Direito Canônico. Seu estatuto
permite, consoante a expressão de Yadh Ben Achour, que a Fé, a
Mensagem, não seja apenas poesia, mas interrogue a razão. Não há clero
no Islã, mas, desde os califas abássidas (século X a. D.), os ulemás
gozam, com exclusividade, do poder de interpretar e tiram seu poder
legislativo do conhecimento erudito dos textos fundadores do Islã,
assim como dos da escola religiosa a que pertencem. Faz parte de seu
grande poder também o deverem criar a lei, nos casos de silêncio de
Deus, isto é, na ausência de um texto que sirva de referência. Esta
capacidade lhes advém, segundo Hichem Djait, de uma relação com os
poderosos, cujo poder, então, eles reconhecem por legítimo.
Desde a época dos califas abássidas, organiza-se a prática do direito,
concede-se um poder jurídico aos qadis, o poder de determinar o direito.
2) Sábios com o Direito como prática: os juristas
Para os malequitas, a figura universalmente reconhecida como sábio
e jurista malequita, depois de Malik ibn Nass, é, sem dúvida, Ibn Rochd.
O termo para sábio - 'alim - é antigo nesta área cultural, é preciso,
implica o exercício da razão. O Saber compromete aquele que sabe ou
que procura saber e tem os meios de procurar. Esta categoria também
compromete o objeto, na medida em que sempre se trata de saber algo,
ou a respeito de algo, e seu contrário. Em árabe, a categoria mais
próxima é a do 'alim, que é aquele que se está capacitado a decifrar os
signos em determinada disciplina 'alimfi moda mouayana.
Ocorre aqui uma possibilidade de discurso humano que tiraria sua
verdade de si mesmo, e não da Revelação e do que dela nos diz a
tradição. A partir de uma de suas declinações, alama, por oposição
à hafadha da tradição estrita, que significa, ao mesmo tempo, apren-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 135
der - repetir e proteger, pode implicar uma função de ensino. A
razão, aqui, remete a uma prática que visa a um saber preciso. Pode-se
citar Um ei qanoun e notar a importância metodológica da demons-
tração, Manahij aladilla, autorizada pela noção de bayan no Alcorão.
Tratando do caráter legal da filosofia, ele escreve:" O ato de filosofar
não consiste em nada mais do que no exame racional dos entes e no fato
de refletir sobre eles, na medida em que constituem prova da existência
do Artesão". (&2) As referências de Ibn Rochd são:
A Analogia;
O Alcorão;
O que disseram e fizeram os antigos em matéria de silogismojurídico.
Cabe a ele receber o que aí se revela justo e assinalar o que não o é.
Existe, portanto, a possibilidade de um debate sobre a liberdade,
através da percepção da oposição, do erro, da divergência quanto ao
texto no interior do Islã.
Os juristas devem fazer pelo direito e pelos fundamentos do direito
o mesmo que os matemáticos fizeram por sua ciência.4
A demonstração, a dialética e a retórica constituem três espécies
de argumentos que são acessíveis a três classes de espíritos.
Esta abordagem permitiu o surgimento de um poderoso corpo de
juristas e também de praticantes do direito. Durante o período oto-
mano, na Tunísia e na Argélia, o Alcorão é o único código de leis,
mas, ao lado dos ulemás, que estabelecem as regras legais, encon-
tram-se outras categorias, que prolatam sentenças judiciais:
- Um juiz de questões civis e militares, que é o cádi (há um para
os turcos, de rito anafita em sua maioria, e, para os demais muçul-
manos, em sua maioria de rito malequita, um cádi ibadita);
- Um agá, que, no campo, distribui justiça aos que lha vêm pedir:
berberes, otomanos...;
- Um mufti assiste o cádi, quando as questões são muito compli-
cadas. (Um para os turcos, outro para os demais muçulmanos);
- O ministro da marinha distribui justiça aos marinheiros e suas
sentenças são inapeláveis;
- Os judeus são julgados por um tribunal composto de vários
rabinos, quando se trata de pendências entre judeus. Nos demais
casos, eles comparecem diante de juizes muçulmanos;
- Os estrangeiros são julgados pelo cônsul de seu país.
136 RevistaTB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
O que se constata no Magrebe, até o começo do século XIX, é a
coexistência de diferentes fontes de Direito: Islã, regras berberes,
hebraicas, cristãs, e código naval, código profissional, poder-se-ia dizer.
No fim do século XTX, os pensadores muçulmanos da Nahda terão
por objetivo a renovação da doutrina mediante o recurso a aquisições
científicas.
A introdução do Código de Napoleão acarretará a criação de um
corpo de juristas formados nas universidades francesas. Em toda a
parte, ele encontrou e levou em conta normas religiosas e costumes.
Chegou a haver na Argélia cinco códigos simultaneamente em vigor:
o kabila, o mozabita, o malequita, o judaico e o código civil.
3) O mestre e a comunidade eletiva
Citaremos aqui o trabalho de Ibn Tofail, contemporâneo de Ibn
Rochd. É o autor do primeiro romance educacional, um romance
filosófico e de iniciação. Esta obra anuncia, de certo modo, Robinson
Crusoe, Candide e Emile.
O interesse da obra em relação àquilo de que nos ocupamos é a
divisão dos conhecimentos de acordo com as fases da vida. Ele
distingue sete fases, que podem ser postas em paralelo com as sete
estações do sufismo:
- de l a 7 anos: o herói Hay, o ser vivo, desenvolve uma inteligên-
cia fundada no sensível através do conhecimento dos animais e
daquilo que o rodeia;
- de 7 a 14 anos: Hay é confrontado com a experiência e a
observação da morte;
- de 14 a 21 anos: ele constrói, produz, utiliza as coisas e os
animais. Ele inventa;
- de 21 a 28 anos: Hay troca o registro pragmático pela teoria;
- de 28 a 35 anos: ele se entrega à meditação metafísica e, emseguida, à sabedoria;
- ele se lança em direção ao êxtase místico, à ascese, à intuição e
à união;
- chegado a esta última fase do saber, Hay encontra a civilização
através de um Sexta-Feira que, desta vez, não é um selvagem. O
homem aparentemente mais civilizado encontra no solitário Hay um
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 137
mestre de inteligência e de bondade. Esta estação introduz a complexi-
dade, a escolha, na relação com o mundo. O Saber, ainda quando fosse
o saber de um fato, não é uma evidência a ser atingida, mas uma
conquista que passa pelo encontro de duas diferenças, ao menos.
Juntos eles formam uma comunidade eletiva, longe da multidão
que a religião revelada, em sua interpretação formal, jugula. Esta
noção de eleição traça e autoriza limites e, portanto, diferenças no
conhecimento.
Estas poucas reflexões sobre as lutas travadas desde as origens do
Islã permitem refletir sobre o modo como o "pensamento individual"
pode ser levado em consideração no elenco de argumentos religiosos
de um código muçulmano. E, por conseguinte, sobre como se pode
elaborar a tomada do poder numa doutrina a partir da categoria do
saber. Há lugar para a reflexão individual contida na distinção entre
foro íntimo (ei batirí) e foro exterior. Ela deu ensejo a controvérsias
célebres, de que se encontram vestígios nos escritos do sunita El
Ghazali, em sua crítica do sufismo, e na que Ibn Taymiya opôs a
IbnArabi, místico andaluz do século XII.
O foro íntimo é a expressão de uma possível liberdade de pensa-
mento do indivíduo em face de um Islã sunita, que só reconhece o
saber nos companheiros do Profeta (pelo hadith) e nos ulemás. Mas
ele constitui também um campo para o irredutível.
O foro íntimo poderia enunciar-se assim:
- todos os livros anteriores estão contidos no Alcorão;
- todo o Alcorão está contido nafatiha;
- toda afatilia está contida em bismillah;
- todo bismillah está na letra ba\
- tudo que está no ba está no ponto diacrítico que serve para
escrever.
Esta apresentação permite-nos apreender a articulação entre o assen-
timento, fundado na analogia, e a coexistência, mas também a contro-
vérsia entre vários assentimentos e um espaço do foro íntimo. O
reconhecimento dessas categorias do saber e daqueles que delas se
utilizam manifesta-se na importância das controvérsias e das tradições
teológicas a que elas deram origem no pensamento muçulmano.
Se há controvérsias, elas correspondem a modos concorrentes,
mas autorizados, de interrogar os textos e também o mundo real. Nos
138 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
Estados nacionais, essa capacidade é legitimamente assumida pelos
sistemas de ensino. Ao mesmo tempo, a própria idéia de sistema
nacional reprime a leitura autônoma, divergente, diferente.
A legitimidade da controvérsia com que nos deparamos nas dife-
rentes formas de saber colide com a legitimidade do exercício do
poder e do dano causado às liberdades no interior das sociedades
muçulmanas. A concorrência entre os diferentes sábios do Islã variou
em função dos períodos históricos e dos valores em jogo. A ausência
de controvérsia correspondia sempre ao exercício de poderes autori-
tários e absolutos.
D) A produção e a transmissão dos saberes: a extinção da controvérsia
1) As Escolas Doutrinais
As estruturações por escolas doutrinais correspondem, hoje, a
conjuntos geográficos homogêneos. Os debates entre as escolas
cessam nesses espaços, exceto no movimento integrista, em que a
idéia de Umma, nação em sua totalidade, ultrapassa o primado das
escolas doutrinais. Foi assim que, em anos recentes, houve magrebi-
nos que se tornaram xiítas ou wahabitas.
No interior dessas assembléias homogêneas, o saber no Islã é
marcado pelo estado do ensino nos países muçulmanos.
2) A produção de uma elite em Córdoba
Nós privilegiamos Córdoba, porque Ibn Rochd ali foi educado e
ali viveu.
O sistema de educação adotado em Córdoba compreendia as
seguintes fases:
- O aprendizado da língua árabe assentava no aprendizado do
Alcorão, da poesia e de exemplos epistolares. Pode-se dizer que nos
colocamos aqui na categoria de um aprendizado que restitui um saber
no estado: "hafadha"?
- Vinha, em seguida, o aprendizado da língua, da religião e da
aritmética. A introdução da aritmética indica a referência a uma
pedagogia que abandona a restituição simples.
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- Em seguida, o ensino das ciências religiosas pelo hadith e do
direito, segundo a tradição dominante do mestre. A gramática, a
lexicografia, a literatura, a história, a poesia e a genealogia.
A gramática introduz a exegese (o Tafsir), a partir da obra de Abu
'Ubayda, redigida em meados do século VIII.7 O Tafsir vai fundamentar
as posições dos que vieram a ser chamados de racionalistas, os Mutazili-
tas. Esta tradição continua vivaz nos dias de hoje e chegou a dar origem
a dois movimentos recentes, a Nahda e a Fraternidade Muçulmana.
O Fiqh que permite o estudo e o Tafsir do Direito eram feitos de
acordo com as categorias de raciocínio já examinadas:
O Qiyas (a analogia), elljma (o consenso) adquirido pelos mujta-
hidun, ou seja, os doutores autorizados a praticar ei Ijtihad.
El Ijtihad se praticava através da ab-rogação (ei naskh), da contradi-
ção (taarud) orientada para o estabelecimento de uma norma jurídica.8
O Tafsir e o Fiqh são praticados a partir da Lei (a charia), o uso
(ei 'urf) e a partir de métodos promovidos pelas escolas doutrinais,
como, por exemplo, ei istihsan (a preferência jurídica) entre os
hanefitas, ei istislah (o interesse comum) dos malequitas, ei istihsab
(a presunção da continuidade) dos chafaítas.9
O jurista também pode extrair (ei istinbaf) normas das quatro
fontes, ao tratar: do ambíguo e do esclarecedor, do evidente e do
implícito, da ordem e da interdição, do geral e do particular.
As ciências e a filosofia: estas ciências eram ensinadas por peque-
no grupo investido de autoridade, composto, na época de Ibn Rochd,
de seis indivíduos de primeiro plano e dez de importância secundária.
Embora não pertencessem à mesma escola, Ibn Rochd e Ibn Toffail
eram colegas que se respeitavam mutuamente.
A Andaluzia era um lugar onde as idéias se trocavam, se transmi-
tiam, estavam sujeitas a debate. Ali tem lugar a produção de uma
elite, num sistema que autoriza a controvérsia. Este pequeno grupo
de pessoas foi, por vezes, alvo da repressão por parte dos poderes por
elas contestados.
3) As elites muçulmanas no Magrebe
Até a penetração francesa, o ensino era atribuição das zauias.
Havia também número considerável de madrassas, associadas a
locais de culto, instituições doutrinais dos marabitoun (almorávidas),
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e ainda instituições dirigidas por mestres ibaditas ou hanefitas, e
escolas hebraicas.
Ainda circulavam em Laghouat, na primeira metade do século XX,
uma Tora em árabe, na qual Elohim é Allah, e um Alcorão em
hebraico, no qual Allah é Elohim.
Ocorriam controvérsias no interior do Islã e com seres concretos
desse campo nas relações do dia-a-dia.10Mas o sistema de ensino no
interior de uma zauia assentava no primeiro patamar, a hafadha. Os
destinados a progredir no aprendizado freqüentarão, mais tarde, uma
das grandes instituições, como a Quarouania (Marrocos), a Zitouma
(Tunísia) e El Azhar (Egito) e se tornarão 'alam.
