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MARY

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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS 
 
INSTITUTO DE ARTES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SERGIO BRUCK DE MORAES 
 
 
 
 
 
Refletindo sobre processos criativos a partir 
 
 
da tradução de A linguagem da dança, de 
 
 
Mary Wigman 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Campinas 
 
2019 
 
SERGIO BRUCK DE MORAES 
 
 
 
 
 
Refletindo sobre processos criativos a partir 
 
 
da tradução de A linguagem da dança, de 
 
 
Mary Wigman 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tese apresentada ao Instituto de Artes da 
Universidade Estadual de Campinas como parte 
dos requisitos exigidos para a obtenção do título de 
Doutor em Artes da Cena, na Área de Teatro, 
Dança e Performance. 
 
 
 
Orientadora: PROFA. DRA. ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN 
 
 
 
 
 
Este trabalho corresponde à versão final da tese 
defendida pelo aluno Sergio Bruck de Moraes e orientada 
pela profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann 
 
Campinas 
 
2019 
 
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica. 
 
Ficha catalográfica 
Universidade Estadual de Campinas 
Biblioteca do Instituto de Artes 
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180 
 
Moraes, Sergio Bruck de, 1972- 
M791r Refletindo sobre processos criativos a partir da tradução de A linguagem da 
dança, de Mary Wigman / Sergio Bruck de Moraes. – Campinas, SP : [s.n.], 
2019. 
 
Orientador: Elisabeth Bauch Zimmermann. 
Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. 
 
1. Wigman, Mary, 1886-1973. 2. Dança moderna. 3. Dança - Técnica. 4. 
Dança - Estudo e ensino. 5. Processo criativo. I. Zimmermann, Elisabeth 
Bauch, 1946-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. 
Título. 
 
Informações para Biblioteca Digital 
 
Título em outro idioma: Thinking about creative processes from the translation of 
Mary Wigman's The language of dance 
Palavras-chave em inglês: 
Wigman, Mary, 1886-1973 
Modern dance 
Dance - Technique 
Dance - Study and teaching 
Creative process 
Área de concentração: Artes da Cena 
Titulação: Doutor em Artes da Cena 
Banca examinadora: 
Elisabeth Bauch Zimmermann [Orientador] 
Juliana Cunha Passos 
Ipojucan Pereira da Silva 
Marisa Martins Lambert 
Veronica Fabrini Machado de Almeida 
Data de defesa: 21-01-2019 
Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena 
 
 
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) 
- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9717-1583 
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/7356207669319046 
 
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO 
 
 
 
 
 
Sergio Bruck de Moraes 
 
 
 
 
 
 
Orientadora: profa. dra. Elisabeth Bauch Zimmermann 
 
 
 
 
MEMBROS: 
 
1. Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann 
 
2. Prof. Dr. Ipojucan Pereira da Silva 
 
3. Profa. Dra. Juliana Cunha Passos 
 
4. Profa. Dra. Marisa Martins Lambert 
 
5. Profa. Dra. Veronica Fabrini Machado de Almeida 
 
 
 
 
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes 
da Universidade Estadual de Campinas. 
 
 
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca 
examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na 
Secretaria do Programa da Unidade. 
 
 
DATA DA DEFESA: 28.01.2019 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
Agradeço ao grupo de estudo CEPECA/ECA/USP; à minha família e meus 
alunos; aos professores das bancas de qualificação e defesa, em especial às profas. dras. 
Cláudia Guimarães e Juliana Passos, e aos colegas de pós-graduação; às sras. Neusa e Letícia 
e demais funcionários do IA; aos profs. drs. João Azenha, Maria Lúcia Pupo, Leon 
Kossovitch, Marília Soares, Mariana Andraus e Marcelo Denny. Em especial, ainda agradeço 
 
à minha prima Heloísa, tradutora profissional, que me ajudou entre outras coisas a atualizar a 
linguagem, mantendo o espírito do texto, com dizem os tradutores; e à minha orientadora, que 
corajosamente acolheu um tema pouco ortodoxo e a quem dedico a tese. 
 
RESUMO 
 
 
A presente tese visa o estudo e tradução de A linguagem da dança de Mary 
Wigman (1886-1973). O livro se compõe de reflexões sobre a dança, ensino da técnica e 
sobretudo processos de criação de importantes solos, sendo traduzido a partir do alemão e 
inglês. Já no estudo apresentamos um texto teórico-prático sobre aspectos do processo criativo 
de Wigman, sua visão da dança e a prática artística do presente pesquisador em diálogo com a 
linguagem da dançarina. Deste modo, espera-se mostrar a importância deste livro tanto 
enquanto registro histórico da dança moderna, quanto inspirador de processos de criação em 
dança e teatro hoje. 
 
 
Palavras-chave: dança moderna, Mary Wigman, criação, teatro 
 
ABSTRACT 
 
 
This thesis aims to study and translate The language of dance by Mary Wigman 
(1886-1973). The book consists of reflections on dance, teaching technique and above all creation 
processes of important solos and was translated from German and English. In the study, we 
present a theoretical and practical text on aspects of the creative process of Wigman, her vision of 
dance and the artistic practice of the researcher in dialogue with the language of the dancer. Thus, 
it is hoped to show the importance of this book not only as a historical record of modern dance, 
but also as inspiring of creative processes in dance and theatre today. 
 
 
Keywords: modern dance, Mary Wigman, creation, theater 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
 
1. Introdução 
 
Elementos da pesquisa ............................................................................................................ 09 
 
Meus sonhos de paixão. .......................................................................................................... 31 
 
 
2. Tradução ......................................................................................................................................36 
 
 
3. Refletindo sobre processos criativos 
 
Mary Wigman e suas contribuições. ................................................................................... 97 
 
Breve apresentação de meu percurso artístico. ..............................................................107 
 
 
4. Considerações finais 
 
Resultados da pesquisa no cenário artístico. .................................................................. 116 
 
Resultados da pesquisa na minha prática ........................................................................ 123 
 
 
5. Referências ............................................................................................................................... 137 
 
 
Anexo A: texto original ...................................................................................................................... 139 
 
 
Anexo B: sobre ensaiar ........................................................................................................................ 194 
 
 
Anexo C: minhas ideias, práticas e espetáculos ........................................................................... 203 
9 
 
 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
1.1. Elementos da pesquisa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mary Wigman 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Monumento aos mortos 
10 
 
 
 
Apresento aqui os objetivos, procedimentos e motivação da pesquisa. Também 
contextualizo Mary Wigman e a dança expressionista. E depois destrincho elementos da 
leitura de A linguagem da dança que podem contribuir na minha prática. O objetivo não é a 
análise histórica ou estético-crítica da dança de Wigman, mas um estudo, numa perspectiva 
multifocal, de semelhanças e diferenças entre os processos criativos descritos pela dançarina 
em seu livro e minha própria prática; o que é feito em amostra. Com isso, pretendo averiguar 
a hipótese da atualidade deste livro, servindo ainda para processos criativos em dança e teatro 
contemporâneos, mostrando também a abertura do seu modo de proceder e operar. Wigman se 
utiliza de ferramentas como a sensaçãoe experiência, muito usadas ainda hoje. Não se trata de 
afirmar que ela foi a primeira ou única no período a usá-las. São na verdade princípios 
inerentes à evolução das artes, como se pode encontrar a título de exemplo na literatura 
simbolista ou no método teatral de Stanislavski. No começo do século passado, teatro e dança 
estavam bastante desenvolvidos em países como Rússia, Alemanha e Estados Unidos. 
Sobretudo entre os dois primeiros, há de se reconhecer certo intercâmbio. Sem adentrar aqui 
na questão, a sensação e experiência estão presentes no uso posterior da improvisação e ação 
física em Stanislavski. Também em Wigman é através de improvisações e conforme as 
exigências da coreografia que ela pode muitas vezes transformar uma experiência ou sensação 
num personagem, cena ou frase coreográfica cenicamente interessante. Mais recentemente, 
Barba (1995: 12) critica a separação no ocidente entre dança e teatro, causando danos a ambas 
as linguagens. Foi com o tempo que festivais franceses passaram por exemplo a acolher a 
dança, ao lado do teatro. Também o festival alemão de teatro e dança Euroscene, no qual já 
trabalhei, é exemplo de esforços focais para diminuir a separação entre ambas as linguagens. 
 
Wigman começou a dançar tarde, se comparado à idade com que normalmente se 
começa balé. Talvez esse seja um dos motivos que a levou a escolher a dança moderna, então 
emergente, como alternativa a seu modo de ver a dança. Pois enquanto o balé se preocupava 
sobretudo em preservar uma tradição cultural, exigindo um domínio técnico rigoroso em anos 
de formação dentro de um repertório corporal pré-codificado, a dança moderna buscou formas 
mais livres, que respeitassem a biomecânica e anatomia.
1
 Em vez de sequências de passo 
coladas à música, a identidade do intérprete passou a transparecer nas escolhas durante a 
criação. Não se tratava mais de repetir as sequências até a execução perfeito do que o 
coreógrafo tinha em mente, mas de transformar o movimento humano em expressão de dança. 
Wigman ainda se destacou por introduzir elementos teatrais, criando coreografias a partir de 
 
 
1 Me refiro ao balé da época de Wigman, sobretudo a partir dos anos 30 e posterior a A tarde de um fauno de 
Nijinski.
 
11 
 
 
 
personagens. Mas já Laban
2
 estabeleceu pela relação do corpo com o tempo e espaço 
diferentes modos de expressividade. Em Dança da bruxa, o caráter telúrico do personagem 
revela um modo expressivo. A experiência e sensação servem como material de criação e 
recurso na execução da dança. A primeira serve sobretudo para descobrir novos materiais a 
serem explorados no processo criativo e a segunda para refinar a atuação. Mas ambas atuam, 
indistintamente, em observações de campo, exercícios, ensaios e apresentações. Essas 
ferramentas ainda permitem uma apreensão da música como estímulo, criando diálogo ou 
contraponto com a movimentação. Essa relação de liberdade com o suporte musical ainda 
contribui para despertar a emoção do intérprete. 
 
