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A_produção_do_fracasso_escolar_Histórias_de_submissão_e_rebeldia

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A Produção do F r a c a s s o E s c o l a r
Histórias de Submissáo e Rebeldia
D a d o s I n l r n i i i r N x iu i s d c C a ta lo g a ç A o ■■ P u b l i r a ^ ã u ( C I P ) 
( C ü m i n i H ru > ilc iru d o l . l v r o , S P , B r a s i l )
Patto. Maria Helena Sou/a
A produçSo do fraca*so escolar histórias dc subnms&o c rebeldia / 
Maria Helena Soa? a Put to. — São Paulo: Casa do Psicólojo. 19*W.
B ib l io g r a f i a .
ISBN 85-7396-
I. Estudantes — CondiçOcs sociais 2. Fracasso escolar 3. 
Preconceitos 4. Psicologia educacional 5 KcpetCncia 6. Sociologia 
educacional I. Título.
99-2309 C DD-371.28
Índico pana catálogo siucniátiro:
I. Fracasso escolar Lducaçüo 371.28
Kditor: Atum Elisa de Villtnior AmamI Gflnlcr 
Capa: Yvoiy Macambim
Maria Helena Souza Patio
A PRODUÇÃO DO 
FRACASSO ESCOLAR
Histórias de submissão 
c rebeldia
Casa do Psicólogo®
í l
1
© 2000 Casa do Psicólogo® Li varia c üditora Lida.
2“ edição, 2000 - Casa do Psicólogo® Livraria c Editora IJda. 
Ia reimpressão: 2002 
2* reimpressão: 2005
1‘ cdiçào, 1990-T A . Queiroz. Editor, Ltda. 
1* reimpressão: 1991 
2" reimpressão: 1993 
3" reimpressão: 1993 
4" reimpressão: 1996
Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa ã Casa 
do Psicólogo® Livraria e Editora Ltda.
Rua Mourato Coelho, 1.059 - Vila Madalena - 05417-011 
Süo Paulo - SP - Brasil 
Fone (11)3034.3600
E-mail: casadopsicologo@casadopsicologo.com.br 
http://www.casadopsicologo.com.br
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação para 
qualquer finalidade, sem autorização prévia por escrito dos editores.
Impresso no Brasil f Printed in Brazil
mailto:casadopsicologo@casadopsicologo.com.br
http://www.casadopsicologo.com.br
Agradeci mentos
Este estudo não teria sido possível sem u colaboração das educadoras 
e funcionários, dos alunos e dos pais dos alunos da cscola municipal 
onde foi feito o trabalho dc campo.
O apoio da Fundação Carlos Chagas, onde grande parlctla pesquisa 
sc desenvolveu, leve um papel fundamental na sua realização; Bemardette 
A. Gatti e ViLor H. Paro, pesquisadores do Departamento de Pesquisas 
Educacionais dessa Fundação, compareceram com uma leitura crítica e 
valiosas sugcslòcs.
Denneval Saviani, Alfredo Bosi, Celso de Rui Beisiegel, Sylvia 
Leser de Mello e Lino de Macedo foram membros da banca examinadora 
do concurso de livre-docéncia no qual este trabalho foi apresentado 
como tese nu Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; 
suas contribuições certamente continuarão a ser incorporadas à nossa 
produção ao longo dos próximos anos.
Denise Trento, lanni Scarcclli e Sandra Sawaya foram companheiras 
solidárias e corajosas de uma longa viagem por tim bairro pobre e uma 
escola pública da cidade de São Paulo.
A autora agradece ao CNPq e à Finep pelo apoio financeiro em 
diferentes momentos da realização desta pesquisa
M.H.S.P.
