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Revista Tempo Brasileiro n 148

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O Pensamento em Tempo Brasileiro
A Revista Tempo Brasileiro chega aos seus 40 anos de existência, fiel ao seu
compromisso inicial: trazer uma reflexão sobre e para o desenvolvimento
brasileiro que. guardando a sua força endógena, estivesse inscrita em um horizonte
universal.
1
 Reflexão e Participação: 20 anos / Revista Tempo Brasileiro, 71
A reflexão crítica, o próprio avanço do conhecimento, a controvérsia cultural
do nosso tempo são temas da Revista Tempo Brasileiro, e se reafirma nesse número
comemorativo dos 20 anos de existência.
Reflexão e Participação/2: 25 anos / Revista Tempo Brasileiro, 90
A permanente abertura à pluralidade cultural da atualidade continua sendo d
núcleo central da razão de ser da Revista Tempo Brasileiro. Sempre que possível
sobre ou para a construção nacional, porém inscrita, de corpo e alma, vitalmente^
no horizonte do mundo.
Reflexão e Participação/3:30 anos / Revista Tempo Brasileiro, 111
Durante três décadas, a Revista Tempo Brasileiro tem lançado nomes
nacionais e internacionais, promovendo a circulação aberta das idéiaí
contemporâneas, procurando trabalhar com a memória e a esperança, insistindc
em desincompatibilizar disciplinas habitualmente distantes.
i
Reflexão e Participação/4 / Revista Tempo Brasileiro, 130-131
Neste número monográfico encontram-se textos que pertencem ao repertóridi
do projeto Caminhos do Pensamento Hoje. Pensar na "terceira margem do rio"
deixando de lado as dicotomias persistentes, e interminavelmente hegemônicasi;
constitui compromisso ético e aventura intelectual radicalmente plantados no
fundo da história dos nossos dias.
Friedrich Nietzsche//fcviv/í/ Tempo Brasileiro, 143
A Revista Tempo Brasileiro através deste número procura registrar, uma vez
mais, em meio à turbulência provocada pelo crepúsculo dos ídolos, o nasciment(p
insubmisso e provocador da palavra trágica de Nietzsche. Seu tema matricial foi O
nascimento: nascimento da tragédia, da verdade, dá linguagem. O pano de fundo
era sempre o desafio moral, jamais imune à vontade de potência. Sempre no
encalço do dissídio que reúne e dilacera as palavras e as coisas, o homem e o
mundo, para além do hem e do mal.
ISSN 0102-8782
tempo brasileiro
SOCIEDADE E SABER
BARBARA FREITAG, CLAUDIUS B. G. WADDINGTON,
EDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEÃO,
FATMA OUSSEDIK, GIANNIVATTIMO, HARRIS MEMEL-FOTE,
HOMIBHABHA, LIUBAVA MOREVA, MASAfflRO HAMASffiTA,
RAFAEL ARGULLOL, SÉRGIO PAULO ROUANET, ZYGMUNT
BAUMANN
Tempo Brasileiro: quarenta anos de
vida - de confronto crispado com a realida-
de brasileira, latino-americana e contempo-
rânea -, constituem o esforço reflexico,
aberto e livre, como também a vontade de
alargar o horizonte do pensar, não raro no
cerne do pensamento pós-metafísico.
Tempo Brasileiro vem criando novas
solidariedades em todos os cantos do mun-
do. E essas solidariedades, muitas vezes
apoiadas em diferenças complementares,
estão na base do seu trabalho reconstrutivo.
Já é um longo itinerário, mas ^Revista,
a Editora e o Colégio do Brasil (por ordem
de entrada em cena) estão presentes para
continuar o registro e o impulso do Tempo
Brasileiro, abertos à reflexão crítica, com-
promissados com o saber por vir, declarada-
mente plurais, no encalço da cidade cosmo-
polita.
TEMPO BRASILEIRO
148
JANEIRO-MARÇO DE 2002
Diretor: EDUARDO PORTELLA
Conselho Consultivo
ALFREDO BOSI
BARBARA FREITAG
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
EVALDO CABRAL DE MELLO
IVO PITANGUY
JOSÉ ISRAEL VARGAS
JOSÉ LEITE LOPES
JOSÉ PAULO MOREIRA DA FONSECA
MARIA YEDDA LINHARES
MOACYR SCLAIR
MUNIZ SODRÉ
NÉLIDA PINON
RAFAEL GUTIÈRREZ GIRARDOT
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA
RUBEM FONSECA
SÉRGIO PAULO ROUANET
Comissão Editorial
BEATRIZ RESENDE
CARLOS SEPÚLVEDA
CLAUDIUS WADDINGTON
EDUARDO COUTINHO
FLÁVIO BENO SIEBENEICHLER
GUSTAVO BAYER
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA
MÁRCIO TAVARES D'AMAR AL
PAULO ROBERTO PEREIRA
PEDRO LYRA
RONALDES DE MELO E SOUZA
A editoração desta Revista, desde o
número 80, está entregue ao Colégio do
Brasil (ORDECC).
e-mail: ordecc@ colegiodobrasil.org.br
Revista Trimestral de Cultura
Os artigos assinados são da inteira
responsabilidade de seus Autores.
Direitos reservados às
EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA.
FRANCO PORTELLA
Diretor-Presidente
Redação e Administração
Rua Gago Coutinho, 61
22221-070 - Laranjeiras
Rio de Janeiro -RJ - Brasil
Telefax: (21) 2205-5949
e-mail: tb@tempobrasileiro.com.br
SOCIEDADE E SABER
Esta monografia está centrada
na reunião de Nápoles, consagra-
da ao tema "Société, connaissan-
ce et savoir-faire", e realizada sob
os auspícios do "Comitê Cami-
nhos do Pensamento" (UNESCO),
do CIPSH e do Istituto Italiano per
gli Studi Filosofia de Naples. O
colóquio teve lugar nos dias 6 e 7 de
dezembro de 2001. Os pesquisado-
res do Colégio do Brasil, que já se
encontravam no número da revista
Diogène, n° 197 (Paris, 2002), pu-
blicada com o empenho de sua efi-
ciente redatora-chefe Paola Costa
Giovangigli, aumentaram as suas
presenças nesta edição da Revista
Tempo Brasileiro. Esta iniciativa,
de rever criticamente a noção e o
projeto da sociedade do conheci-
mento, contou com a valiosa coope-
ração da Representação da
UNESCO em Brasília, e obedeceu
à competência e à dedicação de
Francês Albernaz, Especialista de
Programa da UNESCO (Paris).
Ficha Catalográfica elaborada pela Equipe
de Pesquisa da ORDECC
Revista Tempo Brasileiro, jan.-mar. - n° 148 - 2002 - Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, ed.
Trimestral
1. Filosofia. 2. Sociologia. 3. Comunicação. 4. Educação.
CDD 100
301
302.2
370
ISSN 0102-8782
SUMÁRIO
liMMANUEL CARNEIRO LEÃO/A Salvação pelo Conhecimento... 5
BARBARA FREITAG/Cidades Globais em Sociedades
Informacionais 13
GIANNI VATTIMO/Sociedade do Conhecimento ou Sociedade do
Loisirl 33
ZYGMUNT BAUMANN/Desafios educacionais da modernidade
líquida 41
HARRIS MEMEL-FOTE/Sociedade de iniciação, Sociedade
erudita e Sociedade do saber 59
HOMI K. BHABHA/Democracia des-realizada 67
MASAHIRO HAMASHITA/Conhecimento proveniente do
exterior; Conhecimento por divertissement e por mais do que isto 81
RAFAEL ARGULLOL/Vislumbres sobre um século 95
SÉRGIO PAULO ROUANET/Religião e Conhecimento 107
FATMA OUS&EDIK/Saber e Razão no Ocidente Muçulmano.
O caso da Argélia 129
LIUBAVA MOREVA/Reflexões sobre os paradigmas do filosofar 147
CLAUDIUS B. G. WADDINGTON/Tradição, conhecimento e
interpretação 169
Cena Aberta
EDUARDO PORTELLA/Sociedade com e sem conhecimento 189
A SALVAÇÃO PELO CONHECIMENTO
Emmanuel Carneiro Leão
O fluxo da História no Ocidente nasceu de três fontes: de Jerusa-
lém, de Atenas e de Roma. Uma força de reunião e impulso recolheu,
numa corrente, as águas das fontes. Este ela de integração da História
Ocidental tem sido a busca da salvação para a humanidade.
A salvação pela Fé foi a primeira tentativa. Até o início da idade
moderna, todo processo histórico no Ocidente era atravessado, como
tal, por uma esperança religiosa: esperava-se da fé em Deus a
salvação dos homens. A história humana era, então, compreendida
toda pela religião. A primeira interpretação explícita da história foi
religiosa. Em De Civitate Dei, Santo Agostinho propõe uma teologia
da história. O movimento histórico repetia, no nível de feitos e fatos,
de instituições e procedimentos, os dias da criação do mundo. O
relato bíblico dos seis dias, no primeiro livro do Pentateuco, servia
de paradigma para se entender o sentido do que acontecia na História.