Discutirei como Wigman relaciona improvisação, experiência e sensação, 
buscando sua atualidade. Dou o exemplo de Dança de Niobe, onde ela se vale da sua 
passagem num búnquer para traçar uma relação entre o mito grego e as mulheres que 
perderam seus filhos na guerra. E de Dança da bruxa, onde um experimento sensorial em sala 
de ensaio, com uma sensação das mãos querendo agarrar o chão, leva à criação do 
personagem. A ação ou movimentação do personagem é a forma dada ao intérprete para se 
expressar. Ainda em Sacrifício, se trata de uma relação inconsciente. Neste ciclo de danças já 
da fase madura da sua carreira, é só durante uma apresentação que ela adquire consciência da 
relação intrínseca entre as danças e uma visita feita pouco antes às Cataratas do Niágara; 
sobretudo a sensação de arrebatamento que esta visita lhe causou. O resgate da experiência 
decorre, de um lado, da estetização da vida e, do outro, do retorno a uma origem primitiva, 
como em danças satíricas na Grécia antiga. Essas características se apoiam numa valorização 
do indivíduo, em oposição ao rápido crescimento da indústria cultural e cultura de massa no 
período. Buscou-se dar um sentido de transcendência ao espaço da apresentação, com uma 
organicidade na movimentação entre centro e periferias do corpo que se opunha à visão 
mecanicista. 
 
Wigman teve papel ativo na renovação da dança, se interessando especialmente 
pela subjetividade de seus intérpretes. Está entre as primeiras coreógrafas a explorar a 
improvisação nos seus processos criativos. Se a coreografia era então geralmente só 
sequências de passos a partir de uma música escolhida, a improvisação traz novos padrões de 
composição, podendo-se alterná-la às frases coreográficas. Muitas vezes um gesto que nasce 
 
 
2 Rudolf Laban (1879-1958) foi um professor, dançarino e coreógrafo, que estabeleceu as bases da dança-
teatro na Alemanha. Também como estudioso do movimento, criou a chamada Análise Laban de Movimento, 
tendo ainda exercícios a partir do princípio do esforço aplicados em trabalhadores de fábricas inglesas. 
Wigman diz sobre ele por exemplo ter sido um guia que lhe abriu portas, lhe mostrando a dança como lugar 
onde ela escolheria viver e crescer (WIGMAN; SORELL, 1984: 30).
 
12 
 
 
 
espontaneamente é mais significativo que outro pré-elaborado. Além disso, se considera 
aspectos técnicos e estéticos quando se improvisa, como o trabalho de grupo e valorização da 
expressão em detrimento da forma, propriamente; além da influência do teatro nas escolhas 
coreográficas da dançarina.
3
 Técnicas de dança moderna ainda são praticadas com grande 
frequência, resultando em espetáculos contemporâneos. Nessa linha, Forsythe por exemplo se 
propõe a ampliar o repertório corporal e capacidade de improvisar a partir de princípios e 
exercícios específicos. 
 
Esse é o estado da arte da pesquisa. Ainda para entender as contribuições de 
Wigman na produção cênica atual, atualizando e divulgando sua dança, se buscou aqui 
praticar procedimentos improvisacionais com música, movimento e criação de personagem, 
numa metodologia aplicada à linguagem contemporânea. Assim, conceitos vindos da tradição 
são inseridos num processo atual. A dança moderna se referenciou inicialmente no caráter 
litúrgico e festivo da dança grega antiga, mas logo sistematizando e formalizando tal liberdade 
de movimento. Procedimentos de teatro e dança se entrecruzam, como mostra a busca 
expressiva de Wigman. A aproximação com o teatro é ainda posteriormente reforçada, como 
no uso reiterado de Pina Bausch da improvisação. Por exemplo, quando assisti Água senti que 
cenas mais teatrais, como de uma dançarina que contava no proscênio suas peripécias com 
uma cadeira, provocavam surpresa e reação do público, servindo de respiro a outras mais 
movimentadas com o grande elenco. 
 
A dança possibilita refletir sobre a vida, pois é dela afinal que retira seu material 
de criação. O que me parece caracterizar o bom espetáculo é acionar continuamente as 
próprias experiências de vida do espectador, num intercâmbio mútuo que modifica seus 
valores mais internos. Com isso, nem as imagens no palco são uma instância em si mesma, 
nem o artista é idolatrado como entidade. Sem dúvida, é próprio da imagem suscitar 
contemplação, mas sua atualidade advém antes da apreensão sensível que bagagem cultural 
do espectador. Ela tem efeito no nosso modo de viver na medida em que o ritmo dos 
movimentos do intérprete na música nos desperta para o sentido real dessas imagens. Ao 
inserir o cotidiano no palco, Bausch (2007b: [s.p.]) aproxima mais e mais a dança da vida. 
 
Partindo da relação entre experiência e reflexão, iniciei pela tradução do livro. 
Relato da prática da dançarina, ele é como que uma viagem pelos seus longos anos de 
trabalho. A dinâmica desse percurso, que não é só conhecimento vivido mas memória e 
atividade em grupo, se revela noseu estilo de contar sua história e criações. Pois, como se dá 
 
 
3 Uso na tese dançarino ao me referir à dança moderna. Já na tradução do livro não faço diferenciação, 
usando sempre bailarino, termo de maior alcance.
 
13 
 
 
 
o registro na dança? A primeira exigência dessa arte de narrar em palavras o próprio fazer e 
credo artístico é pensar em termos de imagem e movimento. O caráter autobiográfico é 
próprio da descrição de vivências singulares. O intérprete no palco codifica e comunica 
experiências a partir da própria sensibilidade. O conceito surge da prática. Em Wigman, 
sistema não tem sentido fechado e absoluto, mas enquanto rastreamento de exercícios e 
resultados. 
 
Se adotou como método inicial a Practice as research, que toma a prática como 
procedimento básico de investigação e o pensar concomitantemente ao fazer. Mais uma vez, 
não se trata da discussão exaustiva do pensamento e obra de Wigman, mas sim aplicação de 
alguns de seus procedimentos e ideias em estudo de casos. Cabe reforçar que a experiência e 
sensação não são conceitos definidos por Wigman em seu livro. E tal como são reconhecíveis 
nos procedimentos coreográficos da dançarina, eles também se encontram em outras áreas no 
período. Diferente por exemplo de Laban ou Graham, Wigman não se empenhou em 
sistematizar rigorosamente um vocabulário próprio de trabalho ou procedimentos técnicos à 
parte do processo criativo. Em por exemplo O nascimento da tragédia, Nietzsche destaca a 
importância não apenas da “intelecção lógica”, mas “certeza imediata da introvisão” na 
compreensão da origem da tragédia na Grécia antiga (NIETZSCHE, 1999: 27). Guardadas as 
devidas proporções, se combina aqui a leitura do livro com o entendimento da dança moderna 
e produção cênica de Wigman a partir da experiência e sensação. Assim, deduções obtidas na 
primeira tarefa servem de base não só para a “introvisão” de sua dança, como seu uso prático 
hoje. Por isso, considero aqui minha própria prática artística e aprendizado intelectual 
decorrente desta. Ainda ao tratar de O nascimento da tragédia em sua autobiografia, 
Nietzsche enfatiza a relação entre a história e sua experiência íntima, servindo a primeira de 
réplica para a segunda. 
 
Tem importância aqui o sentido pragmático do aprendizado, unindo a reflexão e 
sua aplicação (número/racional e fenômeno/empírico). Deste modo, dados coletados do livro 
traduzido e pesquisa bibliográfica não buscam só destacar os méritos artísticos da dançarina, a 
partir de informações mais facilmente à mão e sem relação com seu processo criativo. Tendo 
por base a assertiva de Nietzsche, adoto como critério aspectos mais recônditos que me 
aproximem das suas escolhas, explicitando o porquê e como criou certas coreografias. 
Metodologicamente, quanto à tradução do livro, foi feita a leitura atenta a partir da sua 
estrutura, parágrafo a parágrafo, com uso de estratégias básicas de tradução, como fluência, 
flexibilidade semântica e respeito ao espírito original do texto. O respeito à palavra de uma 
artista de tal grandeza exige o trabalho integrado da busca lexical precisa, estabelecendo a 
14 
 
 
 
relação da matriz gramatical com o desenvolvimento inevitável da linguagem. 
 
Quanto às bases teórica e prática, importa sobretudo a atualidade das ideias e 
procedimentos estudados. Além do cotejo entre o livro e produção cênica, uso exercícios da 
minha prática. Um exemplo é um exercício que explora experiências passadas. Primeiro, cada 
um conta três medos da infância. Depois, o grupo escolhe um ou dois desses medos e os 
encena. Este é um meio de levantar material cênico para criar a partir de depoimentos 
pessoais, comum no processo colaborativo. Além disso, o conceito só é buscado aqui quando 
há uma necessidade quanto ao entendimento do livro ou prática realizada ou estudada. Nunca 
o conceito só pelo conceito. Finalmente, foram adotados princípios pedagógicos de Bausch, 
com ênfase na improvisação voltada a levantar material para a cena. 
 
Considerando que o país é cada vez mais frequentado por companhias de dança-
teatro internacionais, algumas de singular importância e herdeiras da tradição iniciada por 
Wigman e outros na Alemanha, a pesquisa se justifica não só pela escolha do objeto de 
estudo, mas por um momento oportuno para sua realização. Durante as comemorações do 
centenário da primeira montagem de A sagração da primavera com Nijinski há poucos anos 
na Alemanha, além de novas coreografias para a música de Stravinski, foi feita a reconstrução 
coreográfica da versão de Wigman. A pesquisa contribui, assim, para difundir a arte alemã no 
país, especialmente aquela já a partir do século passado, proporcionalmente pouco 
considerada. Também oferece ferramentas de criação não só para artistas, como professores, 
pesquisadores e outros profissionais da área. Finalmente, ela é coerente com meu perfil e 
percurso artístico-acadêmico enquanto pesquisador. 
 
