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0 CADERNO: “Culturas Indígenas”. Curso – O Jogo da Onça e outras brincadeiras indígenas. 1 SUMÁRIO 1. A DIVERSIDADE DOS POVOS INDÍGENAS..................................................02 Onça, Jaguar, Ming, Ponan mesmo animal para diferentes aldeias Índio: uma generalização impossível Mapa da população indígena nos municípios 2010 Quadro de povos/etnias Visões estereotipadas sobre indígenas Auto declaração 2. A ONÇA EM COSMOVISÕES INDÍGENAS.....................................................10 A onça na floresta tropical brasileira A onça na cosmogia Guarani: vencer o jaguar para tornar o mundo habitável A onça na cosmogonia Kaingang: metades clânicas 3. A RELAÇÃO ENTRE POVOS INDÍGENAS , MEIO AMBIENTE E OS ANIMAIS...........................................................................................................17 Natureza e Cultura Relação entre Povos indígenas, meio ambiente e os animais Os “enfeites da terra” em uma terra devastada 4. AS CULTURAS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR ...........................23 Educação indígena, Educação Escolar Indígena ou Educação sobre os indígenas. Educação Escolar indígena: da dominação à emancipação. Histórias e Culturas indígenas nas escolas não indígena. Como (não) abordar acerca dos indígenas nas aulas? 5. JOGOS E BRINCADEIRAS NAS CULTURAS INDÍGENAS...........................24 O sentido do brincar Passado, presente e futuro do brincar Jogos e brincadeiras indígenas: Ensaio de um Estado da Arte 2 1. DIVERSIDADE DOS POVOS INDÍGENAS 1 Onça, Jaguar, Ming, Ponan, Acanguçu, Jaguareté, Thópre, Kuparak, Xivi, Sini, Tuty: mesmo animal, diferentes nomes em diferentes aldeias. A palavra “onça” nos remete ao imaginário que temos a respeito desse animal, pautado pelas referências culturais presentes em nossa formação. Uma palavra permite acessar um conjunto de imagens e sensações compartilhadas entre os falantes de uma mesma língua. Ao iniciarmos este curso falando da “onça”, se dá pelo fato de tratarmos de uma formação sobre brincadeiras e jogos de origem indígena, no qual esse animal é um dos elementos determinante no Jogo da Onça. Você já pensou que as pessoas que o desenvolveram não o chamava assim? Como há centenas de línguas indígenas ainda faladas no Brasil, há também centenas de formas de nomear os animais, ao exemplo da onça... cada uma delas mobilizando, no imaginário de seus falantes, o significado que este ser possui em cada uma das culturas. A língua de um povo carrega marcas da trajetória vivida nas relações sociais entre as pessoas que o integraram ao longo do tempo. Várias línguas europeias, foram incorporando o termos indígenas a exemplo do jaguar (onça), a medida que narrativas sobre a América chegavam até os europeus. A nova palavra, usada para nomear um animal até então desconhecido na Europa ,vinha das línguas indígenas do tronco Tupi-Guarani, e era uma modificação de jaguara ,ou na pronúncia mais antiga, iaguara. Os povos indígenas falantes dessas línguas, por sua vez, acabaram alterando seu modo original de nomear a onça, incluindo o termo eté: jaguareté quer dizer onça verdadeira. Tornou-se necessário dizer que existia uma onça verdadeira, porque o nome normalmente usado para nomeá-la foi “emprestado” a outro animal, até então desconhecido dos indígenas: o cachorro... que ainda hoje, nas aldeias Guarani é chamado de jaguá. As modificações sofridas pelo antigo nome indígena do animal que chamamos onça deram-se em duas direções: para quem vivia há tempos Texto construído para o “Curso Jogo da Onça parceria COCEU /COPED NERER/ junho/2016”, sob pesquisa do Técnico Daniel Righi, da Assessora Pedagógica em Etnomatemática Eliane Costa Santos e dos Formadores(as) / Arte educadores(as) na área de indígena: Adriana Gaeta Braga, Aline Valentini, Ana Blaser, Fabio Marcio Alkmin, Flaviana Benjamin dos Santos, Júlia de Abreu, Marcele Garcia Guerra, Nádia de Souza, Roger Muniz, Wagner da Rocha Moraes. 3 neste lado do mar na presença desse grande felino, e para quem chegou do outro lado trazendo cães em seus navios. Mas jaguareté não é a única forma de chamar a figura central do nosso jogo: em Kaingang é ming; em Puri é ponan. E cada língua indígena traz também diferentes narrativas onde esse animal tão temido quanto admirado está presente. Índio: uma generalização impossível São tantos nomes quantas línguas e povos indígenas existentes nesse país chamado de Brasil. Estima-se que existam hoje no mundo pelo menos 5 mil povos indígenas, somando mais de 370 milhões de pessoas (IWGIA, 2015). No Brasil, até meados dos anos 1970, alguns pesquisadores e índices estatísticos apontavam que na escala de decréscimo, o desaparecimento dos povos indígenas seria algo inevitável. No entanto, nos anos 1980, verificou-se uma tendência de reversão da curva demográfica e, desde então, a população indígena no país tem crescido de forma constante, embora povos específicos tenham diminuído demograficamente e alguns estejam até ameaçados de extinção. Dos mais de 305 povos indígenas existentes no Brasil (Censo IBGE 2010), somam 896.917 pessoas, que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. Devemos ter bem claro — e isso é fundamental — que esta população não é homogênea, mas que possuem diferentes culturas, histórias e línguas. Calcula- se, por exemplo, que hoje existam mais de 270 línguas indígenas faladas no território brasileiro. Isso nos leva a repensar o mito do “índio genérico”, uma visão singular, usada equivocadamente para representar toda essa imensa diversidade de culturas. Assim, quando vemos ou pensamos em um indígena, sempre devemos nos perguntar sobre sua etnia, a qual povo ele pertence. Inclusive, esta se tornou uma maneira mais precisa de auto-representação - a etnia enquanto parte do próprio nome do indivíduo, ou melhor, dizendo, o sobrenome. Dessa maneira, o escritor indígena Daniel Munduruku é da etnia Munduruku, do Pará. Da mesma forma, David Kopenawa Yanomami, é da etnia Yanomami, localizada no Amazonas. Pensar dessa maneira particularizada faz parte do respeito à diversidade de cada povo, reconhecendo a extrema pluralidade de povos indígenas (no plural) e evitando estereótipos reducionistas. Além da diversidade de povos, há a diversidade de situações em que esses povos se encontram. O maior ou menor contato com os europeus e seus 4 descendentes provocou impactos de proporções diferentes, tanto cultural como demograficamente. Os povos que vivem em terras demarcadas na época da formação do Parque Nacional do Xingu, por exemplo, vivem em condições muito distintas das que são enfrentadas pelos Guarani Kaiowá, que estão cercados pelo agronegócio. O mesmo pode ser dito dos Tupinambás de Olivença, em luta pela retomada de suas terras originais, em comparação com os Pankararu da cidade de São Paulo, que constituíram ao longo do tempo uma comunidade numerosa fora de seu território de origem. Assim, as condições de preservação de elementos culturais tradicionais dentro de cada povo têm variado muito desde o início da dominação portuguesa, sem que esse quadro tenha se alterado significativamente com a independência política brasileira ou com a República. De um modo geral, maior contato com europeus significou maior dificuldade de se manter o modo de ser próprio de cada etnia indígena. Mas isso não quer dizer, contudo, que a identidade desses povos tenha se perdido. Significa, mais concretamente, que cada etnia indígena teve que elaborar estratégias, com maior ou menor sucesso, para sobreviver ao mesmo tempo em que praticava sua cultura -com maiores ou menores transformações -e a legava para a geração seguinte.é uma característica humana intrínseca na formação individual e coletiva, estando intimamente ligada à produção de prazer, corporeidades, relações e afetos. Nesse sentido, é importante perceber o jogo e a brincadeira, para além do conjunto de suas regras, da maneira como essas regras são cumpridas e do resultado final; mas, de maneira mais ampla, como parte elementar do ethos social no qual se insere, em uma relação de mútua influência. Em outras palavras, os jogos praticados por determinada sociedade reproduzem, congregam e atualizam os valores culturais daquele grupo: Os jogos criam mundos de entretenimento. Eles instituem ordens que os regulam, e que estão envolvidos, de forma elementar, na ordem da respectiva cultura. Muitos jogos estão situados em uma relação mimética com um uso regrado de corpo de uma práxis social. Eles representam um agir regrado no interior de configurações sociais. [...] são muito simples as concepções nas quais os jogos são entendidos como mera execução de regras explícitas. Para podermos jogar, é necessário não somente o conhecimento das regras do jogo, mas também um ‘sentido de jogo’, que pode ser concebido em analogia ao conceito de Bordieu de um sens pratique. Este sentido mostra o jogo como um mundo entendido em si próprio. Nos elementos do jogo perpassam ações humanas em todos os níveis. Eles são parte da ação e do comportamento corporal, dão forma à linguagem e ao falar, e participam da criação de novos mundos. Os jogos são a mimese da práxis social e criam novas relações sociais de poder e estruturas sociais. (GEBAUER e WULF, 2004, p.158). Uma sociedade em que o esporte é a forma de jogo mais valorizada - como é o caso das sociedades ocidentais eurocêntricas - estabelece seus fundamentos nas relações de competição entre oponentes com vencedores no final . Lógica essa que remonta aos torneios, duelos, gladiadores e aos Jogos Olímpicos da Antiguidade. 19 Texto construído para o “Curso Jogo da Onça parceria COCEU /COPED NERER/ junho/2016”, sob pesquisa do Técnico Daniel Righi, da Assessora Pedagógica em Etnomatemática Eliane Costa Santos e dos Formadores(as) / Arte educadores(as) na área de indígena : Adriana Gaeta Braga, Aline Valentini, Ana Blaser , Fabio Marcio Alkmin, Flaviana Benjamin dos Santos, Júlia de Abreu, Marcele Garcia Guerra, Nádia de Souza, Roger Muniz, Wagner da Rocha Moraes. 