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O Pensamento em Tempo Brasileiro A Revista Tempo Brasileiro chega aos seus 40 anos de existência, fiel ao seu compromisso inicial: trazer uma reflexão sobre e para o desenvolvimento brasileiro que. guardando a sua força endógena, estivesse inscrita em um horizonte universal. 1 Reflexão e Participação: 20 anos / Revista Tempo Brasileiro, 71 A reflexão crítica, o próprio avanço do conhecimento, a controvérsia cultural do nosso tempo são temas da Revista Tempo Brasileiro, e se reafirma nesse número comemorativo dos 20 anos de existência. Reflexão e Participação/2: 25 anos / Revista Tempo Brasileiro, 90 A permanente abertura à pluralidade cultural da atualidade continua sendo d núcleo central da razão de ser da Revista Tempo Brasileiro. Sempre que possível sobre ou para a construção nacional, porém inscrita, de corpo e alma, vitalmente^ no horizonte do mundo. Reflexão e Participação/3:30 anos / Revista Tempo Brasileiro, 111 Durante três décadas, a Revista Tempo Brasileiro tem lançado nomes nacionais e internacionais, promovendo a circulação aberta das idéiaí contemporâneas, procurando trabalhar com a memória e a esperança, insistindc em desincompatibilizar disciplinas habitualmente distantes. i Reflexão e Participação/4 / Revista Tempo Brasileiro, 130-131 Neste número monográfico encontram-se textos que pertencem ao repertóridi do projeto Caminhos do Pensamento Hoje. Pensar na "terceira margem do rio" deixando de lado as dicotomias persistentes, e interminavelmente hegemônicasi; constitui compromisso ético e aventura intelectual radicalmente plantados no fundo da história dos nossos dias. Friedrich Nietzsche//fcviv/í/ Tempo Brasileiro, 143 A Revista Tempo Brasileiro através deste número procura registrar, uma vez mais, em meio à turbulência provocada pelo crepúsculo dos ídolos, o nasciment(p insubmisso e provocador da palavra trágica de Nietzsche. Seu tema matricial foi O nascimento: nascimento da tragédia, da verdade, dá linguagem. O pano de fundo era sempre o desafio moral, jamais imune à vontade de potência. Sempre no encalço do dissídio que reúne e dilacera as palavras e as coisas, o homem e o mundo, para além do hem e do mal. ISSN 0102-8782 tempo brasileiro SOCIEDADE E SABER BARBARA FREITAG, CLAUDIUS B. G. WADDINGTON, EDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, FATMA OUSSEDIK, GIANNIVATTIMO, HARRIS MEMEL-FOTE, HOMIBHABHA, LIUBAVA MOREVA, MASAfflRO HAMASffiTA, RAFAEL ARGULLOL, SÉRGIO PAULO ROUANET, ZYGMUNT BAUMANN Tempo Brasileiro: quarenta anos de vida - de confronto crispado com a realida- de brasileira, latino-americana e contempo- rânea -, constituem o esforço reflexico, aberto e livre, como também a vontade de alargar o horizonte do pensar, não raro no cerne do pensamento pós-metafísico. Tempo Brasileiro vem criando novas solidariedades em todos os cantos do mun- do. E essas solidariedades, muitas vezes apoiadas em diferenças complementares, estão na base do seu trabalho reconstrutivo. Já é um longo itinerário, mas ^Revista, a Editora e o Colégio do Brasil (por ordem de entrada em cena) estão presentes para continuar o registro e o impulso do Tempo Brasileiro, abertos à reflexão crítica, com- promissados com o saber por vir, declarada- mente plurais, no encalço da cidade cosmo- polita. TEMPO BRASILEIRO 148 JANEIRO-MARÇO DE 2002 Diretor: EDUARDO PORTELLA Conselho Consultivo ALFREDO BOSI BARBARA FREITAG EMMANUEL CARNEIRO LEÃO EVALDO CABRAL DE MELLO IVO PITANGUY JOSÉ ISRAEL VARGAS JOSÉ LEITE LOPES JOSÉ PAULO MOREIRA DA FONSECA MARIA YEDDA LINHARES MOACYR SCLAIR MUNIZ SODRÉ NÉLIDA PINON RAFAEL GUTIÈRREZ GIRARDOT ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA RUBEM FONSECA SÉRGIO PAULO ROUANET Comissão Editorial BEATRIZ RESENDE CARLOS SEPÚLVEDA CLAUDIUS WADDINGTON EDUARDO COUTINHO FLÁVIO BENO SIEBENEICHLER GUSTAVO BAYER JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA MÁRCIO TAVARES D'AMAR AL PAULO ROBERTO PEREIRA PEDRO LYRA RONALDES DE MELO E SOUZA A editoração desta Revista, desde o número 80, está entregue ao Colégio do Brasil (ORDECC). e-mail: ordecc@ colegiodobrasil.org.br Revista Trimestral de Cultura Os artigos assinados são da inteira responsabilidade de seus Autores. Direitos reservados às EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA. FRANCO PORTELLA Diretor-Presidente Redação e Administração Rua Gago Coutinho, 61 22221-070 - Laranjeiras Rio de Janeiro -RJ - Brasil Telefax: (21) 2205-5949 e-mail: tb@tempobrasileiro.com.br SOCIEDADE E SABER Esta monografia está centrada na reunião de Nápoles, consagra- da ao tema "Société, connaissan- ce et savoir-faire", e realizada sob os auspícios do "Comitê Cami- nhos do Pensamento" (UNESCO), do CIPSH e do Istituto Italiano per gli Studi Filosofia de Naples. O colóquio teve lugar nos dias 6 e 7 de dezembro de 2001. Os pesquisado- res do Colégio do Brasil, que já se encontravam no número da revista Diogène, n° 197 (Paris, 2002), pu- blicada com o empenho de sua efi- ciente redatora-chefe Paola Costa Giovangigli, aumentaram as suas presenças nesta edição da Revista Tempo Brasileiro. Esta iniciativa, de rever criticamente a noção e o projeto da sociedade do conheci- mento, contou com a valiosa coope- ração da Representação da UNESCO em Brasília, e obedeceu à competência e à dedicação de Francês Albernaz, Especialista de Programa da UNESCO (Paris). Ficha Catalográfica elaborada pela Equipe de Pesquisa da ORDECC Revista Tempo Brasileiro, jan.-mar. - n° 148 - 2002 - Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, ed. Trimestral 1. Filosofia. 2. Sociologia. 3. Comunicação. 4. Educação. CDD 100 301 302.2 370 ISSN 0102-8782 SUMÁRIO liMMANUEL CARNEIRO LEÃO/A Salvação pelo Conhecimento... 5 BARBARA FREITAG/Cidades Globais em Sociedades Informacionais 13 GIANNI VATTIMO/Sociedade do Conhecimento ou Sociedade do Loisirl 33 ZYGMUNT BAUMANN/Desafios educacionais da modernidade líquida 41 HARRIS MEMEL-FOTE/Sociedade de iniciação, Sociedade erudita e Sociedade do saber 59 HOMI K. BHABHA/Democracia des-realizada 67 MASAHIRO HAMASHITA/Conhecimento proveniente do exterior; Conhecimento por divertissement e por mais do que isto 81 RAFAEL ARGULLOL/Vislumbres sobre um século 95 SÉRGIO PAULO ROUANET/Religião e Conhecimento 107 FATMA OUS&EDIK/Saber e Razão no Ocidente Muçulmano. O caso da Argélia 129 LIUBAVA MOREVA/Reflexões sobre os paradigmas do filosofar 147 CLAUDIUS B. G. WADDINGTON/Tradição, conhecimento e interpretação 169 Cena Aberta EDUARDO PORTELLA/Sociedade com e sem conhecimento 189 A SALVAÇÃO PELO CONHECIMENTO Emmanuel Carneiro Leão O fluxo da História no Ocidente nasceu de três fontes: de Jerusa- lém, de Atenas e de Roma. Uma força de reunião e impulso recolheu, numa corrente, as águas das fontes. Este ela de integração da História Ocidental tem sido a busca da salvação para a humanidade. A salvação pela Fé foi a primeira tentativa. Até o início da idade moderna, todo processo histórico no Ocidente era atravessado, como tal, por uma esperança religiosa: esperava-se da fé em Deus a salvação dos homens. A história humana era, então, compreendida toda pela religião. A primeira interpretação explícita da história foi religiosa. Em De Civitate Dei, Santo Agostinho propõe uma teologia da história. O movimento histórico repetia, no nível de feitos e fatos, de instituições e procedimentos, os dias da criação do mundo. O relato bíblico dos seis dias, no primeiro livro do Pentateuco, servia de paradigma para se entender o sentido do que acontecia na História. Era o famoso exemplarismo agostiniano. Neste entendimento da História, preocupava-se mais com o organograma das formas e épocas do que com a dinâmica do andamento da História. Trata-se de uma teologia da História de natureza morfológica, uma espécie de anatomia. A energia, o impulso e a orientação de todo processo deixava-se entregue à Providência Divina, Deus cria o mundo con-tinuadamente e não pontualmente. O movimento da História é enten- dido pelo modelo daquelas antigas máquinas de costura acionadas por manivela. Para funcionar, necessitam do movimento da manive- la. Para não voltar para o nada, o mundo exige que Deus o conserve no ser. É a creatio contínua. Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 No final do século XII, apareceu outra teologia da História alternativa ao exemplarismo agostiniano. Esperava também uma salvação pela fé, mas se preocupava mais com a dinâmica da História. O abade do mosteiro de São João em Fiore, na Itália, Joaquim di Fiore (1145-1202) propõe uma teologia da História que, apesar de um exemplarismo trinitário, ocupa-se, sobretudo, com o andamento do processo histórico. Principalmente nas suas obras: "Saltério da Dez Cordas", "Livro da Figuras, "Tratado Sobre os Quatro Evangelhos" e "Concordância do Novo e Antigo Testamento", o abade divide a História em três eras: a Era do Pai, a Era do Filho e a Era do Espírito Santo. Esta última começa em 1260 e tem sua força na sabedoria divina; em que tudo produz e tudo controla. O impulso que aciona e impele todo processo de sucessão, entre e dentro das Eras, é constituído por um princípio dialético de declínio e superação. Esta dialética forma propriamen- te o movimento da História. É a alavanca de sua movimentação. Assim, a História não é uma máquina de costura, movida a mani- vela. A História é um relógio que, ao criá-lo, Deus lhe deu corda com a dialética de tensões e, então, anda por sua própria força. Esta teologia dinâmica da História, embora alimentada pela espe- rança de uma salvação pela fé, influenciou, com seu modelo dialético, as interpretações da História desde Giovanni Battista Viço e Thomas Muenzee até as Filosofias do Idealismo Alemão de Marx e das revoluções do século XX. A salvação pela produção foi a segunda tentativa. Com a derroca- da da salvação pela fé, com as novas experiências históricas da idade moderna, o homem ocidental volta-se para a produção. A salvação viria de uma ordem que produziria tudo com o recurso da técnica e da ciência de transformação do real. Também esta salvação pela produção apresenta duas versões: a versão capitalista, baseada num sistema de produção dominado pelo capital, e a versão socialista, constituída por um sistema de produção dominado pelo trabalho. Em ambos, a esperança da salvação viria da sociedade de produção. Hegel e Marx desenvolveram, em seus mecanismos, a dialética da produção, cobrindo toda a envergadura do espectro social, embora seguindo pressupostos contrários do idealismo e do materialismo. Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 A salvação pelo conhecimento. É a terceira tentativa de salvação: a sociedade do conhecimento. Com as revoluções e as guerras do século XX, com o surto extraordinário de desenvolvimento da técni- ca e da ciência, a esperança de uma salvação pela sociedade de produção foi pouco a pouco esmaecendo. O conhecimento torna-se um processo translúcido, fundamentado e circunscrito a uma área bem definida de fenômenos transformados em objetos de pesquisa e operação. A verdade deixa de ser uma interpretação universal, necessária e uniforme, para tornar-se um poder de operação dos fenômenos reais, precisamente definidos. Um dos pressupostos desta transição para uma sociedade do conhecimen- to é a falta do ela de questionar os pressupostos da técnica e da ciência. Vivemos ainda dos rendimentos da criatividade, j á instalada. Nietzsche diz, de certa feita, que o pensamento é uma festa. Pois, na sociedade do conhecimento, estamos em fim de festa. Se outra festa virá, não poderemos saber. Por isso, grande é o vazio de criação nesta passagem de milênio para uma sociedade do conhecimento, onde pontificam a técnica e a ciência informatizadas. Nesta informa- tização generalizada, já não é possível sistematizar. Pois o que se esboroa é precisamente a força dos sistemas de totalidade e o vigor da sistematização universal. Num período histórico de transição, o balanço se concentra em sondar questões. Estamos passando para outra coisa que não sabemos qual seja. Apenas sentimos que já não é possível controlar tudo, o presente, o passado e o futuro, pelo saber da ciência e pelo poder da técnica. A contribuição do pensamento hoje não pode ser sistemática. Só pode ser crítica. Aceita a fragmen- taridade de questões e de perguntas a partir de uma experiência comunitária de passagem e transição. O pensamento nunca foi uma doutrina, nem uma ciência, nem um conhecimento. Sempre foi um processo de libertação que se instala quando e como aprouver ao envio da História. A grande dificuldade é que esta libertação não se dá nem acontece no sentido de apagar, abolir ou desfazer. Por isso, o grande desafio para o pensamento, numa sociedade informatizada do conhecimento, está em deixar-se atravessar pelo movimento da libertação. Pois liberdade não inclui negar dependência. É esta a ilusão de uma libertação sem liberdade. Liberdade significa não se deixar destruir pelas dependências. É que não pertence às possibili- Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 dades históricas dos homens construir realização sem relação, sem amarras, sem vínculos. A liberdade concreta é tanto negativa, inde- pendência, como positiva, autonomia, como nem negativa, nem positiva, mas criativa, justamente na dependência e na heteronomia. Toda a provocação da liberdade criativa é aprender a desinstalar o pensamento. É tão difícil pensar, porque temos os ouvidos entupidos com o ruído dos chips e com o alarido da computação. Trata-se de um turbilhão curioso. Não se escuta o barulho que faz. É como se tudo já tivesse incorporado a nossas entranhas e se feito assim não apenas inaudito, como sobretudo inaudível, perdido no processamento auto- matizado e no reprocessamento controlado. Cada vez mais circulamos em circuitos integrados em sede de escala global. O desafio que hoje nos atinge provém de uma autocra- cia informacional. A informatização se torna um rolo compressor. Em seu tropel, a sociedade do conhecimento vai rolando de alto a baixo, Tudo se processa. Por toda parte opera um micro. Nenhuma outra força parece resistir à atropelada da computação. As novas gerações de computadores prometem e cumprem a promessa de interface para tudo. Aumenta, sem cessar, o ruído de periféricos. Pois o periférico visado é sempre o homem. Neste caso, nada poderia fugir à informatização. E que é informatizar? Informatizar não é apenas o verbo que indica os fatos e feitos da informática. Não nos remete apenas ao funcionamento de ferramen- tas e aparelhos, não se refere a dispositivos de processamento ou a instalação de computação microeletrônica. A informatização não é o resultado da expansão global de uma parte, de sorte que a totalidade resultante fosse o todo de uma parcialidade. A informatização não se reduz a transferir determinada integração de ciência e técnica, de conhecimento e ação para todas as áreas em que se distribuem os homens histórica e socialmente organizados. Informatizar é o pro- cesso metafísico de Fim da História do poder ocidental. Fim não no sentido de término, mas no sentido de plenificação. Na informatiza- ção e por ela, o poder de organização do Ocidente se torna planetário. A globalização se instala. A dicotomia de teoria e prática, de mundo dos objetos e mundo dos sujeitos vai sendo superada numa com-po- Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 sição absorvente. Por ela se completam, numa equivalência de recí- proca constituição, o sujeito e o objeto, o espírito e a matéria, a informação e o conhecimento, o mundo dos cérebros e o mundo das coisas. à luta entre materialismo e idealismo torna-se, então, uma brincadeira de criança. O pessimismo e o otimismo transformam-se em categorias inofensivas para classificar irmãos de uma mesma família. Sendoum verbo de vigência essencial, informatizar nos precipita na avalanche de um poder global de realização. Por isso, não indica primordialmente o processamento automático de conjun- turas, mas o processamento automático de estruturações que tudo aplanam, tudo controlam e tudo contraem numa com-posição sem lacunas. A terra e o mundo, a história e a natureza, o ser e o nada se reduzem a componentes de compatibilidade universal. A informati- zação é uma voracidade estrutural em que todas as coisas, todas as causas e todos os valores são acolhidos, são defendidos, são promo- vidos, mas, por isso mesmo, perdem sua autonomia e fenecem em criatividade. Neste sentido, informatizar é supermercado de organizar o conhecimento e transformá-lo em poder de salvação. Tanto desen- cadeia as forças produtivas como contém os modos de produção no poder e não poder de uma ordem planetária de dominação. Os modos automatizados ciberneticamente da organização recolhem em si as condições de toda a vigência social, de toda a causalidade histórica e de toda gama das demandas e solicitações individuais. Ora, é no fluxo de uma socialização global, é na avalanche de uma historização estandardizada que as ordens simbólicas se compõem com as ordens práticas nas superestruturas da automação. Se pensarmos, portanto, em toda envergadura o desafio da informa- tização, não há cegueira que nos impeça de ver nela a realização do vigor planetário da técnica. É a com-posição final de todas as posições e de todas as oposições em sua dinâmica de locupletação. E a síntese escatológica de todas as teses e de todas as antíteses em seu percurso de complementação. A informatização não é, pois, simples efeito da informática e sua expansão. A informática e sua expansão é que nasceu, cresce e se alimenta da informatização. O que está em jogo é um processo totalitário de realização. Neste nível, abre-se todo um outro horizonte Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 para se pensar a força histórica da informatização em sua pretensão de poder salvar a humanidade pelo conhecimento. É o horizonte da realidade em seu movimento de realização. Na tela da história, então, o real se faz espetáculo e demonstra todo o potencial de suas virtua- lidades. Neste caso, como é que informatizar chega a realizar? De certo, realizar e informatizar não são a mesma palavra, mas, se não são a mesma palavra, em todas as comunidades lingüísticas em uso, pertencem à mesma língua de origem e dizem a mesma coisa, a saber, a transformação do real numa forma controlada de poder. Informatizar é um neologismo para designar toda uma ordem de real, realização e realidade instaurada pelo processamento micro- eletrônico das informações e dos conhecimentos. Com os recursos eletrônicos, colocou-se em ação, nos dois eixos da modernidade, no paradigmático e no sintagmático, um princípio de ordem e uma força de organização total da sociedade. Para se avaliar a profundi- dade das transformações históricas em causa, deve-se levar em conta duas coisas: em primeiro lugar, a forma da informática não remete apenas ao âmbito da mensagem. Remete também ao domínio de qualquer criação, seja na arte, na ciência, na indústria, na organiza- ção ou nos modos e valores da convivência. Em segundo lugar, a forma da informática indica uma estrutura plural, composta de circuitos e programações. De acordo com esta pluralidade, realiza- se, numa com-posição capaz de processar, não apenas dados, mas