Era o famoso exemplarismo agostiniano. Neste entendimento da
História, preocupava-se mais com o organograma das formas e
épocas do que com a dinâmica do andamento da História. Trata-se
de uma teologia da História de natureza morfológica, uma espécie de
anatomia. A energia, o impulso e a orientação de todo processo
deixava-se entregue à Providência Divina, Deus cria o mundo con-tinuadamente e não pontualmente. O movimento da História é enten-
dido pelo modelo daquelas antigas máquinas de costura acionadas
por manivela. Para funcionar, necessitam do movimento da manive-
la. Para não voltar para o nada, o mundo exige que Deus o conserve
no ser. É a creatio contínua.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
No final do século XII, apareceu outra teologia da História
alternativa ao exemplarismo agostiniano. Esperava também uma
salvação pela fé, mas se preocupava mais com a dinâmica da
História. O abade do mosteiro de São João em Fiore, na Itália,
Joaquim di Fiore (1145-1202) propõe uma teologia da História
que, apesar de um exemplarismo trinitário, ocupa-se, sobretudo,
com o andamento do processo histórico. Principalmente nas suas
obras: "Saltério da Dez Cordas", "Livro da Figuras, "Tratado
Sobre os Quatro Evangelhos" e "Concordância do Novo e Antigo
Testamento", o abade divide a História em três eras: a Era do Pai,
a Era do Filho e a Era do Espírito Santo. Esta última começa em
1260 e tem sua força na sabedoria divina; em que tudo produz e
tudo controla. O impulso que aciona e impele todo processo de
sucessão, entre e dentro das Eras, é constituído por um princípio
dialético de declínio e superação. Esta dialética forma propriamen-
te o movimento da História. É a alavanca de sua movimentação.
Assim, a História não é uma máquina de costura, movida a mani-
vela. A História é um relógio que, ao criá-lo, Deus lhe deu corda
com a dialética de tensões e, então, anda por sua própria força.
Esta teologia dinâmica da História, embora alimentada pela espe-
rança de uma salvação pela fé, influenciou, com seu modelo
dialético, as interpretações da História desde Giovanni Battista
Viço e Thomas Muenzee até as Filosofias do Idealismo Alemão
de Marx e das revoluções do século XX.
A salvação pela produção foi a segunda tentativa. Com a derroca-
da da salvação pela fé, com as novas experiências históricas da idade
moderna, o homem ocidental volta-se para a produção. A salvação
viria de uma ordem que produziria tudo com o recurso da técnica e
da ciência de transformação do real.
Também esta salvação pela produção apresenta duas versões: a
versão capitalista, baseada num sistema de produção dominado pelo
capital, e a versão socialista, constituída por um sistema de produção
dominado pelo trabalho. Em ambos, a esperança da salvação viria da
sociedade de produção. Hegel e Marx desenvolveram, em seus
mecanismos, a dialética da produção, cobrindo toda a envergadura
do espectro social, embora seguindo pressupostos contrários do
idealismo e do materialismo.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
A salvação pelo conhecimento. É a terceira tentativa de salvação:
a sociedade do conhecimento. Com as revoluções e as guerras do
século XX, com o surto extraordinário de desenvolvimento da técni-
ca e da ciência, a esperança de uma salvação pela sociedade de
produção foi pouco a pouco esmaecendo.
O conhecimento torna-se um processo translúcido, fundamentado
e circunscrito a uma área bem definida de fenômenos transformados
em objetos de pesquisa e operação. A verdade deixa de ser uma
interpretação universal, necessária e uniforme, para tornar-se um
poder de operação dos fenômenos reais, precisamente definidos. Um
dos pressupostos desta transição para uma sociedade do conhecimen-
to é a falta do ela de questionar os pressupostos da técnica e da
ciência. Vivemos ainda dos rendimentos da criatividade, j á instalada.
Nietzsche diz, de certa feita, que o pensamento é uma festa. Pois,
na sociedade do conhecimento, estamos em fim de festa. Se outra
festa virá, não poderemos saber. Por isso, grande é o vazio de criação
nesta passagem de milênio para uma sociedade do conhecimento,
onde pontificam a técnica e a ciência informatizadas. Nesta informa-
tização generalizada, já não é possível sistematizar. Pois o que se
esboroa é precisamente a força dos sistemas de totalidade e o vigor
da sistematização universal. Num período histórico de transição, o
balanço se concentra em sondar questões. Estamos passando para
outra coisa que não sabemos qual seja. Apenas sentimos que já não
é possível controlar tudo, o presente, o passado e o futuro, pelo saber
da ciência e pelo poder da técnica. A contribuição do pensamento
hoje não pode ser sistemática. Só pode ser crítica. Aceita a fragmen-
taridade de questões e de perguntas a partir de uma experiência
comunitária de passagem e transição. O pensamento nunca foi uma
doutrina, nem uma ciência, nem um conhecimento. Sempre foi um
processo de libertação que se instala quando e como aprouver ao
envio da História. A grande dificuldade é que esta libertação não se
dá nem acontece no sentido de apagar, abolir ou desfazer. Por isso,
o grande desafio para o pensamento, numa sociedade informatizada
do conhecimento, está em deixar-se atravessar pelo movimento da
libertação. Pois liberdade não inclui negar dependência. É esta a
ilusão de uma libertação sem liberdade. Liberdade significa não se
deixar destruir pelas dependências. É que não pertence às possibili-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
dades históricas dos homens construir realização sem relação, sem
amarras, sem vínculos. A liberdade concreta é tanto negativa, inde-
pendência, como positiva, autonomia, como nem negativa, nem
positiva, mas criativa, justamente na dependência e na heteronomia.
Toda a provocação da liberdade criativa é aprender a desinstalar o
pensamento.
É tão difícil pensar, porque temos os ouvidos entupidos com o
ruído dos chips e com o alarido da computação. Trata-se de um
turbilhão curioso. Não se escuta o barulho que faz. É como se tudo
já tivesse incorporado a nossas entranhas e se feito assim não apenas
inaudito, como sobretudo inaudível, perdido no processamento auto-
matizado e no reprocessamento controlado.
Cada vez mais circulamos em circuitos integrados em sede de
escala global. O desafio que hoje nos atinge provém de uma autocra-
cia informacional. A informatização se torna um rolo compressor.
Em seu tropel, a sociedade do conhecimento vai rolando de alto a
baixo, Tudo se processa. Por toda parte opera um micro. Nenhuma
outra força parece resistir à atropelada da computação. As novas
gerações de computadores prometem e cumprem a promessa de
interface para tudo. Aumenta, sem cessar, o ruído de periféricos. Pois
o periférico visado é sempre o homem. Neste caso, nada poderia fugir
à informatização.
E que é informatizar?
Informatizar não é apenas o verbo que indica os fatos e feitos da
informática. Não nos remete apenas ao funcionamento de ferramen-
tas e aparelhos, não se refere a dispositivos de processamento ou a
instalação de computação microeletrônica. A informatização não é o
resultado da expansão global de uma parte, de sorte que a totalidade
resultante fosse o todo de uma parcialidade. A informatização não se
reduz a transferir determinada integração de ciência e técnica, de
conhecimento e ação para todas as áreas em que se distribuem os
homens histórica e socialmente organizados. Informatizar é o pro-
cesso metafísico de Fim da História do poder ocidental. Fim não no
sentido de término, mas no sentido de plenificação. Na informatiza-
ção e por ela, o poder de organização do Ocidente se torna planetário.
A globalização se instala. A dicotomia de teoria e prática, de mundo
dos objetos e mundo dos sujeitos vai sendo superada numa com-po-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
sição absorvente. Por ela se completam, numa equivalência de recí-
proca constituição, o sujeito e o objeto, o espírito e a matéria, a
informação e o conhecimento, o mundo dos cérebros e o mundo das
coisas. Ã luta entre materialismo e idealismo torna-se, então, uma
brincadeira de criança. O pessimismo e o otimismo transformam-se
em categorias inofensivas para classificar irmãos de uma mesma
família. Sendoum verbo de vigência essencial, informatizar nos
precipita na avalanche de um poder global de realização. Por isso,
não indica primordialmente o processamento automático de conjun-
turas, mas o processamento automático de estruturações que tudo
aplanam, tudo controlam e tudo contraem numa com-posição sem
lacunas. A terra e o mundo, a história e a natureza, o ser e o nada se
reduzem a componentes de compatibilidade universal. A informati-
zação é uma voracidade estrutural em que todas as coisas, todas as
causas e todos os valores são acolhidos, são defendidos, são promo-
vidos, mas, por isso mesmo, perdem sua autonomia e fenecem em
criatividade.
Neste sentido, informatizar é supermercado de organizar o
conhecimento e transformá-lo em poder de salvação. Tanto desen-
cadeia as forças produtivas como contém os modos de produção
no poder e não poder de uma ordem planetária de dominação. Os
modos automatizados ciberneticamente da organização recolhem
em si as condições de toda a vigência social, de toda a causalidade
histórica e de toda gama das demandas e solicitações individuais.
Ora, é no fluxo de uma socialização global, é na avalanche de uma
historização estandardizada que as ordens simbólicas se compõem
com as ordens práticas nas superestruturas da automação. Se
pensarmos, portanto, em toda envergadura o desafio da informa-
tização, não há cegueira que nos impeça de ver nela a realização
do vigor planetário da técnica. É a com-posição final de todas as
posições e de todas as oposições em sua dinâmica de locupletação.
E a síntese escatológica de todas as teses e de todas as antíteses em
seu percurso de complementação.
A informatização não é, pois, simples efeito da informática e sua
expansão. A informática e sua expansão é que nasceu, cresce e se
alimenta da informatização. O que está em jogo é um processo
totalitário de realização. Neste nível, abre-se todo um outro horizonte
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
para se pensar a força histórica da informatização em sua pretensão
de poder salvar a humanidade pelo conhecimento. É o horizonte da
realidade em seu movimento de realização. Na tela da história, então,
o real se faz espetáculo e demonstra todo o potencial de suas virtua-
lidades.
Neste caso, como é que informatizar chega a realizar?
De certo, realizar e informatizar não são a mesma palavra, mas,
se não são a mesma palavra, em todas as comunidades lingüísticas
em uso, pertencem à mesma língua de origem e dizem a mesma
coisa, a saber, a transformação do real numa forma controlada de
poder. Informatizar é um neologismo para designar toda uma ordem
de real, realização e realidade instaurada pelo processamento micro-
eletrônico das informações e dos conhecimentos. Com os recursos
eletrônicos, colocou-se em ação, nos dois eixos da modernidade, no
paradigmático e no sintagmático, um princípio de ordem e uma
força de organização total da sociedade. Para se avaliar a profundi-
dade das transformações históricas em causa, deve-se levar em conta
duas coisas: em primeiro lugar, a forma da informática não remete
apenas ao âmbito da mensagem. Remete também ao domínio de
qualquer criação, seja na arte, na ciência, na indústria, na organiza-
ção ou nos modos e valores da convivência. Em segundo lugar, a
forma da informática indica uma estrutura plural, composta de
circuitos e programações. De acordo com esta pluralidade, realiza-
se, numa com-posição capaz de processar, não apenas dados, mas
complexidades, conhecimentos, sentimentos, isto é, combinações
de referências. Tudo é, então, reduzido a formas, e somente a formas.