Prefácio à segunda edição
Desde seu lançamento, este livro de Maria Helena estava destinado 
a provocar um grande impacto na comunidade científico acadêmica, 
especialmente nas áreas de Psicologia c de Educação. Na área de 
Psicologia Escolar originou um elevado número de pesquisas, inclusive 
sobre seu reverso, o sucesso escol ar. No que concerne à educação, as 
repercussões desta obra foram de tal monta que. em 1995, mereceu o 
prêmio de livro de maior relevância para a área, concedido pela 
APEOESP. Assim, se. ao apresentar a edição original. Sylvia Leser de 
Mello reconhecia que um livro forre e sugestivoconv) este nüo necessitava 
de longos comentáriosr introdutórios, na presente edição, penso, nada 
mais seria necessário dizer. Autora e obra são sobejamente (reconhecidas 
e talam por si mesmas. Bis porque lisonjeou-me tanto o convite de 
María Helena paia que eu dissesse algumas palavras sobre ele. F. se o 
aceitei, foi para aproveitar esta oportunidade e chamar a atenção dos 
aluais leitores para aspectos que. a despeito de sua relevância, acabam 
quase sempre embaçados pelo vigor das idéias centrais. Refiro-me às 
relações entre a escola e as famílias que refletem, muito além da maneira 
como as teorias e os profissionais da escola concebem as relações entre 
educação familiar e educação escolar, os estereótipos e os preconceitos 
no que concerne às pessoas pobres e, especialmente, à vida familiar 
predumiriante enlre elas. lim a nova apropriação do texto, talvez um 
pouco mais acurada, é a minha proposta.
Política e profissionalmente comprometida com o seu tempo, Maria 
Helena Patto destaca-se na busca coletiva de novos rumos para a Psi cologia 
Escolar brasileira. Eis porque seu inconformismo com os altos índices de 
evasão e repetência, cm escolas públicas de primeiro grau. foi suficiente 
para mobilizá-la no intuito de realizar as duas tarefas por ela assumidas na
Introdução deste livro: revisar criticamente a literatura sobre fracasso 
escolar e dar continuidade às pesquisas nessa área.
No que diz respeito à revisão da literatura, contida na primeira 
parte do livro, além <le uma contribuição inestimável ao estudo das 
relações entre a ciência psicológica c a educação, ela fornece os 
fundamentos para a construção de novos saberes concernentes à 
escolarização das cam adas populares. Em relação à pesquisa — 
apresentada e discutida na segunda parte deste livro — , ao invés de 
limitar-se à continuidade promecida, o que María Helena faz é uma 
ruptura teórico-metodológica, que lhe permitirá analisar o fracasso 
escolar de maneira inovadora, enquanto processo psicossocial.
E, em bora tam bém esta obra só possa se r in teg ra lm en te 
compreendida em seu conjunto, é da (re)leitura cuidadosa dessa segunda 
parte que emerge, em certa medida, o reconhecimento desse mérito. 
Nela a autora, além de demonstrar a íntima relação entre teoria e pesquisa, 
convida o leitor a acompanhar os sucessivos passos de sua pesquisa de 
campo. De uma pesquisa inovadora, pioneira mesmo, desde as bases 
teóricas que a fundamentam — cm especial o conceito de cotidianidade, 
segundo Agnes Heller —, ã metodologia e até à escolha dos sujeitos.
Para o pesquisador — em especial o jovem pesquisador e o pós- 
graduando, ainda iniciantes no trabalho de campo — esta obra oferece 
uma preciosa lição de rigor cm pesquisa qualitativa, quando ainda d tno 
precário o entendimento dessa modalidade de fazer ciência. Este rigor 
torna-se mais visível na escolha dos instrumentos c!e coleta de dados: 
observação e entrevista. Sem dúvida, a entrevista é sempre insuficiente 
quando se trata de apreender as relações intersubjetivas No caso da 
situaçao escolar, o recurso à observação, já tradicional na Psicologia, 
toma-se essencial ao pesquisador de campo interessado nas aspectos 
mais sujeitos à camuflagem, ao encobrimento, quando o seu objeto de 
pesquisa envolve estereótipos e preconceitos. Sc as ambigüidades podem 
ser percebidas nas falas, as contradições entre o discurso c a ação 
pedagógica só se revelam por meio da comparação entre eles, discurso 
e ato. Em outras palavras, este livro demonstra, de maneira inequívoca, 
que a face menos visível do fazer pedagógico se toma acessível quando 
se conjugam observação e entrevista. Mas o rigor da pesquisadora 
ressalta, também, o cuidado na escolha dos sujeitos. Reconhecendo os 
limites das análises que privilegiaram apenas os profissionais da escola, 
a pesquisadora inclui, também, as famílias e os alunos que apresentam 
uma história de fracasso escolar. E, pela vez primeira, a perspectiva dos 
sujeitos é levada em conta nu estudo do que se convencionou chamar
fracasso escolar. E, ao faze-lo. María Helena (re)coloca em debate a 
relação entre escola e vida familiar.