Pressionado pelas elites muçulmanas do século XIX, o bei de Túnis
modernizou o Colégio Sadiki, na Tunísia, adicionando matérias cientí-
ficas ao programa e abandonando os métodos de ensino baseados na
hafadha que, pouco a pouco, haviam passado a dominar na Zitouna.
A existência da Zitouna, como instituição de referência, e do
Colégio Sadiki representou uma lufada de ar fresco para a sociedade
tunisina - algo que não teve a sociedade argelina, marcada poruma
ruptura brutal. O mesmo se deu em Marrocos, graça à Qanrouania.11
Por ocasião da ocupação francesa, com efeito, as instituições
escolares serão destruídas na Argélia, com exceção do vale do M' zab,
de rito ibadita, e dos territórios do sul. Nos anos 40, os ibaditas criam
uma escola reformada baseada num modelo que facultará aos alunos
acesso ao Colégio Sadiki. A colonização funda na Argélia estabele-
cimentos ou seções franco-muçulmanos.
No fim do século XIX, começo do século XX, surgiu o Nahda, um
movimento reformista que colocava a questão do atraso do mundo
muçulmano posteriormente à expedição de Bonaparte ao Egito.
Este movimento, que, por sinal, reabilitou os mou'taziütas, irra-
diou-se vigorosamente no mundo muçulmano e, no Magrebe, foi
acompanhado de um reencontro com a Europa, com a França, por
intermédio do processo de colonização.
A partir de seu centro de irradiação, en El Azhar, esse movimento
foi adotado pelas medersas reformistas, na Zituna.
Na Argélia, durante o período colonial e depois, a doutrina desse
movimento achava-se contida na fórmula " O Islã é minha religião,
o árabe é minha língua e a Argélia é minha pátria". A interpretação
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 141
do Islã é uma só e se funda na interpretação dos ulemás da reforma.
E está imbuída de ideologia nacionalista da variedade j acobina.
Sem dúvida alguma, esse período não deixa de ser interessante,
pois forneceu ao Magrebe uma elite que veio a ser chamada de
franco-muçulmana, oriunda da introdução harmoniosa nos progra-
mas de conteúdos e métodos recentes.
Graças ao Decreto Crémieux, os judeus argelinos tornaram-se
franceses. O rito hanafita, praticado majoritariamente pelos turcos,
cai em desuso e, quanto mais se progride em direção ao ideal
nacional, mais hegemônico se torna o rito malequita.
O direito muçulmano e a tradição berbere são reconhecidos e
confirmados em suas formas de organização, já exposta ao se tratar
da época otomana. O ensino do Direito e também sua prática unem
essas tradições à do Código de Napoleão.
Conclusão
Atualmente, os três países do Magrebe estão perdendo o fôlego.
Os tunisinos, cujo sistema escolar não deixa de ser um ponto de
referência, particularmente após a reforma empreendida por Moha-
med Charfi, não alcançam nem Portugal nem Espanha, a despeito de
bom desempenho econômico. A necessidade do beneplácito do Prín-
cipe paira sempre sobre o exercício da razão.12 Mesmo a Turquia,
herdeira do grande Império Otomano, em seu esforço por desenvol-
ver-se e criar uma elite, não vai além dos arrabaldes de Istambul.13
Na Argélia, a criação de uma elite intelectual entrou em choque com:
1) A nacionalização dos cursos, que atingiu a Faculdade de direito
em primeiro lugar.
A independência coincidiu com o soçobro do processo de criação
de uma elite nacional. Rejeita-se a idéia de elite, a pretexto de que
ela é composta por elementos formados pela colonização francesa.
A nacionalização do sistema escolar, no entanto, começa com forte
escolarização em francês, mas com um corpo docente debilitado por
numerosas defecções. Também a arabização é empreendida com um
fraco contingente de professores argelinos, o que dá ensejo à coope-
ração sobretudo com o Egito, da qual o mínimo que se poderá dizer
é que não se mostrou muito convincente.
142
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
2) A constante emigração das elites.
A situação do sistema de ensino na época da independência reflete
uma constante da história argelina: a emigração das elites escolarizadas.
Observou-se este fenômeno, quando os turcos se retiraram e
durante a ocupação francesa.
O mesmo movimento se repetiu na época da independência.
Continua a ocorrer desde o início da década de 90.
A partir da segunda metade do século XX, tem-se registrado neste
país uma perda de instituições de referência e de interlocutores.
3) O sistema de educação nacional foi marcado pelas idéias de
nacionalismo e revolução: alimenta-se uma desconfiança tal em
relação ao Ocidente e à cultura ocidental que ela implica a recusa da
controvérsia. Busca-se produzir um saber a respeito do mundo que
seja autônomo, "desconectado".
Semelhante situação só poderia ser ultrapassada mediante uma
crítica empreendida exatamente por aquelas pessoas reprimidas pela
articulação de Fé e Razão.14 Observa-se, hoje, que duas categorias
de pessoas contestam esse sistema de ensino:
- Os integristas, que recusam ao poder, por intermédio do Alto
Conselho Islâmico, o controle do conteúdo religioso. Eles exigem
um assentimento da razão mediante uma leitura petrificada do texto.
Encarnam a crítica radical do poder político.
- Uma parte da classe média que criou suas próprias escolas e luta
no plano das reivindicações lingüísticas e de conteúdo relacionadas
com a separação entre poder e religião.
4) A crítica do Ocidente faz-se em condições tanto mais frágeis
quanto já não há centros intelectuais no mundo muçulmano: nota-se o
enfraquecimento do Cairo e de outros lugares, em benefício das grandes
universidades ocidentais. El Azhar não conseguiu levar a cabo uma
mutação, a Zituna, a pouco e pouco, some da paisagem. Dominam,
sozinhas, Princeton e Yale, Oxford e Cambridge. A Nahda malogrou-se
e, muito embora El Azhar tenha feito, naquele contexto, o esforço de
enviar pensadores a Paris, no começo do século XX, a cultura muçul-
mana não deu seu assentimento ao racionalismo europeu nem, tampou-
co, logrou entabular com ele uma controvérsia alicerçada na razão.
5) A analogia já não é um ramo subalterno do raciocínio: ela toma o
lugar do raciocínio. El qiyas arvora-se em medida, em padrão imutável,
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002 143
constitui uma pretensão sendo garantia de uma genealogia.15 Ibn
Taymiya é uma referência bibliográfica necessária, mas através de uma
leitura empobrecida. Achamo-nos na hafadha do que devemos ser, sem
a possibilidade de contextualizar ou pensar a tradição. Foi assim que
este pensador se tornou o ponto de referência dos salafitas.
O primeiro movimento será, pois, reencontrar-se no olhar do
Outro. Um Outro que só reconhece clérigos entre os muçulmanos e
já não reconhece interlocutores nessa cultura, em cujo interior, não
obstante, alguns se colocam a questão de como sair do estado de
petrificação em que ela se encontra.
Tanto mais difícil é a interculturalidade quanto mais problemático
lhe é identificar:
- Interlocutores que não estejam confinados ao comentário ou que
não sejam clones;
- Lugares consagrados à palavra e à reflexão que não sejam tributárias do
Príncipe. Nesses países, a universidade, a imprensa, as editoras não desfrutam
do direito de pensar em liberdade. Assim é que um escritor egípcio, Salah
Eddine Mohsen, foi condenado, em janeiro passado, a três anos de prisão
rigorosa por "ter apelado para a heresia e propagado o ateísmo" em seus
romances - uma de suas personagens diz "não crer em Deas". Esta fórmula
é, para nós, o lugar de resistência de umpensamento que se une ao pensamento
europeu: o lugar do ar que se respira, da energia enquanto algo capaz de
compensar as fraquezas e gravames deste mundo. O sistema religioso está no
lugar de uma mitologia e dela faz as vezes: de uma mitologia que cria um
t
espaço precisamente para não ter de pensar a realidade;
- Os intelectuais dispostos a renunciar a esse universo mítico-re-
ligioso chegam aos países europeus e constatam estupefatos que
esses países não têm qualquer estratégia e não mais que medíocre
interesse nos países muçulmanos, inclusive nos que lhes estão mais
próximos. Assim, não há estratégia alguma para a Turquia, que está
em vias de afundar-se, ou para o Magrebe, que alguns universitários
pretendem gerir como as repartições árabes, à maneira de Lyautey.
O melhor exemplo é a estagnação de Barcelona, com uma margem
sul constantementeredescoberta. Pode-se ampliar o debate nos dias
que correm trazendo à baila as medidas de segurança que se tomaram,
estas últimas semanas, pelo mundo afora.
(Tradução de Sérgio Pachá)
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Notas
1
Mais conhecido no Ocidente como Averróis. (N. do T.)
2
O original traz espagnols, palavra que exprime um conceito
geopolítico. Como esta enumeração diz respeito, basicamente, ao
fato geográfico da origem de cada um desses mediterrâneos a que a
autora se refere em perspectiva histórica, deliberadamente traduzi o
francês espagnols por hispanos. (N. do T.)
Q
O texto original não prima pela clareza: Ilpeut impliquer unefonction
denseignement à partir dune de sés déclinaison [sic] alama par
opposition à Ia hafadha de Ia tradition stricte qui signifie à lafois
apprendre-répéter et proteger. (N. do T.)
No original lê-se: Lesjurístes doiventfairepour lê droit commepour
lesfondements du droit, corntne lês mathématiques ontfaitpour leur
science. O emprego de mathématiques por mathématiciens constitui
erro evidente. (N. do T.)
Alusão ao companheiro de Robinson Crusoe. (N. do T.)
Em francês: Onpeutdire que noussommesplacés ici dans lacatégoríe
dun apprentissage qui restitue un savoir dans létat "hafadha".
Como se vê, a obscuridade do texto traduzido reflete apenas a
obscuridade do texto original. (N. do T.)
7
Claude Gilliot.
8
Abdewahab Khallaf.
Serina Mervin.
Em francês: // existait dês controverses internes à l'Islam et avec dês êtres
concrètes à cê diamp, dans dês rélations quondiennes. Não sabemos de
que seres concretos nem de que campo se trata aqui. (N. do T.)
Sic. Cp. com Quarouania, dois parágrafos acima. (N. do T.)
12 Em francês: Lê rapport au Prínce marque toujours 1'exercice de Ia
raison. Este emprego altamente idiossincrático da palavra rapport
levou o desconcertado tradutor a aventar a tradução que acima se lê.
Fique bem claro que ela não passa de uma conjectura bem
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fundamentada - o que, em inglês, costuma chamar-se an educated
guess. (N. do T.)
13
Outra conjectura do justamente perplexo tradutor. Em francês: La
Turquie aussi ne dépasse pás dans son développement Ia création
d'une elite lesfaubourgs de Istanbul, ceei alors qu 'elle est l'héritière
du grand empire ottoman. A articulação sintática deste período em
língua gálica deixa bastante a desejar. (N. do T.)
Em francês: Lê dépassement de Ia situation créée nepourraitêtre obtenie
que par une critique engagéeparceuxque Varticulation telle queposée
Foi/Raison refoule. Uma vez mais o tradutor espera não ter sido
desencaminhado pelas peculiaridades da prosa traduzida. (N. do T.)
O período francês adorna-se de uma única vírgula: El qiyas s 'erige en
mesure, en étalon immuable constitue une protection en étant garante
dune généalogie. Em conseqüência disto, a tradução que aqui se lê
não passa de conjectura. (N. do T.)
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MERVIN, Sabrina. Histoire de 1'Islam: Fondements et Doctrines. Paris:
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146 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 129/146, jan.-mar., 2002
REFLEXÕES SOBRE OS PARADIGMAS DO FILOSOFAR
Liubava Moreva
É relativamente duvidoso, hoje, se o homem é ainda um ser
racional ou se sua atividade, na esfera da destrutividade e do absurdo
em contínua expansão, deve ser considerada como um indicador de
sua natureza ontologicamente irracional. Ou se é ele simplesmente
um bípede desprovido de penas, como, espertamente, definia Platão.
Está além de quaisquer diferenças, contudo, que o homem é um ser
que permanentemente produz texto, bem entendido, é semioticamen-
te, semanticamente e pragmaticamente que o homem preenche os
espaços de seu próprio estar-no-mundo.
Desde o ritual de pintar o próprio corpo, que inscrevia nossos
antepassados no segmento sacralizado do mundo natural até os
experimentos modernos e sofisticados da poesia conceptual e da
prosa surrealista, articulados ambos, tal é a amplitude aparente do
espaço textual. Desde o balbuciar infantil, tentando expressar sua
interioridade e o instante de seu encontro com o mundo, numa
linguagem proto-humana, até o misterioso murmurar da Pitonisa ou
do profeta a comungar o mundo visível e o invisível em seu próprio
mundo e gestos. Tudo que se esforça por ter sido ouvido, visto e
compreendido e que espera por uma resposta é uma realidade poten-
cial do texto. O texto é, portanto, o modo de cristalização do conteúdo
especificamente humano do mundo, o modus do advento humano no
mundo, através e pela palavra, pela audição e pela articulação.