Nesta redução universal, a informatização não apenas realiza como,
sobretudo, desafia, em todos os níveis a criatividade e o mistério
inesperado de qualquer sociedade que se informatiza.
Contra esta maneira de se pensar a realização da informática como
informatização e de se fazer aparecer assim os desafios de estiola-
mento e dominação, de salvação e amparo, costuma-se levantar a
objeção de instrumento e ferramenta. A informática seria apenas
meio para o fim e, de forma alguma, fim em si mesma. Muito longe
de realização, cumpriria simples instrumentação da sociedade e do
homem. As ferramentas microeletrônicas liberariam ambos das tare-
fas subalternas de intermediação Com os mecanismos aplicados ao
10 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002
sistema de produção, a mecânica clássica dispensou a força muscular.
Com os automatismos, a eletricidade possibilitou o progresso industrial
e a produtividade econômica. Com a automação, a inteligência
artificial e a robotização, a informática substituiu, num mesmo
circuito microeletrônico, Prometeu e Erimeteu, ao mesmo tempo,
isto é, tanto as funções projetivas da imaginação criadora como a
função executivas da ação transformadora.
Esta objeção sofre de cegueira radical.
A cegueira radical não impede de ver. Ao contrário, possibilita
ver qualquer coisa, por já ter reduzido tudo a formas padroniza-
das de visão. A cegueira radical só é cega para a essência das
coisas. Por isso, a objeção não vê que nos domínios da informa-
tização, já não é possível separar nem mesmo distinguir meio e
fim, instrumentação e realização, forma e substância. O homem
não vive primeiro e só depois existe. O homem não existe
primeiro e só depois observa, presta atenção, combina, inventa,
decide, sente e se relaciona. Não. É observando que ele existe. É
prestando atenção, combinando, inventando, é decidindo, é sentin-
do, etc. - que ele existe. Cego, portanto, e cego de cegueira radical,
é quem, vendo apenas formas processadas, não pode perceber a
mesma realização, superando as dicotomias pré-microeletrônicas,
nas próprias diferenças microeletrônicas. Trata-se do tipo de ceguei-
ra que o efeito da distorção da informatização espalha por toda parte
nas sociedades do conhecimento. De tanto processamento automá-
tico já não se consegue ver os processos essenciais. Tudo perde
substância e profundidade, tudo se dimensiona em formas com
função politécnicas, sejam binárias, sejam terciárias. A funcionali-
dade, ao invés de salvar, tornaria o destino histórico da humanidade
sem saída.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 11
CIDADES GLOBAIS EM SOCIEDADES
INFORMACIONAIS
Barbara Freitag
Introdução
Se é correta a suposição de serem as cidades o verdadeiro palco
(" Schauplatz") da sociedade contemporânea, como afirmou Sim-
mel, elas devem refletir as transformações das sociedades industriais
em sociedades informacionais, ocorridas na passagem do século XX
ao XXI. Isto implica um novo exame de nossas cidades e uma
mudança fundamental na abordagem teórica de suas origens, funcio-
namento e destino. Noutras palavras, é preciso rever as teorias sobre
as cidades e as formas tradicionais dos estudos urbanos e formular
novas categorias analíticas que permitam melhor entendimento das
mudanças que realmente ocorreram.
Esta proposição dá a entender que as abordagens teóricas até aqui
empregadas são insuficientes, senão mesmo inadequadas, para ana-
lisar os resultados dos processos de urbanização nas últimas décadas.
Elas podem, inclusive, levar-nos a tirar conclusões errôneas, caso
sejam mecanicamente aplicadas às novas realidades. As teorias que
eram válidas para a era industrial não podem ser simplesmente
"recicladas" para analisar a sociedade informacional e o que Saskia
Sassen chama de cidades globais.
Eu gostaria de ilustrar esta tese, examinando quatro abordagens
" clássicas". Começarei com (I) a tipologia das cidades e a análise da
especificidade das cidades do Ocidente, de Max Weber. Esta revisão
crítica será seguida pela (II) análise dos estudos de Walter Benjamin
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 13
sobre Paris, "a capital do século XIX", em seu "Passagenwerk"
(1977). Num terceiro momento (III), eu gostaria de recordar a con-
tribuiçãodo Socialismo utópico para o planejamento urbano como
parte integral do processo de modernização. Finalmente (IV), gosta-
ria de fazer algumas observações sobre a assim chamada Escola de
Chicago (de R. Park, G. Burguess e Louis Wirth).
Revendo quatro teorias do desenvolvimento urbano
I
Max Weber (1864-1920) desenvolveu a mais abrangente das ex-
plicações sobre a origem das cidades do Ocidente, no contexto de sua
sociologia da dominação (1961). Na verdade, o capítulo consagrado
à "tipologia das cidades" tem por objeto o tipo de dominação
ilegítima que surgiu, na Europa Central, antes da industrialização. As
pequenas cidades medievais representavam o resultado de um movi-
mento de cidadãos quase "revolucionário", que se opunha ao poder
feudal e à sociedade aristocrática.
A tipologia de Max Weber está baseada em critérios econômicos e
inclui (1) as Fürstenstãdte, as residências do Príncipe, (2) cidades de
consumo, (3) cidades de produção, (4) cidades comerciais e (5) cidades
mistas. Ele não estava satisfeito com esta tipologia, por julgar que estes
critérios econômicos eram insuficientes. Para uma definição mais plena
do fenômeno urbano, seria preciso levar em conta, também, os fatores
políticos. Assim, num sentido plenamente econômico e político, as
cidades são conglomerados de artesanatos, manufaturas, estabeleci-
mentos comerciais, localizados num local que desempenha diversas
funções, tais como praça forte, mercado, tribunal, e que desfrutam, em
larga medida, de autonomia jurídica. Rssas comunidades urbanas de-
vem estar baseadas na associação de cidadãos autogovernados que
aspiram à autonomia (Weber W&G, 2, p. 934). Neste sentido, as cidades
do Ocidente tiveram por pressuposto a existência de uma burguesia, o
verdadeiro pilar de seu poderio político e econômico. A sociedade
urbana burguesa era o resultado do declínio do sistema aristocrático
baseado no campo. O novo poder político emergiu da capacidade dos
14 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
cidadãos de organizarem a produção e o comércio, de desenvolver o
poderio militar, de impor a jurisdição territorial, e de criar novas
formas de auto-administração e autonomia política. Dentro das cida-
des, propriedade privada e altas rendas eram considerados critérios
centrais de cidadania. Ser um cidadão era condição essencial para
desempenhar funções políticas dentro da comunidade urbana.
Uma questão que permanece aberta: por que terá Max Weber dado
a seu famoso capítulo sobre as cidades o título principal de "Poder
Ilegítimo", reservando para uma cláusula parentética o subtítulo "A
Tipologia das Cidades" ? É bem possível que isto se deva ao fato de
que, como a ordem feudal recusava o dinheiro como a base principal
do poder, Weber considerasse que, do ponto de vista aristocrático, o
poder baseado na riqueza era ilegítimo.
Resumindo: a teoria urbana de Weber descreve a transformação
da sociedade feudal em sociedade burguesa, ou, como talvez ele
preferisse dizer, a passagem de formas tradicionais a formas racionais
de organizar a vida econômica e política na sociedade européia. Sua
tipologia urbana nunca se encontrou em estado "puro" na vida real.
Isto é particularmente verdadeiro nas condições contemporâneas,
que requerem novos instrumentos para estudar e analisar megalópo-
les, como Nova Iorque, Tóquio, a Cidade do México ou São Paulo.
II
Vamos dar, agora, uma olhada na flâneríe de Walter Benjamin
(1892-1940) através de seu Passagenwerk (1935, 1982). A extraordi-
nária influência exercida por este trabalho sobre o pensamento pós-mo-
derno a respeito de cidades compete com o encantamento suscitado por
Lê città invisibili (1972), de ítalo Calvino. Os dois textos têm em comum
a fascinação de seus autores por uma cidade paradigmática: Veneza para
Calvino, Paris para Benjamin. Se Veneza é o "cenário" do primeiro
contato do Ocidente com civilizações extra-européias (o mundo islâmi-
co, a China), Paris é o cenário para todas as manifestações da "moder-
nidade", incluindo a literatura, a arquitetura, o urbanismo, o capitalis-
mo, a organização política. Paris é a capital do século XIX, sobre a qual
Benjamim deita um olhar melancólico e nostálgico, por ser um mundo
ameaçado pelo nazismo alemão.
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 15
Benjamin deu aoflâneur o mesmo status que Calvino deu a seu
" navegador", Marco Polo. Oflâneuré um pedestre que vagueia pelas
ruas, arcadas, pontes e jardins. Ele é um observador que não tem
dinheiro nem interesse em comprar o que quer que seja. Mas ele está
plenamente cônscio de todas as "manifestações" da cidade moderna
como expressões da sociedade capitalista. Em sua qualidade de
observador, oflâneur classifica os diversos "tipos" que povoam a
cidade: o jogador, o dândi, a rameira, o vagabundo, o coletor de lixo
(Lumpensammler). O foco de Benjamin não é sociológico, mas
alegórico. Ele não está interessado em categorias sociais, tais como
o operário ou o dono de fábrica, mas em tipos humanos abstratos,
que vivem nas ruas, nos lugares públicos, nas arcadas de Paris.