Mas, observem, a autora pòe essa relação em novos termos, à medida 
que recorre a aspectos da história de vida famil iar das professora-v. em sua 
busca de melhor compreender a atividade docente. Assim, ao contrapor a 
prática pedagógica de duas professoras. Maria Helena revela-nos, com 
propriedade, como a história pessoale a familiar influenciam: a maneira 
particular de cada uma delas perceber a família e a criança pobre:, a partir 
de estereótipos e preconceitos; o modelo disciplinar que norteia as suas 
relações com os alunos; as concepções sobre as relações ensino- 
aprendizagem em seu sentido mais restrito; as atitudes por elas assumidas 
no intnncado jogo das relações hierárquicas de poder no interior da escola. 
E tudo isso influencia a valorização institucional atribuída a cada 
professora, que. ao fim e ao cabo. vai refletir-se eni sua ação pedagógica.
Todavia, é ao contrapor a perspectiva da instituição à dos sujeitos, 
família e alunos, que Maria Helena mostra, ao seu leitor, a maneira 
insidiosa de se produzir o fracasso escolar não basta produzi-lo no cotidiano 
escolar. 6 necessário inculcá-lo nas mentes enquanto a escola se esforça 
por tndosus meios, em docilizaros corpos. Nas falasdas mães. juntamente 
com a valorizarão da escola, a autora identifica os sentimentos de 
ilegitimidade e de fracasso — anteriormente interiorizados e em cuja 
continunidade a escola revela empenho. Identifica, ainda, a perplexidade 
dianle do fracasso escolar dos filhos, "uma profunda dificuldade de 
compreender o que acontece e uniu angústia de nâo saber como explicar, 
muitas vezes contornada pela repe/ição do discurso considerada o único 
legitimo (o discurso competente), em suas várias versões Mas Maria 
Helena atribui uma certa ambigüidade a esses discursos, à medida que se 
depara com uma percepção mais crítica da instituição. Ambigüidade que 
também se demonstra nas falas das professoras.
Essa maneira insidiosa e cruel dc tecer o fracasso aparece com 
nitidez nas quatro histórias de (re)provação escolar. Nelas, não é só a 
perversidade do processo que a autora nos revela; é a crueldade com a 
qual o fracasso 6 tecido. Alunas comuns süo estigmatizados, a priori, 
por algumas marcas derivadas de sua herança étnica e/ou por suas 
condições sociais e culturais de vida. A partir disso, o seu destino escolar 
passa a ser traçado. A experiência escolar é avaliada sem que a escola 
considere a maneira como ela mesma se relaciona com a subjetividade 
do aluno. E. sobretudo, sem levar em conta a maneira singular desse 
aluno viver nos extra-muros escolares. O que a autora denuncia é a
participado ali va dos profissionais — diretores, professores, orientadores 
educacionais, psicólogos e médicos — no processo de estigmatizar e 
discriminar o aluno, quase sempre rotulado de “deficiente mental”. Ou 
seja, Maria Helena dá visibilidade à força dos estereótipos e dos 
preconceitos de classe enquanto determ inantes das relações entre 
profissionais da escola, as famílias e as crianças pobres. Sem meias 
palavras, diz-nos: **o destino escolar de uma criança burguesa porl;idora 
dos mesmos problemas de aprendizagem certamente seria outro”. E não 
busquem nenhum grau de gratuidade nessa afirmação, que se tomou 
possível porque a pesquisadora combateu a senso comum , promoveu 
uma necessária conversão do olhar, fez a verdadeira ciência, nos termos 
em que a define Pierre Roiirdicu (1989).
Finalmente, nesta época de tamanha desesperança, 6 preciso dizer 
que esta obra polêmica e instigante aponta, inclusive, para a importância 
dos grupos informais de alunos e a complexa relaçào da criança com a 
rua. A força desses grupos, aliás, foi também reconhecida por Paul 
Willis (1977). em sua análise da escolarização de crianças pobres cm 
escolas inglesas. A Maria I lelena não escapa o duplo papel desses grupos: 
junto com a rebeldia, repiesentam a possibilidade de tornar imperfeita a 
docilizuçüo dos corpos, de defender a própria dignidade e integridade 
c. pois, escapar à submissão total.