O próprio cérebro humano opera de modo ontológico num diálogo
interiorizado, portanto, existe uma orientação interna no sentido da
auto-expressão, articulação, fala e eventualmente da escrita. O co-
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nhecido mecanismo de diálogo interior em nossa consciência é
tensamente povoado com neuroses, esquizofrenias e colapsos psicos-
somáticos causados pelo modo inadequado de articular o próprio
processo; ao mesmo tempo, temos também, nesse momento, as bases
de nossa exclusiva capacidade de afinar nossas técnicas de sofisticar
nossos instrumentos lógicos. O diálogo que a alma tem consigo
mesma, tal era um dos modos com que Platão definiu a filosofia.
Na virada do milênio, a humanidade vem redescobrindo antigas
verdades e, afogada em torrentes de informações, vê uma vez mais que
a onisciência não contém necessariamente sabedoria. Quase que, com
precisão matemática, a esfera do que é conhecido expande seu horizonte
para o desconhecido, trazendo o intelectual de hoje para muito perto da
conhecidíssima confissão: só sei que nada sei. Uma vez mais, como
antes, a fórmula simbólica do conheça-te a ti mesmo convida-nos,
urgente e insistentemente, a embarcar nesta viagem sem fim.
O ser humano de hoje está lidando com sérios desvios no sistema
de paradigma de valores e nas orientações ontológicas. A despeito
da flexibilidade deste sistema, deve-se cuidar para que seja preser-
vada sua força vital, que consiste em uma diferença essencial entre
o descendente e o ascendente. Qualquer indiferença nesta distinção,
qualquer insensibilidade em relação a isto, quaisquer formas de
reserva ontológica ou ética, leva uma pessoa a uma crise de identi-
dade, a uma perda total de sentido para sua, dele ou dela, própria
existência e conduz a uma devastação existencial. Uma relação
extremamente atenta e sensível com a Tradição acaba sendo neces-
sária para advertir dos perigos dos desvios do paradigma que está
ocorrendo (no topos do Ser). Neste contexto, podemos relembrar o
seguinte: Sé vigilante e confirma os restantes, que estavam para
morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus
(Apõe. 3: 2)
Hoje, a indústria da morte está oculta sob certa valorização de
produto rubbish - pronto para usar, padrão estandardizado, casual
e barato, amor e morte. A intensa substituição dos estados profundos
da existência, com seus sinais, transforma o homem num simples
pacote ou envelope, portador de bits de informação artificialmente
agregados, que faz dele um indivíduo variável dentro de um sistema
algorítmico da existência social.Colapsos ocasionais neste sistema
148
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são liberados, sempre que necessário, por meio da psicanálise, do
psicodelismo e outros modos. O resultado evidente é um sentimento
de crescente vazio interior.
Hoje, é possível ouvir-se o seguinte, na filosofia moderna: A total
forma de simulacro em que se tornou a cultura e a vida, a impossi-
bilidade de distinguir o autêntico do inautêntico, a devastação
existencial - tudo isto são sintomas mais ou menos evidentes da falha
que nos espera. Nós mantemos, cuidadosamente, os sinais da cultu-
ra, intensificamos a comunicação e com isto estamos perdendo, cada
vez mais, o sentido de nossa própria existência. Reviver valores
passados é reviver velhas ilusões. Atrás de nós, não existem anteci-
pações que não tenham sido ainda tornadas reais...
O paradoxo da situação final, na qual o homem moderno aparen-
temente se encontra, exige dele certas estratégias fatalísticas. A
peculiaridade da situação de que estamos falando é que o homem é
essencialmente empurrado para fora do espaço vital, para uma região
de sinais. Nesta zona, a saturação da informação faz da realidade um
evento absolutamente indistinguível da realidade virtual. Aqui, a
realidade virtual dos meios de comunicação de massa torna igual-
mente significante/insignificante quaisquer de suas mensagens.
Uma de minhas hipóteses, que gostaria de sugerir à consideração
dos senhores, é que, a despeito de tudo o que foi mencionado acima,
a tendência a uma nova síntese de pesquisa produtiva tornou-se
vitalmente importante na cultura contemporânea. Concebendo, ex-
planando e interpretando as intenções da mente humana - esconden-
do-se atrás do espelho do discurso pós-moderno - é um trabalho
exaustivo. A forma de ação mais intensa da habilidade humana de
fazer sentido é convocada para reabilitar o equilíbrio perdido entre o
absurdo versus o sensato - para evitar que o ser humano pereça em
estado pós-mortal da própria ausência de alguém.
A necessidade de uma síntese mental produtiva e de uma atividade
produtora de sentido emergem na crescente interação entre religião,
filosofia, ciência e arte. Tendo notado que nós ainda não consegui-
mos uma epistemologia que poderia harmonizar-se com o ser mais
altamente espiritual, Nicolai Berdyaev (1874-1948) pôs em relevo a
profunda dependência da epistemologia do crescimento espiritual do
homem. Aceitando a imanência da cognição no ser e a possibilidade
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do crescimento criativo do homem para os mais elevados estados de
espiritualidade, não apenas pressupôs a virada para as raízes ontoló-
gicas do pensamento, não apenas exigiu sua performance existencial,
mas também preencheu-a com a vontade de transcendência, isto é,
alimentada com a energia infinita da auto-introversão e da disponi-
bilidade.
O pensamento filosófico foi construído não somente para superar
as baixas formas de comunicação; ele surgiu para ser, não apenas um
direito, mas um dever de todos terem uma vontade de ser outro, uma
tarefa da individualidade para a vida crescentemente criativa. Aqui,
estabelecendo a personalidade como o fundamento de qualquer ser,
pressupõe-se, em primeiro lugar, a descoberta da individualidade em
sua liberdade para afirmar seu esforço de universalismo. Eis o
objetivo da filosofia não criar um sistema, mas um ato de cognição
criativa no mundo (Berdyaev, N. A. Meaning ofcriativity. Moscou,
1916, p. 47).
É muito difícil atribuir a nós mesmos a concepção da filosofia
como a produção da atividade espiritual na qual a integridade mais
profunda do homem não é apenas tornada real, mas também restau-
rada. Só então a filosofia verá a si mesma como emancipação do
homem de qualquer depressão, de modo que ele poderia desempe-
nhar seu papel no cosmos, onde ele é capaz de expressar todo o
sentido de sua própria vida espiritual. A filosofia pressupõe comuni-
cação a ser conduzida na base de intuições, próximas ou primárias,
e não na base de provas intermediadas do pensamento discursivo. É
importante reconhecer a diferença essencial entre formas médias de
lógica do conhecimento filosófico (que freqüentemente funciona na
sociedade resolvendo candidamente problemas didáticos) e a filoso-
fia no processo de seu nascimento e sua vida na cultura.
Para M. Baktin, entender um objeto é entender meu dever em
relação a ele (minha atitude esperada), entendê-lo em sua relação
comigo em um único aconte-c(s)er, que pressupõe não abstração de
mim mesmo, porém minha participação responsável. (BAKTIN, M.
Philosophy ofact). O esforço da reflexão filosófica para entender (e
logo superar) a crise do agir (a divisão do mundo subjetivo em
mundo vital em profundidade e mundo dos sentidos abstratos obje-
tivamente postulado) está dentro destas crises. Então, o teste mais
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x
vital para a gnose filosófica é se ela é ou não capaz de ser a práxis de
uni agir espiritual.
O aforismo de Wittgenstein sempre tente falar verazmente e,
acima de tudo, com ciarem e sua sentença: ter dito uma mentira
significa ter dado o primeiro passo para a verdade, somente se tiver
sido dita de um modo distinto e claro não foi, sem dúvida, toda a
verdade acerca do próprio Wittgenstein. Afinal de contas, ele con-
fessara, numa carta, que seu ensinamento, tal como consta no Tratado
de Lógica e Filosofia, consiste de duas partes, uma das quais foi
escrita enquanto a outra, não, sendo a carta mais importante do que
as outras duas. A segunda parte é o domínio da ética, que não é para
ser dita. Aqui, o silêncio e a intenção são importantes. A multidimen-
sionalidade informacional do texto redunda em total desinformação,
se assumida sem a dimensão ética. E nenhuma perfectibilidade
estilística ou ética, ou qualquer outra, pode salvar a situação. Temos
de aprender de novo como trabalhar com sinais obscuros e nebulosos
que apenas sugerem sentidos profundos guardados em seus silêncios,
com os sinais que ainda ficam à margem dos rascunhos, com os sinais
atávicos da vida e da morte.
" Uma criança pergunta: o que é a grama? e me traz um punhado
de grama; como eu lhe poderia responder? Eu já não sei de mais
nada" (Whitman, 1954, p.50). Nessas linhas despretensiosas de
Whitman, a ingenuidade da resposta da criança, dirigida ao poeta, de
fato anula toda a seriedade que há no mundo, que tem uma expecta-
tiva, não apenas de sua articulação, mas também de sua compreensão.
Outro poeta uma vez sublinhou o fato de que, se um pássaro tivesse
alguma idéia acerca de seu cantar, por que ele canta e o que existe
dentro do pássaro e que canta, ele jamais cantaria.
Diz-se que o homem habitou o mundo silenciosamente. Enquanto
se acomodava neste espaço silencioso e aterrador, que, em razão de
sua vastidão, tinha também poder hipnótico, ele tentou domesticá-lo
e dominá-lo por meio da palavra. O homem parece ter construído seu
ninho neste mundo, em suas profundezas sagradas, delineando os
círculos de seu ser/estar, bem como a inevitabilidade do eterno
retorno a seu circuito. O nível profano da linguagem com sua divisão
denotativa em denotatum e significate é, indubitavelmente, o resul-
tado da subseqüente ampliação. A linguagem inicial ontos está
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intimamente relacionada com a palavra Salvador: a palavra cura, bem
como a palavra ritual capaz de proteger o homem de seus temores e
infortúnios, de tornar possível o impossível. Este estrato lingüístico
é, provavelmente, muito próximo da fala de um antigo xamã, o
clássico Pithias, e a expressão russa da idade média yurodivy. Con-
siderando as diferenças nestas experiências lingüísticas e as peculia-
ridades funcionais de cada uma delas, há algo que as torna semelhan-
tes de algum modo. É certa experiência misteriosa ao pronunciar-se
estaspalavras secretas e impronunciáveis, porque possuem uma
energia de formidável importância. Esta fala especialmente não-re-
flexiva, enquanto reserva a si mesmo o direito a uma sintaxe não
mediada e non-sense semântico, o direito de exceder os limites, ao
mesmo tempo delineia o espaço, um certo locus de possível signifi-
cação um tanto enviesada, interpretações inesgotáveis e reflexões
sempre desdobráveis. Seria útil lembrar, porém, que o espaço deli-
neado por nossa tradição ôntica não-reflexiva pode efetivamente ser
um tanto ou quanto miserável. Tal foi o caso com cultos religiosos
bem conhecidos, os assim chamados cavadores de buraco ou dyro-
molyaev, descrito por Vladimir Solovyev: Depois de cavar um bura-
co num canto escuro de uma cabana de madeira, eles pressionavam
os lábios nele e repetiam várias vezes: minha cabana de madeira,
meu buraco, me salvem! (Solovyev, 1900, p. 8). Presumivelmente,
este ritual verbal, primitivo e quase tragicômico, esconde o temor
metafísico de cair do ninho, com medo de perder-se num espaço não
familiar, onde não há saída, nenhum lar, onde nos encontramos
desolados e solitários.
O caos silencioso que envolve o.desconhecido parece estar disci-
plinado por um intelecto capaz de devolvê-lo à ordem do que é
conhecido. Ao mesmo tempo, mesmo a notificação do mundo da
inevitabilidade de sua entropia e morte, quando a possibilidade
mesma de emergência de ilhazinhas de regulação se dissolve na
necessidade de similaridade e de equilíbrio universal, e a possibili-
dade de diferenciação desaparece na corrente de caos, não pode
provocar um sentimento da natureza trágica do mundo. Tudo acon-
tece de acordo com leis bem conhecidas: absorvidas pelo caos, a
ordem parece prevalecer como se ela mesma antecipasse tal falência.
Isto pode ser encarado como um ponto culminante bastante peculiar,
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no que concerne à abordagem científica do mundo. Ao revelar algo
que é absolutamente independente de mim, aquela ordem das coisas,
já estabelecida, que declara a condição de inevitabilidade do desapa-
recimento da possibilidade mesma de minha existência, encontro-me
na posição de extrema resignação e tranqüilidade, percebo-me como
uma partícula desimportante dentro da portentosa corrente de univer-
salidade. Agora, minhas pretensões são as de ser submetido, desti-
no-me a ser apenas olhos e ouvidos de alguma coisa que está
acontecendo sem meu conhecimento, meu próprio envolvimento
sendo restringido a apenas saber o curso dos eventos imanente ao
mundo. Nenhum tipo de ego deveria tornar-se silencioso. Aqui, o
mundo aparece perante o homem na luz da repetição universal e a
ciência, como o mais diligente pupilo, lê a ontologia das repetições.
A humildade do aprendiz e a perfídia do instruído parecem coexistir
na razão científica: enquanto submetendo-se à lógica do sujeito, a
idéia científica busca subjugar o mundo à sua própria lógica.