Ao descrever Paris como a capital do século XIX, ele focaliza a bolsa
de valores, as galerias, as lojas, as revistas ilustradas, os cafés e restauran-
tes, os edifícios do governo, as igrejas, os hospitais, os terminais ferroviá-
rios, as estações do metrô, as fábricas. Oflâneur tem tempo para olhar
para esses edifícios e admirar-lhes a beleza, para avaliar-lhes o valor em
bom estado e até mesmo reduzidos a ruínas, para estudar os materiais
empregados em sua construção, como vidro e ferro. Benjamim se sur-
preende com o fato de que os arcos e as colunas ainda copiam o desenho
de outros períodos arquitetônicos, como colunas greco-romanas, arcadas
góticas, etc. A seus olhos, as ruas falam por si mesmas, com seus tableaux
urbains, os anúncios, os quadros de avisos. As utilidades apregoam os
próprios preços nas vitrinas, toda a sorte de sinais explica a lógica da
cidade. Walter Benjamin, oflâneur por excelência, não é um sociólogo,
um político, um economista, mas um observador participante, um citadino
comprometido, cujo destino está indissoluvelmente ligado ao destino de
Paris, um amante apaixonado desta cidade ímpar, na qual ele encontrou
um lugar de refúgio, quando Hitier tornou impossível que ele, com
milhares de outros judeus, voltasse para Berlim, sua cidade natal.
A Paris de Benjamim pode ser vista como uma espécie de "tipo
ideal", no sentido que Max Weber dá a esta expressão, vale dizer,
é uma construção teórica diferente de qualquer cidade empírica.
Seus conceitos deflâneur, deflâneríe, a tipologia das personagens
e o uso de tableaux urbains, tomado de empréstimo a Baudelaire,
podem ser aplicados a outras cidades. Willy Bolle, por exemplo,
usou as categorias de Benjamin para estudar a emergência da moder-
16 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
nidade na cidade de São Paulo. Nada obstante, esses conceitos
tornaram-se pouco úteis para ajudar a compreender as mudanças
estruturais que ocorreram na sociedade e no ambiente urbano no
começo do século XXI. As massas, as flâneries, o prazer de olhar
vitrines, as arcadas são "fatos" que, um século depois, podem ser
incluídos na arqueologia da modernidade. As massas ficam em casa,
assistem à televisão e substituem as ruas e os lugares públicos pelo
aconchego dos bares da periferia urbana e da casa de cada um. Às
vezes as massas reaparecem em jogos de futebol ou beisebol e,
eventualmente, em arruaças e demonstrações violentas. Mas, tão
depressa como apareceram, voltam a desaparecer. Hoje em dia, as
ruas e avenidas de nossas grandes cidades estão vazias de pessoas,
mas cheias de carros, ônibus, motocicletas, etc. Fazem-se compras
por meio de catálogos, da Internet, por ofertas da televisão e chama-
das telefônicas. As pessoas perderam o hábito de andar. Deslocam-se
de um lugar para outro de trem, de metrô, deônibus, de carro. O ritmo
e a velocidade se intensificaram. Os malls e os centros comerciais
passaram a ocupar o lugar das lojas nos Passagen, que tanto encan-
tavam Benjamin. Lojas de departamentos, como "Lê bonheur dês
dames", de Zola, destruíram as pequenas lojas. Os McDonalds e os
Pizza Huts liquidaram com os pequenos bistrôs e restaurantes mo-
destos. Os arranha-céus de Montparnasse destruíram a intimidade do
antido bairro de pintores onde Picasso trabalhou, depois de deixar
Montmartre. "Lê vieux Paris nestplus, hélas!", já disse Baudelaire.
m
Passemos agora aos socialistas utópicos. Muitos deles são, ao mesmo
tempo, planejadores de novos espaços urbanos e inventores de novos
projetos para a sociedade. Platão, por exemplo, expôs suas idéias sobre
reforma social através da descrição de uma cidade ideal. Ele evocou a
lenda da Atlântida em dois de seus diálogos (Crítias e Jlmeu). Se a
Atlântida era o modelo de Atenas e Atenas, o modelo da polis grega, esse
modelo permeou muitos outros sonhos de uma sociedade perfeita. Basta
lembrar a Utopia, de Tomás Morus, a Cidade do Sol, de Campanella, a
Nova Atlântida, de Francis Bacon, e a Nova Harmonia, de Robert
Owen. (Freitag, 2001)
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 17
O "Falanstério", de Charles Fourier (1772-1830), deve ser men-
cionado, entre outras razões, porque um de seus sequazes, Jean-Bap-
tiste André Godin (1817-1888) logrou transformar o projeto em
realidade. Godin construiu, em Guise, no norte da França, o assim
chamado Familistério, um "palácio social" que sobreviveu até 1985,
quando foi convertido em museu a cargo da União Européia.
Charles Fourier estava convencido de que, depois dos processos de
urbanização e industrialização que se seguiram à Revolução Francesa,
urgia proceder a uma renovação urbana e social. Sua fantasia de um
"Falanstério"3 para camponeses, artesãos e operários, que integrasse
trabalhadores e empresários, deveria funcionar como uma "falange",
uma unidade de trabalho coletiva baseada no princípio da cooperação,
e não no da competição. O "Falanstério" ou "Familistério" parecia um
palácio real, como o de Vincennes ou o de Versalhes, mas cujo dia-a-dia
estivesse organizado de acordo com o Panopticum de Bentham, ou a
instituição total de Goffmann, ou ainda o modelo exposto por Foucault
em " Surveiller et Punir" (1972). Lewis Mumford foi o primeiro soció-
logo urbano a denunciar o caráter autoritário dos modelos utópicos. Os
utopistas concebiam a sociedade como um mecanismo de relógio, no
qual cada peça deve funcionar de modo preciso, sem conflitos, numa
microssociedade previsível e controlada, em perfeita harmonia. Tais
condições transformam a sociedade humana em comunidades de for-
migas ou abelhas.
Os projetos utópicos, do tipo do Familistério de Godin, introduzi-
ram certo grau de autonomia. Esta seria a razão pela qual o Familis-
tério, de Guise, sobreviveu e provou sua própria exeqüibilidade por
quase um século. Entretanto, a derrocada e queda das sociedades
socialistas na última década do século XX deveu-se, em parte, ao
pressuposto mecanicista e autoritário inerente a todos os projetos
utópicos. Sociedade alguma, em que tudo é passível de planejamento
e controle, pode ser considerada ideal.
Outro projeto utópico moderno tem demonstrado sua capacidade de
sobrevivência: Brasília, a capital do Brasil. Em contraste com Shandig-
har, a cidade indiana do Punjab planejada e realizada por Lê Corbusier,
Brasília tornou-se um símbolo para a sociedade moderna e a vida
citadina. O projeto urbano original de Lúcio Costa, fortemente influen-
ciado por Lê Corbusier, foi mais bem-sucedido que Shandighar. Em-
18 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31,jan.-mar., 2002
bora críticos, como James Holston (1984) afirmem que Brasília não
cumpri11 as promessas que fizera à sociedade brasileira e ao mundo,
ela é uma cidade viva em que as pessoas têm prazer em morar.
Temos de admitir, de modo geral, que a estratégia de planejar novas
cidades na esperança de que elas hão de criar uma sociedade nova
provou ser indefensável. As cidades são instituições sociais imersas
num contexto social mais amplo. Novas cidades não substituem novas
sociedades. Brasília não impediu a reprodução da pobreza, da injustiça
e da exclusão. Esta crítica dos esquemas utópicos já fora feita por Marx
e Engels e não perdeu nada de sua força nos dias que correm.
IV
A Escola de estudos urbanos de Chicago introduziu duas novas
dimensões de análise: a perspectiva ecológica e a abordagem jornalística.
R. Park, E. W. Burgess, L. Wirth, McKenzie foram os primeiros
sociólogos urbanos que chamaram a atenção para a importância da base
ecológica de nossas cidades, acentuando a necessidade de um equilíbrio
saudável entre as áreas residenciais e o ambiente natural. Park, além
disso, foi o primeiro autor a se valer do conceito de " áreas segregadas"
e "bairros isolados", baseado em sua abordagem jornalística, ao
descrever a vida urbana dos diferentes grupos e minorias que formam
a população urbana. Burgess introduziu o diagrama de uma cidade
grande ideal, tendo tomado Chicago por modelo. Discriminou ele,
ao menos, cinco anéis internos concêntricos, começando pela zona
central (I), a zona (II), um segundo anel, que contém o submundo, o
gueto, Chinatown, a Pequena Sicília, quarteirões miseráveis, casas
de cômodos, etc. Um terceiro anel (zona III) compreende "Deuts-
chland", a segunda leva de imigrantes, casas para a classe operária,
" áreas de dois apartamentos" ,4 um "Cinturão Negro", etc. O quarto
anel ou zona inclui os bairros residenciais, hotéis, a assim chamada
"área de luzes brilhantes",5 edifícios de apartamentos, casas de
família. Por último, o anel externo (V, a zona dos que viajam entre
casa e o trabalho6) foi designado como a seção dos bangalôs. A
segregação, tal como estudada em Chicago, foi interpretada como
conseqüência de fortes ondas migratórias de pessoas provenientes de
todos os países do mundo, especialmente da Europa no período
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 19
compreendido entre as duas Guerras Mundiais. Ao ocuparem as áreas
urbanas ao redor do centro de Chicago, os imigrantes não se mesclaram
com outros grupos sociais, culturais e religiosos e, assim fazendo, segre-
garam-se a si mesmos numa espécie de gueto (cf. Saint-Arnaud, 1997).
Novas formas de análise, recentemente introduzidas em urbanis-
mo e arquitetura, tais como a chamada análise sintática, sublinha os
efeitos negativos dessas comunidades isoladas.