E. penso, 6 tarefa da escola recriar-se se quiser reconquistar crianças 
e jovens. Especialmente nesies tempos <le ncoliberulismo, quando volta 
a ser empunhada a velha bandeira da educação popular, representada 
agora pelo lema "Ioda criança na escoia". em contraste com uma política 
económ ica que gera m aior concentração de renda, aumento das 
desigualdades suciais e de desemprego. A inquestionável generalidade e 
atualidade dos problemas apontados por Maria Helena neste livro evoca- 
me uma conhecida indagação de Miguel Arroyo:
“(...) Afinal, é ou não possfvel tornar realidade a escolarização 
fundamental para os filhos do povo deste país, neste país? Esta questão 
vai e volta na história do pensamento educacional. Estamos num 
momento em que a sensibilidade nacional e a dos profissionais da 
educação. sobretudo, voltam-se para este problema. A escola está de 
novo em questão.”
Jcrusa Vieira Gomes
Doccntc da Faculdade dc 
Educação da USI*
Sumário
Apresentação da primeira ed ição .................................................................9
Introdução................................................................................................... 15
Pkimiíika P arte 
O FRACASSO ESCOLAR COMO OBJETO DE ESTUDO
1. RAÍZES HISTÓRICAS DAS CONCEPÇÕES SOBRE O 
FRACASSO ESCOLAR: O TRIUNFO DE UMA CLASSE E
SUA VISÀO DE M U N D O ............................................................... 23
A era das revoluções c a era do capital............................................ 24
Os sistemas nacionais de ensino.......................................................37
As teorias racistas................................................................................45
A psicologia diferencial .................................................................... 54
A genialidade hereditária............................................................ 54
Como diagnosticar as aptidões dos escolares......................... 58
Quem será educado?.................................................................... 65
Teoria da carência cultural: o preconceito disfarçado?.......67
2. O MODO CAPITALISTA DE PENSAR A ESCOLARIDADE:
ANOTAÇÕES SOBRE O CASO BRASILEIRO.........................73
Fracasso escolar: dados sobre a pré-história de uma explicação. 74
Primeira República e liberalismo...............................................74
O contraponto das teorias racistas.............................................. 85
Jeca Tatu: o poder de um mito................................................... 94
O lugar da Medicina na constituição da psicologia
educacional...................................................................................100
Fracasso escolar: a natureza do discurso oficial........................... 110
A Revista Brasileira de Estudas Pedagógicos.......................... 110
A marca liberal............................................................................ 111
Das causas dn-fracasso escolar: um discurso fraturado......113
Das causas do fracasso escolar: uma tentativa de sutura
do discurso fraturado.................................... .......................... 120
Liberal-dcniocracia e política educacional: afinal.
quem são os mais ap to s? .............................. ............................. 127
Situação do ensino: um diagnóstico que se repete................ 134
Outras publicações......................................................................137
A leoria da carência cultural........................................................ 138
As teorias critico-reproduthlstas e a pesquisa
do fracasso cscolar....................................................................... 142
A pesquisa recente: ruptura c repetição ..................................... 147
SfiCH NiiA Parte 
A V/DA NA ESCOLA: VERSO E REVERSO 
DA RACIONALIDADE BUROCRÁTICA
A TEORIA E A PESQ UISA.............................................................. 161
I TEXTO E CONTEXTO................................................................. 187
2. O BA IR R O ....................................................................................... 195
3. CONTROLE DA QUALIDADE E QUALIDADE DO
CONTRO LE......................................................................................210
A resistência possível.......................................................................220As crianças que “se reprovaram "...................................................237
Educadores e usuários: um confronto desigual........................... 244
As artimanhas do poder....................................................................252
4. UMA INCURSÃO NOS BASTIDORES: O MUNDO
DA SALA DE AULA...................................................................... 266
Um intrigante jogo de espelhos...................................................... 266
Reflexos num olho am bíguo .........................................................274
Pequenos assassiturtos...................................................................277
A rebeldia em duas versões ..........................................................290
Os corpos quase dóce is ........................................................................295
Uma imagem constantemente retocada ......................................314
5. O DISCURSO COMPETENTE E SEUS REVESES:
A FALA DAS M ÃES....................................................................... 321
6. QUATRO HISTÓRIAS DE (RE)PROVAÇÀO ESCO LA R... 342
A história de Ângela........................................................................ 342
A história de Augusto....................................................................... 363
A História dc Nailton ......................................................................379
A história dc Humberto................................................................... 393
7. DA EXPERIÊNCIA À REFLEXÃO SOBRE A
POLÍTICA EDUCACIONAL: ALGUMAS ANOTAÇÕES .... 403
A nexos.......................................................................................................419
Referências bibliográficas....................................... ........................... 447
Apresentação da 
primeira edição
Um livro forte c sugestivo como este não necessita de longos 
comentários introdutórios. Os nieus .são mais inspirados no desejo de 
homenagear uma antiga e constante amizade do que fazer uma análise 
crítica do trabalho de Maria Helena. Espero que o leitor possa envolver- 
se nos caminhos que ela escolheu para elucidar o intrigante mistério do 
fracasso escolar das crianças dos segmentos mais pobres da população.