Para dizer a verdade, de vez em quando as vozes dos admiradores
do hooliganismo espiritual podem ser ouvidas (como Leo Shestov
auto-intitulou-se) e que estão ansiosas para nos lembrarmos de que
a ordem, com a qual os filósofos não se cansam de sonhar, pode
existir, mas só nas salas-de-aula e que, mais cedo ou mais tarde, o
terreno ruirá sob seus pés. E nesse momento, talvez, Shakespeare
pode mostrar-se útil. Ele lhes dirá que o desconhecido é o que pode
e deve ser reduzido ao conhecido, por impossível que seja.
Porém, mesmo assumindo que nosso dever primário neste mundo,
hoje, consiste em estabelecer ilhas arbitrárias de ordem e de regu-
lação (N. Viner), isto é, como se diz, a extração da raiz da regulação
de qualquer incerteza (ignorando, ao mesmo tempo, o remanescente
como um erro de qualidades irracionais) não significará tudo isso que
podemos nos encontrar no limite da arbitrariedade gnoseológica?
Não no sentido de que nosso conhecimento pode perder as ilusões e
pode ser levado para longe de nós por falsas ou verídicas noções do
mundo, mas no sentido da verdadeira qualidade e orientação de
nossos esforços cognitivos. Se o homem vive no mundo que não se
importa conosco, provavelmente nenhuma derrota será, então, capaz
de retirar de nós a satisfação de ter existido neste mundo ainda que
por um breve lapso de tempo. O homem na posição de não recipro-
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cidade encontra-se, de fato, numa posição de resoluta e consistente
oposição a seus próprios esforços para ajustar o mundo a fim de
encontrar maior satisfação em sua existência nele, até a total objeti-
vação do mundo. A satisfação por si mesma pode transformar-se,
aqui, em agonia - uma indiferença espiritual do homem a tudo, esta
força terrível e corruptível do desespero em segredo.
No entanto, quando, em face da questão inevitável por que a
humanidade afinal existe? (obviamente, não em favor de maior ou
menor acréscimo bem-sucedido das condições funcionalmente cal-
culadas em torno de próprio conforto de alguém, quanto mais que o
cálculo pode, por si só, resultar no censo dos recursos finais), o
homem, involuntariamente, acaba tendo contato com a própria expe-
riência de silêncio.
O diálogo externo é apenas o motivador que inicia o desenvolvi-
mento e o funcionamento independente de uma individualidade,
inicia sua (dele ou dela) atitude ativa em face do mundo e de Deus.
Diálogo verdadeiro tem uma intenção enfaticamente criativa. Sabe-
se que a atividade criativa é sempre dialógica. Porém, o contrário
também é verdadeiro: não apenas criação é diálogo, mas também é
sempre criação: disposição para romper estereótipos, lançar-se em
improvisações, etc. A criatividade do diálogo não se orienta em
direção à produção de coisas, mas em direção à produção de relações:
o surgimento do amor e amizade é o leit motiv da ontologia do
diálogo. A improvisação e meios não-mecânicos fundamentais são
características de um diálogo vivo. E o contrário: presentificação
sistemática é sempre estritamente monológica e representa o monó-
logo degenerado e estressado no qual o pensador produz racionali-
zações sem receptividade (ou mesmo sem consideração) a quaisquer
opiniões não inclusas no sistema de noções.
A alienação final entre conhecimento e valores, ciência e moralidade,
utilidade e beleza é considerada grande ameaça à cultura, à espécie
humana, e até mesmo à verdadeira experiência da vida na terra; isto
estimula tanto a busca teórica como a prática de caminhos para lidar
com estes cismas pelo uso desses mesmos meios dialógicos: a humani-
dade não inventou nenhum outro meio em toda sua história.
O esforço da reflexão filosófica, progressivamente enfatizada no
século vinte, para forçar seu caminho no sentido da vida autêntica
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(ou seria autêntica vitalidade?) do estar-no-mundo inevitavelmente
oferece caráter problemático ao verdadeiro fenômeno da reflexão.
Na medida em que o pensamento descobriu, por si mesmo, a possi-
bilidade de uma consciência ampliando-se igualmente com a vida
(A. Bergson) e quando a teoria do conhecimento e a teoria da vida
parecem inseparáveis, então o motivo do profundo desgosto com a
assim chamada lógica do sólido aumenta. O alcance anêmico da
expressão do discurso abstrato é incapaz de satisfazer-se com a busca
de um pensamento capaz de expressar toda a riqueza que há nas
sombras dos significados. O movimento no espaço da claridade e a
precisão das estruturas das categorias conceituais simplifica e fixa o
estado predeterminado das questões. Noutras palavras, o pensamento
engessado, regulamentado e normativo procura as possibilidades de
como superar-se e renovar-se no espaço de um pensamento formador
de sentido (gerador de sentido, melhor dizendo). Embora ansiando
por um mundo vitalista que não oculta o sentido no final, mas abre
a possibilidade de uma infinita ampliação de significados.Tendo entrado em contato com a atmosfera de não autenticidade,
onde a universalidade do lugar-comum elimina a possibilidade de
individuação, o pensamento filosófico começa a sentir a real desva-
lorização de qualquer universalidade, percebida abstratamente e
teoricamente; ele busca alternativas para encontrar, manter e expres-
sar o valor ontológico do único.
Caso imaginarmos a possibilidade do desenvolvimento da filoso-
fia e as afinidades com as figuras do pensamento puramente abstrato,
sistemas logicamente completos, doutrinas e concepções, não é
difícil notar que apenas parte dos sentidos pertencentes ao campo da
filosofia está incluído nas construções teóricas e em abstrato. E mais
difícil assumir como tarefa pessoal a execução da filosofia como
produção da atividade espiritual onde a integridade íntima do homem
não está apenas explícita, mas também realizada e restaurada. Só
então a filosofia poderá ver-se como emancipação do homem de
qualquer depressão, de modo que ele possa desempenhar um papel
no cosmos, onde ele se mostre capaz de expressar o espaço pleno de
sentidos em sua própria vida espiritual. Estritamente falando, a
produção filosófica acaba por ser a expressão da medida do mundo
interior do homem em seu envolvimento na ontologia dos eventos
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 147/168, jan.-mar., 2002 155
do universo (na coexistência do ser). Nenhuma vez sequer foi possí-
vel observar que a filosofia espera que a comunicação seja levada a
termo na base de intuições iniciais e definitivas e não na base de
provas intermediadas do pensamento discursivo (N. Berdyaev). É
provavelmente importante observar a diferença essencial de algumas
formas lógicas médias do conhecimento filosófico no qual ele social-
mente opera, enquanto resolve problemas puramente didáticos, des-
de sua origem, isto é, desde a filosofia no processo de seu nascimento
e vida na cultura.
Provavelmente, poderíamos perceber o papel da intuição na filo-
sofia mais uma vez, se víssemos que a intuição, para o pensamento,
não é uma centelha ocasional, mas a essência primária do pensa-
mento. O pensamento, aqui, não é um conceito, porém a essência da
coisa, refletida no conceito e na participação através do conceito,
pleno de significação e compreensibilidade.
A intenção que resulta da filosofia, no afã de dar sentido à
existência humana, isto é, a busca de algo que não pode ser encon-
trado. Por outro lado, a vida em si mesma sem a intensidade da busca
torna-se sem sentido.
Sabe-se que sentido nunca pode ser totalmente descrito ou mesmo
estabelecido. A descoberta do sentido não é, de modo algum, o
mesmo que sua apropriação, na medida em que o sentido não conse-
gue possuir, em princípio, embora ele mostre ao homem o caminho
do ser. A única forma de existência do sentido é sua geração de
sentido, sua emergência no espaço das relações intersubjetivas. O
sentido é um átomo de compreensão, abarcando o universo da
comunicação humana. De acordo com M. Bakhtin, o sentido é
personalístico, por princípio, sempre contém a questão, o destinatá-
rio, e a antecipação da resposta. Sentido pressupõe a presença de duas
pessoas num diálogo mínimo. O modo de existência do ser humano
no mundo consiste na procura, no descobrir, e no dar sentido a tudo,
incluindo sua própria vida. É outra história o fato de o homem, que
sempre representa apenas uma possibilidade de produção de sentido,
nem sempre se encontrar na vertigem do esquecimento, da renúncia
a suas próprias habilidades. Acontece sempre que uma estrada dura,
plena de sacrifícios e de agudas crises espirituais seja substituída por
um vale de bem-aventurança e de autoconfiança, a destrutiva auto-
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confiabilidade de um homem subjugado pela inércia de forças im-
pessoais e universalmente significantes.
O tema filosófico do silêncio presumivelmente tornou-se o sinto-
ma de uma desastrosa desvalorização cultural de frases e pensamen-
tos sacados daquele poderoso clichê verbal e mental que está pronto
para ocupar todo o espaço das relações comunicativas ideologica-
mente performáticas. Mais e mais, as idéias abstratas ganham supre-
macia, quer dizer, as idéias prontas para assumir a forma de univer-
salidade, o reino do lugar-comum, torna-se o lugar da comunicação
real e dá ao lugar-comum o status e a força de universalidade. Agora,
os clichês tornam-se eles mesmos e começam a destruir, invisivel-
mente, toda possibilidade de vida e de pensamento.
Os caminhos onde o pensamento, enquanto procura ser dispensado
das mudanças e das regularidades estáveis, logicamente usuais,
provocam não apenas a si mesmo mas o recipiente, também (quando
tenta forçar seu pensamento para fora do não-pensamento) são rei-
vindicados, não unicamente pela filosofia e pela arte. A busca em si
mesma quase se tornou lugar-comum da cultura contemporânea.
Bem inesperadamente, o pensamento encontra-se com a crescente
habilidade do espaço pragmaticamente tecnologizado (racionaliza-
do) de falar tudo de uma vez, mesmo sob o protesto contra todo o
tipo de pensamento clicherizado e estereotipado, fazendo da Indivi-
dualidade propriedade exclusivamente sua, ainda assim encontra-se
sob grande influência de formas codificadas de paradigma. Conside-
rando a razoabilida.de da conduta humana, estas formas determinam,
estritamente, sua adequação funcional ao sistema. A medida de uma
ação meditada é submetida, por si mesma, a um controle secreto de
uma significação universal que, ao longo do tempo, neutraliza o
caráter individual da ação mesma. A objetivação do pensamento na
linguagem é consistentemente (bem como invisivelmente) transferi-
da para formas não-finitas da voz passiva lingüística e quantificado-
res eventuais, como, por exemplo: pensa-se, supõe-se, geralmente se
aceita, considera-se, etc.
Ao mesmo tempo, a tematização filosófica do silêncio acabou por
tornar-se expressão de um valor superior, ou melhor: a importância
inestimável do mundo-da-vida, ao vivo, que se declarou a si mesmo
por meio de certo número de aforismos sutis, agudos, profundos e
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 147/168, jan.-mar., 2002 157
brilhantes: somos verdadeiramente silenciosos não quando esta-
mos em silêncio, mas quando falamos (Kierkegaard); o homem
verdadeiramente tornou-se homem devido ao que ele guarda em
silêncio e não devido ao que ele fala (Camus); somos silenciosos,
quando somos capazes de dizer alguma coisa (Sartre); o silêncio
é a forma autêntica da palavra (Heidegger). O tema do silêncio
exigiu a imersão na linguagem metafísica, ao mesmo tempo que
promoveu o severo teste na própria metafísica da linguagem.
Ninguém pode mais se pronunciar seriamente sobre o universo
(enfatizou Valéry). Esta palavra perdeu o sentido original, bem como
a palavra natureza que também se tornou desprovida de sentido...
Estas palavras, progressivamente, tornaram-se apenas palavras
(Valéry, 1976, p. 161). Outro poeta escreveu sobre o mesmo tema de
modo ainda mais incisivo: um mal-estar sempre crescente na lingua-
gem, um completo desalento, quando se trabalha com conceitos que
se tornaram vazios, a hostilidade à filosofia positiva que se consolida
como se fora um jargão tradicional (Broch, 1986, p. 379). A preo-
cupação com a palavra, pela vitalidade do pensamento, que subita-
mente adquire uma entonação de negativismo irritadiço, não faz com
que a situação se torne menos estressante.
A experiência poética pode ser magnética para o pensamento
filosófico, quando este busca seus fundamentos, porque nele, e não
na atitude em relação à linguagem ou ao silêncio, a linguagem e o
silêncio são, por si mesmos, expressos e o sentido permanece sempre
vivo em sua abertura para a infinitude.
Neste enlace, não se pode deixar de evocar a confissão feita por
Hoelderlin. Desapontado com a acusação de que seus versos eram
carregados de filosofia, ele sobriamentelembrou que poetas desa-
fortunados como ele vão para a filosofia como se vai para um
hospital. O tom irônico em sua confissão começa a conotar, mais
abertamente, no século XX, com o apelo da filosofia à arte, com
determinado remédio para seus próprios sofrimentos, um dos quais
não tem sido só a banalidade das estruturas lógicas e racionais, mas
também o vazio do sentido da linguagem. A reflexão filosófica tenta
seriamente superar sua própria estreiteza mental por meio da racio-
nalidade e do discurso dedutivo; busca sacudir a auto-suficiência de
seus propósitos objetivo-racionalísticos de uma consciência pragma-
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ticamente orientada. Não está apenas concentrada na procura por
novas poéticas e textos de estilo, em buscar uma nova linguagem que
tocará a realidade, mas, no fim das contas, acaba inspirada pela
necessidade cultural de proteger a própria cultura (a cultura do
pensamento, do sentimento, da ação, da consciência como um todo
e do ambiente das relações humanas, iluminado por ela) do perigo
de total materialização nas condições de uma sociometria pragma-
ticamente racionalizada.