A abordagem jornalística foi introduzida por Park. Sentava-se
ele a uma mesa de bar, com imigrantes das mais diversas origens,
e, enquanto bebiam cerveja, ia-se informando acerca do estilo de
vida urbano que levavam, dos problemas relacionados com seu
dia-a-dia e seu trabalho. Foi esta a matéria-prima de sua análise
urbana empírica. Para dar prosseguimento a seus estudos, Park
dirigiu-se a Berlim e a Estrasburgo, onde assistiu às aulas de Georg
Simmel. Sua dissertação doutorai foi submetida ao filósofo neo-
kantiano Wilhelm Windelband, em Heidelberg. Foi ele um dos
primeiros jornalistas a tornar-se membro do Departamento de
Sociologia da Universidade de Chicago. Park defendia a necessidade
de trabalhar empiricamente nas questões citadinas, utilizando técni-
cas como entrevistas e questionários. No começo, as principais fontes
de informação eram jornais e revistas ilustradas; mais tarde o rádio
e reportagens filmadas acerca dos estilos de vida nas modernas
cidades americanas tornaram-se modos privilegiados de coletar da-
dos empíricos. Esta nova escola de sociologia urbana denunciou a
violência e a injustiça presente nas grandes cidades, ao mesmo tempo
que reconhecia os aspetos positivos dos novos centros urbanos, como
conforto, água, eletricidade, diversões e acesso à informação. Cabe
recordar que a literatura, em particular os assim chamados romancesurbanos, tem-se dedicado a narrar a vida urbana desde o século XIX.
Os livros clássicos de Victor Hugo, Balzac, Zola, Dickens, Dõblin e
muitos outros informam-nos a respeito da vida nas cidades indus-
triais melhor até do que os estudos sistemáticos empreendidos por
Marx e Engels. Mas, na realidade, foi Park e seu grupo que introdu-
ziram a análise da vida urbana através da mídia.
Esta abordagem mediática apresenta dois problemas maiores. O
primeiro é que somente os aspetos da vida urbana apreendidos pela
mídia são incluídos na análise. O que quer que seja omitido ou
20 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
esquecido pela mídia será tratado como algo que não ocorreu. Em
segundo lugar, a abordagem de Park pode ser distorcida por um
preconceito "antropológico" que leve a atribuir valor intrínseco a
culturas e subculturas, bandos e tribos. Se essas subculturas são
compostas de grupos clandestinos ou terroristas, não integrados no
mais amplo sistema de valores da cidade oficial, eles podem agir
contra os interesses da sociedade mais largamente considerada, for-
mando um Estado dentro do Estado. Exemplos: as máfias da droga,
os cabeças-raspadas, e os grupos de jovens fascistas ou neonazistas.
Concluindo, podemos dizer que a Escola de estudos urbanos de
Chicago, apesar de ter uma perspectiva mais vasta e melhor metodo-
logia do que muitos de seus predecessores, não oferece processos
confiáveis para explicar as recentes mudanças urbanas e societárias.
Duas novas abordagens que sobrepujam os limites das teorias
precedentes
I
Recentemente Ronald Daus (1943- ), da Universidade Livre de
Berlim, introduziu pelo menos duas inovações na área da sociologia
urbana. Em primeiro lugar, ele focaliza cidades extra-européias, sobre-
tudo do hemisfério sul, realçando, assim, problemas geralmente negli-
genciados pela perspectiva etnocêntrica dos analistas do primeiro mun-
do. Ocupando-se de cidades quase sempre edificadas por poderes
coloniais, sua abordagem volta-se para a vida das ruas e não para os
interesses das velhas elites e oligarquias que sucederam o antigo gover-
no colonial. Em segundo lugar, a fim de escrever uma espécie de
etnografia das cidades negligenciadas, ele teve de diversificar suas
fontes e utilizar documentos não-convencionais. Seus materiais in-
cluem fotografias, filmes, programas de televisão, estatísticas e relató-
rios oficiais (Banco Mundial, Desenvolvimento Humano das Nações
Unidas, Fundo Monetário Internacional). Os materiais de Daus incluem
também ficção científica, literatura, poesia, diários íntimos, murais,
pinturas, plásticos,7 jornais, entrevistas, programas políticos, histórias
ern quadrinhos, pornografia (fotografias, literatura e filmes), aulas
, Rio de Janeiro, 148: 13/3 1, jan.-mar., 2002 21
universitárias e discussões. Suas fontes são completadas por infor-
mações coligidas em viagens a diversos países e cidades, observação
participante, conversas com amigos e colegas, leituras de livros
científicos e estudos. Nada é posto de lado, tudo provou ser útil no
retratar a vida citadina. Servindo-se deste material colhido ao acaso,
ele compôs uma espécie de colagem, uma colcha-de-retalhos que
incorpora os aspectos urbanos que não se enquadram nos diversos
modelos teóricos discutidos neste ensaio.
Sem negar forte influência européia, sua trilogia aborda, no primeiro
volume, O Fundamento Europeu (1995) e busca entender o funciona-
mento das cidades coloniais concebidas como instrumentos de domi-
nação e exploração em benefício das metrópoles européias. No segundo
volume, País em Construção (1997),8 as cidades se tornam centros da
consciência e do sentimento nacional, dando origem à idéia de liberdade
© autonomia. A antiga cidade colonial é investida de nova importância
e toma-se a nova capital de um país independente. No terceiro volume,
Vida, Prazer e Sofrimento (1999), Daus assinala a riqueza dos novos
estilos de vida que emergiram desse passado colonial, cheios de contra-
dições e caracterizado por uma fusio de culturas, raças e ideologias.
•Daus dedica sua atenção principalmente a cidades situadas na América
Latina, na África e na Ásia, como a Cidade do México, Havana, Lima,
Buenos Aires, Sio Paulo, Rio de Janeiro, Bombaim, Deli, Calcutá,
Bangladesh, Xangai, Dacar, Lagos e Luanda,
Daus chega a um resultado surpreendente: essas cidades extra-eu-
ropéias podem dar lições a suas antigas metrópoles. Seus habitantes
suo mais criativos, têm mais iniciativa, dlo provas dê maior tolerân-
cia cultural e religiosa, têm maior flexibilidade para enfrentar pro-
blemas inesperados, desenvolvem melhores formas de sustentabili-
dade, superam as erises políticas e econômicas mais facilmente e,
no Primeiro Mundo. E bem verdade que essas eidades novas têm de
enfrentar maior pobreia, menos demoerteia, mais poluiçlo, maiores
este fenômeno em breve se estenderá a eidades do Primeiro Mundo,
nas quais a tendência à exelusão e à pobreia também estão presentes,
Daus acrescenta quê os habitantes d© eidades nlo=©uropéias exibem
22 Revista 1B, Rio de Janeiro, 148:13/31, jan.-mar,, 2002
maior vitalidade, são mais inclinados ao prazer (futebol, carnaval,
sexo, etc) e, de modo geral, são mais felizes que os habitantes das
cidades européias. A expectativa de vida deles e o nível de segurança
podem ser mais baixos, mas a pirâmide demográfica é mais equili-
brada que suas contrapartes européias. Neste ponto, como é tão
comum acontecer com observadores europeus, Daus idealiza as
condições de vida nas cidades do Terceiro Mundo. Mas ele tem um
conhecimento profundo e sofisticado das cidades que discute.
De maneira própria e original, Daus segue a trilha aberta por
Robert Park. Também se inspira no método de Benjamin, ao criar
uma tipologia dos moradores da cidade, como o vagabundo, o
mendigo, a prostituta, o dândi, o esnobe, a estrela de cinema, o
político, o especialista, o funcionário público internacional, o turista,
o traficante de drogas. O contrabandista, o proprietário de hotel e o
menino que vive nas ruas. Uma vez que seus estudos abrangera pelo
menos metade do globo, podemos dizer que Daus oferece uma visão
globalizada de todas as cidades excluídas da economia global,
II
Á noção de " cidade global" foi trazida à baila pela primeira vez por
SasMa Sassen. Em seu primeiro livro acerca do assunto, Á Cidade
Global (1991), da analisa Nova Iorque, Londres e Tóquio como exem-
plos de eidades que, nas duas últimas décadas, atingiram a condiçSo de
cidades globais. Subseqüentemente, ela incluiu nesta categoria outras
cidades, como Miami, Toronto, Sidney, conforme assinala no livro
seguinte, Cidadis numa Economia Global (1994). Em certas circuns-
tâncias, Sassen também admite que Hong Kong, Los Angeles, Zurique,
Frankfurt, a Cidade do México e S8o Paulo podem ser incluídas na
categoria de cidades globais, visto que atendem aos pré-requisitos de
certas transações econômicas transnacionais. Á fim d© melhor entender
Segundo ela, "cidades globais slo lugares-ehaves para os serviços
avançados © as instalações de telecomunicações necessários à imple-
mentação © condução d©, op©raçõ©s econômicas globais, Elas tendem
Revista TB, Rio de Janeiro, 148; 13/31, jan,-mar., 2002
Depois da Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, nas
duas ou três últimas décadas do século XX, ocorreram importantes
transformações na economia mundial. A África e a América Latina
perderam seus vínculos, até então vigorosos, com o mercado mundial
de produtos primários e matérias-primas. O Investimento Exterior
Direto em serviços sofreu aumento impressionante. O papel desem-
penhado pelos mercados financeiros internacionais foi realçado. O
quadro institucional estabelecido pelos acordos de Bretton Woods
(1947-1948) começou a desfazer-se (cf. 1994, pp. 27-8).
Esses realinhamentos acarretaram profunda reestruturação na hie-
rarquia de todas as cidades do mundo e tambémna rede de cidades
existente num único e mesmo país. Surgiram novas desigualdades
entre as cidades. Os países e sua importância dentro de redes econô-
micas e comerciais tradicionais perderam sua posição privilegiada.
A importância dos estados nacionais começou a encolher e certas
"cidades globais" tornaram-se mais importantes, na paisagem glo-
balizada, do que países inteiros. Uma nova combinação de dispersão
espacial e integração global criou novos papéis estratégicos para
cidades como Nova Iorque, Londres e Tóquio.