Nesse sentido, considero o que de Wigman pode ser usado no teatro e dança 
contemporâneos.
4
 Lembro como o modo de trabalhar de Bausch (2007b: [s.p.]) também de 
fatores externos que interferiram na criação. Por exemplo na coprodução com outros países, 
ela se deparou com o desconhecido, o traduzindo em dança. No meu caso, o que descobri de 
novo em Wigman? O que do seu método ou maneira de trabalhar se identifica com minha 
prática? Por exemplo, eu busco tonificar o centro do corpo, com leve contração do abdômen. 
 
 
4 Além de Bausch, a prática de Wigman tem pontos de convergência com Forsythe. Este desenvolve propostas 
atuais, que dinamizam a aprendizagem do intérprete. Além de ampliar seu repertório de movimentos como já 
dito, desenvolve o rigor na improvisação. Usa, por exemplo, letras do alfabeto para criar frases coreográficas. 
Para Wigman, ter controle dos movimentos, incluindo seu conhecimento psicomotor, não tira mas sim contribui 
para a verdade da cena. Finalmente, cito o exercício dos pequenos vetores, que criei com Sabrina Cunha. Nesse 
exercício, você movimenta rapidamente as partes do corpo para diferentes direções da sala. Opõe-se uma parte à 
outra, como se uma seta saísse do cotovelo, depois cabeça, joelho etc. As articulações estão soltas e a respiração 
controlada. Durante o doutorado, esse exercício se desdobrou numa movimentação na diagonal, onde as várias 
articulações são movimentadas ao mesmo tempo em círculos. Esse exemplo mínimo reforça a pesquisa prática 
aqui realizada, podendo ser relacionada ao trabalho de Forsythe a partir do cubo de Laban, detalhado mais a 
frente.
 
15 
 
 
 
Posso usar a imagem de um anjo que me puxa com uma corda pela lombar, ou penso que 
estou subindo o zíper da calça. A imagem tem especial utilidade no aprendizado técnico. Ela 
expressa o momento, evocando um conteúdo emocional e intelectual. A imagem faz parte do 
meu trabalho, tal como de Wigman. Como busco despertar a imaginação? Posso fazer 
perguntas: por que e quando eu danço? Pelo meu desejo como intérprete de criar belas 
imagens, por exemplo? Imaginar é ver com nosso olho interior. Além de nos possibilitar 
pensar livremente, nos leva a criar com autoridade. Ultrapassando a realidade, defrontamos 
com o desconhecido e o enfrentamos. É uma atividade tão necessária quanto ver ou comer, 
que pode ser amplamente desenvolvida. Quando nos é frequentemente solicitado imaginar, 
nos tornamos naturalmente mais criativos. Imaginando damos uma nova feição ao que nos é 
apresentado, servindo muitas vezes como propulsor do ensaio. 
 
Como algo latente que subjaz tanto à dança de Wigman como ao meu trabalho, a 
imagem deixa de ser só mental, se concretizando na cena. Tomo como exemplo meu trabalho 
durante a pesquisa sobre o trecho inicial de A metamorfose. Kafka e Wigman viveram em 
épocas e regiões próximas, se envolvendo de uma forma ou outra com as questões da guerra 
na Europa. Quanto a Wigman, voltarei constantemente a sua exploraçãodo tema da guerra. Já 
em Kafka, noto a presença da guerra na história de Gregor. No trecho inicial aqui encenado, 
se estabelece o conflito central, ocorrendo no final o reconhecimento onde uma nova situação 
leva a uma reviravolta na história. É quando Gregor abre a porta do seu quarto e sua família 
pode vê-lo transformado. De certo modo, a transformação de Gregor, que culmina com sua 
morte no final do livro, é um crime. Ainda que não haja qualquer referência direta, o clima 
opressor devido às tensões políticas durante a Primeira Guerra forma um pano de fundo ideal 
para a história. Nesse sentido, o comportamento dos Samsas restrito ao pequeno apartamento 
e sem qualquer luxo ou ambição é consequência da coerção social a que estão submetidos, 
sendo a transformação do protagonista emblema de uma vida oprimida. 
 
O instinto animal de Dança da bruxa de Wigman pode ser transformado aqui 
numa imagem de violência e primitivismo, em oposição mesmo ao raciocínio humano: 
quando a vida parece não oferecer mais oportunidade para expressar a sensibilidade para com 
o outro, a animalidade surge como única saída. Essa característica quase grotesca ultrapassa 
tratamentos às vezes excessivamente realistas que podem esconder meandros intricados e 
mesmo tumultuosos do inconsciente. Nesse sentido, o expressionismo foi um movimento que 
trouxe a tona os conteúdos interiores dos personagens, lhes dando uma expressão emocional e 
intencionalmente exagerada. A expressão é deformada, pois o interior do personagem está 
confuso. Em A metamorfose e Dança da bruxa, traços expressionistas possibilitam criar 
16 
 
 
 
imagens com certo despojamento. Também a criação de imagens elimina eventuais traços 
verborrágicos dos longos discursos internos de Gregor. Por exemplo, o personagem mostra 
sua própria imagem corporal na repulsa que sente inicialmente por seu corpo de barata. Pode-
se finalmente dizer que a relação entre ficção e música na dança de Wigman adquire caráter 
universal, pois guia e conecta com uma dimensão superior da vida. O mito serve na cena de 
exemplo à nossa conduta. 
 
Além da imaginação, desenvolvo no meu trabalho o uso do espaço, através por 
exemplo das quatro direções: frente, trás, direita e esquerda. Perceber a região das costas pode 
trazer a visão de 360° necessária ao palco. Também, desenvolver o senso de direção e a 
coordenação motora é fundamental nas relações espaciais entre os intérpretes e entre estes e o 
palco ou cenário. Ainda o desenvolvimento da expressão serve aqui para transmitir o que 
sinto profundamente, meus mais sinceros sentimentos. Pesquiso ainda uma sensualidade que 
não se reduz ao assédio. Para tanto, é preciso primeiro desbloquear, destensionar e 
desmecanizar os movimentos. Trabalho o corpo com consciência, percebendo por exemplo as 
compensações de tensão. É preciso evitar o uso vicioso da técnica, onde o corpo só executa 
sem exprimir conteúdo. Também a expressão exige o domínio dos códigos de como se mover 
no palco, nas suas inúmeras variações. Reconhecendo as qualidades e deficiências desse modo 
de trabalhar, posso adaptá-lo ao que me é solicitado em cena. Importante é que a expressão 
seja lapidada pela repetição criteriosa. 
 
Proponho um modo de encaminhar processos criativos calcado nas possibilidades 
de descobrir, inventar e criar no palco. Imaginação e expressão são duas faces que se 
completam na total interiorização e exteriorização do intérprete. Ambas ao mesmo tempo em 
cena.
5
 Em propostas como do teatro físico, onde a encenação é linguagem autônoma e o palco 
lugar de imagens, o teatro se afasta da literatura. É na mesma medida que se aproxima da 
dança. Em linguagens híbridas como a performance, estão incluídas expressões de dança, 
como em espetáculos de que participei a serem detalhados mais a frente. O que Wigman diz 
sobre a tarefa de coreografar tem uso no teatro. Ela diz: “É a visão interna em que se 
apresenta o tema? É o pensar enquanto composição espacial? O prazer artístico de modelar as 
figuras em movimento que povoam o palco? Ou é simplesmente uma comichão por um 
trabalho proposto; o estímulo a partir de uma dada música, que aciona o ímpeto criativo?” 
 
5 Durante muito tempo, o corpo foi renegado como vício da carne ou fonte de erro. Mas aqui o caminho para ser 
sincero ao criar passa pelo corpo. Para Wigman, se trata de um momento “onde tudo que é físico parece 
suspenso e leva a uma espiritualização, que eleva a criação da dança ao nível do encantamento e transfiguração” 
(abaixo: 91) (A referência “abaixo” ou “acima” diz respeito à tradução do livro presente no corpo da tese.) Na 
verdade, corpo e mente devem trabalhar aí conjuntamente. Um bom exemplo é o body mind centering, técnica 
que busca o movimento orgânico, ocupando a mente com a percepção interna do corpo.
 
17 
 
 
 
(abaixo: 53; Anexo C). 
 
Ainda outros fatores se atrelam a minha escolha do tema de pesquisa. Primeiro, 
lembro que o intérprete acorda trabalhando. Saudar o sol ou correr no quarteirão; sentir o ar 
entrando e saindo dos pulmões ou pensar no que do dia anterior pode ser aproveitado no 
espetáculo; perceber se o corpo está em condições para o trabalho ou lembrar de memória um 
texto que se está decorando ou frase coreográfica do último ensaio. Nem sempre o palco copia 
a vida. Uma simples cópia pode resultar num estereótipo, sem verdade própria. Também algo 
que julgamos errado na vida pode ser certo no palco e vice-versa. De todo modo, é vivendo 
cada momento que acumulamos experiências que nos permitem criar. E se alguns intérpretes 
buscam a espontaneidade do dia a dia, indo observar situações que se aproximam do que 
viverão no palco, outros se esmeram na disciplina da forma, se concentrando na repetição 
plástica em horas de ensaio. Estes são os dois aspectos do faz de conta de criar. Montar um 
espetáculo exige tempo. Entre quatro paredes, trabalhamos diligentemente numa direção até 
que algo especial surge. É diferente por exemplo da televisão, onde são mais comuns as 
decisões de momento. 
 
Talvez minha primeira lição de palco tenha sido no futebol. Ali, aprendi a me 
posicionar no campo, atento a qualquer contratempo, mantendo o fôlego por toda a partida e 
criando estratégias com os colegas do time. Estar em cena exige o mesmo grau de atenção, 
poder de ataque e paixão do futebol. A infância é o lugar das lembranças perenes, das 
brincadeiras antes do julgamento, como mãe-da-rua, passa-anel e corre-cotia. A criança não é 
só um adulto em miniatura. Como a bailarina na caixinha de joias, ela tem seu próprio 
encantamento. Seu mundo é o do círculo e seu pensamento do “por que não?”. Quantas 
técnicas não buscam recuperar tais qualidades, como sua capacidade de se maravilhar? 
Quantos exercícios não visam produzir o mesmo estado de excitação e descoberta? Lembrar 
as canções, histórias e brincadeiras que nos foram então ensinadas. Repetindo, imitando e 
desafiando as situações que vivencia, a criança dá sentido ao mundo. Lugar do presente e da 
lembrança, o palco não exige a mesma coerência lógica das decisões na vida. 
 