35 A vida em comum é instituída com base no princípio da separação e da delimitação das pessoas. As áreas sociais agonísticas têm, como pré- requisito, o cada um por si. Somente um pode ganhar o jogo. O importante é o vencedor e não os vários perdedores (GEBAUER e WULF, 2004, p. 162). Nesse sentido, é possível observar a analogia que se estabelece entre a prevalência de um (no sentido de individual, único) vencedor no jogo com outras instâncias sociais: a prevalência de uma verdade, um deus, uma pátria, um líder, um proprietário, etc. Os desdobramentos dessa estrutura de pensamento totalizante são infindáveis e não cabem ser discutidos aqui. Ressaltamos apenas, o fato de que essa relação de antagonismo vencedor-perdedor está na base de uma ótica binária - de verdadeiro-falso, bom-ruim, eu-outro - através da qual interpretamos o mundo e que acaba por esfumaçar as nuances e complexidades das relações operantes no próprio jogo, assim como na sociedade, ao focar excessivamente no resultado. Diferentemente, os jogos praticados pelas populações indígenas frequentemente são de caráter coletivo e estimulam a relação entre as pessoas, uma vez que oportunizam a reunião da comunidade e adotam um caráter de confraternização e celebração. Alegrar-se com alguma coisa ou com alguém é o “sentido de jogo” nesse caso. O indígena festeja com o outro, e o jogo é instrumento para a interação lúdica coletiva. Em consonância com o que afirmam Gebauer e Wulf (2004), em certos casos, a regra do jogo explicita a função social de cada individuo o que ele pode ou não pode fazer. Há jogos que só os homens podem participar e outros que são exclusivamente femininos. O aspecto cognitivo e afetivo desses jogos faz pensar e demonstra o respeito ao mais velho, ao meio ambiente, aos animais. A importância dos jogos e brincadeiras nesses contextos vai além da mera manifestação de habilidades, pois tem em vista a formação integral (física, motora, cognitiva e social) dos sujeitos, atuando no seu desenvolvimento em relação a si mesmo e ao meio em que vive. Dessa forma, ganhar e perder são situações efêmeras e intercambiáveis. Ora eu ganho e ora eu perco; ora eu ofereço porque possuo em abundância, ora eu recebo porque preciso. Essa dinâmica de constantes trocas aparece também na relação entre o caçador e a caça que ele consegue ou não obter, na economia baseada na reciprocidade e em outros diversos aspectos sociais referentes às formas tradicionais de organização dos povos indígenas. Diante do que foi exposto, é possível considerar que a dimensão educativa está sempre presente nos jogos e brincadeiras praticados pelos povos indígenas. Em 36 consequência, tais práticas não podem ser consideradas como mero entretenimento; razão pela qual os próprios conceitos de jogo e brincadeira, tal como estamos acostumados a utilizar em nosso cotidiano, não podem ser simplesmente transpostos para o universo indígena. Torna-se necessário observar o papel que essa dimensão lúdica assume na estruturação das pessoas e das relações em cada povo. Passado, presente e futuro do brincar: processo para reflexão Nos dias de hoje, em cada área minimamente urbanizada do país em que vivemos, testemunhamos um gradual abandono das formas tradicionais do brincar que estiveram presentes por gerações entre as crianças brasileiras. Muitas dessas formas carregam uma inegável origem indígena, como ocorre nos jogos e brincadeiras a exemplo do Jogo da onça ( Bororo, Manchakeri, Guarani), do Gavião (Tikuna / AM); nas brincadeiras de perna de pau ( Xavante / MT), Arranca mandioca(Guarani / ES-SP), Cabas (Tikuna/AM); Gavião e Galinha (Tikuna / AM), Curupira (Tikuna / AM), Tucunaré ( Panará / PA) , Queixada(Panará / PA), Heiné Kuputisu (Kalapalo / MT), Marimbondo (Bororo / MT e Kamaiurá / MT), Tidymure (Paresi / MT e RO), Peteca(Tupi Guarani, Xavante), Boneca (Guarani), Pião, entre outros. A reiteração dessas práticas corporais ajudou a formar - durante o tempo e nos lugares em que predominou - certo perfil de pessoa, em que a dimensão corporal e o senso de coletividade , se fizeram muito mais presentes do que no contexto urbano atual. Talvez seja bastante elucidativo pensarmos de que forma se desenvolveram jogos e brincadeiras no passado e no presente. Os jogos eletrônicos, em franca expansão no mundo urbano contemporâneo, trazem a possibilidade de jogar sem o outro, de colocar a máquina no lugar do ser humano, ou jogar com uma outra pessoa até mesmo de outro continente sem que se saiba sequer o nome, ou mesmo se tenha uma imagem da pessoa. Essa forma de jogo ganha cada vez mais adeptos, e faz sentir seus efeitos na sociabilidade de crianças e adolescentes, bem como em sua percepção do mundo. Enquanto as formas lúdicas originárias foram moldadas a partir das relações sociais e do imaginário das pessoas envolvidas, os jogos de última geração são projetados por uma indústria, seguindo uma lógica de mercado. A reflexão sobre o papel dos jogos e brincadeiras na vida de uma sociedade -se é ou não de mero 37 entretenimento -é fundamental para o entendimento das visões de mundo que essas expressões da cultura carregam. A possibilidade de elaborar os próprios brinquedos a partir de materiais relativamente simples e facilmente encontrados na natureza representa uma enorme liberdade para a criança: é possível inventar brinquedos novos, assim como aperfeiçoaraqueles já conhecidos e, se determinado brinquedo se quebra ou se perde, basta fazer outro. A seguir descrevemos como confeccionar alguns brinquedos de origem indígena. Foto: Roger Muniz Foto: Roger Muniz Jogos e brincadeiras indígenas: Ensaio de um Estado da Arte São infindáveis os jogos e brincadeiras praticados pelas as diversas etnias indígenas, tanto por crianças quanto por adultos. Sabemos o quanto essa herança influenciou e segue influenciando na formação da população brasileira como um todo. Em geral as brincadeiras são inspiradas nas práticas da vida cotidiana e os brinquedos são elaborados a partir de elementos do ambiente. Assim, é comum que brincadeiras indígenas lancem mão de personagens animais ou de metáforas agrícolas, por exemplo. Mas é importante lembrar sempre que toda cultura humana é 38 dinâmica e está constantemente se reinventando através dos tempos. Da mesma forma, as brincadeiras são criadas e recriadas a cada vez e novas brincadeiras e jogos surgem em todas as épocas. O objetivo maior é desfrutar da companhia dos amigos e entender que brincar é uma maneira de aprender: as dinâmicas sociais, o uso do próprio corpo e cognição na resolução de desafios, o manuseio de ferramentas para construção de brinquedos, etc. Para elucidar faremos um ensaio de um Estado da Arte de Jogos e brincadeiras indígenas, encontradas pelo Brasil e que podemos reconhecer em nosso cotidiano de diferentes formas. JOGO DA ONÇA Jogo da Onça, é um jogo de tabuleiro praticado pelos indígenas Bororo no Mato Grosso, pelos Manchakeri no Acre e pelos Guarani em São Paulo. O tabuleiro pode ser desenhado na terra e pedras e sementes podem ser usadas como peças. É praticado entre dois jogadores. Um jogador fica com a Onça e o outro jogador fica com as 14 peças de cachorro. O objetivo de quem está com a Onça é capturar cinco peças do cachorro. E o objetivo de quem está com os cachorros é encurralar a Onça em sua toca. Foto: Arquivo Égnon Viana PERNA DE PAU 39 Xavante - MT As crianças Xavante gostam de brincar de perna de pau. Saem em grupo para a mata, carregando seus facões à procura de madeiras adequadas para construir seus brinquedos. Dois troncos retos são o suficiente para a construção da perna de pau. No meio ou na altura desejada, coloca-se uma forquilha - nem muito curva, nem muito aberta - em cada um dos troncos para encaixar os pés da criança. O desafio da brincadeira é permanecer em pé e/ou caminhar pelo espaço pelo máximo de tempo sem perder o equilíbrio. ARRANCAR A MANDIOCA Guarani - ES e SP Foto: Roger Muniz / Projeto: Nossa Aldeia o Brincar/ Programa Mais Cultura nas Escolas É uma brincadeira que ainda hoje os Guarani do Espirito Santo e de São Paulo praticam. Os participantes se sentam no chão, um atrás do outro. O primeiro da fila será o “dono da roça” e deve agarrar-se a uma árvore ou poste. O segundo entrelaça seus braços pela barriga do companheiro da frente, e assim sucessivamente, até que todos estejam firmemente agarrados um aos outros e prontos para começar. Um dos participantes (precisa ser alguém forte) é escolhido para arrancar, uma a uma, as 40 “crianças mandiocas”, começando pela última da fila. Porém, é necessário primeiro consultar o “dono da roça” que é quem dá autorização para que cada uma das “mandiocas” seja colhida. Entre os Guarani vale usar diversas estratégias para conseguir arrancar a mandioca, até mesmo fazer cócegas ou pedir ajuda para alguém que já saiu da fila. Essa brincadeira é bastante divertida e faz alusão ao uma prática corriqueira entre povos agricultores, que é o cultivo da mandioca, assim como desenvolve e valoriza a habilidade da força. Foto: Roger Muniz/ Projeto: Nossa Aldeia o Brincar/ Programa Mais Cultura nas Escolas JOGO DO GAVIÃO Tikuna - AM Essa brincadeira é praticada entre os Tikuna, na região centro-oeste do Amazonas, no Alto Rio Solimões. Em fila, as crianças seguram o corpo do colega da frente com as mãos. A primeira criança da fila posta-se como o gavião e emite um som de “piu”. O som quer dizer “estou com fome”. A próxima criança da fila estende a perna ofertando ao gavião, dizendo “quer isso?” e o gavião responde negativamente até chegar à última criança, a que o gavião finalmente diz “sim” e segue perseguindo sua presa. Os outros participantes impedem que o gavião alcance sua presa, o que faz a fila pender de um lado ao outro, na imagem de um “C”. Caso o gavião consiga capturar sua presa, a leva para o ninho e sai em busca de novas presas até que toda a fila seja capturada. 41 CABAS – Maë Tikuna - AM Para brincar as crianças se dividem em dois grupos, sendo que um representa as cabas e o outro, os roçadores. As crianças do grupo das cabas sentam-se frente a frente fazendo um círculo, deixando as palmas da mãos viradas para cima. Os roçadores se aproximam do grupo de cabas fazendo movimentos com as mãos que simulando um plantio e tomando cuidado para não tocar na palma das mãos do grupo das cabas, que estará cantando e balançando os braços para cima e para baixo. Ao tocar o ninho das cabas essas voam para picar o grupo de roçadores. Permanece no jogo a criança que não for picada pelas cabas. GAVIÃO E GALINHA - O’ta i inyu Tikuna - AM Nessa brincadeira uma criança é escolhida para ser o gavião, que almeja capturar os pintinhos da galinha. A criança que representa a galinha permanece, durante a brincadeira, de braços abertos protegendo outras crianças que representam seus pintinhos. A regra para capturar os pintinhos é que o gavião só poderá pegar o último. Assim, a criança que representa a galinha dá voltas impedindo a captura do gavião. Nesse movimento cíclico o gavião só pode capturar suas presas pelas laterais. As crianças que são capturadas saem do jogo, aguardando a próxima rodada. CURUPIRA Tikuna - AM Esta brincadeira faz parte da infância de muitas crianças, com diferentes nomes a brincadeira se repete em muitos locais do Brasil. Na etnia Tikuna ela recebe o nome de Curupira. Venda-se os olhos de uma das crianças, enquanto outra se aproxima e faz com que a criança vendada dê voltas. Ao término das voltas, pergunta: “o que você perdeu?”. A criança vendada responde, por exemplo, “perdi uma agulha”. Outras perguntas podem ser feitas a partir do imaginário de cada brincante e, assim que todos tiverem feito suas perguntas, a última pessoa indaga: “o 42 que o curupira quer comer?”