" Além de sua longa história como centros de comércio internacional
e atividades bancárias, essas cidades funcionam agora de quatro manei-
ras novas: primeiro, como centros de comando altamente concentrados
na organização da economia mundial; segundo, como locais-chaves
para as finanças e firmas especializadas em serviços, que substituíram
as manufaturas na posição de setores econômicos principais; terceiro,
como lugares de produção, nisto se incluindo a produção de inovações
nas indústrias líderes; quarto, como mercados para os produtos e
inovações produzidas". (1991, pp. 3-4)
Em seus dois livros mais recentes, Saskia Sassen tenta responder
satisfatoriamente a várias perguntas, como: (a) Que papel as cidades
mais importantes realmente desempenham na organização e condu-
ção da economia mundial? (b) Por acaso a consolidação da economia
mundial afetou a ordem econômica, política e social nas cidades mais
importantes, a ponto de devermos ficar preocupados com a sustenta-
bilidade delas ? (c) De que modo a especificidade histórica, política,
econômica e social de determinada cidade (Paris, por exemplo)
resiste à sua incorporação na economia mundial? (d) Por acaso a
24 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002
relação entre o Estado e a cidade muda, ao ocorrer forte articulação
entre a cidade e a economia mundial e, em caso afirmativo, de que
modo se dá tal mudança?
A fim de responder a essas perguntas, temos de dividir as cidades
mundiais por diferentes categorias ou criar novas tipologias, no
sentido que Max Weber dá à palavra. Ainda que não o faça explici-
tamente, Saskia Sassen permite-nos distinguir pelo menos cinco
diferentes tipos de cidades: (1) cidades globais; (2) megalópoles; (3)
metrópoles; (4) cidades periféricas, (5) cidades-dormitórios.
1) As cidades globais são os novos pilares da era informacional,
no sentido dado a este conceito por Manuel Castells (1995-1999).
Elas fornecem plenamente a infra-estrutura requerida pela economia
mundial para a realização de transações internacionais. Isto inclui
bons aeroportos, hotéis, telecomunicações, mídia, Internet, rede ban-
cária, segurança, bolsa de valores, etc. As cidades globais têm
significativo número de pessoas qualificadas e eficientes, capazes de
fornecer e produzir todos os serviços necessários. São mercados
capazes de absorver e reciclar todos os fluxos e transações financei-
ras. Exemplos: Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Los Angeles,
Toronto, Sidney, Zurique, Frankfurt. É importante lembrar que essa
hierarquia pode mudar muito depressa sob condições econômicas em
constante mudança. A posição de Nova Iorque pode ter mudado
depois dos ataques terroristas.
2) As megalópoles são definidas, essencialmente, pelo número de
seus habitantes, isto é, em geral mais de 10 milhões de pessoas. O
número de cidades, nessa categoria, aumentou nas duas ou três últimas
décadas. Essa explosão urbana causou sérios problemas: falta de em-
prego, de habitação, de transportes, de escolas, de serviços de saúde,
etc. O excesso de população dessas cidades acarretou o aumento da
violência e do consumo de drogas em relação às cidades menores. Nelas
coexistem riqueza e pobreza, arranha-céus e barracos. Exemplos: Bo-
gotá, Lima, Rio de Janeiro, Bombaim, etc.
3) As metrópoles são velhas cidades com longa história e impor-
tante tradição econômica, política e cultural, que se mostraram
capazes de adaptar-se à modernização e à nova economia mundial
sem perderem sua especificidade e dignidade como sítios culturais. Elas
são bem conhecidas e preservam sua aura de antigas capitais. São cidades
Avista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 25
grandes, com número significativo de habitantes, bons aeroportos,
sistemas de transportes, hotéis, instalações e autonomia política. Mas
não estão dispostas a serem transformadas em meros instrumentos
da economia global, ainda que sejam capazes de desempenhar todas
as funções esperadas de uma cidade global. O turismo representa
importante fonte de renda para seus moradores. Tal é o caso de Paris,
Roma, Berlim, Munique, Madri, Viena, Lisboa, Atenas, Praga, Bu-
dapeste, para só mencionar algumas das metrópoles ocidentais mais
conhecidas.
4) Cidades periféricas são todas as cidades que se tornaram
secundárias ou mesmo marginais, do ponto de vista da economia,
geografia ou cultura. Em tempos idos, essas cidades terão contribuído
para o progresso da civilização, mas, nos dias que correm, perderam
sua importância e prestígio. Algumas delas podem até ser conside-
radas decadentes, incapazes de restabelecer sua vineulação à rede
mundial das cidades mais importantes. Exemplos: Marselha, Glas-
gow, Porto, Sevilha, Bucarest.
5) Cidades-satélites e/ou cidades-dormitôríos são sítios urbanos
desprovidos de autonomia. Carecem de outras cidades vizinhas como
locais de trabalho, de entretenimento e de participação política.
Também elas são secundárias, mas têm contribuição estratégica a dar,
quando podem fornecer parte da mão-de-obra requerida por manu-
faturas e serviços. É o caso de Potsdam, perto de Berlim; de Campi-
nas, Osaseo e do assim chamado ABC (Santo André, São Bernardo
a Frankfurt, © assim por diante.
Como acontece com todas as demais tipologias, é mais fácil
encontrar uma mistura d© todos os cinco tipos ou diferentes combi-
naçQes de dois ou três deles, do qu© um caso "puro". É isto qu©
explica por quê a Cidad© do México © São Paulo pod©m s©r classifi-
cadas, ao mesmo tempo, como m©galópol©§ © cidades globais. Mas,
m©smo qu© Paris ou Berlim tenham algumas das características das
cidades globais, o fato é qu© são predominantemente metrópoles.
Importa t&mblm ter ©m ment© qu© a classificação é fl©xív©l. Uma
eidad© quê hoj© s© enquadra b©m ©m determinada categoria, amanhã
pod©rá vir a fasgr part© d© outra, como foi o caso dê Marselha, do
Porto ou d© Bue&rtst©,
Revistara, Ri© dê Janeiro, 148: 13/31,jan,-mar,, 2002
Não podemos esquecer que, não apenas as cidades, mas também
a área, a paisagem e a região onde estão situadas desenvolvem-se,
mudam e declinam. Não é, pois, de surpreender que a posição ou
classificação mude, mesmo que mudança alguma tenha ocorrido no
interior da cidade. Basta pensar no que sucedeu a Bonn após Berlim
ter voltado a ser a capitai da Alemanha.
A análise de Saskia Sassen dá a impressão de que as cidades são
arremessadas, ao mesmo tempo, como bolas num jogo de loteria. A
combinação daí resultante decorre de princípios estatísticos de pro-
babilidades, que escapam ao nosso controle.
Depois deste esclarecimento, estaremos capacitados a dar algumas
respostas as perguntas introdutórias de Sassen.
a) Entre todos os cinco tipos de cidades introduzidos pela tipologia
de Sassen, o mais importante para a economia mundial globalizada
é a cidade global. Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Toronto,
Sidney são indispensáveis para as transações econômicas internacio-
nais. Todas essas cidades globais dão contribuição vital à circulação
do capital financeiro ao redor do globo. Elas ocupam posição central
no sistema capitalista mundial chegado à fase de globalização. Se
uma dessas cidades for paralisada, como quase sucedeu a Nova
Iorque, em conseqüência dos ataques contra o WTC, o sistema inteiro
Nenhum dos demais tipos de cidades é tão estratégico. Sua impor-
tância para o mercado financeiro mundial decresce gradativamente,quando descemos na escala de metrópoles a cidades-satélites. Com
megalópoles, como São Paulo ou a Cidad© do México, os problemas
slo diferentes: por um lado, sua infra-estrutura qualifica-as para o
cos, econômicos © políticos geram demasiados riscos para o fluxo d©
capitais, como ©stá atualmente acontecendo a Bu©nos Air@s, outrora
çto da sociedade industrial ©m sociedade infomaeional ê o fato d© se
ter passado a atribuir maior importância à informação do qu© àproduçSo
determinaram mudanças estruturais profundas, qu© afetam a
oei©dad©s, suas estratégias relativas à força d© traba-
estruturas d© pod©r do Estado ©, aeimi d© tudo, a posiçio ©lho,
, Rio dê Janeiro, 148; 13/31, jan.=mar., 2002
hierarquia das cidades contemporâneas. Algumas delas têm qualifica-
ções para ocuparem a mais alta posição em poder e finanças, como Nova
Iorque, Londres e Tóquio. Como sabemos, outras perderam a impor-
tância de que gozavam. Localidades totalmente secundárias, como
Silicon Valley, surgem, de súbito, como importantes zonas financeiras,
tecnológicas e informacionais. Como Sassen admite, metrópoles euro-
péias como Paris, Madri, Berlim, Viena e Moscou não sofreram qual-
quer abalo na posição de prestígio histórico que adquiriram ao longo
dos séculos. Inevitavelmente há vencedores e perdedores, e não é fácil
prever quem ganhará e quem perderá nas próximas décadas, quem terá
sucesso e quem não terá. Algumas das cidades mais tradicionais, como
as capitais do mundo árabe, parecem felizes em não se envolverem num
certame cujos resultados são imprevisíveis.
c) As tradições econômicas, políticas e culturais das cidades até aqui
não tocadas pela economia global podem ser estudadas particularmente
bem, no caso de Lisboa (v. Freitag, 1999). Como se sabe, Lisboa
sobreviveu como uma pequena e pitoresca metrópole em Portugal,
mantendo-se afastada das duas Guerras Mundiais e permanecendo
como a metrópole algo decadente de um império colonial em declínio.