Aprendi com meu pai a gostar das coisas práticas da vida e com minha mãe a 
querer conhecer tudo que é novo e velho. Sentado na prancheta na pequena gráfica da família, 
gostava de desenhar autorretratos, enquanto não tinha de atender o telefone que tocava ou um 
cliente que chegava no balcão. Infeliz com as discussões sobre a diagramação da página, 
gramatura do papel e impressão colorida ou p&b, comecei a faculdade de teatro. Fiz iniciação 
científica sobre dança-teatro e depois mestrado voltado à improvisação. Especialmente no 
mestrado focado na criação para o palco de uma história de Kafka, pude adotar e comprovar 
18 
 
 
 
procedimentos que são aqui novamente utilizados. Mas ainda na graduação, li para as aulas de 
 
dança Dançar a vida, tomando contato com o trabalho de Wigman. Nesse livro, Roger 
 
Garaudy (1980:104) mostra que 
 
Quando Mary Wigman, durante a Primeira Guerra Mundial, estudou 
dança com Von Laban em Ancona, na Suíça, aprendeu com ele seu 
método de análise dos movimentos possíveis do homem, inscritos em 
formas geométricas estritas e contidos num icosaedro de cristal como 
numa gaiola mágica. 
Também que 
 
Mary Wigman estudou a “eurritmia” de Dalcroze em Hellereau, mas 
inverteu a concepção das relações entre a música e a dança. Para 
respeitar a especificidade da dança, a música deve, como a dança, 
nascer dos movimentos da vida. Mary Wigman chegava a dançar sem 
música alguma, sendo o ritmo de movimento marcado apenas pela 
percussão de seus pés descalços no chão. Ou então utilizava 
instrumentos orientais: instrumentos de sopro arcaicos, tambores 
hindus, gongos de Bali (id., id.: 108). 
Garaudy (id.: 118) aprofunda a origem do processo criativo de Wigman, 
mostrando seu contato com outros artistas e teóricos. Em relação a Laban, diz ainda que 
 
Como Mary Wigman, Von Laban é particularmente sensível aos 
limites dos movimentos. Uma de suas descobertas principais é a da 
relação entre as diversas orientações do movimento e a organização 
harmoniosa de suas seqüências no espaço. Suas leis da harmonia no 
espaço podem aplicar-se às proporções arquitetônicas, à plástica do 
escultor, à perspectiva do pintor, às estruturas musicais, porque 
incluem as regras da proporção, da plástica, da perspectiva e do ritmo. 
Ele cita Jooss, lembrando que este 
 
foi um dos que levaram à prática com mais força as teorias de Von 
Laban. Assistente e primeiro bailarino de Von Laban quando este, em 
1921, dirigiu o Teatro Nacional de Mannheim, Kurt Jooss colaborou 
com ele no desenvolvimento da análise das leis físicas dos 
movimentos de dança. 
Convencido de que a dança era essencialmente teatro, de que ela 
deveria expressar a verdade profunda de uma época e ajudar essa 
verdade a se expandir e se afirmar, Kurt Jooss via no expressionismo, 
como Mary Wigman, a forma de dança correspondente às exigências 
da nossa época (id., id.: 120-1). 
Garaudy (id.: 125) ainda relaciona a dança de Wigman com a de Graham e Doris 
Humphrey, dizendo que 
 
Os gestos da vida não são transpostos para movimentos de dança 
somente porque são animados, do interior, pela força de uma 
civilização e de um mundo emergente, mas também porque o artista 
imprime a este movimento o ritmo voluntário de sua vida, criadora e 
militante, em favor do advento do homem humanizado. 
Martha Graham, Mary Wigman e Doris Humphrey conceberam este 
ritmo de três modos radicalmente diferentes. 
19 
 
 
 
O ritmo fundamental para Martha Graham é o ritmo respiratório, o do 
primeiro ato da vida biológica. O conflito, para ela, está dentro do 
homem. 
O ritmo fundamental para Mary Wigman é o ritmo emocional, que 
nasce de uma paixão domada, de motivações do gesto no esforço para 
livrar-se de uma realidade externa sufocante. O conflito está dentro do 
homem, mas em sua relação com um mundo exterior que o esmaga. 
O ritmo fundamental para Doris Humphrey é o ritmo motor, que se 
forma na relação entre o corpo e o espaço. O movimento primordial é, 
para ela, um esforço para resistir à gravidade, símbolo de todas as 
forças que ameaçam o equilíbrio do homem e sua segurança. O 
conflito é entre o homem e seu meio. 
Em suas danças, Wigman buscou usar e expressar essas e outras ideias. Por 
 
exemplo em Monotonia em giro e Dança da bruxa, mostra o “ímpeto descontrolado” que leva 
 
a um “sentimento de possessão”, seja na criação ou execução (id., id.: 109-10; abaixo: por ex. 
 
57-8). Já em Chamado da morte e Ritmo de festa, a possessão surge da “noção da vida frente 
 
à morte” (GARAUDY, 1980: 110-11; abaixo: 51 e 66). Finalmente, Garaudy (1980: 150) 
destaca o caráter dramático de Hanya Holm, ex-discípula e amiga de Wigman. Apenas 
observo que não se tratava de ser discípulo no seu sentido tradicional, prestando total 
obediência a Wigman. O maior respeito que se pode ter por esta é se apropriar de seus 
ensinamentos e desenvolver sua própria dança. Nesse sentido, sua herança parece até hoje 
irrefutável, sendo revista aqui pelo estudo e tradução de A linguagem da dança. Tendo como 
objeto a linguagem, o livro trouxe novas formas de escrita do corpo no espaço, sobretudo pela 
interseção com o teatro. Este caráter híbrido tão presente na arte atual transparece, para além 
do enunciado, no próprio estilo do texto. Deste modo, espera-se contribuir para atualizar e 
difundir a arte desta grande dançarina. 
 
Wigman organizou e reelaborou várias anotações no período final da vida. 
Publicado dez anos antes da sua morte (a primeira edição é de 63, sendo usada aqui a de 86, 
conforme consta das referências), o livro é um dos resultados dessa sua atividade final. Nota-
se que Wigman então não dançava mais, mas continuando a coreografar e dar aulas na sua 
escola. Sua última apresentação pública foi de fato em 42 com Adeus e obrigado, título do 
último dos capítulos do livro que são dedicados aos seus solos. Aliás, ela dá ali as razões que 
a levaram a deixar o palco. Dentro da tradição crítica sobre arte, pode-se também constatar 
que o livro se insere na produção escrita de grandes artistas que refletem sobre sua própria 
obra. O que a história classifica de fonte primária. Mais precisamente, encontramos no 
período tanto escritos autobiográficos pioneiros como de Nijinski e Isadora Duncan, calcados 
sobretudo nas suas próprias experiências de vida; como, no polo oposto, sistematizações 
metodológicas como de Stanislavski e Laban, preocupadas em fundamentar 
20 
 
 
 
uma nova linguagem e dar à arte estatuto científico. Sistematizando novos procedimentos de 
criação, essas metodologias trouxeram, pouco a pouco, a subjetividade para o próprio corpo, 
enquanto matéria básica de criação. Se iniciou um processo de revisão da tradição, onde 
teóricos e criadores buscaram definir parâmetros técnicos e de linguagem, sem contudo se 
fechar numa visão única que desse conta das muitas transformações trazidas pela 
modernidade. Se tratava de responder à sua época com formas artísticas que dialogassem 
entre si, mas respeitando suas próprias especificidades. 
 
Com o correr do tempo, surgiram novas publicações de artistas, mas sempre 
visando definir as tendências mais modernas em relação à tradição dominante. De modo geral, 
escrever sobre a própria obra pode ser uma maneira do artista clarear para si seu trabalho 
criativo, o que nem sempre é possível nas atividades do dia a dia, frente às exigências de 
ensaios e apresentações. Muitas vezes, ele tem uma percepção do seu trabalho que não 
corresponde à de um olhar externo, como de um pesquisador em artes. Nesse sentido, é 
sempre muito interessante confrontar o discurso de grandes artistas com sua prática. 
 
Antes de mais nada, o artista é uma pessoa. A partir de Duncan, a dança deixa 
cada vez mais a reprodução de padrões externos para contar histórias pessoais. Ela dizia 
dançar sua própria vida. Ao lado da forma, o fluxo da vida dá equilíbrio e amplia o 
espetáculo, encontrando na dança moderna um celeiro de expressão. Sobretudo a partir de 
Laban, a busca pela fluência do movimento é sistematizada (análise de fatores e qualidades) 
por meio da percepção consciente da ordem em que são acionadas as diferentes partes do 
corpo. Assim, corpo, tempo e espaço comunicam modos de expressividade. 
 
Com o fim da chamada Era de Goethe, sobretudo depois da segunda metade do 
século XIX, começam a aparecer na Alemanha propostas novas e variadas, que aproximam a 
arte do cotidiano e agregam elementos tidos como inferiores numa categoria das artes. Com 
novo projeto político-econômico mas conservadorismo social e cultural, a República de 
Weimar faz acirrar a oposição entre tradição e inovação. Frente a tal tensão, artistas alemães 
buscam pela simplificação das formas romper com princípios clássicos e românticos aindaoperantes, em especial um modo de representar a realidade preso à figuração de elementos 
ideais da sociedade (ou seja, uma representação da representação). Movimentos como 
expressionismo, Bauhaus e a própria dança moderna tentam recuperar o passo da história ao 
circunstanciar suas criações na mudança de valores trazida pela modernidade. Wigman morou 
e trabalhou em cidades próximas a Weimar, como Berlim e Dresden, vivendo de perto as 
mudanças promovidas tanto pelos republicanos como depois nazistas. 
 