. Ao tirar a venda a criança que representa o curupira não encontra a comida sugerida e dispara atrás das crianças que fogem para não serem pegas. As que forem apanhadas aguardam a próxima rodada no papel de curupira ou de presa. TUCUNARÉ Panará – PA Certa vez Perankô, professor Panará da Escola Indígena Matukre, percebeu que os peixes menores do rio preferiam viver nas águas mais rasas, ao passo que o Tucunaré, peixe grande, permanecia no fundo. Quando este último tentava pegar os peixes menores, assim que eles chegavam ao raso, o Tucunaré voltava para o seu lugar no fundo. A brincadeira surgiu então dessa observação. O espaço do brincar é delimitado por paus fincados no chão e amarrados por barbante, separando o “raso” do “fundo”. São dois quadrados, um dentro do outro. No de dentro fica o “fundo”, onde há quatro Tucunarés que têm como objetivo pegar os peixes pequenos. No quadrante de fora (raso) há 6 “portais” por onde 8 a 10 peixinhos podem escapar quando atacados pelos Tucunarés, que por sua vez não podem sair pelas portas por ser raso demais e precisam voltar ao fundo. Cada peixinho capturado entra no quadrado menor (fundo) e permanece lá até que todos tenham sido pegos. ONÇA Panará - PA Na aldeia Nasêpotiti,situada na Terra Indígena Panará, muitas brincadeiras estão relacionadas com os animais da região, sendo que uma das principais brincadeiras é a da onça. Nesse jogo existe um pássaro, o pekã, que avisa o perigo da onça aos porcos, que logo fogem do felino. Uma criança faz o papel do pekã e fica em cima de um lugar alto que simboliza o Céu. Outra criança é escolhida para ser a onça. Os outros participantes sentam em fila, um atrás do outro, representando os porcos. A última criança da fila, deve sair de seu lugar com o objetivo de sentar na frente da fila sem ser pega pela onça. O pássaro dá o aviso para o porco sair. Sem esse aviso, o porco não pode correr em direção ao começo da fila. Se a onça 43 consegue pegar o porco, o leva para um canto e a fila de porcos vai diminuindo. A brincadeira acaba quando a onça consegue capturar todos os porcos. QUEIXADA (NANKIÔ) Panará - PA Para os Panará, os bichos no passado também eram gente. Assim, os animais faziam aldeias, festas, caçadas. Essa etnia aprendeu com seus antepassados a brincadeira da queixada. As queixadas da aldeia gostam de bagunçar tudo. As crianças são pintadas com jenipapo ou urucum e saem enfileiradas cantando a música da queixada até chegar em alguma casa no centro da aldeia. Lá os meninos, assim como as queixadas que são caçadas, são dispostos um a um em roda como organizam as caças, em um jirau, para serem assadas no calor da brasa e fumaça. Nessa brincadeira, as crianças viram queixadas e recriam o modo como os antigos viviam quando os bichos eram humanos. As crianças vivem em seu corpo toda a ancestralidade do seu povo. HEINÉ KUPUTISÜ Kalapalo - MT Nessa brincadeira, compartilhada por crianças e adultos Kalapalo no centro da aldeia, os participantes formam uma fila na horizontal. Marca-se uma linha no chão, determinando o ponto de largada, e outra linha mais à frente, que será o ponto de chegada. Cada pessoa terá de correr da linha de partida até a de chegada, em um pé só, sem trocar de pé. Os participantes que conseguirem ultrapassar a linha de chegada serão considerados vencedores. Se ninguém conseguir chegar lá, vence quem for mais longe. Há uma variante da brincadeira: podem ser formados dois times e a corrida é feita em duplas, um de cada time. No final, vence o grupo que teve mais participantes a ultrapassar a linha de chegada MARIMBONDO 44 Bororo - MT e Kamaiurá - MT Os grupos se dividem entre meninos e meninas. Um grupo representa a comunidade e deve simular as atividades cotidianas da aldeia (a caça, a pesca, a confecção do artesanato, entre outras atividades); enquanto o outro grupo representa os marimbondos, devendo construir um ninho na areia e reproduzir aquele zumbido característico. Cabe ao primeiro grupo tentar destruir o ninho dos marimbondos para que eles não invadam as casas. Os marimbondos por sua vez defendem seu ninho, correndo atrás das crianças do outro grupo e tentando picá-las. Nesse momento todos se divertem, pois acontecem muitos tombos e muitas crianças rolam na areia TIDYMURE Paresi - MT, RO. Esse jogo é praticado exclusivamente por mulheres. Elas definem um retângulo de 15 metros de comprimento por 1 metro de largura. Em cada quina desse retângulo, elas fincam na areia um pino de bambu que contém na parte de cima, uma semente de milho. Com uma bola feita da fruta do marmeleiro, elas tentam tocar os pinos. Ganha a equipe que juntar mais pontos, ao atingir os pinos. PETECA “Peteca” é um nome de origem Tupi que significa “tapear”, “golpear com as mãos”. Muitos povos usam esse brinquedo, de diferentes formas. Por exemplo, entre os Xavante o jogo se parece um pouco com a nossa “queimada” e é jogado com várias petecas ao mesmo tempo (quatro ou seis) e com dois jogadores a cada vez. As demais crianças aguardam sentadas, assistindo. A um sinal do coordenador do jogo, os dois jogadores da partida arremessam as petecas, na direção do adversário, tentando atingi-lo e, ao mesmo tempo, cuidando para não ser atingido. Quem for atingido por uma das petecas, sai do jogo, cedendo seu lugar para outro jogador, que é uma das crianças que estão sentadas e a disputa recomeça, sucessivamente, até que todos tenham tido a oportunidade de jogar. 45 Já entre os Guarani a brincadeira é girá-la como um helicóptero, arremessando-a bem o mais alto e longe possível. Materiais necessários: palha de uma espiga de milho. Como fazer: retire a palha da espiga, evitando rasgá-la. Dobre a primeira folha, enrolando-a até formar um quadrado de mais ou menos 4 centímetros de lado. Esta será a base da peteca, que deve ser envolvida com as demais folhas. Repita esse embrulho até chegar ao tamanho desejado. Deixe as extremidades soltas para cima, formando as "penas" da peteca. Por fim, tire um pedaço mais fino da palha que sobrou, formando uma tira e com ela amarre o brinquedo, unindo a parte das folhas que estão soltas. Variação: também podem ser feitas com a casca da bananeira ou com penas de galinha e um sabugo de milho dividido ao meio. BONECA GUARANI 46 Fotos: Roger Muniz Materiais necessários: cabaça em formato de boneca Como fazer: com algum instrumento de ponta, raspar a cabaça para formar os pontos dos olhos e a boca. Em seguida misturar cinza com óleo e água para produzir uma “tinta” pastosa, que será usada para preencher os pontos com a tinta pintando os detalhes do rosto. PÁSSARO DE BRINQUEDO 47 Foto: Roger Muniz Materiais necessários: espiga de milho, folhas, graveto, linha e tesoura sem ponta. Como fazer: escolher uma das pontas da espiga de milho para abrir um orifício onde será inserido a folha para a cauda do pássaro. Após isso, partir e espiga ao meio e juntar as partes com um graveto. Abrir um orifício nas laterais para inserir as asas do pássaro. Ao final, amarrar as pontas da espiga com linha e no graveto que suspenderá o pássaro. Referências bibliográficas 48 CALDERARO, K. C. C. A ludicidade da criança Tikuna. Manaus: Governo do Estado Amazonas; Secretaria de Estado da Cultura; CCPA, 2007. _________ O Universo Lúdico das Crianças Indígenas. Manaus – AM, Fevereiro/2006. Disponível em (acesso em 25/05/2016): http://www.povosdamazonia.am.gov.br/pdf/uni_lud.pdf. CALLOIS, R. Os jogos e os Homens - A máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990. GEBAUER, G. e WULF, C. Mimese na Cultura - Agir social - Rituais e jogos - Produções estéticas. São Paulo, Annablume, 2004. HERRERO, M. e FERNANDES, U. Jogos e brincadeiras na cultura Kalapalo. São Paulo, Edições SESC, 2010. KISHIMOTO, T. M. Brinquedos e brincadeiras indígenas. Artesanias de América, ed., n. 44, p. 87-98, ago. 1994. __________ Crianças indígenas brincam assim. Nova Escola, São Paulo: Fundação LIMA, Mauricio; BARRETO, Antonio. O Jogo da onça e outras Brincadeiras Indígenas. Col. Infanto Juvenil. Ano: 2005. LIMA, Mauricio; BARRETO, Antonio. O jogo da onça. São Paulo: Panda Books, 2005. MACEDO, A.V.L.S., NUNES, A. & SILVA, A.L. (org.) Crianças Indígenas: Ensaios Antropológicos. São Paulo: Global, 2002. SOARES, A. de A. Brincadeiras e jogos da criança indígena da Amazônia - algumas brincadeiras da criança Tikuna. Disponível em (acesso em 25/05/2016): http://www.motricidade.com/index.php/repositorio-aberto/40-docencia/1194- brincadeiras-e-jogos-da-crianca-indigena-da-amazonia-algumas-brincadeiras-da- crianca-tikuna Links: http://territoriodobrincar.com.br/brincadeiras-pelo-brasil/ https://pibmirim.socioambiental.org/como-vivem/brincadeiras http://criandocriancas.blogspot.com.br/2008/04/jogos-brinquedos-e-brincadeiras.html5 Mapa da População Indígena em 2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. 6 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. 7 Visões estereotipadas sobre indígenas A ideia que a maioria dos brasileiros faz dos indígenas é fruto de uma construção elaborada por quem produziu relatos e imagens a respeito deles, num contexto de legitimação de um processo de expropriação de terras e de apagamento de identidades. Em outras palavras, os livros que alimentaram as mentes de gerações nos bancos escolares foram escritos com o interesse de colocar a questão indígena o mais distante possível do cidadão brasileiro médio, tanto no tempo como no espaço. No tempo, porque ao tomar como referência para reconhecer o indígena uma imagem do século XVI, torna impossível identificar como tal todas as culturas que, sobrevivendo até os dias atuais, passaram por transformações. No espaço, porque restringe à mata virgem o local passível de ser ocupado pelo indígena, tornando a destruição das florestas equivalente à destruição das populações que nelas viviam, desconsiderando os povos que conseguiram resistir a esse processo. O censo de 2010 revelou que, do total de 896.917 de população indígena, 324.834 pessoas vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais. Este dado registra o aumento expressivo da presença dos povos originários nas áreas urbanas. O senso comum frequentemente desqualifica os indígenas em contexto urbano por se apropriarem de elementos correntes da cultura desses locais. O debate científico a respeito das culturas humanas de toda e qualquer povo não indígena, já reconhece, há algum tempo, que elas não são estáticas e que costumam incorporar e ressignificar elementos de origem externa. No entanto, costuma-se exigir das culturas indígenas uma suposta “pureza” que se torna impossível quando há contato com outros povos. Ninguém se atreve a questionar a autenticidade da cultura grega antiga por terem estudado no Egito muitos de seus sábios, trazendo de lá muita influência. Ninguém fará o mesmo com os romanos antigos pela influência grega que traziam. Não se fará isso com todos os povos da Europa – que ainda ostentam na formação da nacionalidade muita coisa de tempos pré-romanos –por seu caldo cultural comum trazido do império romano, e também do cristianismo. Não se faz isso com os povos orientais por adotarem costumes e técnicas do ocidente. Não se cobra dos negros brasileiros ou norte-americanos que vivem conforme os costumes de seus antepassados africanos. Mas é cobrado dos indígenas que vivem no Brasil que mantenham suas culturas no mesmo patamar de antes da chegada dos portugueses, que recusem toda a influência europeia ou de qualquer parte do mundo; ainda que os brasileiros que os rodeiam não se sintam 8 menos autênticos por usarem várias palavras em inglês, por usarem tecnologia japonesa ou por terem uma base judaica na religião – ou mesmo por chamarem de português uma língua que é, em grande parte, banto e tupi. Existe ainda uma série de conquistas tecnológicas (celular e computador, por exemplo) que são de uso comum no mundo todo, e que não são consideradas ‘descaracterizantes’ para nenhum povo que as utiliza – a não ser para os indígenas. A exigência de que o indígena não possa incorporar elementos externos à sua cultura dificulta que ele o faça de modo respeitoso para com suas tradições – aproveitando e reelaborando somente o que interessa – e cria uma situação em que, ou ele assume que está deixando de ser indígena e o faz de vez, ou nega a influência da