A partir da década de setenta, Lisboa foi inundada por gente que
retornava das antigas colônias. A redemocratização de Portugal tornou-
se mais fácil graças à generosa ajuda da União Européia. Reformas
tecnológicas, modernização dos sistemas de transportes e telecomuni-
cações e ambiciosos projetos urbanos (construiu-se uma segunda ponte
sobre o Tejo e recuperaram-se áreas portuárias decadentes para a
Expo-98) mudaram a encantadora capital de onde Vasco da Gama e
Cabral partiram para descobrir o caminho das índias e o Brasil. Lisboa
já não é a graciosa metrópole que Tanner e Wim Wenders se compra-
ziam em mostrar nos seus filmes. Ela mudou de rosto em resposta às
tendências mutantes da economia mundial e da era informacional. As
mudanças econômicas e políticas no contexto mundial inevitavelmente
afetam a estrutura interna e a dinâmica das cidades menores.
d) Enfim, para terminar, examinemos a última questão, a respeito
da relação entre as cidades globais e a estrutura de poder do estado.
Neste ponto, Sassen adota posição semelhante à defendida por Ma-
nuel Castells. Admitem ambos que o encolhimento do Estado nacio-
nal é inevitável. Em contraste, as cidades, especialmente as cidades
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globais, crescem em importância. Mas isto não significa o fim do
Estado, o seu "minguar progressivo", no dizer de Marx. Sassen
argumenta que o estado é responsável pela organização e superinten-
dência do planejamento e da renovação das cidades, de tal sorte que
determinadas cidades possam ascender ao patamar de cidades glo-
bais, aptas a competir com suas irmãs na rede mundial de cidades
requeridas pela economia global. Michael Peter Smith (2001) em seu
último livro, Urbanismo Transnacional: Localizando a Globaliza-
ção, critica o preconceito econômico de Castell e a argumentação de
Sassen. No seu entender, os argumentos culturais, sociais e antropo-
lógicos devem ter prioridade na construção de teorias da cidade e
tipologias da cidade. (V. também Douglas & Friedmann, 1998).
Conclusão
Este estudo não é uma elegia por Tróia destruída ou pela Atlântida
submersa, mas também não é um hino de boas-vindas ao Admirável
Mundo Novo das cidades globais. As cidades não são apenas "Sitze dês
Geldes", o lugar do dinheiro, na terminologia de Georg Simmel, mas
capítulos na longa marcha da civilização, ecos de memórias que não se
devem perder. Acima de tudo, foram elas e continuam a ser o lar de
incontáveis seres humanos. Nas atuais condições, a maioria deles vive em
extrema pobreza, em cidades periféricas e marginais. Essas pessoas não
têm importância, do ponto de vista econômico. Elas são supérfluas, do
ponto de vista da racionalidade global. Mas é somente em benefício delas
que as atuais sugestões de rever nossas imagens de cidades ("Stadtbil-
der") e conceitos urbanos merecem ser levadas em consideração.
Notas:
Na verdade, o que Baudelaire disse é diferente e melhor: Lê vieux
Paris nestplus (Ia forme dune ville\Change plus vite, hélas! que lê
coeur dun mortet). Em português: "A velha Paris já não existe (a
forma de uma cidadeIMuda mais depressa, ai de mim, que o coração
de um mortal". Estes versos se encontram na segunda estrofe do
poema "Lê Cygne", de Lês Fleurs du Mal. (N. do T.)
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2
 Assim no original. Charles Fourier morreu em 1837. (N. do T.)
3
 Em francês, Phalanstère, neologismo cunhado pelo próprio Fourier,
a partir de phalange (falange) e a terminação de monastère
(mosteiro). (N. do T.)
4
 Em inglês, twoflat áreas. (N. do T.)
5
 Em inglês, bright light área. (N. do T.)
Em inglês, commuters zone. (N. do T.)
7
 A palavra plastic, em inglês, é uma designação corrente de cartão de
crédito. O contexto não permite dizer se é disto ou de alguma outra
coisa que se trata aqui. (N. do T.)
8
 Em inglês, Nation Building. A expressão, usual naquele idioma, soaria
esdrúxula (quer-nos parecer), se traduzida literalmente em nossa
língua, Construção de País. Daí a solução aqui adotada, País em
Construção. (N. do T.)
9
 Esta palavra, que traduz o inglês sustainability, está sendo empregada
no sentido específico de "capacidade de manter o equilíbrio
ecológico mediante o cuidado em evitar a exaustão dos recursos
naturais". (N. do T.)
10
 V. a nota 9.
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Berlin: Kiepenheuer und Witsch (Studienausgabe),1964 (Vol. 2, capítulo 7,
pp. 923-1033).
(Tradução de Sérgio Pachá)
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SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
OU SOCIEDADE DO LOISIR11
Gianni Vattimo
Apercebo-me do caráter conscientemente provocador do título.
No entanto, considero que exprime bem a situação das nossas socie-
dades avançadas - sublinho que penso principalmente nestas socie-
dades - nas quais a quantidade de informação disponível e utilizável
para a produção de bens e de serviços já está tão desmedida a ponto
de ser necessário referir as máquinas, as memórias artificiais etc
como possível " sujeito", capaz de contê-la e de " dominá-la".
A modernidade foi também a época em que se desenvolveu a
noção, e depois o culto, do gênio; do gênio "universal" de um
Leonardo, e, depois, do gênio artístico como aquele no qual, e através
do qual, "a natureza dá a regra à arte".
As duas imagens do gênio - a mente capaz de um saber universal,
que já era o sonho da metafísica de Aristóteles, e o talento "inato"
do grande artista - parecem distantes entre si, mas talvez ambas
expressem a consciência moderna da extensão indominável das
possibilidades da ciência e também da arte. É como se, à medida que
a modernidade avançava, fosse também reduzida a distância entre as
duas concepções do gênio: o gênio da nossa época é alguém que sabe
tudo só na medida em que outro lhe dá a regra, não mais a natureza,
talvez, mas a calculadora, a rede em que circula. O saber universal
não é sabido, simultânea e articuladamente, por ninguém, por ne-
nhum sujeito finito, mesmo que dotado de talento.
Nessa transformação moderna do " sujeito" do saber são mormen-
e
 características as pesquisas sempre renovadas de " artes da memó-
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 33
ria" (de Bruno a Pietro Ramo...), a nostalgia romântica (e marxista)
de uma sociedade em que os indivíduos não estivessem atados à
corrente da divisão social do trabalho (manhã pescador, noite violi-
nista...), o grande projeto kantiano de reconduzir o saber a condições
a priorí na razão, renovado, já com certo pessimismo, pelo Husserl
da Crise das ciências européias.
Hoje, semelhantes projetos teóricos, em outra época mais ou
menos reservados ao mundo dos doutos, configuram-se também, e
legitimamente, como programas políticos. A União Européia fala
explicitamente de uma " sociedade do conhecimento" como horizon-
te diretivo das suas políticas comunitárias de instrução, divulgação,
educação continuada: também, e sobretudo, como se compreende,
com o propósito de vencer os desafios do mercado global, que exige
uma capacidade disseminada de utilização dos novos meios produ-
zidos pelas novas tecnologias.
É preciso que se organize a efetiva "reciclagem" de grandes massas
de trabalhadores da indústria, que devem adquirir novas especializações
para não serem excluídos na metade da vida, ou pouco depois, do
"mercado de trabalho". E é preciso que áreas nacionais ou supranacio-
nais, neste caso a Europa unida, tornem-se capazes de produzir autono-
mamente as inovações científico-tecnológicas que lhes permitam não
sucumbir na competição econômica mundial. Escopos sacrossantos,
nos quais todos como cidadãos estamos interessados. Da realização de
semelhantes metas depende, não só a nossa riqueza material, mas
também, por exemplo, o nosso destino de corpos viventes que têm
necessidade de dispor de novos fármacos para afastar a ameaça- sempre
menos "natural"-damorte.
A consciência filosófica (não de todas as filosofias) acerca do caráter
essencialmente "técnico" da ciência moderna não poderia ter uma
confirmação mais explícita e indubitável: quando falamos de sociedade
do conhecimento, falamos, em realidade, de uma sociedade do saber
tecnológico difuso e, por isto, mais rica de possibilidades "produtivas".
Se essas observações são tidas em conta, nasce pelo menos uma
dúvida sobre o significado a ser atribuído ao termo "sociedade do
conhecimento". Resulta, de fato, drasticamente limitado o implícito
sentido eulógico,2 conotado de valores positivos, que a expressão
imediatamente transmite.
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O conhecer (entenda-se: a verdade, a ordem das coisas, em última
nipótese Deus como supremo "objeto" da contemplação beatífíca)
sempre foi, na nossa tradição, sinônimo da atividade mais digna e
gratificante do homem. Todavia, se j á não antes, certamente pelo menos
em Kant, a filosofia entendeu e teorizou a diferença entre conhecer e
pensar. A esta diferença reporta-se evidentemente, também no século
XX, um filósofo como Heidegger, quando pronuncia a escandalosa
afirmação segundo a qual" a ciência não pensa", que lhe atraiu muitas
críticas, principalmente por parte de pessoas que nunca sonhariam em
colocar em dúvida, ao contrário, a palavra de Kant. Bem, em Kant o
númeno, o ser "pensado" é o ser-em-si do mundo, do qual não podemos
saber e conhecer nada, visto que o nosso conhecimento, aquele sobre o
qual se funda o saber, é limitado ao fenômeno, àquilo que se mostra.
As atividades "superiores", se as queremos chamar assim, da
razão humana se exercitam todas para além do mundo do fenômeno,
a começar pelo uso prático da razão, que é caracterizado por uma
capacidade de iniciativa não determinada casualmente pela cadeia
dos fenômenos, para terminar na contemplação estética que nada diz
a respeito de como estão as coisas, mas se coloca no âmbito de um
livre jogo da faculdade do sujeito, aqui entendido evidentemente
como alguma coisa de numênico.