complexidades, conhecimentos, sentimentos, isto é, combinações de referências. Tudo é, então, reduzido a formas, e somente a formas. Nesta redução universal, a informatização não apenas realiza como, sobretudo, desafia, em todos os níveis a criatividade e o mistério inesperado de qualquer sociedade que se informatiza. Contra esta maneira de se pensar a realização da informática como informatização e de se fazer aparecer assim os desafios de estiola- mento e dominação, de salvação e amparo, costuma-se levantar a objeção de instrumento e ferramenta. A informática seria apenas meio para o fim e, de forma alguma, fim em si mesma. Muito longe de realização, cumpriria simples instrumentação da sociedade e do homem. As ferramentas microeletrônicas liberariam ambos das tare- fas subalternas de intermediação Com os mecanismos aplicados ao 10 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 sistema de produção, a mecânica clássica dispensou a força muscular. Com os automatismos, a eletricidade possibilitou o progresso industrial e a produtividade econômica. Com a automação, a inteligência artificial e a robotização, a informática substituiu, num mesmo circuito microeletrônico, Prometeu e Erimeteu, ao mesmo tempo, isto é, tanto as funções projetivas da imaginação criadora como a função executivas da ação transformadora. Esta objeção sofre de cegueira radical. A cegueira radical não impede de ver. Ao contrário, possibilita ver qualquer coisa, por já ter reduzido tudo a formas padroniza- das de visão. A cegueira radical só é cega para a essência das coisas. Por isso, a objeção não vê que nos domínios da informa- tização, já não é possível separar nem mesmo distinguir meio e fim, instrumentação e realização, forma e substância. O homem não vive primeiro e só depois existe. O homem não existe primeiro e só depois observa, presta atenção, combina, inventa, decide, sente e se relaciona. Não. É observando que ele existe. É prestando atenção, combinando, inventando, é decidindo, é sentin- do, etc. - que ele existe. Cego, portanto, e cego de cegueira radical, é quem, vendo apenas formas processadas, não pode perceber a mesma realização, superando as dicotomias pré-microeletrônicas, nas próprias diferenças microeletrônicas. Trata-se do tipo de ceguei- ra que o efeito da distorção da informatização espalha por toda parte nas sociedades do conhecimento. De tanto processamento automá- tico já não se consegue ver os processos essenciais. Tudo perde substância e profundidade, tudo se dimensiona em formas com função politécnicas, sejam binárias, sejam terciárias. A funcionali- dade, ao invés de salvar, tornaria o destino histórico da humanidade sem saída. Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 5/11, jan.-mar., 2002 11 CIDADES GLOBAIS EM SOCIEDADES INFORMACIONAIS Barbara Freitag Introdução Se é correta a suposição de serem as cidades o verdadeiro palco (" Schauplatz") da sociedade contemporânea, como afirmou Sim- mel, elas devem refletir as transformações das sociedades industriais em sociedades informacionais, ocorridas na passagem do século XX ao XXI. Isto implica um novo exame de nossas cidades e uma mudança fundamental na abordagem teórica de suas origens, funcio- namento e destino. Noutras palavras, é preciso rever as teorias sobre as cidades e as formas tradicionais dos estudos urbanos e formular novas categorias analíticas que permitam melhor entendimento das mudanças que realmente ocorreram. Esta proposição dá a entender que as abordagens teóricas até aqui empregadas são insuficientes, senão mesmo inadequadas, para ana- lisar os resultados dos processos de urbanização nas últimas décadas. Elas podem, inclusive, levar-nos a tirar conclusões errôneas, caso sejam mecanicamente aplicadas às novas realidades. As teorias que eram válidas para a era industrial não podem ser simplesmente "recicladas" para analisar a sociedade informacional e o que Saskia Sassen chama de cidades globais. Eu gostaria de ilustrar esta tese, examinando quatro abordagens " clássicas". Começarei com (I) a tipologia das cidades e a análise da especificidade das cidades do Ocidente, de Max Weber. Esta revisão crítica será seguida pela (II) análise dos estudos de Walter Benjamin Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 13 sobre Paris, "a capital do século XIX", em seu "Passagenwerk" (1977). Num terceiro momento (III), eu gostaria de recordar a con- tribuiçãodo Socialismo utópico para o planejamento urbano como parte integral do processo de modernização. Finalmente (IV), gosta- ria de fazer algumas observações sobre a assim chamada Escola de Chicago (de R. Park, G. Burguess e Louis Wirth). Revendo quatro teorias do desenvolvimento urbano I Max Weber (1864-1920) desenvolveu a mais abrangente das ex- plicações sobre a origem das cidades do Ocidente, no contexto de sua sociologia da dominação (1961). Na verdade, o capítulo consagrado à "tipologia das cidades" tem por objeto o tipo de dominação ilegítima que surgiu, na Europa Central, antes da industrialização. As pequenas cidades medievais representavam o resultado de um movi- mento de cidadãos quase "revolucionário", que se opunha ao poder feudal e à sociedade aristocrática. A tipologia de Max Weber está baseada em critérios econômicos e inclui (1) as Fürstenstãdte, as residências do Príncipe, (2) cidades de consumo, (3) cidades de produção, (4) cidades comerciais e (5) cidades mistas. Ele não estava satisfeito com esta tipologia, por julgar que estes critérios econômicos eram insuficientes. Para uma definição mais plena do fenômeno urbano, seria preciso levar em conta, também, os fatores políticos. Assim, num sentido plenamente econômico e político, as cidades são conglomerados de artesanatos, manufaturas, estabeleci- mentos comerciais, localizados num local que desempenha diversas funções, tais como praça forte, mercado, tribunal, e que desfrutam, em larga medida, de autonomia jurídica. Rssas comunidades urbanas de- vem estar baseadas na associação de cidadãos autogovernados que aspiram à autonomia (Weber W&G, 2, p. 934). Neste sentido, as cidades do Ocidente tiveram por pressuposto a existência de uma burguesia, o verdadeiro pilar de seu poderio político e econômico. A sociedade urbana burguesa era o resultado do declínio do sistema aristocrático baseado no campo. O novo poder político emergiu da capacidade dos 14 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 cidadãos de organizarem a produção e o comércio, de desenvolver o poderio militar, de impor a jurisdição territorial, e de criar novas formas de auto-administração e autonomia política. Dentro das cida- des, propriedade privada e altas rendas eram considerados critérios centrais de cidadania. Ser um cidadão era condição essencial para desempenhar funções políticas dentro da comunidade urbana. Uma questão que permanece aberta: por que terá Max Weber dado a seu famoso capítulo sobre as cidades o título principal de "Poder Ilegítimo", reservando para uma cláusula parentética o subtítulo "A Tipologia das Cidades" ? É bem possível que isto se deva ao fato de que, como a ordem feudal recusava o dinheiro como a base principal do poder, Weber considerasse que, do ponto de vista aristocrático, o poder baseado na riqueza era ilegítimo. Resumindo: a teoria urbana de Weber descreve a transformação da sociedade feudal em sociedade burguesa, ou, como talvez ele preferisse dizer, a passagem de formas tradicionais a formas racionais de organizar a vida econômica e política na sociedade européia. Sua tipologia urbana nunca se encontrou em estado "puro" na vida real. Isto é particularmente verdadeiro nas condições contemporâneas, que requerem novos instrumentos para estudar e analisar megalópo- les, como Nova Iorque, Tóquio, a Cidade do México ou São Paulo. II Vamos dar, agora, uma olhada na flâneríe de Walter Benjamin (1892-1940) através de seu Passagenwerk (1935, 1982). A extraordi- nária influência exercida por este trabalho sobre o pensamento pós-mo- derno a respeito de cidades compete com o encantamento suscitado por Lê città invisibili (1972), de ítalo Calvino. Os dois textos têm em comum a fascinação de seus autores por uma cidade paradigmática: Veneza para Calvino, Paris para Benjamin. Se Veneza é o "cenário" do primeiro contato do Ocidente com civilizações extra-européias (o mundo islâmi- co, a China), Paris é o cenário para todas as manifestações da "moder- nidade", incluindo a literatura, a arquitetura, o urbanismo, o capitalis- mo, a organização política. Paris é a capital do século XIX, sobre a qual Benjamim deita um olhar melancólico e nostálgico, por ser um mundo ameaçado pelo nazismo alemão. Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 15 Benjamin deu aoflâneur o mesmo status que Calvino deu a seu " navegador", Marco Polo. Oflâneuré um pedestre que vagueia pelas ruas, arcadas, pontes e jardins. Ele é um observador que não tem dinheiro nem interesse em comprar o que quer que seja. Mas ele está plenamente cônscio de todas as "manifestações" da cidade moderna como expressões da sociedade capitalista. Em sua qualidade de observador, oflâneur classifica os diversos "tipos" que povoam a cidade: o jogador, o dândi, a rameira, o vagabundo, o coletor de lixo (Lumpensammler). O foco de Benjamin não é sociológico, mas alegórico. Ele não está interessado em categorias sociais, tais como o operário ou o dono de fábrica, mas em tipos humanos abstratos, que vivem nas ruas, nos lugares públicos, nas arcadas de Paris. Ao descrever Paris como a capital do século XIX, ele focaliza a bolsa de valores, as galerias, as lojas, as revistas ilustradas, os cafés e restauran- tes, os edifícios do governo, as igrejas, os hospitais, os terminais ferroviá- rios, as estações do metrô, as fábricas. Oflâneur tem tempo para olhar para esses edifícios e admirar-lhes a beleza, para avaliar-lhes o valor em bom estado e até mesmo reduzidos a ruínas, para estudar os materiais empregados em sua construção, como vidro e ferro. Benjamim se sur- preende com o fato de que os arcos e as colunas ainda copiam o desenho de outros períodos arquitetônicos, como colunas greco-romanas, arcadas góticas, etc. A seus olhos, as ruas falam por si mesmas, com seus tableaux urbains, os anúncios, os quadros de avisos. As utilidades apregoam os próprios preços nas vitrinas, toda a sorte de sinais explica a lógica da cidade. Walter Benjamin, oflâneur por excelência, não é um sociólogo, um político, um economista, mas um observador participante, um citadino comprometido, cujo destino está indissoluvelmente ligado ao destino de Paris, um amante apaixonado desta cidade ímpar, na qual ele encontrou um lugar de refúgio, quando Hitier tornou impossível que ele, com milhares de outros judeus, voltasse para Berlim, sua cidade natal. A Paris de Benjamim pode ser vista como uma espécie de "tipo ideal", no sentido que Max Weber dá a esta expressão, vale dizer, é uma construção teórica diferente de qualquer cidade empírica. Seus conceitos deflâneur, deflâneríe, a tipologia das personagens e o uso de tableaux urbains, tomado de empréstimo a Baudelaire, podem ser aplicados a outras cidades. Willy Bolle, por exemplo, usou as categorias de Benjamin para estudar a emergência da moder- 16 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 nidade na cidade de São Paulo. Nada obstante, esses conceitos tornaram-se pouco úteis para ajudar a compreender as mudanças estruturais que ocorreram na sociedade e no ambiente urbano no começo do século XXI. As massas, as flâneries, o prazer de olhar vitrines, as arcadas são "fatos" que, um século depois, podem ser incluídos na arqueologia da modernidade. As massas ficam em casa, assistem à televisão e substituem as ruas e os lugares públicos pelo aconchego dos bares da periferia urbana e da casa de cada um. Às vezes as massas reaparecem em jogos de futebol ou beisebol e, eventualmente, em arruaças e demonstrações violentas. Mas, tão depressa como apareceram, voltam a desaparecer. Hoje em dia, as ruas e avenidas de nossas grandes cidades estão vazias de pessoas, mas cheias de carros, ônibus, motocicletas, etc. Fazem-se compras por meio de catálogos, da Internet, por ofertas da televisão e chama- das telefônicas. As pessoas perderam o hábito de andar. Deslocam-se de um lugar para outro de trem, de metrô, deônibus, de carro. O ritmo e a velocidade se intensificaram. Os malls e os centros comerciais passaram a ocupar o lugar das lojas nos Passagen, que tanto encan- tavam Benjamin. Lojas de departamentos, como "Lê bonheur dês dames", de Zola, destruíram as pequenas lojas. Os McDonalds e os Pizza Huts liquidaram com os pequenos bistrôs e restaurantes mo- destos. Os arranha-céus de Montparnasse destruíram a intimidade do antido bairro de pintores onde Picasso trabalhou, depois de deixar Montmartre. "Lê vieux Paris nestplus, hélas!", já disse Baudelaire. m Passemos agora aos socialistas utópicos. Muitos deles são, ao mesmo tempo, planejadores de novos espaços urbanos e inventores de novos projetos para a sociedade. Platão, por exemplo, expôs suas idéias sobre reforma social através da descrição de uma cidade ideal. Ele evocou a lenda da Atlântida em dois de seus diálogos (Crítias e Jlmeu). Se a Atlântida era o modelo de Atenas e Atenas, o modelo da polis grega, esse modelo permeou muitos outros sonhos de uma sociedade perfeita. Basta lembrar a Utopia, de Tomás Morus, a Cidade do Sol, de Campanella, a Nova Atlântida, de Francis Bacon, e a Nova Harmonia, de Robert Owen. (Freitag, 2001) Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 17 O "Falanstério", de Charles Fourier (1772-1830), deve ser men- cionado, entre outras razões, porque um de seus sequazes, Jean-Bap- tiste André Godin (1817-1888) logrou transformar o projeto em realidade. Godin construiu, em Guise, no norte da França, o assim chamado Familistério, um "palácio social" que sobreviveu até 1985, quando foi convertido em museu a cargo da União Européia. Charles Fourier estava convencido de que, depois dos processos de urbanização e industrialização que se seguiram à Revolução Francesa, urgia proceder a uma renovação urbana e social. Sua fantasia de um "Falanstério"3 para camponeses, artesãos e operários, que integrasse trabalhadores e empresários, deveria funcionar como uma "falange", uma unidade de trabalho coletiva baseada no princípio da cooperação, e não no da competição. O "Falanstério" ou "Familistério" parecia um palácio real, como o de Vincennes ou o de Versalhes, mas cujo dia-a-dia estivesse organizado de acordo com o Panopticum de Bentham, ou a instituição total de Goffmann, ou ainda o modelo exposto por Foucault em " Surveiller et Punir" (1972). Lewis Mumford foi o primeiro soció- logo urbano a denunciar o caráter autoritário dos modelos utópicos. Os utopistas concebiam a sociedade como um mecanismo de relógio, no qual cada peça deve funcionar de modo preciso, sem conflitos, numa microssociedade previsível e controlada, em perfeita harmonia. Tais condições transformam a sociedade humana em comunidades de for- migas ou abelhas. Os projetos utópicos, do tipo do Familistério de Godin, introduzi- ram certo grau de autonomia. Esta seria a razão pela qual o Familis- tério, de Guise, sobreviveu e provou sua própria exeqüibilidade por quase um século. Entretanto, a derrocada e queda das sociedades socialistas na última década do século XX deveu-se, em parte, ao pressuposto mecanicista e autoritário inerente a todos os projetos utópicos. Sociedade alguma, em que tudo é passível de planejamento e controle, pode ser considerada ideal. Outro projeto utópico moderno tem demonstrado sua capacidade de sobrevivência: Brasília, a capital do Brasil. Em contraste com Shandig- har, a cidade indiana do Punjab planejada e realizada por Lê Corbusier, Brasília tornou-se um símbolo para a sociedade moderna e a vida citadina. O projeto urbano original de Lúcio Costa, fortemente influen- ciado por Lê Corbusier, foi mais bem-sucedido que Shandighar. Em- 18 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31,jan.-mar., 2002 bora críticos, como James Holston (1984) afirmem que Brasília não cumpri11 as promessas que fizera à sociedade brasileira e ao mundo, ela é uma cidade viva em que as pessoas têm prazer em morar. Temos de admitir, de modo geral, que a estratégia de planejar novas cidades na esperança de que elas hão de criar uma sociedade nova provou ser indefensável. As cidades são instituições sociais imersas num contexto social mais amplo. Novas cidades não substituem novas sociedades. Brasília não impediu a reprodução da pobreza, da injustiça e da exclusão. Esta crítica dos esquemas utópicos já fora feita por Marx e Engels e não perdeu nada de sua força nos dias que correm. IV A Escola de estudos urbanos de Chicago introduziu duas novas dimensões de análise: a perspectiva ecológica e a abordagem jornalística. R. Park, E. W. Burgess, L. Wirth, McKenzie foram os primeiros sociólogos urbanos que chamaram a atenção para a importância da base ecológica de nossas cidades, acentuando a necessidade de um equilíbrio saudável entre as áreas residenciais e o ambiente natural. Park, além disso, foi o primeiro autor a se valer do conceito de " áreas segregadas" e "bairros isolados", baseado em sua abordagem jornalística, ao descrever a vida urbana dos diferentes grupos e minorias que formam a população urbana. Burgess introduziu o diagrama de uma cidade grande ideal, tendo tomado Chicago por modelo. Discriminou ele, ao menos, cinco anéis internos concêntricos, começando pela zona central (I), a zona (II), um segundo anel, que contém o submundo, o gueto, Chinatown, a Pequena Sicília, quarteirões miseráveis, casas de cômodos, etc. Um terceiro anel (zona III) compreende "Deuts- chland", a segunda leva de imigrantes, casas para a classe operária, " áreas de dois apartamentos" ,4 um "Cinturão Negro", etc. O quarto anel ou zona inclui os bairros residenciais, hotéis, a assim chamada "área de luzes brilhantes",5 edifícios de apartamentos, casas de família. Por último, o anel externo (V, a zona dos que viajam entre casa e o trabalho6) foi designado como a seção dos bangalôs. A segregação, tal como estudada em Chicago, foi interpretada como conseqüência de fortes ondas migratórias de pessoas provenientes de todos os países do mundo, especialmente da Europa no período Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 19 compreendido entre as duas Guerras Mundiais. Ao ocuparem as áreas urbanas ao redor do centro de Chicago, os imigrantes não se mesclaram com outros grupos sociais, culturais e religiosos e, assim fazendo, segre- garam-se a si mesmos numa espécie de gueto (cf. Saint-Arnaud, 1997). Novas formas de análise, recentemente introduzidas em urbanis- mo e arquitetura, tais como a chamada análise sintática, sublinha os efeitos negativos dessas comunidades isoladas. A abordagem jornalística foi introduzida por Park. Sentava-se ele a uma mesa de bar, com imigrantes das mais diversas origens, e, enquanto bebiam cerveja, ia-se informando acerca do estilo de vida urbano que levavam, dos problemas relacionados com seu dia-a-dia e seu trabalho. Foi esta a matéria-prima de sua análise urbana empírica. Para dar prosseguimento a seus estudos, Park dirigiu-se a Berlim e a Estrasburgo, onde