O mistério é grande e a estrada c árdua. Tenacidade c deliberação 
São características que se exigem do pesquisador de mistérios. Muitos 
anos de convivência amigável e calorosa ensinamm-me a respeitar em 
M ana Helena a sensibilidade para os problemas humanos e o agudo 
senso das injustiças.
Certamente uma sociedade injusta é um desafio permanente. Diante 
de realidade tão acintosamente opressiva é preciso ser radical. Onde 
tantos silo omissos, passivos ou coniventes, há um papel importante 
para os trabalhos qnc se dispõem a levar o entendimento aos lugares 
onde se escondem fonnas pouco conhecidas de discriminação.
Nenhuma peça. grande ou ínfima, pode ser desdenhada na resolução 
do quebra-cabeças. Num primeiro momento trata-se de rastrear as origens 
das formulaçOes científicas que modelam os preconceitos étnicos e de clas­
se, enveredar pela história das idéias no Brasil e lá encontrar a proposição 
sistemáticada inferioridade, intelectual e moral, das nossas camadas po­
pulares; desvelar, depois, onde se esconde o preconceito nodiscurso liberal 
das ciênc ias da educação, e como se expressam as preconceitos nas roupa­
gens das diferenças individuais e culturais e na teori a da curência cultural. 
Assim, Maria I lelena apresenta um grande painel onde o leitor aprende, 
sobretudo, que as noções da ciência são, também, filhas da história.
14 Aíarui Hi'ionn StMiza Pal to
Se a caminhada pela história pode revelar a formação de alguns 
inoilos tradicionais de lalar c de pensar sobre as classes populares - os 
clichês verbais e os estereótipos do caboclo, do caipira, do negro e do 
pobre - ela não mostra, no entanto, como estes clichés c estereótipos 
são atuantes na vida de todos os dias e como encontram passagem para 
a consciência e a identidade dos estigmatizados. Com efeito, são modos 
de pensar tão embebidos na urgência da nossa vida cotidiana que se 
naturalizaram. Convivemos, naturalmente, também, com a riqueza mais 
ostentatória e a pobreza mais miserável. Vemos, la<k> a Isido, o casarão, 
cujo muro de arrimo lembra uma fortaleza, e o barraco que mal se 
sustêm cm suas frágeis estacas. N 5o estranhamos. Aceitamos as divisões 
da sociedade, e seus extremos, com naturalidade. Comoção e piedade 
silo banidas de nossa consciência cm nome da razio e do conhecimento.
Aqui está, segundo a minha apreciação, a parte inestimável do 
trabalho de Maria 1 lelcna. Hle comove porque é. sem dúvida, um trabalho 
inconformado, que nSo vê com naturalUladc o processo de exclusão que 
as crianças das camadas populares sofrem na escola pública de 1.° grau. 