Se nos abstrairmos do gigantesco castelo gótico da teoria da
metafísica da linguagem e tentarmos descrever metaforicamente a
imagem acústica no mundo em que vivemos, talvez sejamos marca-
dos pelo som do ruído crescente - caso ele se apresente como o
barulho metálico do tráfego ou mesmo um conjunto articulado de
vozes radiofônicas, televisivas e de certos comentaristas midiáticos.
Não importa quanto a imagem produzida pela entoação do estilo
do comentarista possa variar (desde a absoluta neutralidade até a
entoação emocionadamente sutil, como se fosse um velho amigo) o
mundo-da-vida puramente exteriorizado (isto é, seu vazio total)
permanecerá invariável. A palavra disseminada pelos meios de co-
municação, propriamente, termina sendo tão-somente uma canção-
zinha acústica, um modo de informação mensurada para o transporte
rítmico.
Mas não pretendo ficar absorvido na consideração dos destinos
do homem e sua linguagem refletida nos fantasmas dos meios de
comunicação de massa. No final das contas, é bem possível que o
colorido impressionante e a trilha sonora de um videoclipe pode se
tornar um modelo de nova visão, para o qual tudo será praticável.
Mas é de superior importância que algo seguramente óbvio se tornará
possível e se assemelhará à constatação de um fato: sofrimento, amor,
esperança... imagens associadas a estes sentimentos mantêm ainda
sua força, porque o homem tecnológico não detém mais tais senti-
mentos (Read, 1967, p. 31). A consciência artística não se voltará
para o que acima foi descrito: o tema da vida - vai interpretá-los à
sua própria maneira. Quer sejam personagens dos livros de Robbe-
Grillet, vivendo em espaços labirínticos reciprocamente indistinguí-
veis - coisas, eventos, pessoas - no mundo da entidade física,
enquanto infinitamente duplicam cada uma de suas formas, volumes
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 147/168, jan.-mar., 2002 159
e sonoridades, quer seja uma poética da contemplação ou poética
do fluxo do inconsciente, a poética do sonho, do fato, do absurdo;
por detrás de todos estes aparatos e métodos, por detrás destes
programas estéticos, tão amplamente manifestando-se a si mesmos,
e sua implementação, é possível notar a percepção do mundo (apenas
de tudo) por parte do homem ao vivo, revelando-se a si mesmo na
obra de arte. Há um desafio persistente por veracidade imediata da
palavra enquanto a realidade do que é humano permanecer nela.
Tendo sido reduzido à função de um mero traço sintomático, quanto
pior for o mundo (e agora ele é bem pior do que nunca) tanto mais a
arte se torna abstrata (V. Kandinsky), a arte é facilmente devorada por
este mundo, como certas drogas leves; no entanto, é a arte e não a
ciência, ou qualquer outra forma pragmaticamente racionalizada que dá
(conforme H. Read) sentido à vida, não apenas no sentido da emanci-
pação, mas no sentido de reconciliar o homem à sua destinação, que é
a morte, não no sentido físico, mas aquela forma de morte que é a
indiferença, accidie espiritual (Ibidem, p. 34).
A palavra do artista e do filósofo encontram-se na fronteira da mais
elevada responsabilidade da humanidade (de sua própria individua-
lidade, a peculiaridade de ser) frente ao universo. E o encontro do
pensamento e palavra no território espiritual dos sentimentos profun-
dos, vivida pelo homem, que está consciente deste unidade, como a
infinitude da formação da palavra. É aqui que a possibilidade da
gnose da plenitude da vida é assumida; a possibilidade daquele
princípio de cognição interiorizado, imbuído da energia que advém
do crescimento espiritual do homem onde nós o observamos, não a
oposição do mundo interior versus mundo exterior, mas suas relações
recíprocas. A introjeção do pensamento filosófico, oportunamente
consolidado em sentido moral e artístico, representa, em primeiro
lugar, a oportunidade de superar a natureza teórica auto-suficiente,
objetivada na forma de discurso abstrato-conceitual, o cânone logo-
cêntrico removido, e a emergência de uma visão nova, constantemen-
te renovada.
É desse modo que a necessidade de gnose espiritualmente cres-
cente se autoproclama movimento de pensamento no espaço da
completude da vida onde o homem, na condição de ser emocional-
auto-compreensivo é incluído no continuum eticamente significativo
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da ontologia da comunicação. Aqui, o pensamento está imediatamen-
te no horizonte da formação livremente criativa do homem no mun-
do; aqui, a individuação do pensamento e da palavra representa, com
efeito, a principal universalização do sentido, produzido no espaço
da intersubjetividade. A mudez de qualquer objetividade, enquanto
perdida no silêncio de nossa atenção, ganha a oportunidade de ser
expressa através do pensamento e da palavra. A instabilidade, vaci-
lação, pluralidade, colorido e poder vital do mundo requerem um
olhar tão vivido de modo que não escape, no transitório enevoar-se,
sob o disfarce das regras rígidas.
Enquanto reveladora da essência dó ritmo da formação infinita, é
preciso que o pensamento esteja livre de qualquer algoritmo, isto é,
seja vitalmente criativo, seja a criação do homem na completude de
sua habilidade de auto-realização no mundo e o mundo, nele, de
modo a aproximar-se do mundo em sua integridade e plenitude. Aqui,
o caminho do pensamento abstrato e cientificamente racionalizado
representa um dos caminhos possíveis. É presumivelmente impor-
tante não permitir sua usurpação de poder, porque então ocorrem
mudanças inesperadas na ontologia do pensamento e a doença da
desvida fere não apenas a filosofia. A autenticidade de alguma coisa
que sofre, sente, partilha experiência emocional, ama e sonha, não
pode ser substituída pela neutralidade indiferente da universalidade
objetiva. E, presumivelmente, o caminho, não tanto logicamente,
com a autenticidade de um sentimento, busca ser revelado (o que
conduz o autor a esta idéia), não pode ser verdadeiramente compreen-
dido dentro do arcabouço da razão prudentemente discursiva que
preserva sua própria pureza. Somente aqui o homem se assemelha ao
caos e à harmonia, à autodestruição e à autocriação, e qualquer ordem
está imbuída de inquietação e imprescidibilidade do que é fortuito.
Homem e palavra aqui parecem ansiar pela casualidade do verda-
deiro encontro.
É fácil notar que o conflito tem basicamente ido além do arcabouço
da epistemologia e entrou na esfera da ontologia do pensamento. A
fissura não acontece entre habilidades cognitivas diferentes, em
termos de alguns ecos eventuais e obsoletos das contaminações
triviais do vazio da razão e cegueira da experiência, mas a fissura
acima mencionada ocorre dentro do próprio pensamento, no ato
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mesmo de seu preenchimento. A reflexão filosófica freqüentemente
assumiu esta fissura, tentando encontrar o modus vivendi da mente
lógica e criativa, vendo na última uma oportunidade para a plenitude
vital do pensamento. A verdade lógica do pensamento, evidência
irreprochável de suas construções teóricas, medida da correspondên-
cia entre o mundo das idéias e o mundo das coisas que permite falar
acerca da relevância do pensamento para os processos (conexões,
relações) refletidos por ele, manifesta sua própria dubiedade enca-
rando o mundo real. Esta situação sempre nos faz entusiasticamente
exclamar: sabedoria, fé, justiça, paciência, bondade são uma histó-
ria única, e a matemática é toda uma outra história; não existe
verdade em filosofia que não seja abstrata, uma verdade para todo
mundo na qual ninguém imprime sua alma. (Unamuno )
Mas o mesmo rigor lógico pode considerar que a filosofia da
contemplação do mundo não deveria imiscuir-se com a filosofia
científica: a ciência é impessoal. Seus cultores não necessitam de
sai °,doría, mas de umdompara a teorização. E caso estejamos livres
de preconceitos, deve dar no mesmo se este ou aquele juízo venha de
Kant ou de Tomás de Aquino, Darwin ou Aristóteles. Qualquer
sabedoria e doutrina de sabedoria perde o direito à existência até
onde a doutrina teórica correspondente adquire fundamentação ob-
jetivamente significativa. A ciência deu a última palavra, doravante
supõe-se que a sabedoria seja ensinada por ela. (Husserl )
Poderíamos mesmo notar que como ciência, a filosofia ainda não
aconteceu, portanto, deveríamos envidar esforços mais entusiastica-
mente para que nosso pensamento produza com clareza decisiva
condições de ciência estrita, ingenuamente perdida ou mal entendida
pela filosofia prévia. Quais são, a partir do ponto de vista de Husserl,
estas condições? Com clareza decisiva, o ideal da filosofia lógica
tem a palavra: a essência da ciência consiste na unidade de funda-
mentos, unidade sistemática, na qual não apenas o conhecimento
particular, mas os fundamentos em si mesmos e, junto com eles, os
mais elevados complexos de fundamentos, chamados teoria, estão
reunidos. E não importa até onde Husserl tenha chegado depois,
desde o logicismo inicial de seu próprio ponto de vista. Este ponto
de partida surtiu efeito, num aspecto principal, nomeadamente na
inexorável limitação de toda pesquisa fenomenológica até a própria
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consciência. Sem dúvida, para a lógica, a questão relativa à realidade
do ser é verdadeiramente irrelevante. O ser do mundo pode sempre
ser substituído por um quantum variável.
A fenomenologia pura, como seu criador sublinhou várias vezes,
pode ser uma pesquisa da essência, mas não da existência. Porém,
onde a pesquisa da essência impõe um veto à pesquisa da existência,
o pensamento, a qualquer profundidade da evidência eidética que ele
possa ir, a qualquer momento, pode parecer absolutamente insigni-
ficante para um ser humano na medida em que ele continua existindo.
Nesse exato momento, Husserl foi forçado a admitir: a filosofia como
ciência rigorosa... é um sonho compensatório.
Eu realmente não levanto a questão acerca do potencial heurístico
geral da metodologia fenomenológica, acerca de sua segura signifi-
cância pelos caminhos da reflexão filosófica em geral. Para mim, o
que é importante é apenas mostrar algum caminho do pensamento
levado ao limite, à necessidade de virar-se para-seus-outros. Este
drama da inteligência clássica é jogado com todas as regras de alto
estilo. A primeira emergência do caráter principal - o Logos, cercado
pela fidedignidade dos fundamentos - acontece junto com os fogos
da auto-suficiência...Nem a arbitrariedade nem a contingência pre-
dominam em suas ligações básicas, mas sim a razão e a ordem, isto
é, a Lei da Norma; a veracidade das inferências é garantida por esta
forma. E uma forma, posta em ordem, torna possível a existência da
ciência. Numa palavra, uma ordem é garantida para o Logos. E,
quando um sentido de julgamento banal está sendo estabelecido, o
Logos não tem nada a ver com a questão, se se supõe fazer qualquer
distinção seja entre o bem subjetivo ou objetivo. Seria suficiente
notar que alguma coisa é considerada valiosa na medida em que é
um valor e uma mercadoria, sem dúvida. Intoxicado por seu próprio
poder, o herói não pode evitar exclamar: talvez, em toda a vida, não
haja a idéia de que algo seria mais poderoso, mais irreprimível, mais
glorioso do que a ciência. Se pensarmos nela dentro de seu ideal de
completude, seria razão suficiente que ela não se submetesse a outra
autoridade além e acima dela.4
Mas as baladas festivas dessas exclamações sonoras não poderiam
apagar o crescente ruído que vem do fundo do palco: uma mistura
indistinta de vozes testemunhando que a vida está lutando contra a
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forma dos princípios... a vida auto-suficiente quer se livrar da
pressão da qualquer outra forma que seja (G. Simmel). Até onde,
em toda esfera da vida, a revolta contra qualquer forma estabelecida
foi-se tornando distinta, a razão clássica, dobrada sob o signo da
forma, perfeita, auto-suficiente, assegurou que, estando calma e
completa, é a norma da vida e do processo criativo, é forçada a ir
além de algumas cenas, estreladas pelo seu duplo-Logos, para garan-
tir seu próprio direito de ser o único sentido e valor de nosso ser, de
modo que todos os que a ouvirem estariam certos de que qualquer
vontade de vida é apresentar-se através de uma força informal em
sua mera imediatez de dentro de qualquer forma é absolutamente
inatingível, pois toda a cognição, desejo, criação pode apenas subs-
tituir uma forma pela outra...
Neste ponto, a forma em si mesma, para a qual a Razão tem
apelado, assumiu, por assim dizer, contorno volumétrico e mais vital,
superando a rígida clausura do ordenamento lógico-formal. Deve ser
lembrado aqui que cada pessoa, sinceramente falando, inevitavel-
mente entra em contradições, e pode prestar atenção aos avisos de
perigo: a crise mais mortal para o espírito humano é a adoção de
um sistema (Fr Schlegel6), desde que a vontade de sistema é falta de
sinceridade (Nietzsche ). Poderia admitir-se aqui que o interesse do
pensamento estético-filosófico não se eqüivale ao geral abstrato e
naturalmente necessário... mas vai diretamente em direção a um
elemento vital concreto de todas as formações históricas das ativi-
dades culturais do homem. E ainda se pode perceber que o mundo,
entendido como um objeto de realidade apenas, carece de sentido.