assistiu às aulas de Georg Simmel. Sua dissertação doutorai foi submetida ao filósofo neo- kantiano Wilhelm Windelband, em Heidelberg. Foi ele um dos primeiros jornalistas a tornar-se membro do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. Park defendia a necessidade de trabalhar empiricamente nas questões citadinas, utilizando técni- cas como entrevistas e questionários. No começo, as principais fontes de informação eram jornais e revistas ilustradas; mais tarde o rádio e reportagens filmadas acerca dos estilos de vida nas modernas cidades americanas tornaram-se modos privilegiados de coletar da- dos empíricos. Esta nova escola de sociologia urbana denunciou a violência e a injustiça presente nas grandes cidades, ao mesmo tempo que reconhecia os aspetos positivos dos novos centros urbanos, como conforto, água, eletricidade, diversões e acesso à informação. Cabe recordar que a literatura, em particular os assim chamados romancesurbanos, tem-se dedicado a narrar a vida urbana desde o século XIX. Os livros clássicos de Victor Hugo, Balzac, Zola, Dickens, Dõblin e muitos outros informam-nos a respeito da vida nas cidades indus- triais melhor até do que os estudos sistemáticos empreendidos por Marx e Engels. Mas, na realidade, foi Park e seu grupo que introdu- ziram a análise da vida urbana através da mídia. Esta abordagem mediática apresenta dois problemas maiores. O primeiro é que somente os aspetos da vida urbana apreendidos pela mídia são incluídos na análise. O que quer que seja omitido ou 20 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 esquecido pela mídia será tratado como algo que não ocorreu. Em segundo lugar, a abordagem de Park pode ser distorcida por um preconceito "antropológico" que leve a atribuir valor intrínseco a culturas e subculturas, bandos e tribos. Se essas subculturas são compostas de grupos clandestinos ou terroristas, não integrados no mais amplo sistema de valores da cidade oficial, eles podem agir contra os interesses da sociedade mais largamente considerada, for- mando um Estado dentro do Estado. Exemplos: as máfias da droga, os cabeças-raspadas, e os grupos de jovens fascistas ou neonazistas. Concluindo, podemos dizer que a Escola de estudos urbanos de Chicago, apesar de ter uma perspectiva mais vasta e melhor metodo- logia do que muitos de seus predecessores, não oferece processos confiáveis para explicar as recentes mudanças urbanas e societárias. Duas novas abordagens que sobrepujam os limites das teorias precedentes I Recentemente Ronald Daus (1943- ), da Universidade Livre de Berlim, introduziu pelo menos duas inovações na área da sociologia urbana. Em primeiro lugar, ele focaliza cidades extra-européias, sobre- tudo do hemisfério sul, realçando, assim, problemas geralmente negli- genciados pela perspectiva etnocêntrica dos analistas do primeiro mun- do. Ocupando-se de cidades quase sempre edificadas por poderes coloniais, sua abordagem volta-se para a vida das ruas e não para os interesses das velhas elites e oligarquias que sucederam o antigo gover- no colonial. Em segundo lugar, a fim de escrever uma espécie de etnografia das cidades negligenciadas, ele teve de diversificar suas fontes e utilizar documentos não-convencionais. Seus materiais in- cluem fotografias, filmes, programas de televisão, estatísticas e relató- rios oficiais (Banco Mundial, Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional). Os materiais de Daus incluem também ficção científica, literatura, poesia, diários íntimos, murais, pinturas, plásticos,7 jornais, entrevistas, programas políticos, histórias ern quadrinhos, pornografia (fotografias, literatura e filmes), aulas , Rio de Janeiro, 148: 13/3 1, jan.-mar., 2002 21 universitárias e discussões. Suas fontes são completadas por infor- mações coligidas em viagens a diversos países e cidades, observação participante, conversas com amigos e colegas, leituras de livros científicos e estudos. Nada é posto de lado, tudo provou ser útil no retratar a vida citadina. Servindo-se deste material colhido ao acaso, ele compôs uma espécie de colagem, uma colcha-de-retalhos que incorpora os aspectos urbanos que não se enquadram nos diversos modelos teóricos discutidos neste ensaio. Sem negar forte influência européia, sua trilogia aborda, no primeiro volume, O Fundamento Europeu (1995) e busca entender o funciona- mento das cidades coloniais concebidas como instrumentos de domi- nação e exploração em benefício das metrópoles européias. No segundo volume, País em Construção (1997),8 as cidades se tornam centros da consciência e do sentimento nacional, dando origem à idéia de liberdade © autonomia. A antiga cidade colonial é investida de nova importância e toma-se a nova capital de um país independente. No terceiro volume, Vida, Prazer e Sofrimento (1999), Daus assinala a riqueza dos novos estilos de vida que emergiram desse passado colonial, cheios de contra- dições e caracterizado por uma fusio de culturas, raças e ideologias. •Daus dedica sua atenção principalmente a cidades situadas na América Latina, na África e na Ásia, como a Cidade do México, Havana, Lima, Buenos Aires, Sio Paulo, Rio de Janeiro, Bombaim, Deli, Calcutá, Bangladesh, Xangai, Dacar, Lagos e Luanda, Daus chega a um resultado surpreendente: essas cidades extra-eu- ropéias podem dar lições a suas antigas metrópoles. Seus habitantes suo mais criativos, têm mais iniciativa, dlo provas dê maior tolerân- cia cultural e religiosa, têm maior flexibilidade para enfrentar pro- blemas inesperados, desenvolvem melhores formas de sustentabili- dade, superam as erises políticas e econômicas mais facilmente e, no Primeiro Mundo. E bem verdade que essas eidades novas têm de enfrentar maior pobreia, menos demoerteia, mais poluiçlo, maiores este fenômeno em breve se estenderá a eidades do Primeiro Mundo, nas quais a tendência à exelusão e à pobreia também estão presentes, Daus acrescenta quê os habitantes d© eidades nlo=©uropéias exibem 22 Revista 1B, Rio de Janeiro, 148:13/31, jan.-mar,, 2002 maior vitalidade, são mais inclinados ao prazer (futebol, carnaval, sexo, etc) e, de modo geral, são mais felizes que os habitantes das cidades européias. A expectativa de vida deles e o nível de segurança podem ser mais baixos, mas a pirâmide demográfica é mais equili- brada que suas contrapartes européias. Neste ponto, como é tão comum acontecer com observadores europeus, Daus idealiza as condições de vida nas cidades do Terceiro Mundo. Mas ele tem um conhecimento profundo e sofisticado das cidades que discute. De maneira própria e original, Daus segue a trilha aberta por Robert Park. Também se inspira no método de Benjamin, ao criar uma tipologia dos moradores da cidade, como o vagabundo, o mendigo, a prostituta, o dândi, o esnobe, a estrela de cinema, o político, o especialista, o funcionário público internacional, o turista, o traficante de drogas. O contrabandista, o proprietário de hotel e o menino que vive nas ruas. Uma vez que seus estudos abrangera pelo menos metade do globo, podemos dizer que Daus oferece uma visão globalizada de todas as cidades excluídas da economia global, II Á noção de " cidade global" foi trazida à baila pela primeira vez por SasMa Sassen. Em seu primeiro livro acerca do assunto, Á Cidade Global (1991), da analisa Nova Iorque, Londres e Tóquio como exem- plos de eidades que, nas duas últimas décadas, atingiram a condiçSo de cidades globais. Subseqüentemente, ela incluiu nesta categoria outras cidades, como Miami, Toronto, Sidney, conforme assinala no livro seguinte, Cidadis numa Economia Global (1994). Em certas circuns- tâncias, Sassen também admite que Hong Kong, Los Angeles, Zurique, Frankfurt, a Cidade do México e S8o Paulo podem ser incluídas na categoria de cidades globais, visto que atendem aos pré-requisitos de certas transações econômicas transnacionais. Á fim d© melhor entender Segundo ela, "cidades globais slo lugares-ehaves para os serviços avançados © as instalações de telecomunicações necessários à imple- mentação © condução d©, op©raçõ©s econômicas globais, Elas tendem Revista TB, Rio de Janeiro, 148; 13/31, jan,-mar., 2002 Depois da Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, nas duas ou três últimas décadas do século XX, ocorreram importantes transformações na economia mundial. A África e a América Latina perderam seus vínculos, até então vigorosos, com o mercado mundial de produtos primários e matérias-primas. O Investimento Exterior Direto em serviços sofreu aumento impressionante. O papel desem- penhado pelos mercados financeiros internacionais foi realçado. O quadro institucional estabelecido pelos acordos de Bretton Woods (1947-1948) começou a desfazer-se (cf. 1994, pp. 27-8). Esses realinhamentos acarretaram profunda reestruturação na hie- rarquia de todas as cidades do mundo e tambémna rede de cidades existente num único e mesmo país. Surgiram novas desigualdades entre as cidades. Os países e sua importância dentro de redes econô- micas e comerciais tradicionais perderam sua posição privilegiada. A importância dos estados nacionais começou a encolher e certas "cidades globais" tornaram-se mais importantes, na paisagem glo- balizada, do que países inteiros. Uma nova combinação de dispersão espacial e integração global criou novos papéis estratégicos para cidades como Nova Iorque, Londres e Tóquio. " Além de sua longa história como centros de comércio internacional e atividades bancárias, essas cidades funcionam agora de quatro manei- ras novas: primeiro, como centros de comando altamente concentrados na organização da economia mundial; segundo, como locais-chaves para