sociedade envolvente, fechando-se a qualquer atualização de uma tradição que perde, a cada dia, as condições materiais para sua existência. Autodeclaração Para aqueles povos que, expulsos de suas terras e sofrendo perseguição, conseguiram manter até hoje sua identidade apoiada na parte preservada da cultura e no senso coletivo de pertencimento – protegidos pelo manejo de elementos culturais não indígenas, que permitiram a eles não serem reconhecidos e perseguidos como tal – resta ainda a acusação de alguns poucos antropólogos de que eles não são mais indígenas. Cabe perguntar tanto sobre a pertinência desta afirmação – baseada na negação da possibilidade do próprio grupo ou indivíduo afirmarem seu pertencimento, conferindo esta autoridade a um membro externo à cultura em questão – como também a quem interessa que se negue a identidade dessas pessoas – na medida em que o reconhecimento de povos indígenas abre espaço para a reivindicação de terras que tradicionalmente foram ocupadas por eles. O Estado Brasileiro, quando em 2004 acolhe em seu ordenamento jurídico a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) para Povos Indígenas e Tribais (1989), reconhece como critérios de definição do pertencimento indígena de uma pessoa a “autodeclaração e consciência de sua identidade indígena” e o “reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de origem”. Isso tem possibilitado que muitas pessoas, cujas famílias sofreram com a perseguição, o genocídio e o etnocídio contra indígenas, encontrem respaldo legal para assumirem sua identidade. Essa orientação representa um avanço em relação ao contexto anterior de reconhecimento de povos indígenas no país, que estava totalmente condicionado a laudos antropológicos, à ação da FUNAI e trâmites burocráticos de 9 vários níveis (o que ainda ocorre, quando o assunto é reivindicação de terra indígena). Vários povos dados oficialmente como extintos tem questionado essa versão, num processo que já ocorria com dificuldades várias desde a primeira metade do século XX e que ganha força a partir da Constituição de 1988. Referências bibliográficas LEMOS, M. S. Vocabulário da Língua Puri (Português-Puri). Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2012. OLIVEIRA, J. P. (org.). A viagem da volta: etnicidade, politica e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. NAVARRO, E. de A. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. São Paulo: Global, 2005. SAHLINS, M. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Links http://cabocloeducador.blogspot.com.br/2016/01/autodeclaracao-reatando-os-fios-da-teia.html http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf http://www.iwgia.org/culture-and-identity/identification-of-indigenous-peoples http://www.portalkaingang.org/lgua_kaingang.pdf http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm 10 2. A ONÇA EM COSMOVISÕES INDÍGENAS 2 A onça na floresta tropical brasileira Se por vício de reprodução daquilo que é veiculado pela mídia pode ecoar em nossas memórias a ideia de que o leão é o “rei da floresta”, no Brasil é a onça que deveria ter esse status. Afinal, na Floresta tropical Brasileira, a onça é o predador que ocupa o topo da chamada cadeia alimentar. O ser humano - enquanto animal que desenvolve técnicas e tecnologias engenhosas de habitar os espaços, cultivar alimentos, caçar animais, etc.,- se coloca também no topo da cadeia alimentar. Assim, esse felino de beleza exuberante é aquele entre os animais que possui relativa igualdade com o humano, portanto poderia efetivamente ameaçá-lo. Isso gera situação ambígua, pois a onça pode ser uma ameaça e ao mesmo tempo um aliado poderoso. Talvez por isso adquira frequente importância nas culturas e nos mitos de origem indígenas, às vezes tida como um ser perigoso e maligno e outras como um irmão ou parente. Na condição de ameaça a um determinado povo e obrigando-o a se proteger, a onça contribui para uma atitude de união e colaboração entre as pessoas, e para uma atitude de respeito em relação ao ambiente ao redor; o ser humanoentende que ele não é o ser mais poderoso e nem o mais importante da natureza, mas sim que ele é um ser integrado, em relação de interdependência perante os outros seres. Enquanto aliada, a onça contribui exatamente para essa atitude de integração e respeito perante a natureza, que passa também pela espiritualidade, pois é necessário entrar em contato com todos os seres e fazer-se “bem vinda” por eles. A onça na cosmogonia3 Guarani: vencer o jaguar4 para tornar o mundo habitável 2 Texto construído para o “Curso Jogo da Onça parceria COCEU /COPED NERER/ junho/2016”, sob pesquisa do Técnico Daniel Righi, da Assessora Pedagógica em Etnomatemática Eliane Costa Santos e dos Formadores (as) / Arte educadores (as) na área de indígena: Adriana Gaeta Braga, Aline Valentini, Ana Blaser , Fabio Marcio Alkmin, Flaviana Benjamin dos Santos, Júlia de Abreu, Marcele Garcia Guerra, Nádia de Souza, Roger Muniz, Wagner da Rocha Moraes. 3 As cosmogonias são as lendas, os mitos as histórias de origem do mundo de cada cultura, no qual princípios, míticos, espiritualistas explicam e influenciam a visão de mundo. As cosmologias são lendas, mitos ,histórias de origem do mundo de cada cultura, sendo mais conceituais , sistemáticas e tem uma autoria. E a cosmovisão é o modo, concepção, visão subjetiva de perceber o mundo. 11 Diversos relatos sobre cosmogonia dos povos Guarani tem sido coletados por estudiosos e as versões variam bastante. Existem dois grandes ciclos narrativos sobre a origem do mundo e da humanidade. O primeiro ciclo conta do surgimento do casal originário, “Nosso Pai” e “Nossa Mãe”, que funda a protofamília humana, que se desdobra em outros casais, enfatizando o aspecto de dualidade que compõe a cosmovisão guarani. O segundo ciclo trata da saga de seus filhos gêmeos, o “Irmão Maior” (associado ao Sol) e o “Irmão Menor” (associado à Lua), os heróis culturais que tornam o mundo habitável para os seres humanos. Ñande Ru (Nosso Pai), que também é chamado de “Nosso Avô”, “Nosso Grande Pai”, “Nosso Pai Último-Primeiro”, “Nosso Pai o Sol”, “Eloqüente Dono da Palavra” -entre outras denominações -toma forma a partir do fluido vital “Jasuka”5 em um processo que é descrito como “o desabrochar de uma flor”. Seguindo essa metáfora ele descobre-se e desdobra-se à medida que cria e sustenta o mundo com a extremidade da vara insigne que leva em suas mãos. Ele é representado também pelo “papagaio da boa palavra”. Ele é o primeiro personagem que cria a proto-roça e cultiva o milho, alimento fundamental nas culturas Guarani. Os Apapokuva contam que “à medida que ‘Nosso Pai’ avançava, derrubando a mata, a roça atrás dele plantava-se sozinha. As sementes brotavam e, quando ele retornou para casa, as espigas já começavam a madurar” (NIMUENDAJÚ, 1987, p. 48 apud CHAMORRO, 2008, p.130). Ñande Sy (Nossa Mãe), cujo um dos nomes sagrados é também Jasukávy, aparece nesse ciclo narrativo como resultado da ação de Ñande Ru. Em alguns relatos coletados entre os chiripá, apapokuva e kaiowá ela é “descoberta” (jejou) dentro ou debaixo de uma panela tradicional; enquanto entre os paĩ-tavyterã ela é “levantada” (ñemopu’ã), verbo que faz referência à ação de dotar verticalidade e tornar-se humano, a partir do centro do jeguaka (enfeite de cabeça, símbolo da humanidade masculina) de Ñande Ru. Em ambos os casos há a ideia de que a mulher já existia antes da sua “criação”. Entre os Guarani, é Ñande Sy quem funda as características atuais da agricultura e a mobilidade geográfica do grupo. 4 Jaguar ou jaguara é o termo de origem tupi-guarani para nomear a onça. 5 Substância original, princípio feminino ativo do universo, fluido vital do qual se originou o universo. Emblema da feminilidade, orvalho, água, árvore da vida. É fonte de vida, “uma espécie de motor”, Capaz de recompor as pessoas, omyatyrõ. Jasuka ou Jasukávy é a base espumante da cruz, de onde procede a vida. 12 Um conflito primordial é instaurado entre Ñande Ru e Ñande Sy, fazendo com que o primeiro abandone a terra antes de torná-la habitável para os humanos. Algumas versões Kaiowá contam que quando Ñande Ru e Ñande Sy estavam para se multiplicar, recebe a visita de Papa Réi6 quando Ñande Ru estava na roça. Este ficou desconfiado e até irado quando soube da visita, pois acreditou que Papa Réi teria mantido relações sexuais com sua esposa. Então decidiu ir embora para sua morada celeste. Despediu-se dizendo a ela que “se fores verdadeiramente meu adorno (minha esposa), saberás chegar à minha morada” e saiu relampeando para iluminar o seu caminho. Além disso, enviou um vento muito forte para provocar Ñande Sy. Ela não se irritou, pegou o bastão de ritmo das mulheres e entoou o primeiro canto enumerando todas as divindades, a terra e as criaturas. Em outras versões Ñande Sy tem relações com Mba’ekuaa7, Aquele-que-sabe, logo depois de ter sido encontrada por Ñande Ru. A versão dos Apapokuva, que conhecemos graças a Nimuendaju, diz o seguinte: chegando à casa, “Nosso Pai” teria pedido a sua mulher que fosse colher milho da roça. A mulher, irritada com a solicitação do marido, não o levou muito a sério, pois ele acabara de fazer a sementeira. Ofendido com a atitude da proto-mulher, “Nosso Pai” decidiu deixar a terra. Sua esposa teria agravado seu desacato acrescentando maldosamente: “Não estou grávida de ti, mas de Mba’ekuaa (d’Aquele-que-sabe)!” (Nimuendaju, 1987, p. 135). A reação de “Nosso Pai” é tranquila, e revela a atitude de um verdadeiro Guarani: “Não responde, e muito menos castiga diretamente a desobediência” (Nimuendaju, 1987, p. 49). Ele abandona o lugar, ocasionando com sua partida um processo migracional. (CHAMORRO, 2008, p. 131) Ñande Sy estava grávida de gêmeos quando foi abandonada pelo marido. Disposta a reencontrá-lo ela se paramentou e saiu à sua procura guiada pelos filhos ainda não nascidos. No caminho ela brigou com o “Irmão Maior” ao ser picada por um inseto quando tentou colher uma flor. O filho repete a atitude tipicamente guarani de 6 Figura mítica através da qual os Paĩ-tavyterã contam a origem dos não-indígenas. Possivelmente o termo faz alusão mesmo às figuras de autoridade do Papa e do Rei. Para Bartolomeu Meliá - jesuíta e antropólogo, estudioso da língua e cultura Guarani - na narrativa em questão, essa figura seria o duplo de “Nosso Pai” e a crise travada entre eles não passaria de um conflito do proto-pai com suas próprias energias interiores, que tentam dividi-lo. Essa noção dualista está em consonância com o dualismo maniqueísta, mas como um processo de desdobramento sucessivo que organiza e dá sentido ao mundo. 