O que é importante é convocar para a ordem do tempo, não para
misturar romanticamente valores da estrutura de mente e valores da
materialidade do sujeito, e distinguir ordem do ser e interpretação
de um sentido.9 Por outro lado, o logos filosófico está ameaçado pela
confusão entre elementos teóricos e estéticos, vacilando entre um
refinamento discursivo e criação estética.
Voltemos agora às variações neokantianas (com seu diálogo in-
ternamente tenso) com a filosofia da vida que é necessária a nós. No
neokantismo (que diz a escola de Baden), havia um encontro aberto
ao perfeitamente sabido pelas tradições seculares da filosofia da
sistemática categoria! razão/intelecto, bom como elementos irrestri-
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tos do mundo interior do sujeito. Tendo presentificado a si mesmo
de modo pleno, a necessidade de a vida vivida pelo povo, Dilthey não
apenas tematizou renovadamente o caráter histórico-cultural da exis-
tência humana, mas evidenciou os caminhos de um necessário en-
volvimento da - por assim dizer - modalidade pessoal no campo da
atenção filosófica. Tomada pela vitalidade do cuidado, a razão lança
dúvida sobre a possibilidade de ajustar uma imagem de relações da
coisa no mundo para um sistemade conceitos bem ordenados e
reivindica buscar uma conexão interna de todo conhecimento... não
no mundo, mas na pessoa. Contudo, enquanto a vida do indivíduo
cria seu próprio mundo, não é dever do filósofo explicar as coisas,
desmembrar nada, mas tão-somente descrever fatos que todo mundo
pode observar em si mesmo. A verdadeira nobreza desta intenção
propriamente humanística da razão, que esteve abrindo caminho para
descrições histórico-culturais profundas, não poderia, é claro, estar
à altura da razão filosófica com sua óbvia propensão de procurar,
analiticamente, a máxima condicionalidade, justificação, e estar em
ordem em tudo; ao passo que o modo de entendimento e descrição
assemelhou-se a uma fonte de subjetivismo e caos. No entanto, a
filosofia, claro, não poderia deixar de lado a significância do mundo
interior, ilimitada e aberta, que está longe de consistir em apenas
vontade de cognição, porém inclui um conjunto infinito de sombras
nas relações entre os seres humanos e o mundo, que revele à pessoa,
submetida a qualquer impressão forte da vida, advinda de um aspecto
particular, onde o mundo está sendo apresentado sob nova luz.
A insuficiência do tradicional, embora por longo tempo, natural
para orientação filosófica, no sentido de criar um modelo objetiva-
mente claro do mundo como um todo, surgiu em todos os níveis no
sentido do mundo humano. A plenitude natural desta insuficiência
com o fluxo de experiências, humores, pensamentos, desafios e
sentimentos torna, pelo menos, artificial qualquer tentativa de refle-
xão analiticamente conceitualizável substituir o processo de lidar
com a vida e com o panorama geral.
Porém, tendo sido adotado em filosofia, todo o esforço para a
clareza do ato intelectual foi-se, ao mesmo tempo, abrindo caminho
para a intersubjetividade universal, uma saída para a altura sedutora
da transcendência e estabeleceu um verdadeiro anonimato do pensa-
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mento, como se fora razão estabelecida, intelecto dirigido para a
universalidade: é o mais puro antípoda do eu penso em nome do
qual a pessoa da razão, como aparece, pode apenas permitir-se ser
um filósofo.
Os paradoxos da ética do intelecto, fundamentalmente impessoal,
foram destinados a influenciar a existência humana em si mesma. E
isto não apenas significa que a pessoa da razão devia eventualmente
reduzir-se a uma infinita denegação de ser qualquer coisa, dedicando
todo o pensamento o mais geral e abstrato; a universalidade anôni-
ma do pensamento, no limite, não sabe de nada. E, então, apenas a
confissão do senhor Teste sobra de tudo isto: eu cancelo o viver.
Preservo apenas o que eu quero. Mas a dificuldade não é aqui. A
dificuldade é preservar o que eu quero amanhã. E então ser a si
mesmo, ver-se a si mesmo, etc tendo finalmente pensado tudo isto,
subitamente descobre que pode-se cair no sono a qualquer pensa-
mento, o sono continua qualquer idéia... Valéry realmente deixa seu
caráter, não apenas na calmaria do sono, mas também assegurou que
Vita Cartesii est simplissima (a vida de Cartesius é simplíssima),
porque supõe-se que ele apenas pense com toda possibilidade de
exatidão sobre o que todo mundo já sabe.
Nós, é claro, nunca devemos esquecer que, quaisquer que tenham
sido os caminhos da filosofia, nunca foram fáceis. É importante para
nós observar que, além de Descartes, a cultura, jamais em vão, gera
Os pensamentos de Pascal, e, além disso, a regra: saia por aí com
apenas aquilo que a inteligência seja capaz de assumir do conheci-
mento confiável e indubitável reforça a necessidade de aprender
como avaliar adequadamente terra, estado, cidades e a si próprio.
Muito provavelmente, a plenitude do sentido expresso num ou
noutro sistema filosófico fortalece os argumentos em favor do caráter
universal e potencial de qualquer um deles; é eventualmente capaz
de ser descoberto (e, talvez, criado) apenas na fronteira onde a
interseção de um conjunto sempre incompleto de posições cognitivas
e espirituais está atuando. E mesmo que se imagine que se anula o
que o outro estabelece, a conseqüência do que não seria, de modo
algum, um vazio do cogito, aniquilando-se como um zero da mate-
mática, mas o sentido infinito () do espírito (se usarmos, neste caso,
166
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 147/168, jan.-mar., 2002
o mais superlativamente exato símbolo matemático, seguindo o
conselho de Kant).
A história viva do pensamento filosófico não deveria se tornar um
arquivo morto através da bastante conhecida erudição dos intelectos
profissionalmente vazios, com sua imutável propensão ao gênero de
uma classificação botânica; a única oportunidade para o pensamento
filosófico ganhar sentido pleno (isto é, ser um pensamento não só
verbalizado, mas ouvido também; ser um ponto de encontro de temas,
unidos por suas diferenças e buscando o esforço do entendimento)
está relacionado com toda capacidade de as pessoas suportarem, em
si mesmas, a história completa da espécie humana, como se fora seu
próprio passado. Este é o único lugar onde uma oportunidade se
apresenta, não para registrar, em algum compêndio, o movimento do
pensamento, que acabaria sendo uma coleção panorâmica de idéias,
mas para dar oportunidade ao gravador de som, completo, de afinal
tocar, sem vozes ao fundo; porque é necessário, não apenas uma
orquestração, mas um espaço para nossa própria participação. E para
não desafinar - mais importante ainda - é não substituir nossa
melodia por ruídos; nada é mais importante para o pensamento, em
seu supremo esforço para produzir sons expressivos, do que a capa-
cidade de ouvir e entender o que acabou de ser dito em sua plenitude.
Os filósofos devem sempre tentar enredar o sentido pleno e autêntico
da filosofia em seu horizonte total de infinitude. Nenhuma linha de
cognição, nem qualquer verdade parcial devem ser absolutizâdas e
isoladas. Somente através dessa reflexão permanente, a filosofia
pode ser um conhecimento universal.
Notas
* Palavra cuja conotação mais próxima em português seria bobagem.
** Termo derivado de hooligan, torcedor inglês, ligado a vandalismos
(N. T.)
O autor alterna world e word para o mesmo conceito. Para ele, nestes
contextos, palavra e mundo se eqüivalem.
**** Amargura.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 147/168, jan.-mar., 2002 167
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9
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10DILTHEY, W. Op cit. (sic), pp. 123, 126,135.
lllbid.pp. 131,132.
12
DESCARTES, R. Consideranon on method. Selected works, 1959, p
81.
13
PASCAL, B. Thoughts. S. Petersburgo, 1889, p. 37.
(Tradução do original inglês por Carlos Sepúlveda)
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TRADIÇÃO, CONHECIMENTO E INTERPRETAÇÃO
Claudius Bezerra Gomes Waddington
A hermenêutica propõe um modo de conhecer que, apesar de
presente na história da filosofia ocidental, desde suas matrizes gre-
gas, não chegou a assumir, ao longo desse percurso, toda a sua
contundência crítico-analítica, a qual somente seria revelada e posta
em prática no século XX por Heidegger. Apreendendo o conhecer
em sua incontornávelmediação pela interpretação, embrenhado na
linguagem, construído em e com ela, como ato, gesto ou projeto
profundamente mundano, inseparável da cotidianidade do ser-no-
mundo, da disposição daquele que conhece e inteiramente depen-
dente do abrir-se ou desvelar-se daquilo que se quer conhecer, a
hermenêutica heideggeriana rompeu com os dois grandes ramos do
pensamento metafísico ocidental, o idealista de ascendência platôni-
ca e o cientificista de ascendência aristotélica.
A perspectiva heideggeriana põe à deriva o élan transcendente que
faz o conhecimento depender da cisão sujeito/objeto, de um movi-
mento de ascensão, de desligamento do mundo, que faz do conhecer
um processo de gradativo isolamento, mediante o qual vai galgando
a hierarquia idealista que estabelece uma gradação do saber, do poder
e do ser: quanto mais alto na escala, tanto mais fora do mundo e do
tempo, mais belo, justo, verdadeiro, bom, poderoso e essencial, tanto
menos exposto ao erro, ao mal, às injunções da matéria, às circuns-
tâncias da existência, ao clamor do desejo, na suposição de que o
conhecer legítimo dependeria do despojamento do homem de sua
vital co-pertença à linguagem, ao mundo e ao tempo. A perspectiva
heideggeriana também corrói a hegemonia da empeiría, denuncia a
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002 169
ww-
propensão ao conhecimento como representação, isto é, como visua-
lização, como enquadramento em uma imagem, e a compulsão à
classificação do mundo tornado explícito, completamente apreendi-
do pelo olhar científico, inteiramente plano, sem nenhuma densidade,
todo ele reduzido à manualidade, à funcionalidade e à operacionali-
dade, com vistas ao controle tecnocientífico total do mundo e da
existência. Heidegger opõe a este saber que visa o poder, um saber
que visa o convívio, à construção de alternativas não-autoritárias para
o conhecimento, buscando o desvelamento do mundo enquanto parte
do projeto de resgate do sentido de Ser, da árdua luta contra o seu
esquecimento.
Heidegger, em Ser e Tempo, demonstrou a inviabilidade do projeto
fenomenológico husserliano, flagrando a impossibilidade de voltar-
mos ao fenômeno, enquanto pura doação da coisa à percepção
igualmente pura do observador, como se entre nós e as coisas já não
se interpusessem séculos de densa tradição que encobriu, para todo
o sempre talvez, a possível transparência das coisas, dos entes e do
mundo. Heidegger radicalizou a lição da " escola da suspeita" Marx,
Nietzsche e Freud , semeando, em meio à crença generalizada no
conhecimento total em que comungavam a ciência, o positivismo
filosófico e a própria fenomenologia husserliana, a desconfiança de
que a realidade não nos está dada de antemão, de que o conhecimento
precisa ser desentranhado de injunções históricas e visões de mundo
comprometidas. Para Heidegger, ao conhecermos, não retornamos às
coisas, como propuseram Kant e Husserl, mas, atravessando a visão
utensiliar da existência em que tudo e todos se encontram mergulha-
dos, às interpretações já cristalizadas sobre as coisas, os seres e o
mundo. E em face da apropriação de tudo e de todos pelo tecnocien-
tificismo que distingue a era do niilismo consumado, a tarefa que se
impõe para nós sob a inscrição "decifra-me ou devorar-te-ei" é a de
questionar o sedimento dessas interpretações, seus pressupostos, na
tentativa de sacudir o jugo obliterante da tradição, a fim de, para além
do conhecimento como forma de domínio sobre o mundo, alcançar-
mos uma compreensão, a mais abarcante possível.
Mas a construção de outra modalidade de conhecimento depende,
primeiramente, do despertar daquele que o procura para a sua inter-
ferência no ato/gesto/projeto de conhecer, isto é, de que o conhecer
principia na disposição que anima aquele que o busca e se dá
historicamente mediante a adoção de um ponto de vista e a colocação
de algo em perspectiva; em segundo lugar, que o conhecer depende
também da realização do horizonte do mundo em que os entes, seres
e coisas encontram-se inseridos e no qual ele se realiza; e, em terceiro
lugar, que o conhecer só se concretiza no abrir-se ou desvelar-se das
coisas, dos entes, dos seres, do mundo. Enquanto Husserl havia
pensado num acesso ou conhecimento imediato deste horizonte,
Heidegger só o podia conceber mediado por essa ponderação, essa
consideração de todos os vetores intervenientes no conhecer, para a
qual endereçava o questionamento com o índice "interpretação".