as finanças e firmas especializadas em serviços, que substituíram as manufaturas na posição de setores econômicos principais; terceiro, como lugares de produção, nisto se incluindo a produção de inovações nas indústrias líderes; quarto, como mercados para os produtos e inovações produzidas". (1991, pp. 3-4) Em seus dois livros mais recentes, Saskia Sassen tenta responder satisfatoriamente a várias perguntas, como: (a) Que papel as cidades mais importantes realmente desempenham na organização e condu- ção da economia mundial? (b) Por acaso a consolidação da economia mundial afetou a ordem econômica, política e social nas cidades mais importantes, a ponto de devermos ficar preocupados com a sustenta- bilidade delas ? (c) De que modo a especificidade histórica, política, econômica e social de determinada cidade (Paris, por exemplo) resiste à sua incorporação na economia mundial? (d) Por acaso a 24 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 relação entre o Estado e a cidade muda, ao ocorrer forte articulação entre a cidade e a economia mundial e, em caso afirmativo, de que modo se dá tal mudança? A fim de responder a essas perguntas, temos de dividir as cidades mundiais por diferentes categorias ou criar novas tipologias, no sentido que Max Weber dá à palavra. Ainda que não o faça explici- tamente, Saskia Sassen permite-nos distinguir pelo menos cinco diferentes tipos de cidades: (1) cidades globais; (2) megalópoles; (3) metrópoles; (4) cidades periféricas, (5) cidades-dormitórios. 1) As cidades globais são os novos pilares da era informacional, no sentido dado a este conceito por Manuel Castells (1995-1999). Elas fornecem plenamente a infra-estrutura requerida pela economia mundial para a realização de transações internacionais. Isto inclui bons aeroportos, hotéis, telecomunicações, mídia, Internet, rede ban- cária, segurança, bolsa de valores, etc. As cidades globais têm significativo número de pessoas qualificadas e eficientes, capazes de fornecer e produzir todos os serviços necessários. São mercados capazes de absorver e reciclar todos os fluxos e transações financei- ras. Exemplos: Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Los Angeles, Toronto, Sidney, Zurique, Frankfurt. É importante lembrar que essa hierarquia pode mudar muito depressa sob condições econômicas em constante mudança. A posição de Nova Iorque pode ter mudado depois dos ataques terroristas. 2) As megalópoles são definidas, essencialmente, pelo número de seus habitantes, isto é, em geral mais de 10 milhões de pessoas. O número de cidades, nessa categoria, aumentou nas duas ou três últimas décadas. Essa explosão urbana causou sérios problemas: falta de em- prego, de habitação, de transportes, de escolas, de serviços de saúde, etc. O excesso de população dessas cidades acarretou o aumento da violência e do consumo de drogas em relação às cidades menores. Nelas coexistem riqueza e pobreza, arranha-céus e barracos. Exemplos: Bo- gotá, Lima, Rio de Janeiro, Bombaim, etc. 3) As metrópoles são velhas cidades com longa história e impor- tante tradição econômica, política e cultural, que se mostraram capazes de adaptar-se à modernização e à nova economia mundial sem perderem sua especificidade e dignidade como sítios culturais. Elas são bem conhecidas e preservam sua aura de antigas capitais. São cidades Avista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 25 grandes, com número significativo de habitantes, bons aeroportos, sistemas de transportes, hotéis, instalações e autonomia política. Mas não estão dispostas a serem transformadas em meros instrumentos da economia global, ainda que sejam capazes de desempenhar todas as funções esperadas de uma cidade global. O turismo representa importante fonte de renda para seus moradores. Tal é o caso de Paris, Roma, Berlim, Munique, Madri, Viena, Lisboa, Atenas, Praga, Bu- dapeste, para só mencionar algumas das metrópoles ocidentais mais conhecidas. 4) Cidades periféricas são todas as cidades que se tornaram secundárias ou mesmo marginais, do ponto de vista da economia, geografia ou cultura. Em tempos idos, essas cidades terão contribuído para o progresso da civilização, mas, nos dias que correm, perderam sua importância e prestígio. Algumas delas podem até ser conside- radas decadentes, incapazes de restabelecer sua vineulação à rede mundial das cidades mais importantes. Exemplos: Marselha, Glas- gow, Porto, Sevilha, Bucarest. 5) Cidades-satélites e/ou cidades-dormitôríos são sítios urbanos desprovidos de autonomia. Carecem de outras cidades vizinhas como locais de trabalho, de entretenimento e de participação política. Também elas são secundárias, mas têm contribuição estratégica a dar, quando podem fornecer parte da mão-de-obra requerida por manu- faturas e serviços. É o caso de Potsdam, perto de Berlim; de Campi- nas, Osaseo e do assim chamado ABC (Santo André, São Bernardo a Frankfurt, © assim por diante. Como acontece com todas as demais tipologias, é mais fácil encontrar uma mistura d© todos os cinco tipos ou diferentes combi- naçQes de dois ou três deles, do qu© um caso "puro". É isto qu© explica por quê a Cidad© do México © São Paulo pod©m s©r classifi- cadas, ao mesmo tempo, como m©galópol©§ © cidades globais. Mas, m©smo qu© Paris ou Berlim tenham algumas das características das cidades globais, o fato é qu© são predominantemente metrópoles. Importa t&mblm ter ©m ment© qu© a classificação é fl©xív©l. Uma eidad© quê hoj© s© enquadra b©m ©m determinada categoria, amanhã pod©rá vir a fasgr part© d© outra, como foi o caso dê Marselha, do Porto ou d© Bue&rtst©, Revistara, Ri© dê Janeiro, 148: 13/31,jan,-mar,, 2002 Não podemos esquecer que, não apenas as cidades, mas também a área, a paisagem e a região onde estão situadas desenvolvem-se, mudam e declinam. Não é, pois, de surpreender que a posição ou classificação mude, mesmo que mudança alguma tenha ocorrido no interior da cidade. Basta pensar no que sucedeu a Bonn após Berlim ter voltado a ser a capitai da Alemanha. A análise de Saskia Sassen dá a impressão de que as cidades são arremessadas, ao mesmo tempo, como bolas num jogo de loteria. A combinação daí resultante decorre de princípios estatísticos de pro- babilidades, que escapam ao nosso controle. Depois deste esclarecimento, estaremos capacitados a dar algumas respostas as perguntas introdutórias de Sassen. a) Entre todos os cinco tipos de cidades introduzidos pela tipologia de Sassen, o mais importante para a economia mundial globalizada é a cidade global. Nova Iorque, Londres, Tóquio, Miami, Toronto, Sidney são indispensáveis para as transações econômicas internacio- nais. Todas essas cidades globais dão contribuição vital à circulação do capital financeiro ao redor do globo. Elas ocupam posição central no sistema capitalista mundial chegado à fase de globalização. Se uma dessas cidades for paralisada, como quase sucedeu a Nova Iorque, em conseqüência dos ataques contra o WTC, o sistema inteiro Nenhum dos demais tipos de cidades é tão estratégico. Sua impor- tância para o mercado financeiro mundial decresce gradativamente,quando descemos na escala de metrópoles a cidades-satélites. Com megalópoles, como São Paulo ou a Cidad© do México, os problemas slo diferentes: por um lado, sua infra-estrutura qualifica-as para o cos, econômicos © políticos geram demasiados riscos para o fluxo d© capitais, como ©stá atualmente acontecendo a Bu©nos Air@s, outrora çto da sociedade industrial ©m sociedade infomaeional ê o fato d© se ter passado a atribuir maior importância à informação do qu© àproduçSo determinaram mudanças estruturais profundas, qu© afetam a oei©dad©s, suas estratégias relativas à força d© traba- estruturas d© pod©r do Estado ©, aeimi d© tudo, a posiçio ©lho, , Rio dê Janeiro, 148; 13/31, jan.=mar., 2002 hierarquia das cidades contemporâneas. Algumas delas têm qualifica- ções para ocuparem a mais alta posição em poder e finanças, como Nova Iorque, Londres e Tóquio. Como sabemos, outras perderam a impor- tância de que gozavam. Localidades totalmente secundárias, como Silicon Valley, surgem, de súbito, como importantes zonas financeiras, tecnológicas e informacionais. Como Sassen admite, metrópoles euro- péias como Paris, Madri, Berlim, Viena e Moscou não sofreram qual- quer abalo na posição de prestígio histórico que adquiriram ao longo dos séculos. Inevitavelmente há vencedores e perdedores, e não é fácil prever quem ganhará e quem perderá nas próximas décadas, quem terá sucesso e quem não terá. Algumas das cidades mais tradicionais, como as capitais do mundo árabe, parecem felizes em não se envolverem num certame cujos resultados são imprevisíveis. c) As tradições econômicas, políticas e culturais das cidades até aqui não tocadas pela economia global podem ser estudadas particularmente bem, no caso de Lisboa (v. Freitag, 1999). Como se sabe, Lisboa sobreviveu como uma pequena e pitoresca metrópole em Portugal, mantendo-se afastada das duas Guerras Mundiais e permanecendo como a metrópole algo decadente de um império colonial em declínio. A partir da década de setenta, Lisboa foi inundada por gente que retornava das antigas colônias. A redemocratização de Portugal tornou- se mais fácil graças à generosa ajuda da União Européia. Reformas tecnológicas, modernização dos sistemas de transportes e telecomuni- cações e ambiciosos projetos urbanos (construiu-se uma segunda ponte sobre o Tejo e recuperaram-se áreas portuárias decadentes para a Expo-98) mudaram a encantadora capital de onde Vasco da Gama e Cabral partiram para descobrir o caminho das índias e o Brasil. Lisboa já não é a graciosa metrópole