7 Aparentemente esse personagem é o mesmo que Papa Réi. 13 não discutir, porém também não esquece a ofensa. Mais adiante, quando chegam a encruzilhada, o filho decidiu se vingar: percebeu que a mãe escolheu o caminho que conduz à casa dos jaguares e não a alertou disso. Os jaguares devoraram Ñande Sy deixando os gêmeos órfãos. Os irmãos viveram na casa dos jaguares até que o papagaio lhes disse que eles moravam com os assassinos de “Nossa Mãe”. Depois dessa revelação, eles saíram à procura dos restos da sua finada mãe. Após tê-los encontrado, a primeira grande tarefa de Kuarahy8 foi tentar ressuscitar sua progenitora, modelando sobre seus ossos um novo corpo feito de terra. Ele não conseguiu levar a obra a termo por uma imprudência de seu irmão menor. Ocorre a segunda morte de “Nossa Mãe” e com isso os irmãos ficam, definitivamente, órfãos. Então decidiram se vingar dos jaguares e se puseram a caminho para tal. Caminhando, eles humanizaram o mundo, deixando-o habitável, prontopara ser morada do ser humano. Deram nome às frutas silvestres e a alguns animais; fizeram armadilhas; roubaram o fogo dos urubus; descobriram outros seres humanos, alguns inimigos e seus futuros cunhados. (CHAMORRO, 2008 p. 132) Para humanizar o mundo, os Irmãos tiveram que derrotar o jaguar – representado também como Aña, uma espécie de demônio –, o único animal que pode comer o ser humano e rivalizar com ele. Inicialmente não havia diferença entre os seres humanos e o jaguares, uma vez que os gêmeos viveram na casa dos felinos e foram criados como seus iguais. “Vencendo o jaguar, o ser humano, na figura dos irmãos, inaugura a ordem no mundo” (Chamorro,2008 p. 134). Em uma de suas muitas travessuras, porém, o “Irmão Menor” causou um problema com Aña e foi morto por ele, fazendo com que o “Irmão Maior” tivesse de ressuscitá-lo a partir de seus ossos. Já cansado das trapalhadas do irmão, o “Irmão Maior” decidiu separar-se dele aparecendo apenas quando ele se esconde e assim é instaurado o ciclo do dia e da noite. Essa necessária e desafiadora colaboração entre os diferentes apresentadas pelos Gêmeos propõe o modelo de solidariedade para a vida coletiva. Dispostos a enfrentar todas as dificuldades para encontrar Nosso Pai, os irmãos são desafiados por este último a construir um caminho que os levasse até ele. 8 O Sol. O mesmo que Pa’i Kuara. Símbolo do “Irmão Maior”. 14 O “Irmão Maior” resolve a questão inventando muitas flechas e construindo uma coluna pela qual ambos conseguem ascender à morada de Ñande Ru para ocuparem seus respectivos lugares no céu. O “Irmão Maior” recebe de Ñande Ru a indumentária e os atributos que o tornam o grande xamã. O “Irmão Menor” reencontra Ñande Sy e mama nos seus seios. Quando os dois irmãos finalmente chegaram à casa de “Nossa Mãe”, foram recebidos pela arara, que lhes ofereceu frutas, pão, mel silvestre e bebida feita de milho. “Nossa Mãe” os cumprimentou com a saudação lacrimosa típica dos Tupi-Guarani e lhes disse: “Na terra, a morte é o fim de vocês. Não voltem para lá, fiquem agora aqui!” E iniciou-se a festa! (CHAMORRO, 2008, p.134) 9 A onça na cosmogonia Kaingang: metades clânicas O mito de origem dos Kaingang também remete a uma dupla de heróis culturais, Kamé e Kairu (Kañeru). Segundo os relatos coletados por VEIGA ( 2006), os primeiros Kaingang saíram do chão, em dois grandes grupos. Esses grupos não são espacialmente localizadas, como os Guaranis, isto é, não tem "posições" definidas da moradia no espaço geográfico da aldeia. Como também, não constroem aldeias circulares ou semicirculares, comuns a todos os outros Jê e aos Bororo, e portanto não demarcam a oposição espacial entre centro / periferia, masculino/feminino, público/privado, individual/coletivo que se têm apresentado como característica dos demais povos Jê (Veiga, 2006) 10 Os KAMÉ estão relacionados ao Oeste e à pintura facial com motivos compridos ( râ téi ), e os Kairu relacionados ao Leste e à pintura facial com motivos redondos ( râ ror ). As pessoas chefiada por Kairu era de “corpo fino, peludo, pés pequenos, ligeiros tanto nos seus movimentos como nas suas resoluções, cheios de iniciativa, mas de pouca persistência”. Ao contrário e complementar, Kamé e os seus eram “de corpo grosso, pés grandes, e vagarosos nos seus movimentos e resoluções". (Veiga, 2006). Essa dualidade compõe toda a visão de mundo dos Kaingang, que divide o mundo em metades complementares. Assim, por exemplo, se aos Kairu cabia iniciar um combate eram os Kamé que davam conta da guerra, 9 MELIÀ & GRÜNBERG, 1976, p. 230-232; PERASSO, 1986, p. 42-45; NIMUENDAJÚ, 1987, p. 135- 141; BARTOLOMÉ, 1991, p. 43-59, apud CHAMORRO, 2008, p.134. 10 Seeger et alii [1978] 1987p.21-23 apud Veiga , 2006. 15 sustentando a luta. Todos os elementos do mundo natural (com exceção da terra, do céu, da água e do fogo) se relacionam com essa dualidade conforme sua forma e aparência (o arredondado remete a Kairú e alongado a Kamé), assim como também a estrutura de parentesco do povo se organiza a partir dessa lógica das metades clânicas: o casamento se dá de maneira cruzada (exogamia) e a linhagem clânica se define patrilinearmente. O que pertence ao clã Kañeru é malhado, o que pertence ao clã Kamé é riscado. O Kaingang reconhece essas pintas tanto no couro dos animais como nas penas dos passarinhos, como também na casca, nas folhas, ou na madeira das plantas. Das duas qualidades da onça pintada, o acanguçu é Kañeru , o jaguareté é Kamé . A piava é Kañeru, e por isso ela vai também adiante na piracema. O dourado é Kamé. (NIMUENDAJÚ [1913] 1993p.59 apud veiga , 2006) Os kamé trabalhavam durante o dia, à luz do Sol (elemento que também pertence a essa metade), na criação dos animais, enquanto os kairú, durante a noite, à luz da Lua. Dessa forma, as criações kamé tendem a ser perfeitas e perigosas, enquanto as criaturas da metade kairú são, em geral, imperfeitas e inacabadas. Por exemplo, quando Kairú tenta fazer um animal para combater o ming (onça) criado por Kamé, faltava-lhe ainda os dentes, língua e algumas unhas, quando já estava prestes a amanhecer. Para resolver o problema, Kairú apressadamente colocou-lhe uma varinha fina na boca e disse: “você, como não tem dente, viva comendo formigas”. E assim, foi feito o ioty, tamanduá. ( Veiga, 2006). “Kanyerú fez cobras, Kamé, onças. Este fez primeiro uma onça e a pintou, depois Kanyerú fez um veado. Kamé disse à onça: ‘Come o veado, mas não nos coma’. Depois ele fez uma anta, ordenando-lhe que comesse gente e bichos. A anta, porém, não compreendeu a ordem. Kamé repetiu-lhe ainda duas vezes em vão; depois lhe disse, zangado: ‘Vais comer folhas de urtiga, não prestas para nada!’. Kanyeru fez cobras e mandou que elas mordessem homens e animais” (NIMUENDAJÚ, 1986, p.87) Diferentemente da visão Guarani em que a onça é a personificação do mal, para os Kaingang ela é vista como um parente ou amigo. Mesmo que às vezes esse parente tenha que ser combatido, os kaingang têm o desejo de travar relações com 16 ele. Os kuyás (rezadores) utilizam a onça como símbolo da sua cosmologia para curar. Às vezes, eles enxergam um ser na forma humana, em outras uma onça. Os mitos contam que Kairú fez a onça acanguçu (de malhas miúdas), e o Kamé fez a onça fagnareté (de malhas grandes). Dessa forma, o curandeiro deve cantar para a onça pertencente à sua metade para, através do sonho, curar determinada doença. No mesmo sentido, na guerra não é permitido matar animal ou pessoa pertencente à mesma metade clânica. Por exemplo, um guerreiro Kairú não pode matar a onça acanguçu. Referências bibliográficas BORBA, T. M. Breve notícia sobre os índios Caingangs, acompanhada de um pequeno vocabulário da língua dos mesmos indígenas e da dos Cayguás e Chavantes. Revista Mensal da Secção da Sociedade de Geographia de Lisboa. Rio de Janeiro, 1883, n. 2:20-36. _______ Pequeno vocabulário das linguas portuguesa e Caingangs ou Coroados. Almanach do Paraná. Curitiba, 1903. _______ Actualidade Indígena. Curitiba: Impressora Paranaense, 1908. CHAMORRO, G. TERRA MADURA YVY ARAGUYJE: Fundamento da Palavra Guarani. Dourados: Editora UFGD, 2008 MELIÁ & GRÜNBERG, G.; GRÜNBERG, F. Etnografia guaraní del Paraguay contemporáneo: los Paĩ-Tavyterã. Suplemento Antropológico, Asunción, CEADUC, 11 (1-2):151-295, 1976. NIMUENDAJÚ, C. Etnografia e indigenismo: sobre os Kaingang, os Ofaié-Xavante e os índios do Pará. [1913]. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993. ___________ As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião dos Apapocúva-Guarani. Trad. Charlotte Emmerich & Eduardo B. Viveiros de Castro. São Paulo, EDUSP/Hucitec, 1987. (Ciências Sociais). PERASSO, J. A.Ava guyra kambi (notas sobre la etnografia de los Ava-kue-chiripa del Paraguay Oriental). Asunción, 1986. VEIGA, J. Aspectos fundamentais da cultura Kaingang. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2006. Links: http://www.portalkaingang.org/index_cultura_2_1.htm http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaingang/289 http://www.antropologiasocial.com.br/Kaingang.pd 17 3. RELAÇÃO ENTRE POVOS INDÍGENAS, MEIO AMBIENTE E OS ANIMAIS11 Natureza e Cultura É uma discussão delicada e complexa a que se dá em torno dos termos “natureza” e “cultura”. Em certo sentido é possível dizer que é da natureza humana produzir cultura. Se tomarmos isso como verdade, se produzir cultura é algo natural e intrínseco à espécie humana, então cabe perguntar qual é o sentido em opor esses dois conceitos. Afinal, em um uso bastante corrente da palavra, a ideia de “cultura” aparece em contrário àquilo que é considerado “natural” ou “selvagem” e ainda imbuído em uma noção de “evolução”. Mas se produzir cultura consiste basicamente na atitude interferir e “modelar” a natureza que nos rodeia, adaptando o meio às necessidades e desejos de nossa espécie, então essa atitude não apenas participa da ideia de “natural”, como também é adotada por animais e outros seres. Uma observação mais atenta de sistemas naturais nos mostra que os seres que habitam determinado ambiente atuam pela manutenção e melhoria do sistema como um todo, afinal a vida de indivíduos e espécies inteiras depende desse equilíbrio. Assim, presas e predadores convivem no mesmo ambiente e o predador escolhe bem as suas presas, no sentido de obter o necessário a sua sobrevivência sem causar dano à manutenção da outra espécie; as formigas cortadeiras fazem uma espécie de poda em algumas plantas, mas nunca destruiriam todos os indivíduos de uma área de floresta; a cotia come uma parte das castanhas de um ouriço e enterra as demais, plantando assim o alimento para os seus descendentes. As sociedades ameríndias das terras baixas, dada sua característica de afluência12 e de subsistência13 (SAHLINS, 1972), operam em consonância com essa lógica de manutenção da vida como um todo nos ecossistemas. Tal atitude revela 11 Texto construído para o “Curso Jogo da Onça parceria COCEU /COPED NERER/ junho/2016”, sob pesquisa do Técnico Daniel Righi, da Assessora Pedagógica em Etnomatemática Eliane Costa Santos e dos Formadores (as) / Arte educadores (as) na área de indígena: Adriana Gaeta Braga, Aline Valentini, Ana Blaser, Fabio Marcio Alkmin, Flaviana Benjamin dos Santos, Júlia de Abreu, Marcele Garcia Guerra, Nádia de Souza, Roger Muniz, Wagner da Rocha Moraes. 12 De abundância, de fartura. 13 Que procura suprir apenas as necessidades de seus membros, sem produção intencional de excedente (caso este exista, é consumido coletivamente em celebrações). 