Se a virada do século XIX já foi um período de grande efervescência de ideias, há 
21 
 
 
 
de se notar ainda a influência das duas Guerras Mundiais na arte da dançarina, desde a escolha 
dos temas até uma redução dos objetos de cena nas viagens. Mas a mudança na ordem política 
não alterou seus princípios. Se certos artistas, à maneira de Piscator e Brecht, criticavam a 
busca insana dos alemães por novos territórios (e segundo os historiadores foi sua perda 
territorial na Primeira Guerra que os levou à Segunda), Wigman parece ter se comportado 
mais como as mulheres depois de 45, que foram às ruas recuperar os tijolos debaixo dos 
escombros. Com essa imagem poética, pretendo apenas enfatizar os aspectos emocional e 
pessoal da sua dança, como em Adeus e obrigado. No capítulo por exemplo sobre Danças de 
outono, ela faz um balanço da sua vida, confirmando suas posições estéticas frente ao 
conturbado cenário da época. O pioneirismo e atualidade de Wigman podem ser mostrados 
ainda por sua preocupação em potencializar e dar forma ao conteúdo interior de seus 
intérpretes, enfatizando sua subjetividade, como é comum ao expressionismo. 
 
O expressionismo, que teve grande representação na pintura como oposição ao 
impressionismo, destacou elementos oníricos em cena: 
 
No palco, figuras humanas recortadas através de cones de luz, por 
vezes caricaturalmente, eram depois devolvidas à escuridão, numa 
tentativa de sugerir a projeção subjetiva a partir de uma consciência 
central (do artista) sob forte tensão emocional. E os elementos 
distorcidos da cenografia, além da maquiagem carregada deformando 
a expressão facial dos atores, reforçavam objetivamente essa projeção 
(MENDES, 1987: 62-3). 
Numa aproximação ao teatro, são características do expressionismo na dança: “o 
grotesco e a careta, sublinhados por tensão muscular e deformação dos traços do rosto, um 
exagerado sentido do patético ou de carga cômica” (id., id.: 63). Assim, “O que se impôs 
mesmo foi o elemento dramático, predominando sobre a própria dança. Como formas 
alternativas, utilizava-se música composta especialmente para dança, interpretada por 
orquestras em que prevaleciam instrumentos de percussão, ou simplesmente se rejeitava a 
música...” (id., id.: 64). A denominação “dança expressionista” tem só função didática, pois 
deve-se considerar as especificidades de Wigman, que não se restringiu a esse movimento. 
Por exemplo, pode-se reconhecer a vinculação entre os temas mais recorrentes (a guerra, 
morte, feminino, mitos ancestrais ou populares e outros temas alemães revisitados, como o 
campo e as estações do ano) e formas adotadas (dança solo, dança de grupo, dança coral e a 
dança na ópera, no teatro musical etc). 
 
De qualquer modo, Wigman não foi um acontecimento isolado. Aluna de Laban, 
fez uso de seus ensinamentos, ainda que de forma não sistemática. Publicou artigos e 
participou de debates, sua técnica foi divulgada em inúmeras escolas e foi diversas vezes 
22 
 
 
 
homenageada, não só em vida. Em suas inúmeras experimentações, pode-se reconhecer 
escolhas que a aproximam das vanguardas. Cito desde a união entre arte e vida (o que no seu 
caso não implica em dissolução uma na outra), a desinstitucionalização da cultura, até a 
preferência pelo pano solto nos figurinos, em diálogo com o expressionismo ou Bauhaus e 
total oposição ao tecido armado e supercosturado do balé. Cito como exemplo Face da noite e 
A celebração; sem falar na famosa Dança da bruxa, onde o tecido dá a forma cênica exata do 
personagem. Ainda que a dança hoje tenha se diversificado enormemente com o fluxo cada 
vez maior de linguagens, há de se notar a influência de Wigman nas gerações posteriores, em 
especial na dança-teatro alemã, e o pioneirismo do livro, não só no que se refere ao 
entendimento do movimento da dança moderna nas suas necessidades internas, como também 
para o desenvolvimento da composição coreográfica. 
 
Ao lado de Bausch, Wigman é talvez a maior dançarina e coreógrafa alemã. Antes 
e depois dela, houve sem dúvida outros grandes artistas de dança moderna e balé no país; mas 
ela se destacou ainda como figura da dança. O livro tem seu valor resguardado e seu conteúdo 
voltado na maior parte para seus processos de criação justifica uma aproximação tanto teórica 
como prática. A atualidade da sua dança é também atestada pela continuidade de suas 
propostas de linguagem e ensino da técnica. Diferente Bausch, Wigman foi uma artista 
independente, mantendo sua escola até poucos anos antes de morrer em 73. Como já dito, ela 
deixou muitos descendentes, que se utilizam ainda hoje de suas propostas, mesmo que de 
forma não ortodoxa. 
 
Passando por Laban, Jooss e Wigman, se reconhece, portanto, uma linha de 
continuidade, que se desenvolve em novas técnicas e modos de ver a dança e amplia cada vez 
mais o leque de expressão do intérprete. Por exemplo, pode-se encontrar semelhanças entre 
Wigman e Bausch, em especial o interesse mais pela personalidade do intérprete que por seus 
dotes físicos, um se deixar levar pela própria intuição durante os ensaios e o uso, é claro, da 
teatralidade. A intuição é uma percepção profunda, que muitas vezes nos leva a uma ideia, 
podendo ser desenvolvida através de exercícios e trabalho. Nota-se ainda a contribuição de 
Wigman para a composição coreográfica, que então ganhava força. Pelo menos na dançarina, 
a introdução de elementos teatrais na dança não significou na perda da especificidade desta 
última linguagem. Ou seja, o uso desses novos elementos visava para ela desenvolver seus 
próprios meios expressivos. Muitos artistas da época intercambiavam aleatoriamente nas suas 
criações princípios da música, artes plásticas e até cinema, bem como outras manifestações 
aparentadas mas menos representativas. Já Wigman se valia de outras artes para aumentar a 
expressão dos recursos próprios da dança, contribuindo nesse sentido para que sua arte, então 
23 
 
 
 
em desenvolvimento, não se descaracterizasse. 
 
Viajando o mundo sozinha ou com sua companhia, Wigman teve intenso contato 
com artistas estrangeiros, não chegando infelizmente a se apresentar no Brasil. Ao contrário 
de outros renovadores como Graham, Cunningham e Limón, sua técnica quase não é ensinada 
aqui. Pode-se perguntar com a morte de Bausch: qual é o futuro da dança-teatro? Sua 
continuidade depende não só da força e sintonia das novas composições com o presente, mas 
também a transmissão dessa tradição viva a partir de novas sistematizações. É desse modo que 
contemplo os ensinamentos e coreografias (ao menos as mais marcantes) de Wigman, 
contribuindo para organizar o pensamento sobre a dança dentro das políticas bilaterais entre 
Brasil e Alemanha. Por outro lado, pode-se dizer sem medo que o interesse crescente nas 
últimas décadas pela dança contemporânea, não só por parte dos artistas e pesquisadores como 
também do público brasileiro, tem resultado em produções mais e mais sofisticadas e bem 
fundamentadas, com destaque para a atuação dos coletivos independentes. 
 
A linguagem da dança é uma mistura de reflexão sobre a arte de dançar, trajetória 
artística, compêndio técnico e “livro do professor”. Numa definição sintética, pode-se dizer 
que seu objetivo é mostrar como a dança se torna linguagem: o que ela consegue através do 
estudo do equilíbrio entre forma e fluência do movimento, atestando sua dívida com Laban.Portanto, ele não é um mero registro e nem também uma análise estética que vise promover a 
obra da dançarina. Escrito de maturidade, se vale antes das coreografias para mostrar sua 
visão da dança, procedimentos de criação e de construção da linguagem; além da coerência do 
seu percurso profissional. Atrelado aos acontecimentos da sua carreira e período em que 
viveu, ele se revela como a transmissão de uma sabedoria, adquirida em longos anos de 
dedicação ao trabalho. Isso é evidente já no primeiro capítulo, onde a dançarina expõe não só 
o que pretende com ele, mas o que a levou a escrevê-lo e para quem está dirigido. Além disso, 
ela deixa claro não se tratar de um manual de preceitos para criar uma boa coreografia ou ser 
um grande intérprete. Na verdade, encontramos a cada capítulo descrições de procedimentos 
bastante variados, conforme o tema ou forma coreográfica escolhida. Mas, ao final da leitura, 
 
é possível subentender um conjunto de regras bem preciso, representando um salto em relação 
ao pensamento anterior sobre a dança. 
 
Relacionando o fazer artístico, acontecimentos que viveu, e evolução da técnica e 
pensamento da dança (incluindo a recepção pelo público), os elementos apresentados no livro 
são parte da própria trajetória artística da dançarina, representando uma ruptura em relação à 
produção anterior e servindo de inspiração para gerações futuras. Nessa perspectiva vinculada 
ao fazer, dedica maior atenção às criações coreográficas. Na maior parte, as escolhas nessas 
24 
 
 
 
criações consideram experiências vividas fora do palco ou então sensações provocadas pelo 
movimento corporal. A dança nasce do movimento corporal, recebendo tratamento estético 
que resulta num produto a ser apreciado pelo público. Permeada por sua sensibilidade, é a 
ação do artista que produz o espetáculo ao atribuir beleza ao objeto da vida. A transcendência 
desse objeto remete a um espaço e tempo de criação. 
 