que Tanner e Wim Wenders se compra- ziam em mostrar nos seus filmes. Ela mudou de rosto em resposta às tendências mutantes da economia mundial e da era informacional. As mudanças econômicas e políticas no contexto mundial inevitavelmente afetam a estrutura interna e a dinâmica das cidades menores. d) Enfim, para terminar, examinemos a última questão, a respeito da relação entre as cidades globais e a estrutura de poder do estado. Neste ponto, Sassen adota posição semelhante à defendida por Ma- nuel Castells. Admitem ambos que o encolhimento do Estado nacio- nal é inevitável. Em contraste, as cidades, especialmente as cidades 28 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 globais, crescem em importância. Mas isto não significa o fim do Estado, o seu "minguar progressivo", no dizer de Marx. Sassen argumenta que o estado é responsável pela organização e superinten- dência do planejamento e da renovação das cidades, de tal sorte que determinadas cidades possam ascender ao patamar de cidades glo- bais, aptas a competir com suas irmãs na rede mundial de cidades requeridas pela economia global. Michael Peter Smith (2001) em seu último livro, Urbanismo Transnacional: Localizando a Globaliza- ção, critica o preconceito econômico de Castell e a argumentação de Sassen. No seu entender, os argumentos culturais, sociais e antropo- lógicos devem ter prioridade na construção de teorias da cidade e tipologias da cidade. (V. também Douglas & Friedmann, 1998). Conclusão Este estudo não é uma elegia por Tróia destruída ou pela Atlântida submersa, mas também não é um hino de boas-vindas ao Admirável Mundo Novo das cidades globais. As cidades não são apenas "Sitze dês Geldes", o lugar do dinheiro, na terminologia de Georg Simmel, mas capítulos na longa marcha da civilização, ecos de memórias que não se devem perder. Acima de tudo, foram elas e continuam a ser o lar de incontáveis seres humanos. Nas atuais condições, a maioria deles vive em extrema pobreza, em cidades periféricas e marginais. Essas pessoas não têm importância, do ponto de vista econômico. Elas são supérfluas, do ponto de vista da racionalidade global. Mas é somente em benefício delas que as atuais sugestões de rever nossas imagens de cidades ("Stadtbil- der") e conceitos urbanos merecem ser levadas em consideração. Notas: Na verdade, o que Baudelaire disse é diferente e melhor: Lê vieux Paris nestplus (Ia forme dune ville\Change plus vite, hélas! que lê coeur dun mortet). Em português: "A velha Paris já não existe (a forma de uma cidadeIMuda mais depressa, ai de mim, que o coração de um mortal". Estes versos se encontram na segunda estrofe do poema "Lê Cygne", de Lês Fleurs du Mal. (N. do T.) Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 13/31, jan.-mar., 2002 29 2 Assim no original. Charles Fourier morreu em 1837. (N. do T.) 3 Em francês, Phalanstère, neologismo cunhado pelo próprio Fourier, a partir de phalange (falange) e a terminação de monastère (mosteiro). (N. do T.) 4 Em inglês, twoflat áreas. (N. do T.) 5 Em inglês, bright light área. (N. do T.) Em inglês, commuters zone. (N. do T.) 7 A palavra plastic, em inglês, é uma designação corrente de cartão de crédito. O contexto não permite dizer se é disto ou de alguma outra coisa que se trata aqui. (N. do T.) 8 Em inglês, Nation Building. A expressão, usual naquele idioma, soaria esdrúxula (quer-nos parecer), se traduzida literalmente em nossa língua, Construção de País. Daí a solução aqui adotada, País em Construção. (N. do T.) 9 Esta palavra, que traduz o inglês sustainability, está sendo empregada no sentido específico de "capacidade de manter o equilíbrio ecológico mediante o cuidado em evitar a exaustão dos recursos naturais". (N. do T.) 10 V. a nota 9. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Das Passagenwerk. Gesammelte Scriften, vol. V (Rolf Tiedermann, edit). Frankfurt/Main: Suhrkamp-Verlag, 1982. CALVINO, ítalo. Lê cütà invisibili. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1972. DOUGLAS, Mike & FRIEMANN, John (edits). Citiesfor Citizens: Planning and the Rise of Civil Society in a Global Age. 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A modernidade foi também a época em que se desenvolveu a noção, e depois o culto, do gênio; do gênio "universal" de um Leonardo, e, depois, do gênio artístico como aquele no qual, e através do qual, "a natureza dá a regra à arte". As duas imagens do gênio - a mente capaz de um saber universal, que já era o sonho da metafísica de Aristóteles, e o talento "inato" do grande artista - parecem distantes entre si, mas talvez ambas expressem a consciência moderna da extensão indominável das possibilidades da ciência e também da arte. É como se, à medida que a modernidade avançava, fosse também reduzida a distância entre as duas concepções do gênio: o gênio da nossa época é alguém que sabe tudo só na medida em que outro lhe dá a regra, não mais a natureza, talvez, mas a calculadora, a rede em que circula. O saber universal não é sabido, simultânea e articuladamente, por ninguém, por ne- nhum sujeito finito, mesmo que dotado de talento. Nessa transformação moderna do " sujeito" do saber são mormen- e características as pesquisas sempre renovadas de " artes da memó- Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 33 ria" (de Bruno a Pietro Ramo...), a nostalgia romântica (e marxista) de uma sociedade em que os indivíduos não estivessem atados à corrente da divisão social do trabalho (manhã pescador, noite violi- nista...), o grande projeto kantiano de reconduzir o saber a condições a priorí na razão, renovado, já com certo pessimismo, pelo Husserl da Crise das ciências européias. Hoje, semelhantes projetos teóricos, em outra época mais ou menos reservados ao mundo dos doutos, configuram-se também, e legitimamente, como programas políticos. A União Européia fala explicitamente de uma " sociedade do conhecimento" como horizon- te diretivo das suas políticas comunitárias de instrução, divulgação, educação continuada: também, e sobretudo, como se compreende, com o propósito de vencer os desafios do mercado global, que exige uma capacidade disseminada de utilização dos novos meios produ- zidos pelas novas tecnologias. É preciso que se organize a efetiva "reciclagem" de grandes massas de trabalhadores da indústria, que devem adquirir novas especializações para não serem excluídos na metade da vida, ou pouco depois, do "mercado de trabalho". E é preciso que áreas nacionais ou supranacio- nais, neste caso a Europa unida, tornem-se capazes de produzir autono- mamente as inovações científico-tecnológicas que lhes permitam não sucumbir na competição econômica mundial. Escopos sacrossantos, nos quais todos como cidadãos estamos interessados. Da realização de semelhantes metas depende, não só a nossa riqueza material, mas também, por exemplo, o nosso destino de corpos viventes que têm necessidade de dispor de novos fármacos para afastar a ameaça- sempre menos "natural"-damorte. A consciência filosófica (não de todas as filosofias) acerca do caráter essencialmente "técnico" da ciência moderna não poderia ter uma confirmação mais explícita e indubitável: quando falamos de sociedade do conhecimento, falamos, em realidade, de uma sociedade do saber tecnológico difuso e, por isto, mais rica de possibilidades "produtivas". Se essas observações são tidas em conta, nasce pelo menos uma dúvida sobre o significado a ser atribuído ao termo "sociedade do conhecimento". Resulta, de fato, drasticamente limitado o implícito sentido eulógico,2 conotado de valores positivos, que a expressão imediatamente transmite. 34 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 O conhecer (entenda-se: a verdade, a ordem das coisas, em última nipótese Deus como supremo "objeto" da contemplação beatífíca) sempre foi, na nossa tradição, sinônimo da atividade mais digna e gratificante do homem. Todavia, se j á não antes, certamente pelo menos em Kant, a filosofia entendeu e teorizou a diferença entre conhecer e pensar. A esta diferença reporta-se evidentemente, também no século XX, um filósofo como Heidegger, quando pronuncia a escandalosa afirmação segundo a qual" a ciência não pensa", que lhe atraiu muitas críticas, principalmente por parte de pessoas que nunca sonhariam em colocar em dúvida, ao contrário, a palavra de Kant. Bem, em Kant o númeno, o ser "pensado" é o ser-em-si do mundo, do qual não podemos saber e conhecer nada, visto que o nosso conhecimento, aquele sobre o qual se funda o saber, é limitado ao fenômeno, àquilo que se mostra. As atividades "superiores", se as queremos chamar assim, da razão humana se exercitam todas para além do mundo do fenômeno, a começar pelo uso prático da razão, que é caracterizado por uma capacidade de iniciativa não determinada casualmente pela cadeia dos fenômenos, para terminar na contemplação estética que nada diz a respeito de como estão as coisas, mas se coloca no âmbito de um livre jogo da faculdade do sujeito, aqui entendido evidentemente como alguma coisa de numênico. Em geral, os intérpretes de Kant são unânimes - pelo menos eu creio - em reconhecer que o mérito da sua crítica foi, certamente, o de esclarecer os fundamentos do conhecimento; mas também, e talvez sobretudo, o de limitar o terreno do conhecer científico, deixando-o fora, sem condená-lo ao arbítrio e à irracionalidade; o mundo da liberdade, dos valores, da experiência religiosa, em múl- tiplos sentidos, só pode ser o "mundo", ou não-mundo, do númeno. O título desta intervenção poderia, talvez, ser reformulado, neste ponto, como: sociedade do conhecimento ou sociedade do pensa- mento? Mas, se