18 uma cultura que se estabelece com a natureza, valendo-se das oportunidades que o ambiente oferece e colaborando para otimizá-las. Em sentido radicalmente oposto, as sociedades de acumulação de bens em geral produzem uma cultura contra a natureza, tomando a esta como mera fonte de matéria prima. Tal atitude é dispendiosa dado o gasto excessivo e constante de energia e/ou trabalho que demanda para sua manutenção: por exemplo, ao desmatar hectares de floresta nativa para estabelecer um monocultivo qualquer, a necessidade de insumos, maquinário e defensivos químicos é imensa; ao contrário, a coleta, a caça e o cultivo seminômade e rotativo, são práticas culturais que operam em consonância com os ritmos naturais. A relação entre povos indígenas, meio ambiente e os animais Em geral, nas formas indígenas de conceber o mundo, a vida humana está inserida numa teia de relações com os outros seres que o habitam, e a garantia de se obter destes o necessário ao bem-estar das pessoas as leva, não raro, à busca da mediação de seres imateriais que zelam por eles. Frequentemente os elementos naturais, sejam eles animais, plantas, rios, montanhas, chuva, ventos, etc, adquirem características humanas e/ou são associados a entidades que os governam. As cosmogias indígenas representam modelos que demostram suas visões a respeito da origem do Universo e de todas as coisas que existem no mundo. Para muitas sociedades indígenas, o cosmos está ordenado em diversas camadas, onde se encontram divindades, fenômenos naturais, animais e plantas, montanhas, rios, espíritos de pessoas e animais, ancestrais humanos e entidades sobrenaturais. Cada sociedade indígena elabora suas próprias explicações a respeito do mundo. Assim, por exemplo, entre os povos Guarani, cada elemento da natureza possui um jára (pode ser traduzido como guarda, dono, ou espírito) com o qual é possível se comunicar através de cantos e danças específicos. Mantendo uma boa relação com os jára a humanidade pode cultivar o bem viver sobre a terra. Nem sempre conseguimos enxergar esses jára pois, segundo a cosmogonia desse povo, temos teia de aranha sobre os olhos, algo como um véu de Maia, que nos permite enxergar a realidade apenas parcialmente. No Brasil, as ocupações indígenas estão localizadas em sistemas ecológicos com características próprias. Cada um desses ecossistemas gera um processo 19 específico de adaptação, desenvolvimento e técnicas de manejo. A diversidade de ecossistemas, influencia a organização social dos agrupamentos indígenas, sua distribuição espacial e o desenvolvimento de metodologias de sobrevivência. As sociedades indígenas não permaneciam em um mesmo território por muito tempo. Algumas como os Kayapó Gorotire, por exemplo, adotam um estilo de vida seminômade, permanecendo por cerca de quatro a cinco meses durante o ano fora de seus povoamentos permanentes. As aldeias indígenas eram originalmente organizadas e pensadas a partir da quantidade, da qualidade e também da distribuição espacial dos recursos indispensáveis ao desenvolvimento de cada comunidade. É possível supor que a característica de terras baixas de floresta tropical do território brasileiro seja um dos fatores que influenciou do fato de a maioria das sociedades indígenas nessa região terem desenvolvido economias de subsistência nas quais uma agricultura rotativa era complementada pela coleta de produtos da floresta e a caça. Outros povos da América Latina, não tinham essa rotatividade e, portanto, desenvolveram grandes impérios e civilizações (como os famosos Incas, Maias e Astecas), mas esse não é o caso dos povos indígenas do Brasil. As economias de subsistência, como ressalta Sahlins (1978), se caracterizam pela ideia de afluência. Não é preciso acumular bens, estabelecer a lógica de propriedade privada ou de exploração do trabalho alheio pois, com uma quantidade significativamente pequena de trabalho (cerca de 3 horas diárias) é possível obter todo o necessário à vida em termos de alimento, água e utensílios. Dessa forma, a economia de subsistência, além de não adotar um caráter predatório, estabelece uma lógica de manejo do mundo natural. Estabelecer a roça através da prática da coivara14, realizar a rotação de áreas de cultivo, a domesticação de determinadas plantas e o transporte de sementes são exemplos de práticas culturais que “humanizam” o ambiente natural ao mesmo tempo em que promovem melhorias. Trata-se de uma ecologia e economia coerentes de ocupação dos espaços, nas quais o ser humano estabelece uma relação de 14 Trata-se de uma técnica agrícola que consiste em queimar uma área delimitada da floresta, abrindo uma clareira para estabelecer a roça , uma vez que a maior parte dos alimentos consumidos pelos humanos demanda grande quantidade de luz que para seu cultivo. A eficiência dessa técnica reside no fato de que disponibilizam osnutrientes - através da própria queima e decomposição das espécies florestais - necessários à roça. Depois da colheita, uma nova área é aberta para o plantio - rotação de cultivos- permitindo que a floresta cresça ali outra vez rapidamente, rejuvenescida e fortalecida. 20 cooperação mútua com os outros seres em vez de simplesmente colocá-los a seu serviço. A natureza segundo o olhar indígena é prenhe de significado, as coisas tem sua razão de ser e a observação dos fenômenos tem muito a nos ensinar. Assim é possível, por exemplo, ao observar uma luta entre um lagarto e uma cobra venenosa, aprender que determinada planta que o lagarto sempre come para retornar à peleja é o remédio adequado para o veneno daquela cobra. Cabe-nos também chamar a atenção entre os indígenas do tronco tupi-guarani e a natureza, é a relação linguística - é impossível utilizar o pronome possessivo para nomear animais e vegetais ou quaisquer outros seres. Não existe “meu cachorro” nem “minha árvore”. Só é possível se referir assim ao que faz parte do nosso corpo, ao que foi feito por mão humana ou ao status de uma relação humana conosco (como quando se diz “minha mãe”). Essa marca linguística expressa uma visão de mundo, na qual os seres humanos não podem ser donos daquilo que não integra o universo humano - seja biologicamente ou culturalmente. No tocante à relação entre seres humanos e animais, é interessante notar que, antes do contato com os europeus, não há registro de que houvesse entre indígenas o confinamento de animais para consumo humano - pela mesma razão não integrava os hábitos alimentares de nenhum desses povos o consumo de leite de algum animal. A caça era a única via de acesso para a carne dos animais e o que mais pudesse vir deles, e mesmo essa via estava sujeita à influência da esfera espiritual, nada podendo ser feito pelo caçador sem o consentimento de forças externas ao nível humano. A presença de animais de estimação entre os povos indígenas sempre foi comum, mas a relação com eles não se assemelha àquela que hoje vemos com os chamados “pets”. A aproximação do animal costumava se dar naturalmente, pela oferta de alimento ou por brincadeira, como ainda hoje as crianças indígenas fazem com filhotes de mamíferos - na maioria das vezes - mas também com répteis e pássaros. Assim como o ser humano indígena vê a si próprio, vê também aos demais seres: fazendo parte de uma cadeia onde a supressão de um dos elementos afetaria todos os outros. Desse modo, a convivência busca o mínimo de interferência possível no modo como a vida em suas várias manifestações se encontra naturalmente disposta. 21 Os “enfeites da terra” em uma terra devastada Nos cantos Guarani e Kaiowá a terra aparece como um corpo a ser enfeitado. O termo omongy (fazer chover) fala de enfeitar, fertilizar, fortalecer, batizar. Se as sementes não fossem enfeitadas pela chuva, morreriam. Os seres humanos são ára jegua, os “enfeites do universo”. Mais uma vez essa ideia denota não apenas a integração, como a responsabilidade humana diante da natureza e seus ciclos. Entre os Aché-Guajaki acredita-se que o canto das mulheres provoca a chuva, que cai sobre a sepultura dos antepassados, enfeita a terra e estimula o crescimento das plantas. Nas plantas aninham-se os “ex- tamanduás” que, por sua vez, representam os defuntos. Fecha-se, assim, o ciclo entre o ser humano e a natureza. (MÜNZEL, 1978, apud CHAMORRO, 2008) A pergunta que cabe ser feita nos tempos atuais é: como podem os povos indígenas reproduzir sua maneira própria de ocupar, manejar e “enfeitar” a terra em um tempo em que interesses econômicos do estado-nação se sobrepõem a qualquer noção de cuidado ambiental, sistematicamente devastando os ecossistemas através do agronegócio, pecuária, mineração, construção de hidrelétricas e outras intervenções? A visão predominante de desenvolvimento econômico encara os sistemas naturais como fonte de matéria prima e recursos energéticos, ou como empecilho à produção de commodities agrícolas para exportação. A corrente noção de “progresso” se fundamenta em uma atitude destrutiva em relação aos sistemas naturais e integracionista,15 em relação aos povos indígenas. Mesmo quando uma terra indígena é reconquistada, frequentemente o lugar foi desmatado, os animais foram embora e a terra ficou esgotada pela monocultura e pelo uso intensivo de agrotóxicos. Atualmente temos o exemplo da tragédia causada no Rio Doce pela mineração e o impacto que isso gera sobre os Krenak da região. A construção da usina de Belo Monte é outro exemplo do impacto causado sobre os usos e costumes de diversas populações indígenas e ribeirinhas. 15 Durante muito tempo, a atitude declarada do Estado brasileiro e de muitos que pensavam a questão indígena era de fazer com que esses povos abandonassem sua cultura para abraçar os hábitos de matriz europeia, e assim assimilá-los a um “todo” homogêneo, que seria o povo brasileiro, a “comunidade” nacional. Essa postura ainda encontra eco em alguns setores da sociedade brasileira atual. 22 Reproduzimos a seguir o depoimento de Davi Kopenawa Yanomami que explica a relação dos Yanomamis com meio ambiente: “O antepassado que criou a floresta, Omama, nos criou também para cuidar dela. Ele não quis que a destruíssemos. Nós somos seus filhos e por isso não podemos estragá-la. Nós, habitantes da floresta e de suas colinas, de seus rios e de seus igarapés, que vivíamos nela inteira antes que os brancos se aproximassem, nós cuidamos dela com atenção. Os pajés estão sempre atentos ao seu bem-estar. Quando a floresta está doente, tomam o pó de yãkõana e curam seus males.” Referências bibliográficas CHAMORRO, G. TERRA MADURA YVY ARAGUYJE: Fundamento da Palavra Guarani. Dourados: Editora UFGD, 2008. FLUSSER, V. Natural: mente - vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011. MORAN, E. F.: A Ecologia Humana das Populações da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1990 NAVARRO, Eduardo de Almeida. Método moderno de tupi antigo: a língua do Brasil dos primeiros séculos. São Paulo: Global, 2005. RAMOS, A. R. Sociedades Indígenas. Ática, 1986 SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência In: CARVALHO, E. A. (org.). Antropologia Econômica. São Paulo: Editora Ciência Humanas, 1978 [1972]. (também em Cultura na Prática com o título “A sociedade afluente original”). Glossário de Ecologia. São Paulo: Academia de Ciências/CNPQ, 1 23 4. CULTURAS INDÍGENAS E EDUCAÇÃO ESCOLAR 16 Educação Indígena, Educação Escolar Indígena ou Educação sobre os indígenas? Ao falar sobre educação indígena é preciso antes de tudo distinguir adequadamente as similitudes e diferenças das modalidades e/ou concepções entre educação indígena, educação escolar indígena e educação sobre os indígenas. Na obra “À margem dos 500 anos”, publicada no aniversário de 500 anos da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, encontramos o artigo de Circe Bittencourt e Adriane Costa da Silva, em que as autoras buscam trazer os possíveis significados para o conceito de “educação indígena” e mostram preocupação em diferenciá-lo de “educação escolar indígena”: (...) é necessário distinguir os processos tradicionais de socialização e de reprodução de uma ordem social vividos pelas sociedades indígenas, “a educação indígena”, dos processos educativos decorrentes das situações de contato, a “educação escolar indígena” ou ainda de uma “educação para o indígena”. (BITTENCOURT, SILVA, ANO, p. 63) O Parecer 14/99 do Conselho Nacional de Educação considera que todos os povos indígenas possuem mecanismos de transmissão de conhecimentos e de socialização de seus membros, independentemente da instituição escolar, e que aescola é fruto histórico do contato desses povos com segmentos da sociedade nacional. A educação indígena se caracteriza, portanto, pelos processos tradicionais de aprendizagem e aquisição dos saberes peculiares de cada etnia, conhecimento que é transmitido de forma oral e também mimética, no dia-a-dia, nos rituais e nos mitos. Nesse sentido é preciso reconhecer sempre que os “povos indígenas mantêm vivas 16 Texto construído para o “Curso Jogo da Onça parceria COCEU /COPED NERER/ junho/2016”, sob pesquisa do Técnico Daniel Righi, da Assessora Pedagógica em Etnomatemática Eliane Costa Santos e dos Formadores(as) / Arte educadores(as) na área de indígena : Adriana Gaeta Braga, Aline Valentini, Ana Blaser , Fabio Marcio Alkmin, Flaviana Benjamin dos Santos, Júlia de Abreu, Marcele Garcia Guerra, Nádia de Souza, Roger Muniz, Wagner da Rocha Moraes. 