Nos seus processos criativos, a experiência ainda impregna o corpo de sensações, 
que são retrabalhadas durante os ensaios para ganhar uma força que comova, e não consterne, 
o público. Se estabelece certa separação pela manipulação dos recursos cênicos e uso da luz, 
cenário, figurino, trilha sonora, maquiagem e a própria interpretação, sendo o material de 
criação poetizado e simbolicamente transformado. Permanecem no livro certas regras de 
procedimento, passíveis de serem reutilizadas por outros artistas. Resumidamente, Wigman 
começa expondo sua concepção da dança a partir da relação com a própria vida, apresentando 
as características desta linguagem e seu uso nas outras artes. Entre outras coisas, fala da 
importância do solo como a forma mais sintética da dança, passando a descrever a criação de 
alguns solos importantes da sua carreira. Por fim, dedica um capítulo à diferença entre dança 
coral e dança de grupo e reflete sobre sua experiência como professora. 
 
Permeando essas reflexões, encontramos exemplos que atestam sua profunda 
consciência da realidade da qual participava, evitando qualquer falso exotismo; tal como se vê 
por exemplo no capítulo sobre Dança de Niobe. Ainda, é possível encontrar em The Mary 
Wigman book diversos escritos onde a dançarina mostra preocupações bastante concretas, 
como a profissionalização do intérprete e sua responsabilidade com aquilo que comunica em 
cena, a culpa dos alemães frente às duas Guerras Mundiais, o papel da mulher na sociedade, o 
resgate da cultura alemã, a divulgação da sua técnica em escolas de dança dentro e fora da 
Europa (são significativas nesse caso as cartas trocadas com Hanya Holm), a “popularização” 
da dança moderna, o uso da dança em outras linguagens como a ópera e teatro musical, o 
intercâmbio com outros intérpretes e coreógrafos de dança moderna, entre várias outras; além 
de trechos de escritos que foram publicados na impressa ou apresentados em congressos. E 
sem falar ainda em anotações de ensaio onde revela sua quase obsessão pelo trabalho 
incansável. 
 
Leitura sobretudo para iniciados, A linguagem da dança trata da transformação do 
real em símbolo. Essa semente factual sobre o produto da fantasia marca o registro das 
palavras dessa criadora. Sua importância singular frente aos novos processos de criação e 
produção parece inesgotável, superando a tradição e influenciando procedimentos atuais. 
Calcado na memória, tal testemunho assume valor histórico fundamental enquanto documento 
25 
 
 
 
artístico, revelando o espírito de uma época, marcada ao mesmo tempo pela triste experiência 
da guerra e ideias efervescentes de grandes personalidades da história. No livro, os aspectos 
de uma vida dedicada à dança se unem à força renovadora das criações por ela descritas. 
Explorando a subjetividade e dotes instrumentais do intérprete, sua dança expressa a emoção, 
numa dramaticidade que ao mesmo tempo esconde e revela. Através da aguda observação do 
humano, ela destrincha a organização harmônica do movimento no espaço, sendo o corpo aí 
receptáculo de experiências codificadas na forma final do espetáculo. A compreensão do 
progresso dos seus processos criativos e de uma dança que é também vida reconstruída no 
palco não se desvincula de sua recepção estética. 
 
Wigman teve mais de uma vez sua própria companhia, frequentemente formada 
por ex-alunos, que transformaram suas ideias em obra de arte nas várias partes do mundo por 
onde se apresentaram. Ela conhecia as exigências do trabalho coletivo, sem medo de se 
aventurar em experimentações estilísticas. Num certo sentido, seu estilo se estabeleceu a partir 
do autoconhecimento e necessidade de ser fiel consigo (abaixo: 43). Esse conhecimento do 
artista enquanto pessoa implica para ela em aprender a criar e repetir por si mesmo, falando 
“sua própria língua” (id.: 88). Tais princípios refletem no seu trabalho como professora, que 
não reduz o ensino ao material de aula. É preciso também aprender a absorver os 
acontecimentos da vida, lhes reconhecendo seu sentido recôndito (id.: 90). Esse admirar as 
coisas como quem as vê pela primeira vez se aproxima da curiosidade e encantamento da 
criança. 
 
Unindo a pessoa e a obra, Wigman transforma o espetáculo em experiência 
artística. Quando o aluno ou intérprete encontra seu caminho na arte, a intuição atua como 
guia ao lado do conhecimento (id.: 43). Também é preciso entender o corpo como 
instrumento, onde a apropriação de dimensões como altura, profundidade, comprimento, 
largura, frente, trás, lados, horizontal e diagonal garante a dinâmica da composição 
coreográfica (id.: 46). Do mesmo modo, no teatro as forças dinâmicas do corpo viram sua 
segunda natureza. Entre os exercícios teatrais para tal fim, destaco o plateau de Lecoq. 
 
O equilíbrio espacial ainda depende do desenvolvimento das partes do espetáculo 
numa configuração estruturada. Wigman exemplifica essa tarefa na solução coreográfica para 
os coros masculino e feminino em Monumento aos mortos (id.: por ex. 81-2). Também a 
forma, luz e cor se relacionam com o espaço em perspectiva, promovendo a expressão dos 
movimentos no palco. Para atingir tal resultado, recursos são mobilizados durante os ensaios. 
O esforço do trabalho contínuo deve transformar o material de criação num conteúdo 
significativo e às vezes surpreendente (id.: 91). Para Wigman, o bom resultado do ensaio 
26 
 
 
 
depende do nível de comunicação entre o diretor ou coreógrafo e intérpretes (id.: 42). 
Também quanto à técnica, Wigman usa com eficácia em seus solos o recurso de 
 
um parceiro invisível; ou seja, um ser imaginário com quem se pode dividir a cena (id.: 51). 
Paralelamente, cito como recurso expressivo na minha prática a busca do ponto dramático da 
cena, proposto pelo prof. dr. Armando Silva (ECA/USP) (aulas nas disciplinas interpretação I 
e II no curso de artes cênicas da ECA/USP, em 1994). Eu o apliquei quando dirigi um 
espetáculo de cenas teatrais commeus alunos em Mogi das Cruzes. Por exemplo, numa das 
cenas, do acerto de contas do casal central de Perdoa-me por me traíres, o ponto dramático 
estava pouco antes do seu final. Ou seja, quando este casal discutia antes de se reconciliar 
num abraço. 
 
É desse modo que ideias que me parecem essenciais em Wigman repercutem no 
meu trabalho. E na medida em que se universalizam enquanto referenciais, ganham relevância 
no esclarecimento de atributos e particularidades de espetáculos de que participei, seja pela 
similaridade ou contraste. Para mostrar como minhas reflexões a partir de A linguagem da 
dança se aplicam em outros contextos e enriquecem minhas próprias vivências profissionais, 
me deterei a seguir em pontos precisos do universo da dançarina: 1) a forma e fluência do 
movimento, processo aberto e autonomia na criação; 2) elementos cênicos na dança, como 
personagem, figurino, música, texto etc, e sua relação com outras artes, como a ópera e 
sobretudo o teatro; e 3) ferramentas da dança moderna que também são usadas na dança e 
teatro contemporâneos, como a improvisação, sensação corporal e experiência (essa inclui a 
personalidade do intérprete). Esses pontos, diluídos pela tese, serão exemplificados por 
coreografias de Wigman e espetáculos de que participei. 
 
É possível reconhecer na linguagem de Wigman um equilíbrio entre a forma e 
fluência dos movimentos no espaço, equalizando o problema da forma e fôrma, como molde 
que aprisiona. Isso pode ser observado na sua técnica e procedimentos como sendo uma 
característica da dança moderna. A linguagem da dança foi escrita de um ponto de vista 
interno, o ponto de vista do artista. Wigman não se concentra, como já dito, em desenvolver 
um vocabulário específico de trabalho, nem em sistematizar padrões rígidos de movimento 
para seus processos criativos. Na maior parte, trata no livro da criação de importantes solos e 
como desenvolve novas ferramentas de composição coreográfica, conforme as exigências de 
cada coreografia. Ao dizer que a forma não é um fim em si mesmo, mas se modifica durante 
os ensaios, ela defende a primazia da criação artística, cabendo ao espetáculo suas próprias 
necessidades. 
 
Assim, necessidades de ensaio frequentemente determinam os movimentos 
27 
 
 
 
coreográficos de suas danças. Em Figura de cerimônia, ao usar uma máscara sem orifício para 
os olhos, ela teve de se mover de modo muito contido. Contido também porque a máscara 
apresentava traços neutros, como uma figura neutra de cerimônia. Aqui a máscara determinou 
a forma do movimento do personagem. Também quanto a Monumento aos mortos, uma dança 
coral sobre soldados mortos na guerra, Wigman aponta problemas de ensaio na criação dos 
coros masculino e feminino, que se movem através de uma sonoplastia de ruídos. Nesse 
sentido, a batida de um tambor se tornou a solução para conduzir a evolução coreográfica do 
coro. Também o uso de cartas de guerras lidas por intérpretes criou empatia no público. 
Outras soluções para problemas de ensaio são a transferência de peso em Pastoral para criar a 
sensação do balanço das ondas do mar, situações de desequilíbrio com o corpo guiado pelo 
vento em Canto da tempestade, imagens criadas com o corpo no plano médio
6
 do espaço para 
representar o touro em Ritmo de festa e oposições no corpo em Canção do destino para 
expressar o desespero e rebelião contra o destino. 
 
Em Wigman, ainda existe um hieratismo ligado à estetização do movimento, 
mesmo se este é inspirado numa experiência de vida. Na dança contemporânea, essa 
estetização geralmente decresce. Como na dança contemporânea, já é possível observar aqui 
características de um processo criativo aberto. Isto é, um processo onde a intuição ocupa um 
papel importante e o trabalho não segue um fim prévio. Por exemplo, o processo de 
Monotonia em giro começou com um som de gongo, resultando em movimentos rotatórios 
como se ela fosse sugada. É similar ao começo, quando ela se sentiu sugada ou hipnotizada 
pelo som do gongo. Geralmente nos seus processos criativos estímulos iniciais a guiam para 
uma nova criação. Outro exemplo é Dança da bruxa, onde se refere a um ímpeto criativo. 
Junto com características de um processo aberto, vale notar que a época de Wigman marca o 
surgimento da figura do encenador e a ênfase no aspecto visual do espetáculo, como imagem 
cênica no palco. Para ela, a dança atinge seu objetivo quando se amplia como imagem no 
espaço. 
 