depois nos perguntamos um pouco mais especifica- mente o que caracterizaria, nessa distinção de origem kantiana, mesmo se não literalmente referível nos seus textos, o pensamento eni relação ao conhecimento, não tardaremos a encontrar aquilo que me propus a indicar com a palavra loisir. Ou talvez também "jogo", que novamente evoca o Kant estético, e ainda a hermenêutica de Hans Georg Gadamer. Nessa acepção, jogo nos permite apreender pelo Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 35 menos duas importantes características do pensar enquanto não redutível ao conhecer: a liberdade e o envolvimento emotivo. Por- tanto, dois elementos que não é errado reportar também ao loisir. Observar que esse modo de caracterizar o pensamento o reduz à frivolidade dos comportamentos lúdicos e o faz perder o elemento de seriedade, significa ser ainda prisioneiro da idéia de que a atividade suprema do homem é o conhecer, que só pode ser a atividade suprema se é contemplação de uma ordem divina na qual ver como as coisas autenticamente estão significa também gozar da beatitude eterna. Spinoza pensava assim: amor dos intellectualis. E nós? A luta que o pensamento moderno, certamente também com Kant, mas depois, muito mais radicalmente com Heidegger, conduziu contra a metafísica tem o seu motivo exatamente na recusa de se imaginar o sentido da existência como expressão de uma verdade dada como definitiva, que se trata só de registrar e respeitar - dos procedimentos técnicos às escolhas morais. O pensamento como jogo e loisir não está certamente desvinculado da atividade cognitiva, mas a ela se liga como ensinaram Kant e depois Heidegger: é o partilhar, já-sempredado com a nossa existência histó- rica, de um horizonte no qual a experiência dos fenômenos e o conhecer científico nos tornam possíveis. Visto que não é - nem em Kant e menos ainda em Heidegger - um conhecimento preliminar, mas é, principal- mente, uma "disposição" histórica da nossa razão, essa partilha tem as marcas do vivido que, enquanto não determinado por um dado fenomê- nico, é também essencial espontaneidade. Por isso, jogo é expressão de liberdade; portanto uma forma de prazer, que é descrito no modo mais icastico pelo Kant da Crítica do juízo, onde o prazer estético que nos provoca a contemplação da obra de arte é o prazer de sentirmo-nos capazes de partilhar com outros a nossa experiência, uma espécie de sentimento de comunidade (em Kant: comunicabilidade pura, para além de cada conteúdo específico). A contemplação de Deus na teologia e na mística cristã nunca teve efetivamente o sentido "cognitivo" do geometrismo de Spinoza; a própria beatitude foi freqüentemente descrita como um banquete, um estar-junto conversando, que a tradição cristã também chamou ágape - algo não muito diferente do amor em todos os seus sentidos. Não pretendo, naturalmente, insistir sobre esse lado místico da minha exposição, e mesmo a evocação a Kant tem, antes de tudo, o sentido de 36 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 buscar uma legitimação para a tese " escandalosa" que sei estar propondo. Tá que um certo escândalo não pode deixar de surgir quando se passe das (inócuas?) considerações filosóficas sobre pensar e conhecer para uma tentativa de extrair delas conseqüências de tipo prático, social e político. O que deveremos ensinar na escola? O j ogo no lugar da rígida disciplina da aprendizagem de conhecimentos que são cada vez mais indispensáveis à nossa vida individual e associada? O fato é que, com o conhecimento e a sua difusão, acontece um pouco aquilo que ocorre com o conceito de "desenvolvimento", ao qual cada vez mais, hoje, se associa o termo "sustentável". Vem à mente aqui, de imediato, uma frase de Nietzsche: Tudo depende de quanta verdade se está disposto a suportar (ou algo parecido), que naturalmente nele tinha sentido diverso, mas que definiti- vamente poderia não estar assim tão distante do nosso argumento. Analogamente à questão do desenvolvimento, o problema social do conhecimento é cada vez mais aquele dos seus limites " naturais". Pensemos, por exemplo, na quantidade de informação que é distri- buída cotidianamente pelos jornais e meios de comunicação de massa. Quem procura manter-se "atualizado" - por exemplo, a categoria dos ensaístas, dos políticos, dos críticos da sociedade à qual muitos de nós pertencemos - encontra-se hoje muito freqüentemente numa condição de saturação; deve recorrer a colaboradores ou a "motores de pesquisa" que lhes forneçam uma pré-seleção do mate- rial que, no final, procurará ler diretamente. Afortunadamente (ou desafortunadamente), o público médio não lê e não ouve tudo, ou não se preocupa, de fato, com a inteireza da própria informação; tem mais o que fazer. E isso torna-se também um problema para o funcionamento da democracia, como é bastante óbvio. No tema democracia, outro aspecto relevante do problema do conhe- cimento é o que se reflete sobre as sempre mais freqüentes decisões públicas que implicam saberes especializados. Se há um referendum sobre o problema das instalações nucleares, por exemplo, aqueles que são chamados a votar têm suficiente conhecimento de física para poder decidir com fundamento? Para saber do que se trata, os votantes deveriam ser pequenos Leonardos da Vinci, e obviamente não o são. Pode-se imaginar uma sociedade do conhecimento na qual, como no caso do "desenvolvimento", se realiza progressivamente uma con- dição de "leonardismo" generalizado? Mas se não, então o quê? Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 37 Neste ponto, a distinção entre pensar e conhecer, entre saber e fruir, impõe-se em toda sua possível atualidade. Não pode, certamente, induzir-nos a um apressado abandono do ideal do conhecer e da promoção da ciência, como alguém suspeita, quando, a partir da filoso- fia, se insiste sobre esse tema; mas pelo menos a uma inderrogável redefinição do significado social do conhecer. Não é por acaso que a sociedade na qual matura a crise do ideal do desenvolvimento quanti- tativo do conhecimento seja também a sociedade da informática. Um afortunado livro de Hubert Dreyfus, de há alguns anos, tinha como título What computers can't do, ou seja Aquilo que os computadores não sabem fazer. Oferece uma espécie de versão atualizada da famosa disputa sobre Natur e Geisteswissenschaften do fim do Oitocentos. Naturalmente, há coisas que os computadores não sabem fazer, mas devemos cada vez mais prestar atenção àquilo que sabem fazer, e servirmo-nos no modo mais eficaz. Não se trata somente, em suma, de reivindicar o irredutível caráter humano da vida da mente, mas de reconhecer e promover afirmativamente a possibilidade de reduzir ao não-humano uma quantidade de atividades que, no passado, ocupavam e oprimiam o lado propriamente humano da nossa vida. Poderemos lembrar aqui muitos estudos sobre o hábito como forma de liberar a atividade consciente das preocupações banais. Ou, também, posições como as de Schiller e do idealismo alemão contra o moralismo kantiano. A moralidade não é ameaçada pelo hábito de se praticar o bem; ao contrário, resulta enriquecida a civilização. Uma sociedade do conhecimento é uma sociedade na qual, como no caso dos bons hábitos que nos fazem praticar o bem sem refletir, o conhecimento está "disponível", nas redes, no sistema das memórias artificiais, e " funciona" mesmo que não exista em nenhuma parte - talvez nem acreditasse nisso verdadeiramente Hegel, que falava justamente também de " espírito objetivo" - um sujeito " absoluto" capaz de possuir, segundo o modo da concepção clássica do saber, todos os conhecimentos. Preciso dizer que não sei bem, por ora, até onde conduz a estrada em que me proponho a entrar. Sei que comporta riscos, mas estou conven- cido (não posso dizer que sei, me contradiria) de que não há alternativas. Promover uma sociedade do conhecimento como mundo no qual todos saberão amanhã decidir com conhecimento de causa os mais variados problemas da vida associada, que cada vez mais comportam o domínio 38 Revista TB, Rio de Janeiro, 148: 33/40, jan.-mar., 2002 He noções especializadas, parece-me umamistificação ideológica que revela somente a incapacidade de repeasar o próprio conceito de conhecimento. Hoje já acontece com mais freqüência que, quando se trata de decisões que implicam o domínio de semelhantes noções, nos entregamos a especialistas nue estimamos e nos quais confiamos por uma série de razões que não têm relação direta com a avaliação (da qual não seremos capazes) da sua compe- tência específica Os pares de conceitos aqui abordados se desenvolvem sempre a partir da distinção entre peasar e conhecer, e chegam, por exemplo, àquela entre técnica e política, entre economia e ética, entre "amizade" e "verdade" (contra o dito tradicional "amigo Platão, mas mais amiga a verdade"), não estaremos aqui numa situação simetricamente oposta? A verdade que reconheço e posso reconhecer, em muitos campos "especializados", é somente aquela que me é dita por quem sinto "já" como amigo. É em relação a observações como essas que se torna menos escandaloso falar de uma sociedade do loisir e do jogo como a única possibilidade de representação do ideal de uma socie- dade do conhecimento. Tendo em consideração os elementos do conceito de jogo sobre o qual chamei a atenção anteriormente: aqueles do "compartilhamen- to" e da espontaneidade, portanto também do envolvimento afetivo. Concretamente, significa que, no nosso futuro, há um saber que ninguém individualmente será capaz de possuir; isto é, cada vez mais em
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