24 as suas formas próprias de educação, e que estas podem contribuir na formulação de uma política de educação escolar capaz de atender os interesses e necessidades da realidade hoje.” (Silva, s/d, p.3) A educação escolar indígena, por sua vez, se trata de proporcionar processos de ensino-aprendizagem que garantam aos povos originários o acesso aos códigos escolares da sociedade ocidental. Segundo Luis Donizete Benzi Grupioni (2002), a escola não é uma novidade para os indígenas, afinal esses povos tiveram contato com a educação sistematizada já na época da colonização, como um instrumento que desde o início foi utilizado com o objetivo de assimilação dos autóctones à sociedade envolvente. Hoje, porém, os indígenas buscam tomar a frente de sua educação e depositam nessa luta a esperança de torná-la um lugar de resgate de sua cultura e de seus valores, que ao longo dos séculos têm sido sistematicamente suprimidos e negligenciados. No relato abaixo, o professor coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Dourados, Eliel Benites, narra como sua vida escolar foi marcada pelas dificuldades decorrentes das discrepâncias entre o modelo de educação nacional e as especificidades de seu povo, o que mais tarde o levou a aderir ao movimento de professores e lutar por uma educação verdadeiramente indígena tanto em nível escolar quanto universitário. Minha vida escolar iniciou-se na Missão Evangélica Caiuá, uma escola religiosa que atua na aldeia. Quando cheguei perto da escola, no primeiro dia, minha mãe me arrastou pelos braços porque eu não queria entrar na sala de aula, chorava muito e, enquanto eu chorava, a aula parou para me ver, situação que me fez ficar ainda mais envergonhado. Foi um momento que nunca esqueci. (...) A partir desta série, comecei a ter dificuldades porque as disciplinas eram muito compartimentalizadas e não conseguia compreender o que a professora explicava. Todas as minhas professoras eram não indígenas que vinham da cidade para dar aulas na aldeia. Minha formação inicial foi na escola primária da própria reserva, de 1985 a 1990, cujo modelo escolar seguia políticas integracionistas, que buscavam fazer o índio deixar de ser índio. 25 Quando terminei de estudar a 4ª série, como era chamada naquela época, comecei a frequentar a escola na cidade (...) Ali iniciei a 5ª série, inaugurando um período que marcou com grande impacto a minha vida. Neste período comecei a conviver com não indígenas, (...) essas pessoas, ao cruzarem os olhos sobre mim, revelavam sentimentos de “coitadinho”, de discriminação e indiferença. Sentia a rejeição por toda parte e, então, ficava muito isolado. Com isso nascia a não aceitação da minha identidade, e achava que o erro era meu e não dos outros. Tinha a necessidade de me adaptar a um ambiente que não era o meu e, nesse processo, negar o meu valor era uma saída. Quanto mais me envolvia com a sociedade não indígena, através da escola e da igreja, nascia, no meu interior, a necessidade de me adaptar a ela, a partir da negação da minha identidade, da língua materna e, principalmente, negar o lugar onde moro. (BENITES, 2014)17 Educação escolar indígena: da dominação à emancipação Segundo Ferreira (2001), a história da educação escolar entre os povos indígenas no Brasil pode ser dividida em quatro fases. A primeira, mais extensa, inicia no Brasil Colônia, quando a escolarização dos índios esteve nas mãos de missionários católicos, especialmente jesuíta. O segundo momento é marcado pela criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em 1910, e se estende à política de ensino da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), assim como à articulação com o SIL (Summer Institute of Linguistics) e outras missões religiosas. A terceira fase vai do fim dos anos 60 aos anos 70, quando surgiram grupos e organizações não governamentais em apoio à causa indígena: Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Comissão Pró-Índio (CPI), Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ), entre outros. Diante desse contexto de mobilização não apenas de seus apoiadores, mas 17 O artigo em questão foi publicado na Revista Urbânia 5, cujo projeto editorial se volta para “práticas educacionais contra hegemônicas”. Ver: https://naocaber.org/blog/2015/01/30/revista-urbania-5/ 26 sobretudo dos povos indígenas e de sua organização em movimento social a partir da década de 1970, a ideia de negação das diferenças foi substituída pelo reconhecimento das diferenças, ao menos no plano discursivo dos direitos. A educação escolar passa então a ser encarada como uma política pública, como um direito à cidadania, além de um instrumento de resistência e luta. Os anos de 1980, a quarta fase desse processo, são marcados por uma intensa articulação indígena através da realização de encontros, reuniões, congressos e assembleias “que permitiram o estabelecimento de uma comunicação permanente entre inúmeras nações indígenas, e cujo objetivo principal era a reestruturação da política indigenista do Estado” (FERREIRA, 2001, p.95). Com isso os povos indígenas passam a reivindicar a definição e a autogestão dos processos de educação formal, entrando definitivamente em cena para debater a política de escolarização e para exigir o direito a uma educação escolar voltada aos seus interesses, ou seja, uma educação que respeite as diferenças e as especificidades de cada povo. A finalidade do estado brasileiro, que procura aculturar e integrar os índios à sociedade envolvente por meio da escolarização, confronta-se, atualmente, com os ideais de autodeterminação dos povos. Para os índios, a educação é essencialmente distinta daquela praticada desde os tempos coloniais, por missionários e representantes do governo. Os índios recorrem à educação escolar, hoje em dia, como instrumento conceituado de luta. (FERREIRA, 2001, p. 71). Entre as conquistas da luta indígena está a nossa atual Constituição, promulgada em outubro de 1988, a qual dedica um capítulo (Dos Índios), inserido no Título III ‘Da Ordem Social’, ao estabelecimento dos direitos dos povos indígenas. Reconhece-lhes o direito à diferença, ou seja, à alteridade cultural, assegura-lhes o uso da língua materna e processos próprios de aprendizagem. Contudo, entre os preceitos legais e a realidade vivida há um espaço enorme, quase que um abismo, com exceção de algumas conquistas consolidadas na prática. (CARVALHO, 1998) Assim vemos que a história da educação escolar indígena mostra uma política indigenista brasileira que até 1988 estava centrada nas atividades voltadas à incorporação dos índios à sociedade nacional (presentes na Constituição de 1934, 27 46, 67 e 69). A Constituição de 1988 suprimiu essa diretriz,finalmente reconhecendo aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupavam e à educação básica em sua língua materna. Na década de 90, a educação escolar indígena, fundamentada em ações práticas que decorreram das décadas anteriores, caracterizou-se pelo fortalecimento do Movimento Indígena como protagonista de sua própria história. Surgiu então o Movimento dos Professores Indígenas e foram realizados encontros em diversas regiões do Brasil. Nesses espaços coletivos eram e continuam sendo elaborados os princípios e diretrizes para as escolas indígenas. Em fevereiro de 1991 foi sancionado pelo Presidente da República o Decreto nº26, que atribui ao Ministério da Educação a competência para coordenar as ações referentes à educação escolar indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, em parceria com a FUNAI. O Decreto também determina que as ações sejam desenvolvidas pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, em consonância com o Ministério da Educação. Ainda em 1991, o MEC criou a Coordenação Geral de Apoio as Escolas Indígenas (CGAEI) e mais tarde o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, onde fica garantido o direito a uma educação intercultural com a formação inicial e continuada de professores indígenas. As escolas nas terras indígenas (T.I.) foram criadas em 1999 e fazem parte dos sistemas de ensino do país. Estas devem se localizar em terras habitadas por comunidades indígenas, possuir organização escolar própria e regimentos escolares próprios. Seus projetos pedagógicos devem ser elaborados junto com a comunidade, sendo necessária a utilização de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto sociocultural de cada povo. Entre as competências do Ministério da Educação, no que concerne à realização de um modelo educacional baseado no respeito à interculturalidade, ao multilinguismo e à etnicidade, está a obrigação de publicar materiais didáticos diferenciados para as escolas indígenas que atendem aos Ensinos Fundamental e Médio e oferecer cursos de formação para professores indígenas. A Educação Escolar Indígena Específica e Diferenciada está progressivamente sendo implantada em todo país até hoje e os desafios são muitos. A proposta em si é prenhe de complexidades, contradições e até mesmo algumas armadilhas. Cabe aqui o exercício de imaginar o que seria uma escola verdadeiramente indígena e que tipo 28 de função ela exerceria dentro da comunidade. Será que se pareceria mesmo com o modelo que conhecemos? É preciso reconhecer que, sendo a escola uma instituição não-indígena, surgida em contextos de sociedades radicalmente distintas das sociedades indígenas, criar hoje a “escola indígena” é ainda um desafio. Ele vem sendo assumido por muita gente em muitos lugares, o que tem gerado muitas experiências importantíssimas que, aos poucos, vão permitindo um certo acúmulo de conhecimento nessa área bastante nova, mas, em nenhum caso, alguém pode afirmar com segurança que se construiu já uma “escola indígena”. Em todos os casos conhecidos, o que temos conseguido são escolas mais, ou menos, indianizadas (em alguns