Em geral, os intérpretes de Kant são unânimes - pelo menos eu
creio - em reconhecer que o mérito da sua crítica foi, certamente, o
de esclarecer os fundamentos do conhecimento; mas também, e
talvez sobretudo, o de limitar o terreno do conhecer científico,
deixando-o fora, sem condená-lo ao arbítrio e à irracionalidade; o
mundo da liberdade, dos valores, da experiência religiosa, em múl-
tiplos sentidos, só pode ser o "mundo", ou não-mundo, do númeno.
O título desta intervenção poderia, talvez, ser reformulado, neste
ponto, como: sociedade do conhecimento ou sociedade do pensa-
mento? Mas, se depois nos perguntamos um pouco mais especifica-
mente o que caracterizaria, nessa distinção de origem kantiana,
mesmo se não literalmente referível nos seus textos, o pensamento
eni relação ao conhecimento, não tardaremos a encontrar aquilo que
me
 propus a indicar com a palavra loisir. Ou talvez também "jogo",
que novamente evoca o Kant estético, e ainda a hermenêutica de Hans
Georg Gadamer. Nessa acepção, jogo nos permite apreender pelo
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 35
menos duas importantes características do pensar enquanto não
redutível ao conhecer: a liberdade e o envolvimento emotivo. Por-
tanto, dois elementos que não é errado reportar também ao loisir.
Observar que esse modo de caracterizar o pensamento o reduz à
frivolidade dos comportamentos lúdicos e o faz perder o elemento de
seriedade, significa ser ainda prisioneiro da idéia de que a atividade
suprema do homem é o conhecer, que só pode ser a atividade suprema
se é contemplação de uma ordem divina na qual ver como as coisas
autenticamente estão significa também gozar da beatitude eterna.
Spinoza pensava assim: amor dos intellectualis. E nós? A luta que o
pensamento moderno, certamente também com Kant, mas depois, muito
mais radicalmente com Heidegger, conduziu contra a metafísica tem o
seu motivo exatamente na recusa de se imaginar o sentido da existência
como expressão de uma verdade dada como definitiva, que se trata só de
registrar e respeitar - dos procedimentos técnicos às escolhas morais.
O pensamento como jogo e loisir não está certamente desvinculado
da atividade cognitiva, mas a ela se liga como ensinaram Kant e depois
Heidegger: é o partilhar, já-sempredado com a nossa existência histó-
rica, de um horizonte no qual a experiência dos fenômenos e o conhecer
científico nos tornam possíveis. Visto que não é - nem em Kant e menos
ainda em Heidegger - um conhecimento preliminar, mas é, principal-
mente, uma "disposição" histórica da nossa razão, essa partilha tem as
marcas do vivido que, enquanto não determinado por um dado fenomê-
nico, é também essencial espontaneidade. Por isso, jogo é expressão de
liberdade; portanto uma forma de prazer, que é descrito no modo mais
icastico pelo Kant da Crítica do juízo, onde o prazer estético que nos
provoca a contemplação da obra de arte é o prazer de sentirmo-nos
capazes de partilhar com outros a nossa experiência, uma espécie de
sentimento de comunidade (em Kant: comunicabilidade pura, para além
de cada conteúdo específico).
A contemplação de Deus na teologia e na mística cristã nunca teve
efetivamente o sentido "cognitivo" do geometrismo de Spinoza; a
própria beatitude foi freqüentemente descrita como um banquete, um
estar-junto conversando, que a tradição cristã também chamou ágape
- algo não muito diferente do amor em todos os seus sentidos.
Não pretendo, naturalmente, insistir sobre esse lado místico da minha
exposição, e mesmo a evocação a Kant tem, antes de tudo, o sentido de
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buscar uma legitimação para a tese " escandalosa" que sei estar propondo.
Tá que um certo escândalo não pode deixar de surgir quando se passe das
(inócuas?) considerações filosóficas sobre pensar e conhecer para uma
tentativa de extrair delas conseqüências de tipo prático, social e político.
O que deveremos ensinar na escola? O j ogo no lugar da rígida disciplina
da aprendizagem de conhecimentos que são cada vez mais indispensáveis
à nossa vida individual e associada? O fato é que, com o conhecimento e
a sua difusão, acontece um pouco aquilo que ocorre com o conceito de
"desenvolvimento", ao qual cada vez mais, hoje, se associa o termo
"sustentável". Vem à mente aqui, de imediato, uma frase de Nietzsche:
Tudo depende de quanta verdade se está disposto a suportar (ou algo
parecido), que naturalmente nele tinha sentido diverso, mas que definiti-
vamente poderia não estar assim tão distante do nosso argumento.
Analogamente à questão do desenvolvimento, o problema social
do conhecimento é cada vez mais aquele dos seus limites " naturais".
Pensemos, por exemplo, na quantidade de informação que é distri-
buída cotidianamente pelos jornais e meios de comunicação de
massa. Quem procura manter-se "atualizado" - por exemplo, a
categoria dos ensaístas, dos políticos, dos críticos da sociedade à qual
muitos de nós pertencemos - encontra-se hoje muito freqüentemente
numa condição de saturação; deve recorrer a colaboradores ou a
"motores de pesquisa" que lhes forneçam uma pré-seleção do mate-
rial que, no final, procurará ler diretamente.
Afortunadamente (ou desafortunadamente), o público médio não lê
e não ouve tudo, ou não se preocupa, de fato, com a inteireza da própria
informação; tem mais o que fazer. E isso torna-se também um problema
para o funcionamento da democracia, como é bastante óbvio.
No tema democracia, outro aspecto relevante do problema do conhe-
cimento é o que se reflete sobre as sempre mais freqüentes decisões
públicas que implicam saberes especializados. Se há um referendum
sobre o problema das instalações nucleares, por exemplo, aqueles que
são chamados a votar têm suficiente conhecimento de física para poder
decidir com fundamento? Para saber do que se trata, os votantes
deveriam ser pequenos Leonardos da Vinci, e obviamente não o são.
Pode-se imaginar uma sociedade do conhecimento na qual, como no
caso do "desenvolvimento", se realiza progressivamente uma con-
dição de "leonardismo" generalizado? Mas se não, então o quê?
Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 37
Neste ponto, a distinção entre pensar e conhecer, entre saber e fruir,
impõe-se em toda sua possível atualidade. Não pode, certamente,
induzir-nos a um apressado abandono do ideal do conhecer e da
promoção da ciência, como alguém suspeita, quando, a partir da filoso-
fia, se insiste sobre esse tema; mas pelo menos a uma inderrogável
redefinição do significado social do conhecer. Não é por acaso que a
sociedade na qual matura a crise do ideal do desenvolvimento quanti-
tativo do conhecimento seja também a sociedade da informática.
Um afortunado livro de Hubert Dreyfus, de há alguns anos, tinha como
título What computers can't do, ou seja Aquilo que os computadores não
sabem fazer. Oferece uma espécie de versão atualizada da famosa disputa
sobre Natur e Geisteswissenschaften do fim do Oitocentos.
Naturalmente, há coisas que os computadores não sabem fazer,
mas devemos cada vez mais prestar atenção àquilo que sabem fazer,
e servirmo-nos no modo mais eficaz. Não se trata somente, em suma,
de reivindicar o irredutível caráter humano da vida da mente, mas de
reconhecer e promover afirmativamente a possibilidade de reduzir
ao não-humano uma quantidade de atividades que, no passado,
ocupavam e oprimiam o lado propriamente humano da nossa vida.
Poderemos lembrar aqui muitos estudos sobre o hábito como
forma de liberar a atividade consciente das preocupações banais. Ou,
também, posições como as de Schiller e do idealismo alemão contra
o moralismo kantiano. A moralidade não é ameaçada pelo hábito de
se praticar o bem; ao contrário, resulta enriquecida a civilização.
Uma sociedade do conhecimento é uma sociedade na qual, como no
caso dos bons hábitos que nos fazem praticar o bem sem refletir, o
conhecimento está "disponível", nas redes, no sistema das memórias
artificiais, e " funciona" mesmo que não exista em nenhuma parte - talvez
nem acreditasse nisso verdadeiramente Hegel, que falava justamente
também de " espírito objetivo" - um sujeito " absoluto" capaz de possuir,
segundo o modo da concepção clássica do saber, todos os conhecimentos.
Preciso dizer que não sei bem, por ora, até onde conduz a estrada em
que me proponho a entrar. Sei que comporta riscos, mas estou conven-
cido (não posso dizer que sei, me contradiria) de que não há alternativas.
Promover uma sociedade do conhecimento como mundo no qual todos
saberão amanhã decidir com conhecimento de causa os mais variados
problemas da vida associada, que cada vez mais comportam o domínio
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He noções especializadas, parece-me umamistificação ideológica que revela
somente a incapacidade de repeasar o próprio conceito de conhecimento.
Hoje já acontece com mais freqüência que, quando se trata de decisões que
implicam o domínio de semelhantes noções, nos entregamos a especialistas
nue estimamos e nos quais confiamos por uma série de razões que não têm
relação direta com a avaliação (da qual não seremos capazes) da sua compe-
tência específica Os pares de conceitos aqui abordados se desenvolvem
sempre a partir da distinção entre peasar e conhecer, e chegam, por exemplo,
àquela entre técnica e política, entre economia e ética, entre "amizade" e
"verdade" (contra o dito tradicional "amigo Platão, mas mais amiga a
verdade"), não estaremos aqui numa situação simetricamente oposta?
A verdade que reconheço e posso reconhecer, em muitos campos
"especializados", é somente aquela que me é dita por quem sinto
"já" como amigo. É em relação a observações como essas que se
torna menos escandaloso falar de uma sociedade do loisir e do jogo
como a única possibilidade de representação do ideal de uma socie-
dade do conhecimento.
Tendo em consideração os elementos do conceito de jogo sobre o
qual chamei a atenção anteriormente: aqueles do "compartilhamen-
to" e da espontaneidade, portanto também do envolvimento afetivo.
Concretamente, significa que, no nosso futuro, há um saber que
ninguém individualmente será capaz de possuir; isto é, cada vez mais
em

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