Autonomia também é uma característica da dança de Wigman. Ela diz por 
exemplo que o jovem intérprete deve buscar sua própria expressão, sem se resignar a ser mero 
imitador. Dar autonomia não é só estimular os intérpretes a criarem por si mesmos, mas 
observar o que são capazes de fazer de modo a se tornarem responsáveis pelo que expressam 
no palco. Um exemplo em Wigman é mais uma vez Monumento aos mortos, onde cada 
intérprete teve de achar por si mesmo a postura para sua máscara. Na minha carreira, 
 
 
6 Uso o termo plano como correspondente aos níveis de Laban. 
28 
 
 
 
desenvolver autonomia tem sido especialmente importante, desde meu trabalho com minha 
colega Sabrina Cunha. Também durante essa pesquisa, exercitei autonomia ao ressignificar as 
ideias de Wigman na minha prática. Finalmente, a autonomia se relaciona ainda à exploração 
da personalidade do intérprete no processo criativo, como mostrarei mais à frente. 
 
A dança hoje frequentemente inclui outras linguagens, além da música. Esse 
hibridismo já está presente na dança moderna. Wigman desenvolveu por exemplo coros 
coreografados em óperas. Em Alceste, criou o reino da morte através da dança. A 
musicalidade é especialmente importante para ela. Ela também criou danças no silêncio, mas 
muitas de suas danças usaram músicas de grandes compositores, música sacra (como em 
Canção seráfica) ou folclórica ou música composta por seus pianistas a partir da própria 
movimentação dos intérpretes. Num certo sentido, a música impulsiona fortemente a emoção 
do intérprete. Quando Wigman coreografou A sagração da primavera, pôs a música em 
primeiro plano; ou seja, esta deveria conduzir os movimentos. Como a música impulsiona a 
emoção é um procedimento adequado ao expressionismo, do qual Wigman participou. A 
música aqui estimula, criando diálogo ou mesmo contraponto com a movimentação do 
intérprete. 
 
Antes de mais nada, a técnica de movimento em Wigman é uma técnica 
expressiva, enfatizando uma vez mais a emoção e elementos teatrais. Esse recurso traz 
reconhecido impacto dramático para seus espetáculos. Isso também quer dizer investigar o 
próprio corpo e movimentos pessoais surgidos de conteúdos internos. Explorar a 
personalidade do intérprete é um novo método de criação, diferente por exemplo do balé, 
onde as habilidades físicas ocupam papel central. Ao expor sua personalidade no processo 
criativo, o intérprete na dança moderna potencializa e dá forma a conteúdos internos. Wigman 
critica o virtuosismo que leva ao narcisismo. A virtuosidade surge para ela do conhecimento 
dos músculos, articulações e respiração. Atualmente, a frase coreográfica é ainda muito 
praticada por muitos alunos, mas improvisar ajuda quando estes precisam criar movimentos 
novos e pessoais. Vencendo a resistência quando nos é cobrada autonomia e elaborando o 
material criativo, atingimos qualidade artística. Por exemplo ao usar pausas, damos cor à 
dança, ao invés de um movimento intermitente. De certo modo, esquematizamos 
conhecimentos da vida, sem nos fecharmos no preciosismo da forma perfeita. Isso exige, entre 
outras coisas, autodisciplina, talento, destreza física, noção do coletivo e prontidão criativa. 
 
 
Manipulando qualidades próprias e elementos de cena, podemos dar expressão a 
ideias às vezes muito subjetivas. Em Dança da bruxa, um tecido exótico e uma máscara 
29 
 
 
 
ajudaram Wigman a definir o personagem. Lembro que no palco, o personagemé uma pessoa, 
com suas próprias qualidades e defeitos. Em A celebração, um figurino geométrico compunha 
com a tridimensionalidade do corpo. E, como já mencionado, o texto foi usado em 
Monumento aos mortos. Para a dançarina coreografar é esculpir o corpo. Como o teatro nesse 
período insere tridimensionalidade nos espetáculos (no cenário bem como na interpretação), 
em Monotonia em giro e outras danças em giro a tridimensionalidade é central nos 
movimentos rotatórios. Essa diversidade no palco é ampliada pela dança e teatro 
contemporâneos. Mais e mais os intérpretes desenvolvem a criatividade, mesmo em 
exercícios técnicos, resultando em regras ou estruturas mais precisas que enfatizam a 
proximidade com outros colegas de cena e o público; além da inserção de associações 
pessoais na criação. 
 
A improvisação tem papel especial na técnica composicional de Wigman para 
solos e danças de grupo. Improvisar amplia os recursos da dança para ela. Por exemplo seu 
último solo, Adeus e obrigado, era uma dança muito pessoal, que mostrava seu sentimento de 
renunciar ao palco sem se resignar. Para expressar esse material subjetivo, ela usou 
movimentos livres, com uma parte do corpo acionando outra. Também em Canto da 
tempestade, ela usou movimentos livres nos planos alto, médio e baixo do espaço para 
expressar um corpo guiado pelo vento. Aqui a improvisação é direcionada para a construção 
da cena. Improvisar desenvolve especialmente a presença de palco, permitindo responder às 
propostas dos colegas. Isso é muito rico para o coreógrafo ou diretor, pois este pode ver o 
intérprete engajado na cena. É também verdade que Wigman explorou amplamente a frase 
coreográfica como ferramenta de composição, mas esta estava à disposição de sensações e 
experiências usadas na criação. Na vigorosa Dança da bruxa, frases coreográficas foram 
desenvolvidas de experimentos sensoriais em sala de ensaio. Aqui, a sensação causada pelas 
mãos agarrando o chão se transformaram num sentimento de excitação, que foi precisamente 
coreografado em movimentos centrais, como da bacia, e periféricos, como da cabeça. A 
sensação assim enriquece a movimentação. Também em Dança de Niobe, os punhos fechados 
batendo contra o peito lhe permitiram expressar indignação com a morte na guerra. 
 
Além da sensação corporal, experiências de vida como vivências são importantes 
estímulos na criação de movimentos, personagens ou cenas. Mais uma vez em Dança de 
Niobe, o horror de ter estado num abrigo antiaéreo a levou a uma dança onde uma mãe embala 
uma criança. Para Wigman, a dança não é só entretenimento, mas surge, entre outras coisas, 
do movimento humano e sua emoção, bem como observação da realidade. Observar uma 
tourada na Espanha, uma catarata de rio nos Estados Unidos e um cemitério na França 
30 
 
 
 
permitiram a ela usar associações pessoais no processo criativo. Wigman mostra profundo 
senso de observação da realidade na qual está inserida. A observação da realidade também 
tem sido importante no meu trabalho. Fiz espetáculos onde se discutiu a mecanização da vida 
moderna, a violência na sociedade e a cinestesia na cidade de São Paulo. A vida caótica de 
pessoas cheias de esperança. Como em Wigman, recursos são mobilizados conforme o tema 
do espetáculo, tendo a vida diária papel especial. Essa é uma característica do teatro e dança 
contemporâneos, onde se busca, mais que a justaposição de movimentos ou cenas, um 
processo de concentração e seleção através da repetição. 
 
A seguir explicito meu entendimento da dança e o sentido de estar no palco para 
mim. No capítulo Tradução, apresento a tradução integral do livro de Wigman, com uma nota 
inicial onde coloco dificuldades surgidas e exemplifico com termos centrais. O capítulo 
Refletindo sobre processos criativos está dividido em Mary Wigman e suas contribuições e 
Breve apresentação de meu percurso artístico. No primeiro subcapítulo, discuto dados 
biográficos de Wigman, seus processos criativos e trabalho como professora e figura da 
dança. E no segundo apresento brevemente minha carreira e discuto espetáculos de que 
participei. Já o capítulo Considerações finais está dividido nos resultados da pesquisa no 
cenário artístico e na minha prática. No primeiro subcapítulo, decanto a pesquisa a partir de 
elementos de Wigman presentes no teatro e dança da época e atuais. Finalmente no segundo 
discuto por exemplo o uso da improvisação e alguns elementos essenciais para criar e atuar no 
palco que comprovam a atualidade do livro. 
31 
 
 
 
1.2. Meus sonhos de paixão 
 
Wigman (abaixo: 44) define a dança como “uma linguagem viva que é falada pelo 
 
homem e diz respeito a ele: uma expressão artística que paira acima do plano da realidade, 
 
para falar num nível mais alto, em imagens e alegorias, das emoções mais interiores do 
 
homem e necessidade de comunicar”. Diria que a condição por trás desse trabalho é amar o 
 
homem sem subterfúgios e em tudo que lhe diz respeito. Não é tarefa tão fácil, que significa 
 
num certo sentido valorizar o sentimento de realização que vivemos de tempos em tempos. Já 
 
Bausch (2000: 11) diz: 
 
Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com 
movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, 
em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde 
ir. É aí que tem início a dança, e por razões inteiramente outras, não 
por razões de vaidade. Não para mostrar que os dançarinos são 
capazes de algo de que um espectador não é. Há de se encontrar uma 
linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de 
ânimo que faça pressentir algo que está sempre presente. Esse é um 
saber bem preciso.
7 
Numa imagem simples, a dança seria corpos em movimento. Essa imagem se 
 
efetiva ao dar ao corpo seu vigor consequente, como se dele emanasse substância existencial. 
 
Em cena nosso corpo se imola. Se essa imagem é um tanto abstrata é porque a dança depende 
 
de certa abstração. Às vezes precisamos pensar com a coluna ou respirar com o joelho. A 
 
imagem da dança é a imagem do movimento vivo, seja um dueto no palco, dois animais se 
 
acasalando, os planetas nas suas órbitas ou uma criança brincando. Ao ver o ator que acaba de 
 
entrar no seu castelo num “sonho de paixão”, se deixando mobilizar pela ficção, Hamlet 
 
esquece por um minuto o revés da sua vida e apenas admira o feito daquele artista à sua 
frente.
8
 Também a imagem da dança pede que paremos por um tempo para admirar esse vigor 
consequente ou ainda “sonho de paixão”. Sem isso, tal movimento dos corpos sempre 
 
parecerá para nós desconexo. 
 