Para além da visão estática de Husserl, destaca-se aqui, além da
historicidade e da mundanidade do conhecer, o seu inexorável lidar
com a linguagem, aspectos enfatizados por Heidegger e que lançaram
sobre o pensamento ocidental contemporâneo o desafio intransferí-
vel da interpretação, despertando-nos para a urgência da palavra no
ser e no pensar. Não mais da palavra dogmática dos grandes sistemas
da tradição metafísica do ocidente, detentora, censora e sancionadora
da verdade e da mentira, do certo e do errado, do bem e do mal, do
justo e do injusto. Para Heidegger, conhecer é re-memorar, co-me-
morar um passado longamente esquecido e, por conseguinte, insepa-
rável da experiência do tempo, do convívio com o silêncio e o
esquecimento.
Com o novo exercício de pensamento que nasce com Heidegger,
com a sua realização agônica de que não existe conhecer, pensar ou
ser fora da linguagem, nasce, também, nova modalidade de conhecer,
enraizado no questionamento do já conhecido e no desencobrimento
do quejaz camuflado, incógnito, porém pressuposto no conhecimen-
to institucionalizado. Heidegger herda de Nietzsche este impulso
genealógico no pensar, que não se contenta com o conhecido, com o
manifesto, com o presente, mas tem necessidade de lançar-se, de
arriscar-se num incessante desmascaramento das representações, até
defrontar-se destemidamente, já transpondo o limiar da metafísica,
com o caos subjacente, ou quiçá com o sem-fundo, o Ab-grund, que
as representações não fazem mais do que tentar vestir, mascarar,
ocultar. É aí que se adensa o viés interpretativo do conhecer heideg-
geriano: como crítica dos pressupostos metafísicos, como subleva-
170 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002 171
cão do tecnocientificismo que domina o modelo de conhecimento
contemporâneo instalado na academia, como ataque a esse conheci-
mento desfibrado, eviscerado, sem nenhum comprometimento e que
permite à academia fechar os olhos para os interesses que serve e que
a sujeitam, enfim, como denúncia da grande mascarada que caracte-
riza a era da metafísica consumada. A partir de Heidegger, o conhecer
torna-se um lidar com a tradição através e em a linguagem, um
esforço de compreensão da interpretação do outro, a fim de, desmon-
tando-a, construir a própria interpretação.
Heidegger apanhou o conhecer em sua circularidade originária.
Conhecer mediado pela compreensão de mundo e de vida da qual
emerge e para a qual retorna. Correndo os riscos de toda simplifica-
ção, diria: só chego a conhecer como acréscimo, correção ou distor-
ção de conhecimentos já adquiridos e dentro de uma compreensão
de mundo que abarca a mim que conheço, o conhecer e aquilo que
se conhece. Mas, ao deixarmos de entender o conhecer como acesso
imediato ao mundo dos seres e das coisas, o interpretar passa a
constituir etapa imprescindível do conhecer, significando na prática
um mergulho, talvez sem volta, no rio de caminhos tortuosos, por
vezes subterrâneos, e águas revoltas de signos, símbolos e signifi-
cantes da tradição. Contrapondo-se à linha reta da forma sancionada
do conhecer, o círculo hermenêutico, que descreve a modalidade de
conhecimento para a qual Heidegger acena, ressurge enquanto ines-
gotável aproximação em espiral e o conhecer como um caminhar,
freqüentemente errático, ao longo do qual dialogam e interagem os
seus agentes: aquele que busca conhecer,o que está se dando a
conhecer ou se ocultando e o modo pelo qual eles mutuamente se
aproximam ou se repelem, se desvelam ou se encobrem.
Visto que Heidegger enfatizou, desde sempre, a essência, não
apenas crítica, mas visceralmente desmascaradora, por vezes "des-
truidora", da interpretação, não se pode fingir ignorar a dificuldade,
praticamente intransponível, de só se poder fazer a crítica do conhe-
cimento com outro conhecimento, de se buscar a desideologização a
partir de uma outra ideologia. Heidegger não pretendeu criticar a
compreensão de mundo que abarca a nós, ao nosso conhecimento e
ao próprio ato/gesto/projeto de conhecer, supondo já dada a existên-
cia de outra modalidade de pensamento que, mesmo originando-se
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nessa mesma compreensão, permaneceria ou viria a se tornar a ela
imune. Ao apanhar o conhecimento em sua circularidade fundadora,
ao concebê-lo como interpretação desvelante, que destrói e resgata a
um só tempo, Heidegger situa o conhecer no patamar de um desafio
sem precedentes, pois acena para os limites que circunscrevem e
historicizam nossas possibilidades de crítica das ideologias e de
superação da metafísica. Por isso, a colimada genealogia iconoclasta,
demolidora da tradição onto-teológica da metafísica ocidental, não
depende tanto da vontade ou da autodeterminação do pensador, mas
da experiência radical do silêncio e do esquecimento em que o
próprio ser se lançou. Se o método heideggeriano é reiteradamente
apresentado como um caminhar, onde o que importa não é o objetivo
ou o fim ou a meta, mas o próprio caminhar em si, essa errância do
pensamento é a condição sine qua non para a experiência do pensar
enquanto experiência do tempo, que difere, indefere, indefinidamen-
te, o momento da conquista, da tomada de posse do conhecimento.
Frustrando a compulsão ao consumo imediato e descarte de informa-
ções e conhecimento que domina a academia contemporânea, Hei-
degger acena para o conhecer como exercício de paciência, de
auscultação e de espera. Segundo parte significativa de sua obra
publicada, a possibilidade de uma modalidade de pensamento vir de
fora da metafísica permanece em grande escala, para nós ocidentais,
uma experiência por vir, uma meta a alcançar. Nos momentos em que
parece subscrever a idéia de superação da metafísica como algo
passível de já ser realizado, o faz mediante ruptura com o paradigma
filosófico ocidental, em experiências radicais da linguagem filosófi-
ca que a aproximam da poesia. Se, de um lado, temos rupturas
profundas, por outro temos o encaminhamento de novas modalidades
de conhecer, abertas à experiência da arte como estratégia de revita-
lização de uma tradição já fossilizada, mas que encerra as possibili-
dades de reinvenção da existência.
O conhecimento capaz de promover a colimada transformação da
civilização ocidental, encurralada na era da consumação da metafí-
sica, como universalização do controle da tecnociência sobre os
destinos do mundo, dos seres e das coisas, precisa ser procurado pela
sociedade, não mais na clausura asfixiante dos laboratórios, mas na
abertura do horizonte da vida, do pensamento, pela experiência plena
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002 173
da linguagem que a arte empreende e que a interpretação medita. Mas
o que seria interpretar? Esse gesto tão desimportante para a era do
explícito em que vivemos, de verdades pré-fabricadas, prontas para
consumo. Gesto que afronta o produtivismo instalado na academia.
Gesto que desafia o poder instituído, sem transformar o mundo da
forma que a última utopia do ocidente entendeu, mas que se condensa
na concentração que precede as ações decisivas e na qual latejam
insuspeitas revoluções.
A interpretação é a questão essencial dos estudos, não apenas
literários, mas filosóficos, históricos, jurídicos, do que se convencio-
nou chamar de "ciências humanas" enfim. Todo ato humano é
carregado de significado e, portanto, requer interpretação. Geralmen-
te, o termo interpretação evoca, conclama o de texto. Há muito
tempo, aliás, que a interpretação parece ao ocidente como correlato
do texto. Essa é a acepção restrita que recorta a hermenêutica clássica,
consagrada à elucidação do texto antigo. A interpretação, contudo, é
mais que isso. Cidadão do mundo compartilhado, do Mitwelt de que
fala Heidegger, o homem leva em sociedade uma existência assina-
lada pelo desafio de decifrar o símbolo que o insta a interpretar ou
traduzir o discurso e o silêncio do outro. Interpretar é inerente ao
existir, pois a vida do homem encontra-se, desde sempre, embrenha-
da com o outro, mergulhada na linguagem. Mais. É a linguagem que
torna possível essa modalidade distinta de ser, que é a humana. É a
linguagem que descerra, dentre os horizontes do mundo, o horizonte
humano da existência. Ela é sua origem e possibilidade de existir.
Heidegger aprofundou a lição inicial de Ser e Tempo1 ao afirmar em
Sobre o humanismo: "A linguagem é a casa do ser" .2
Interpretar, portanto, além da acepção mais restrita e técnica - em
que a ação se condensa no texto -, comporta uma acepção mais
abrangente, em que a ação se lança e se desdobra por sobre os
horizontes do mundo e por todo o devir humano. Interpretar abriga
uma tensão constituinte e revigorante entre abertura e fechamento.
Apesar da contemporaneidade enfatizar a acepção técnica, onde o
interpretar se faz a leitura de um texto através de outros textos, no
rastro da avassaladora especialização que define atualmente o conhe-
cimento, isto não exclui, ou pelo menos não deveria, a possibilidade
de ler um texto movendo-se em seu horizonte e através dos horizontes
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no tempo. O texto é um ente espaço-temporal. Enquanto espaço, é
forma, materialidade, textura em múltiplas dobras de que podemos
nos aproximar. Enquanto tempo, é fluidez, alteração, devir que, em
seu irrequieto distanciar-se de nós, vem integrar a tradição. A tradi-
ção reúne as metamorfoses do humano, no tempo e no espaço, sendo
em referência a ela que a atividade interpretativa própria da herme-
nêutica clássica foi concebida. Mas o ser que aí é, o texto, é tanto do
tempo quanto do mundo e, despido de seu lançamento no mundo,
torna-se incompreensível. As inúmeras correntes contemporâneas de
abordagem do texto o circunscreveram ao primado do objeto que
define o mundo atual e atribuíram ao leitor o status de sujeito. No
entanto, o dizer que surge na interpretação não promana do puro
imanentismo do texto, nem se origina exclusivamente na percuciên-
cia do leitor. Para este, dizer contribui decisivamente a fala do leitor;
porém ela, sobretudo, responde às indagações, às dúvidas, aos mis-
térios que o texto lhe dirige. O texto fala também. Mais até. O texto
é capaz de provocar-nos com a sua fala e com o seu silêncio. Mas a
sua provocação pode não nos alcançar tal qual foi originalmente
formulada. Tanto do texto para nós, quanto de nós para o texto,
projeta-se a tradição.
A tradição exerce na interpretação uma função mediadora. Ela
acumula os sinais que marcam as estações do percurso do homem no
tempo e no mundo, permitindo-lhe recuperá-las e situar-se novamen-
te em referência a elas desde o aqui e agora em que se encontra. Ela
também preserva as visões de mundo que se sucedem. Que signifi-
cados termos, como europeu, ocidental, oriental, cristão, bárbaro,
civilizado etc, podem ter, senão aqueles revelados pela tradição? A
finalidade da mediação que a tradição exerce é, portanto, orientadora.
A tradição funciona como uma grande biblioteca - qual arquetípica
Alexandria -, que guarda as referências que permitem a uma cultura,
a uma civilização, decifrar, ler, interpretar, traduzir as várias mani-
festações, as múltiplas e diversificadas concreções da linguagem.
Necessidade de orientação que o incontido desejo humano de podertransformou em vontade de dominação.
A tradição deveria ser, sobretudo, a ponte, no entanto ela se faz
também fosso. O próprio étimo latino do vocábulo abriga essa
ambigüidade. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa resume-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002 175
lhe a etimologia. Os sete significados arrolados para o termo podem
ser sintetizados em dois significados amplos. No primeiro, tradição
designa a transferência ou entrega ou comunicação, por via oral ou
escrita, de fatos, lendas, usos, costumes de geração a geração. No
segundo, indica o conjunto dos usos ou costumes em si. É, contudo,
na etimologia que algo insuspeito se revela: tradição vem do latim
traditio, onis que designa a ação de dar, a entrega, a traição; e,
figuradamente, transmissão, tradição, ensino. Traditio vem do verbo
trado, is, traditi, traditum, tradere que significa 1) dar em mão,
entregar, passar a outro, confiar e 2) trair, atraiçoar, abandonar, ceder,
renunciar. Conferindo com o étimo de traição temos: traição vem
do latim traditio, onis, ação de dar, entregar, entrega, traição; e, em
sentido figurado, transmissão, tradição. E o verbo trair vem de trado,
is, traditi, traditum, tradere dar em mão, entregar, trair, atraiçoar,
abandonar, ceder, renunciar.4 Como se vê, tradição e traição se
entrelaçam, perigosa e reveladoramente, na etimologia. À primeira
vista, enquanto transferência de geração a geração do legado cultural,
a tradição se faz ponte, e somente quando vem a reter, dificultar,
coibir a transmissão do legado de uma geração para a outra, é que
passa a trair sua missão mediadora, tornando-se, por conseguinte, um
fosso.