casos, mais indigenizadas do que indianizadas). Na esmagadora maioria dos casos são tentativas de “tradução” da escola para o contexto indígena. (D’ANGELIS, 2012, p. 72) História e Cultura Indígena na escola não indígena Durante a década de 1990, houveram mudanças na educação nacional brasileira a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN), decretada em 1996, marcando o início de uma nova fase da política, gestão e legislação do ensino no Brasil. Mais tarde a Lei 10.639/03 e sua complementar, Lei 11.645/08, alteraram o artigo 26-A da LDBN (Lei 9.394/96) ao estabelecer a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena no âmbito de todo o currículo escolar. Art. 1° O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, 29 tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras (BRASIL, 2008). Apesar dos significativos avanços na legislação, entre a lei e a sua realização sempre foi amplo o descompasso no Brasil. No entanto a pressão popular por reconhecê-lo e ultrapassá-lo continua presente, exigindo o cumprimento dos direitos expressos nas leis e buscando ampliá-los através de novas e fundamentadas denúncias, de estratégias de valorização e de visibilidade das diferentes culturas e de um vigoroso embate pela memória social na constituição histórica brasileira. Do currículo do ensino básico ao universitário, a narrativa histórica oficial, em grande parte privilegiou o ponto de vista europeu sobre a história de nossa formação. Forneceu, muitas vezes, apenas uma linha explicativa em que os indígenas não estavam presentes como sujeitos, como parte constituinte da identidade nacional brasileira. E como abordar a História e Cultura Indígena na escola? A temática da História e Cultura Indígena na escola deve ser tratada de modo a não reforçar alguns preconceitos presentes na sociedade, os quais veiculam uma representação genérica dos indígenas, contribuindo para uma padronização do imaginário coletivo. Presente há décadas no calendário escolar, o 19 de abril, quando é “comemorado” o “dia do índio”, pode ser um momento propício para a problematização da temática indígena, se nos distanciarmos de uma abordagem folclórica, que reproduz sempre o mesmo estereótipo do “ser índio”: viver nu na mata, pintado, carregando o arco e a flecha. Essa imagem não dá conta da complexidade cultural encontrada nas centenas de povos que ainda vivem no Brasil, bem como não atenta para as múltiplas realidades vividas por eles na contemporaneidade. 30 A criação do Dia do Índio não representou uma mudança de atitude do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas, pois naquele mesmo ano de 1943 foi iniciada a Marcha para Oeste, visando à ocupação e exploração econômica da região Centro-Oeste do país. Os grupos indígenas mais uma vez viram seus territórios diminuírem e foram forçados a sobreviver em pequenas áreas definidas como reservas, enquanto o território original das aldeias era loteado entre proprietários rurais incentivados pelo governo. As lutas dos povos indígenas na atualidade visam, entre outras pautas, à retomada desses territórios ancestrais, bem como ao direito à reprodução de seu modo próprio de viver. Atualmente, muitos indígenas e pessoas ligadas à luta pelos direitos dos povos originários tem dado mais destaque ao dia 09 de agosto - Dia Internacional dos Povos Indígenas. No tocante ao trabalho pedagógico, entretanto, a orientação é que se vá além das datas de referência, contemplando os saberes, as culturas e a história dos povos indígenas dentro de cada disciplina, durante o ano todo. Um grande desafio para os educadores é rever suaprópria formação escolar e acadêmica, pautada por referenciais europeus, buscando ampliá-la com outras leituras, informações e debates. Trazemos aqui, cinco equívocos muito frequentes quando se aborda a questão indígena em sala de aula, apontado no livro: O que é importante lembrar no “dia do índio”: Subsídios para a discussão da História e Cultura Indígena, produzido pelo Núcleo de Educação Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação pag. 2-4 1º equívoco: “Os índios são todos iguais”18 Essa ideia reduz a diversidade dos povos indígenas a um “bloco único”, ou seja, culturas tão diversas e complexas são reduzidas ao termo “índio”. Exemplo disso é referir-se à moradia dos indígenas como “a Oca”, que é, na realidade, uma denominação de origem Tupi-Guarani para as construções destinadas à habitação. Outros grupos, como os Xavantes, por exemplo, chamam sua moradia de “o Rí”. Explorar essas especificidades nas aulas oportuniza aos alunos a discussão e compreensão da diversidade linguística e cultural. 18 Os cinco equívocos foram apresentados originalmente por José Ribamar Bessa Freire “A herança cultural indígena, ou cinco ideias equivocadas sobre os índios” . 31 2º equívoco: “Índios têm cultura atrasada e primitiva” As tradições indígenas são ricas no que se refere à produção cultural e, em nada ficam devendo para a tradição ocidental. O preconceito em relação aos saberes indígena remonta à atitude tipicamente colonizadora de impor uma hierarquia de conhecimentos, tecnologias e discursos, na qual a cultura indígena foi relegada à posição de inferioridade. Trata-se de estratégia e argumento de dominação cultural: usurpar e expropriar conhecimentos e tecnologias, eliminando a cultura do outro da ordem do discurso. Podemos debater o que temos aprendido com os povos originários, os quais através do contato com a natureza desenvolveram saberes referentes às plantas medicinais, agricultura, manejo do solo, melhoramento genético de espécies, astronomia, etc., contribuindo amplamente para a produção do conhecimento científico. 3º equívoco: “Culturas congeladas” Qualquer cultura que se mantenha viva no tempo o faz porque é dinâmica e constantemente se transforma. A ideia de uma tradição que permaneça imutável através das gerações é uma ilusão na qual nos enredamos com frequência. A imagem congelada do indígena evoca a figura de um indivíduo nu, na selva, portando o arco e a flecha. Qualquer desvio a essa representação gera ainda resistência e crítica. A principal argumentação é de que, ao utilizar as produções materiais da cultura ocidental, como roupas, celulares, computadores, entre outros, os indígenas perderiam sua identidade; todavia, em um mundo globalizado, partimos do princípio que nós podemos nos apropriar dos bens culturais de outros povos (seja no campo da culinária, arte, língua, religião ou outros) sem deixar de ser brasileiros por conta disso. Tal atitude revela que os critérios aplicados para medir a autenticidade e identidade dos povos indígenas são injustamente diferentes daqueles aplicados às sociedades não indígenas. A troca de influências que as culturas exercem entre si estão relacionadas ao conceito de interculturalidade, que pode ocorrer de modo conflituoso ou cooperativo. Exemplo disso foi a apropriação feita pelos portugueses de elementos típicos da alimentação indígena durante os primeiros anos do contato e que permanecem presentes em nossa cultura na atualidade (beiju, mandioca, milho, legumes) e a utilização, por parte dos indígenas, de recursos tecnológicos para o registro de suas 32 tradições culturais (gravações em CD, produção de filmes e documentários, fotografias). O conceito de interculturalidade deve ser trabalhado junto aos alunos de modo que eles entendam que as culturas exercem influência mútua, ao reconstruir significados e realidades, levando à percepção de como os indígenas, na atualidade, usufruem dos bens culturais dos não índios sem perderem suas identidades. Utilizar alguns recursos que inicialmente não faziam parte de sua cultura não implica em abandono das tradições culturais. 4º equívoco: “Os índios fazem parte do passado” Os indígenas, na constituição de 1988 impuseram seu reconhecimento por parte do estado brasileiro. Contemporaneamente, de acordo com o IBGE em 2010, existem aproximadamente 305 etnias no Brasil, as quais falam mais de 274 línguas. Somam uma população estimada de 817.963 mil indígenas. Esses grupos fazem parte da sociedade brasileira e, passados 28 anos da promulgação da Constituição, continuam a lutar para ter assegurados seus direitos sociais que podem ser reconhecidos, entre outras coisas, através da luta pelo acesso e posse da terra - território para garantir a manutenção da vida. Na cidade de São Paulo existem três territórios indígenas Guarani Mbyá, dois estão localizados na Zona Sul, em Parelheiros e o outro na Zona Oeste, no Jaraguá. Além disso, cerca de 11.918 indígenas estão distribuídos na cidade de São Paulo. São das seguintes etnias: Guarani Mbyá, Guarani Nhadeva, Guarani, Maxacali, Tupinambá, Xavante, Terena, Kaigang, Krenak, Kuruáya, Pataxó, Fulni-ô, Pankararu, Kariri, Kariri-Xocó, Atikum e Lakãnõ (Xokléng). O reconhecimento desta presença contribui para localizar a população indígena no presente, como sujeitos ativos da sociedade brasileira contemporânea e não relegados a um passado colonial, restrito ao contato entre indígenas e colonizadores portugueses. 5º equívoco: “Brasileiro não é índio” O povo brasileiro se formou a partir da contribuição de três matrizes culturais (africanas, europeias, indígenas), contudo, quando pensamos em nossa identidade, poucos reivindicam a herança indígena. Historicamente, assumimos uma identidade relacionada à tradição ocidental e pouco conhecemos ou valorizamos elementos das culturas indígena e negra. Nesse sentido, a inserção dessas temáticas no currículo 33 através da lei 11.645/08 contribui para enriquecê-lo, ou seja, na medida em que as torna obrigatórias, a lei faz com que se contemplem outras matrizes que não só a europeia, dominante no currículo, antes da promulgação da lei. Referências bibliográficas BENITES, E. A história da minha vida: o caminho de um Guarani. In: Revista Urbania nº 5, p.159. São Paulo: Editora Pressa, 2014. BITTENCOURT, C.M.F. e SILVA, A. C. da. “Perspectivas históricas da educação indígena no Brasil”. In: PRADO, M. L. VIDAL, D. À margem dos 500 anos: reflexões irreverentes. São Paulo: EDUSP, 2002. CARVALHO, I. M. Professor indígena: um educador ou um índio educador. Campo Grande: UCDB, 1998. D’ANGELIS, W. R. Aprisionando Sonhos: A educação escolar indígena no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2012. FERREIRA, M.K.L. “A Educação Escolar Indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil”. In: SILVA, A.L. da. FERREIRA e M.K.L. Antropologia, História e Educação: a questão indígena na escola. São Paulo: Global, 2001. FREIRE, José Ribamar Bessa. “A herança cultural indígena, ou cinco ideias equivocadas sobre os índios.” In: Cineastas indígenas: um outro olhar : guia para professores e alunos. Olinda, PE: Vídeo nas Aldeias, 2010. Disponível em www.videonasaldeias.org.br/downloads/vna_guia_prof.pdf SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO. Diretoria de Orientação Técnica/ Núcleo De Educação Étnico-Racial. O que é importante lembrar no “dia do índio”: Subsídios para a discussão da História e Cultura Indígena. 2014. SILVA, R.H.D. da. O Estado brasileiro e a Educação (Escolar) Indígena: um olhar sobre o Plano Nacional de Educação. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/24/T0528827681841.doc. Acesso em: 25 nov. 2008. 34 5. JOGOS E BRINCADEIRAS NAS CULTURAS INDÍGENAS 19 O brincar tem sentido A ludicidade