Quando começamos a improvisar, uma das primeiras coisas que aprendemos é a 
 
não querer explicar a cena que acaba de ser feita. Ela deve falar por si. Apenas ouvimos 
 
eventualmente os comentários dos colegas para melhorá-la numa próxima vez. Da mesma 
 
forma, hesitei aqui quanto a explicações iniciais. O que posso dizer é que não esperem uma 
 
cartografia histórica e crítica de Wigman, que estaria além das minhas capacidades. Então, 
 
 
7 Numa aproximação linguística, a dança tem significado, estrutura e é dançada. Cada um dos três 
elementos totalmente dependente do outro (PRESTON-DUNLOP; LABAN CENTRE STAFF, 1979: 5).
 
8 Millôr Fernandes traduz “dream of passion” por “paixão fingida” (SHAKESPEARE, 2007: 63). Uso a 
célebre fala de Hamlet como uma referência também à dança, como algo que para Wigman está “acima do 
plano da realidade”.
 
32 
 
 
 
como reter do seu mundo o que pode me ajudar na minha carreira como intérprete? Mesclei 
seus sonhos de paixão à minha admiração, buscando nessa referência sólida do passado 
respostas para minhas próprias inquietações artísticas. Para mim a arte é um artifício e o 
intérprete um fingidor.
9
 Sei das muitas performances hoje que buscam apagar a fronteira entre 
ficção e realidade, entre eu e o outro. Mas encontrei em Wigman a reafirmaçãodo que penso 
ser a dança, como acabo de dizer. Sem necessidade de comunicar e de transformar, como 
posso estar no palco (abaixo: 44 e 52)? 
 
Nesse sentido, Nietzsche (1999: 27-30) defende que a arte é regida por dois 
impulsos opostos: o apolíneo e o dionisíaco. Um representa o sonho, medida e forma e o outro 
a embriaguez, autoexaltação e música. Esses impulsos em luta constante se reconciliam não 
só na tragédia grega como nas óperas de Wagner. Em Wigman, pode-se dizer que prepondera 
o impulso dionisíaco. De certo modo, seu trabalho intuitivo, como se observa por exemplo 
quando descreve o início e desenvolvimento de Monotonia em giro no capítulo sobre essa 
dança, se aproxima de um processo aberto e disponível, no sentido de Kerkhoven (1997: 18-
20). Ainda Nietzsche (1999: 125), ao atribuir energicamente à música a função de “vivificar o 
mundo plástico do mito”, parece ver a tragédia grega quase como um teatro dançado, 
tomando-se ainda as referências à dança em todo livro. O mais importante para ele é que o 
coro mantenha o caráter das danças sagradas a Dioniso, criando então o que se chamou 
coreografia. Essa ideia se acrescenta a Aristóteles, para quem a tragédia nasce da 
improvisação nos ditirambos (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2013: 23). Com esse 
seu novo modo de pensar, Nietzsche influencia as vanguardas europeias a partir do 
simbolismo. 
 
Para o último espetáculo de que participei antes de começar esse doutorado,
10
 
criei o refrão: “Canto desarmado, alma blindada / Deita dia a dia mil leões” (CARVALHO, 
2010: [s.p.]). Quis expressar como me sentia no momento como artista em São Paulo. Era um 
espetáculo de rua, adaptado de uma lenda folclórica e mostrava as dificuldades do nordestino 
que chega nessa cidade. Eu passava então pelo dilema entre viver da minha profissão e manter 
em mim uma qualidade na interpretação que já tinha conseguido em alguns espetáculos 
anteriores. Como manter essa qualidade em apresentações em parques públicos na periferia de 
São Paulo, em condições mais rudimentares? Assim criei o refrão. Hoje vejo que ele também 
 
9 Existe em estar em cena um desafio paradoxal, como do poeta que, segundo Fernando Pessoa, finge ser dor 
uma dor que realmente sente. O que me leva a perguntar como o intérprete que vive momentaneamente uma 
grande dor pessoal pode se apresentar, sem que isso lhe tire a eventual alegria do espetáculo? Ele deve se 
mostrar aí um verdadeiro instrumento de comunicação.
 
10
Bumba meu fusca, espetáculo apresentado em parques públicos em São Paulo, em 2009. Posteriormente, ele 
foi remontado com elenco modificado. 
33 
 
 
 
sintetizou meus dois pequenos personagens na peça: um capitão sonhador e uma prostituta 
destruída pelo asfalto. 
 
Se mobilizar de corpo inteiro é o que o palco exige do intérprete. Esse espetáculo 
de rua me deu grande prazer. Nem tanto por ele em si, mas por estar na rua, me apresentando 
gratuitamente, tentando manter o interesse daqueles que só passavam pelo local e cantando, 
dançando e interpetando sem perder o jogo de cena. Mas também quando erramos, devemos 
lembrar que o público vê o espetáculo pela primeira vez e não sabe o que vai acontecer. Com 
um pouco de jogo de cintura podemos corrigir a cena. Num espetáculo de dança muito 
preciso, isso pode ser mais difícil. Vi um espetáculo em que num certo momento um 
dançarino não amorteceu suficientemente a queda depois de um salto. O espetáculo 
continuou, mas na hora do intervalo avisaram que o programa teria de ser modificado, porque 
o dançarino tinha se machucado. Nesse caso o erro foi fatal. 
 
Quando nos divertimos com nossas ações e situações que dividimos com os outros 
em cena, cativamos o público para a história (a ficção), independentemente se triste ou alegre. 
Se divertir aqui não é só rir. É também chorar, ter medo, angústia, raiva, dúvida e qualquer 
outro sentimento que faz parte da nossa vida diária. A rua nos faz sentir certa liberdade. Além 
dos dois personagens, eu fazia cenas de grupo. Também alguns músicos participavam dessas 
cenas. Todos devíamos estar atentos às marcações, pois qualquer erro poderia destoar e 
atrapalhar os outros. Dividir uma cena nem sempre é fácil. Precisamos ouvir aquele com 
quem contracenamos, aceitar muitas vezes o que ele propõe e ainda perceber as mudanças de 
foco, sem querê-lo só para nós. Sempre que possível devemos nos dispor a melhorar a cena. E 
nesse sentido, me lembro ainda de nos ensaios aqui me divertir criando cenas de fundo, que 
passariam facilmente despercebidas para a maioria do público, mas que serviram de recheio à 
cena principal. Isso ainda me ajudava a me manter num personagem, mesmo fazendo 
figuração. 
 
Era um espetáculo colorido e alegre. Tínhamos de interpretar com certo exagero, 
falar e cantar bem alto para que mesmo o público mais longe entendesse grande parte do texto 
e também usar figurinos, adereços e maquiagens de fácil identificação. Competíamos com 
outras atrações do local. Me lembro do diretor nos ensaios pedir para que eu diminuísse as 
pausas na minha fala. Era importante manter o clima festivo durante todo espetáculo, mesmo 
que houvesse momentos mais densos. Como apresentávamos geralmente pela manhã, tinham 
muitos pais com crianças assistindo. Às vezes crianças bem pequenas. Pedíamos para elas 
acompanharem com palmas em certos momentos. Ainda que não fosse uma reação 
espontânea, isso as animava. Outro recurso era falar o texto diretamente para o público, 
34 
 
 
 
mesmo se a intenção fosse dirigida aos colegas de cena. 
 
O espetáculo não era longo e dificilmente levava o público a perder o interesse, 
como ocorre ocasionalmente mais ou menos na ¾ parte quando o espetáculo perde seu ritmo e 
aquele começa por exemplo a pensar nos seus próprios problemas, como quanto vai pagar de 
estacionamento ou o que tem para fazer no dia seguinte. Tivemos apresentações de grande 
empatia no público, pois o enredo simples tratava de problemas e inquietações muito 
próximos de quem nos assistia, às vezes pessoas bem simples do povo. Também evitamos cair 
no estereótipo ao abordar um tema tão regional. Aqui se explicitava a função social da arte. 
Que contribuição posso dar com meu trabalho como intérprete? Ver à frente, estar perto do 
meu povo e dividir o que aprendo na minha condição privilegiada de contato diário ou 
expressão de um pouco da cultura. Isso, nunca devo esquecer, é o que meu encontro com 
público me permite. 
 
Como um peixe, eu quero desbravar a água fria onde vivo. Quero ser um artista 
que pensa por si mesmo, sem ficar repetindo o que fulano ou beltrano disse.
11
 Mas se digo 
coisas que outros antes de mim já disseram? Será que cheguei a alguma essência imutável? 
Prefiro antes acreditar que essas coisas são mais importantes para mim no momento que 
outras. Reaprender pode ser um modo de evitar fórmulas prontas.
12
 Mesmo que tenha obtido 
várias respostas com Wigman, sei que algumas perguntas sempre voltam: estou pronto? Crio 
algo especial ou só o que qualquer um pode fazer? Me engajo nas minhas ações ou busco um 
paliativo? Criar exige coragem. Não podemos nos esconder atrás da profissão. Outras vezes 
ainda penso simplesmente: será que o público vai gostar? Mas enquanto crio não devo pensar 
nele. Sei que ninguém quer ver um espetáculo poluído, sem unidade e onde as ideias do 
diretor não se justificam cenicamente. Mas se o público é nosso termômetro, preciso antes 
ganhar confiança naquilo que estou fazendo.
13
 Não crio só para satisfazer o gosto do 
espectador. Se acontecer, isso é uma consequência do trabalho. Sem dúvida, ele saiu de casa, 
comprou o ingresso e está sentado na poltrona, esperando qualidade. Mas nem por isso vou 
me vender a ele. Preciso vencer uma tendência natural de querer ser aceito. 
 
Depois de se apresentar pela última vez em público, cumprindo sua promessa de 
um dia parar de dançar, Wigman (abaixo: 78) confessa angustiada:

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