Contudo, ponderando mais detidamente a etimologia, percebemos
que as relações entre tradição e traição não estão confinadas a esta
perspectiva dualista. A traição não ocorre num segundo momento,
como uma deformação do entregar, do confiar, do dar em mão, do
transmitir que constituiria o significado primeiro e autêntico. O que
o étimo nos revela é que no dar, no passar a outro, há sempre já
traição. Seja - segundo uma primeira sugestão do étimo latino - por
a tradição entregar, tornar conhecido o que deveria permanecer
guardado, talvez até oculto. Neste caso a tradição atuaria num espaço
de jogo entre a alèthéia e a transgressão, e na passagem da dimensão
sagrada, ou pelo menos interdita, à secularizada algo se perderia de
forma irremediável. Seja porque - segundo outra sugestão do étimo,
que acena para a esfera das implicações cognitivas e epistemológicas
- não há como transmitir sem trair. A alteração, isto é, o tornar-se
outro, é inerente à transmissão que funda a tradição e, por conseguin-
te, esta se revela indissociável de certo abandono, de certa renúncia
176 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 169/185, jan.-mar., 2002
ao significado autêntico, pleno, primeiro. O étimo nos convida a
pensar a historicidade de todo o saber e a considerar o fato de que
algo se perde ao passar de uma mão para outra, de uma época para
outra, e isso é válido, tanto para a tradição, quanto para a interpreta-
ção e o conhecimento. Mas a passagem que a tradição e a interpreta-
ção supõem somente se torna viável graças a essa renúncia, a essa
perda, a essa traição. E, enfim, talvez o conhecimento humano se
edifique sobre a irremediável traição de seu passado no próprio
esforço sisífico para preservá-lo, de conhecê-lo. Isto nos faz meditar
sobre a constituição do que Heidegger chamou de "tradição onto-
teológica da metafísica ocidental". Faz-nos indagar sobre o tornar-se
tradição da metafísica e a desconfiar das nossas possibilidades de
compreensão da metafísica, uma vez que estas são inseparáveis da
travessia de sua tradição, isto é, da travessia de seus simulacros, de
seus fantasmas. Faz-nos também cogitar: e quando a pós-metafísica,
hoje saudada como a grande libertadora, a grande desmascaradora
das ilusões e quimeras do pensamento ocidental, tornar-se também
tradição, tornar-se história, e passar a ter essa vida de recordação, de
memória, de reconstrução, quando envergar esse ar de museu que
hoje pesa sobre a metafísica?
A lição da etimologia nos esclarece que a tradição se funda e se
mantém na traição-comunicação do transmitido e que a interpretação
comporta igualmente uma quota de distanciamento, de esquecimen-
to, em seu próprio esforço de aproximação e resgate. A interpretação
corresponderia, portanto, a uma perda em segundo grau, pois, já na
própria transmissão de que vive a tradição, algo já se perdera. Essa
seria, porém, a única possibilidade que persistiria para a tradição e a
interpretação: o patrimônio sobreviveria graças à sua própria muti-
lação e se mutilaria para viver. A possibilidade de constituição de um
Mitwelt, de partilharmos um universo comum de preocupações e
ocupações, de conhecimentos, crenças e valores que viabilizam a
convivência, o Mitsein, enraíza-se nessa perda ininterrupta em que
se regenera a tradição. Se a tradição pode ser aproximada do acúmulo,
do entesouramento, então se compreende por que, sem essa perda,
não há como passar adiante. A acumulação de já quase três mil anos
de história do ocidente nos colocaria diante de um patrimônio inad-
ministrável. A tradição seria, aparentemente, melhor identificada
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com a memória do que com o acúmulo indiscriminado. Mas memória
acena para seleção e pressupõe a eliminação do excesso, do irrele-
vante. A tradição, todavia, para além darememoração, da recordação,
abriga uma ampla margem de implícito, de reprimido mesmo, de
recalcado até, de encoberto, que o termo memória fracamente diz,
senão escamoteia. O termo memória pouco fala da traição e do
esquecimento que a tradição comporta. E conhecer, ao contrário do
que faz supor o afã do conhecimento total, viabilizado pelo suporte
cibernético e que impulsiona o desenvolvimentismo alucinado e a
qualquer preço dos programas governamentais para a educação mun-
do afora, comporta quotas substanciais de esquecimento, de perda.
Não lograríamos, ademais, enfatizar suficientemente quanto o
hábito de definir é falacioso e que uma definição da tradição, por
mais detalhada e completa que elaborássemos, pouco ou nada avan-
çaria a questão. O modelo epistemológico que dominou o pensamen-
to ocidental, no âmbito da metafísica, recorria às definições como
garantia de precisão e certeza. A partir do momento em que a
metafísica começou a dar sinais incontestáveis de exaustão, come-
çou-se então a desconfiar do acerto, da garantia, da pretensão de
verdade erigida nas definições. Definir implica em pôr limites, e, para
essa modalidade de pensamento que se vem elaborando como a
corrente heideggeriana da pós-metafísica, o pensamento ocidental já
tem limitações demais e, justamente por causa delas, encontramo-nos
diante do esgotamento da filosofia e às voltas com a necessidade de
relançar o pensamento. Nosso intuito não é de delimitar a tradição
e a interpretação; antes, laboramos para ver como a tradição pode se
abrir para nós, num esforço interpretativo que se realiza também
como abertura.
Por isso, ao contrário das técnicas de análise que atribuem as
dificuldades inerentes ao exercício do pensar à inexata elaboração
das definições, a defeitos de fabricação dos conceitos teóricos ou à
imperfeição dos instrumentos analíticos, a hermenêutica, ao lado da
psicanálise e da teoria crítica, aceita e incorpora o desafio da alteri-
dade. A alteridade não é uma categoria da ciência, pois a ciência não
sabe o que fazer de outra forma de conhecimento, senão depreciá-lo,
rejeitá-lo ou excluí-lo. O projeto da ciência orienta-se para a total
possessão do ente enquanto objeto, mediante sua completa mesme-
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rização numa linearização universal do conhecimento. Já a herme-
nêutica assume a interpelação que o texto, a tradição e o intérpretese dirigem mutuamente como o encontro de alteridades que, se
neutralizadas como preconiza a ciência, não ajudam a elucidar, mas
obscurecem a compreensão. Por isso, a hermenêutica concebe a
interpretação eminentemente como esforço. Não esforço para passar
por cima das alteridades que estão em jogo na interpretação, mas
justamente para fazer com que essas alteridades se pronunciem,
intervenham e participem ativamente do projeto interpretativo. Pro-
jeto esse que assume, como preconiza Gadamer, a feição de um
diálogo, que diríamos inesgotável, pois não podemos vislumbrar o
momento em que a última palavra será proferida, pondo termo ao
incessante recomeçar que o impulsiona. A atividade que a interpre-
tação hermenêutica exerce não envolve um leitor-sujeito diante de
um texto-objeto, mas as alteridades incontornáveis e irredutíveis do
interpretam, do interpretandum e da tradição em incessante diálogo,
no qual cada participante se reinventa a partir da interpelação que lhe
dirige o outro.
Exatamente por acolher as alteridades do interpretam,, do inter-
pretandum e da tradição em incansável diálogo, o modelo hermenêu-
tico não visa à elucidação total do texto da tradição. A elucidação,
para ser total, pressupõe, inicialmente, que o discurso humano seja
capaz de recobrir todo o campo da existência e do devir do mundo
dos seres e dos objetos, dos entes e das coisas, de esgotar tudo o que
há para se dizer, e que não resta mais nada no silêncio que o instigue,
que o desafie, que o provoque. Supõe, enfim, que o ser se manifestou
por completo, que se tornou inteiramente fenômeno e que, portanto,
não há ocultação ou nenhum esquecimento a ser elaborado. A eluci-
dação total implica ainda a cessação do diálogo, o seu esvaziamento.
A elucidação total, o esclarecimento acabado, foi uma das metas do
ideal iluminista e correspondia aos anseios e atributos do sujeito
pleno hipostasiado pelo idealismo alemão. O sujeito pleno, afeito a
seus solilóquios, revelava-se avesso ao diálogo e suspeitoso do outro.
Já a abordagem hermenêutica parte da historicidade e da mundani-
dade do homem, através das quais o sujeito surge redimensionado
em seu ser-no-mundo como estar-com, e essa intersubjetividade é
toda ela entretecida na e pela linguagem. A interpretação hermenêu-
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tica sabe da co-pertença de ser e linguagem e sabe também que o ser,
na era da consumação da metafísica, lançou-se decididamente em sua
própria ocultação, tornando propício, quando não favorecendo seu
esquecimento. A impossibilidade de um esclarecimento total, de uma
interpretação definitiva, encontra-se relacionada com essa ocultação
e com esse esquecimento. Os limites da interpretação não são os
limites que uma compreensão autoritária do significado do texto
institui, segundo uma concepção atemporal de verdade, mas corres-
ponde à inviabilidade da realização histórica da pretensão de uma
verdade única, universal e atemporal, e de um modelo absoluto de
conhecimento que visa à instalação de uma estrutura, de um meca-
nismo, de um aparelho de poder.
Segundo o paradigma cientificista vigente, a interpretação de um
texto deve ser compreendida como atividade a ser preparada pelo
acúmulo de informações a seu respeito e posta em prática, mobili-
zando-se um imenso aparato técnico-analítico. Esse excesso de me-
diação nem sempre tem propiciado o encontro do leitor e do texto, e
o afastamento decorrente tem fomentado a perda, cada vez mais
acentuada, do sentido da tradição para a vida. Talvez seja o momento
de tentar o caminho do despojamento e, ao invés de nos premunirmos
para dissecar completamente o texto, buscarmos simplesmente nos
aproximar dele. A proposta hermenêutica da aproximação difere,
tanto da neutralização do intérprete, quanto do isolamento do objeto
de análise, ambos preconizados pela ciência. A hermenêutica propõe
a interpretação como recíproca aproximação entre as alteridades do
interpretans, do interpretandum e da tradição, o que a distancia da
total passividade e imobilidade que define o texto, quando tomado
como objeto de análise.
Na perspectiva hermenêutica, ao nos acercarmos de um texto, já
não nos anima a idéia de elucidá-lo até a última dobra, mas o desejo
de nos comunicarmos com ele. Deixamos de lado a ilusão da obser-
vação isenta dos fatos e fenômenos e, assumindo o nosso lugar no
esforço interpretativo, nos dispomos a conversar com ele. Após o
longo e pesado jugo metafísico, conversação, a Geaprãsch tão cara
a Gadamer, é o termo adequado, quando intentamos refazer as pazes
com a tradição. São as conversações de paz que assinalam a pós-me-
tafísica heideggeriana, passados séculos de enfrentamento extenuan-
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te.7 Agora, finalmente, o texto terá muito a nos falar, a tradição muito
a dizer. Estaremos prontos para ouvi-los?
Carregamos antigos vícios de audição e de visão. Alteramos, sem
cerimônia, a fala alheia e deixamos de enxergar o que não nos
interessa. Quando nos convém, colocamos palavras na boca de
nossos interlocutores e, por vezes, vemos demais. É preciso afinar as
sintonias e, tendo renunciado a nossas velhas convicções, nos im-
buirmos de uma nova disposição.
A disposição não apenas abre a pre-sença em seu estar-lançado e
dependência do mundo já descoberto em seu ser, mas ela própria é o
modo de ser existencial em que a pre-sença permanentemente se
abandona ao "mundo" e por ele se deixa tocar de maneira a se
esquivar de si mesma.
Até aqui temos falado procurando impor nossos pontos de vista,
agora teremos que desenvolver a habilidade de ouvir o outro. Preci-
samos aprender a criar espaços para a fala e para o silêncio do outro.
Abrir mão de ter o tempo todo razão a fim de deixar o outro respirar
e, a partir dessa respiração, relançar a conversa.
Nossas práticas interpretativas têm sido verdadeiras estratégias de
combate. Já é tempo de criarmos estratégias de convívio. Habitamos
ambos, nós e os textos, o espaço da tradição. Ao nos deixarmos
conduzir impulsivamente pelo desejo de poder, cerceamos a tradição
e, em retorno, ela deixa de nos revigorar. Na dkeção de nosso
desarmamento reflexivo, cabe a nós o dever de nos desapegarmos de
nossos pontos de vista. Necessitamos aprender a fazer circular o olhar
para ver além. Sairmos de nossa perspectiva particular para abarcar-
mos o horizonte da vida. Dessa conversação sairemos enriquecidos
pela experiência da troca de opiniões. Essa vivência do diálogo é
fundamental para arejar a reflexão e conquistar novo ânimo. Se,
como afirma Heidegger, a compreensão encontra-se imbuída de uma
disposição, "Toda disposição sempre possui a sua compreensão,
mesmo quando a reprime. Toda compreensão está sempre sintoniza-
da com o humor",10 então, em nosso desiderato de ir além das
limitações que cerceiam o pensamento ocidental, teremos que refor-
mular a nossa disposição que, sem o sabermos, responde pela aber-
tura mais originária de que somos capazes, nós, nossa compreensão
e nossa interpretação.
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A mudança efetiva de nossa disposição, contudo, depende da
modificação do que se entende por conhecer. A sociedade da era
do niilismo consumado em que nos encontramos, não apenas
entende, mas valoriza e sanciona como a única forma legítima de
conhecimento aquele que promove e assegura o controle e a
exploração do mundo, da natureza e dos homens, a transformação
de tudo em objeto e a apropriação de todos às leis e à lógica do
mercado. Essa disposição conduz a civilização ocidental ao fecha-
mento deliberado sobre si mesma, seus valores e concepção de
mundo, o que, na esfera do conhecimento, corresponde ao cânone
tecnocientífico que domina a reflexão e o debate que hoje se trava
na academia sobre o seu futuro e da relevância do conhecimento
para a promoção do desenvolvimento sustentado