Escolhendo autores voltadas para o estudo da vida cotidiana, em especial 
Agnes Heller, cl a vai, muito coerentemente, às escolas, e senta nos bancos 
escolares, para conviver com a sala de aula, local privilegiado onde 
ocorre o verdadeiro ensino. Talvez fosse necessária a sensibilidade do 
psicólogo aos mültiplos e possíveis cenários onde os interiores se expõem, 
para que se pudesse ter a visào miúda do dia-a-dia da sala de aula. sem 
ser a visão corriqueira. O estudo do cotidiano da sala de aula possui um 
poder de revelação extraordinário, porque só através dele nos é dado 
acompanhar (c compreender) dramas amargos (quando uma foco é um 
drama? quando uma “conguinha” é um drama? onde está o cômico? 
onde está o trágico?), mas que süo diários, repetidos, transformados em 
comuns, banais. A mais elementar necessidade toma-se vulgar, a ofensa 
c a desqualificação, triviais. A sala dc aula põe à mostra a distância que 
vai do sentimento à ação e desta :i palavra.
A escola humilde, as professoras humildes, os humildes alunos e 
suas famílias sào a matéria do cotidiano que o livro vai trabalhar. Mas o 
que ele ajuda a compreender é que o adjetivo está errado. É preciso 
falar da escola humilhada, dos professores humilhados, dos alunos cons­
tantemente humilhados c das famílias que carregam o peso cotidiano de 
muitas formas de humilhação.
A pm ditçào (h> /r o tasso escolar ’ 15
Alguns cenários v&o situando as representações, que contam sempre 
as mesmas histórias de abandono c desinteresse: um bairro igual a e 
diferente de tantos outros, com casas e barracos precários c onde a escola 
é poderoso atrativo. De quem é a escola? É do povo do bairro? Os 
signos da distinção - muros e portões sólidos c altos - indicam que não. 
e que deve ser protegida contra ele. o temível povo. Alguns mudos 
personagens viio vivendo, junto aos muros da escola, o seu “ócio 
interminável” de jovens sem escola e sem trabalho
No interior da escola os personagens não são mudos ou ociosos: são 
professoras e técnicas que tentam dar conta de sua tarefa do melhor modo 
possível, amparadas, apenas, numaclaudicanle formação composta, em 
grande parte, de estereótipos e preconceitos sobre as crianças dos bairros 
periféricos c sua famílias: são crianças que vão à escola para responder 
aos desejos dos pais. lantas vezes reiterados, de um pouco de estudo que 
lhes propicie um futuro melhor. E lá estão, na sala de aula. os atores 
atribulados cm busca de um sentido para a presença comum. As relações 
difíceis entre professoras e alunos vão acontcccndo em nós sucessivos, que 
n&o se desatam , como se fora uma (tragi)com édia de enganos. São 
incomprecnsões impossívei s de serem deslindadas entre a professora que 
não vê o a luno e o aluno que mal consegue olhar para a professora. Como 
pode haver ensi no e aprendizado qu ando professora e alunos n3o são capazes 
dc discernir c compartilhar um significado para os acontecimentos da sala 
de aula? E aqui. é evidente, os desacertos adquirem uma dimensão patética. 
Pouco a pouco o desinteresso toma conta das crianças e se alia ã visão 
negativa c preconceituosa que as professoras tém a respeito das suascapacidades intelectuais c das qualidades morais de suas famílias. As 
aval iações negativas são inculcadas dia a dia. apoiadas, implacavelmente, 
no desencontro e no desconhecimento. O resultado n3o poderia ser 
diferente: a escola pública de I.° grau falha na sua tarefa básica de 
alfabetização das crianças das camadas populares, excluindo-as preco- 
cemente de seu interior, atr.ivés de um mecanismo de rejeição que opera 
duplamente, poi s a escola nàk> acei ta a criança como cia é, e a criança nào 
aceita a escola tal como cia funciona.
Um quadro como esse, que Maria Helena vai desdobrando diante 
dos nossos olhos, não pode ser facilmente esquecido. Embora as 
conclusões a que chega não sejam a única resposta possível ao problema 
das relações das crianças das classes populares com a escola c o ensino.
16 .Maria Helena Saitza Patio
ela 6 uma resposta de força incomum. A visita e a permanência da 
pesquisadora num terceiro cenário, nas casas dc algumas das crianças 
mais tristemente estigmatizadas pela escola, confirma o papel crucial 
que esta desempenha na fabricação do fracasso escolar do* alunos. Para 
os pais. as professoras cometem equívocos quando avaliam seus filhos: 
muitas vezes nào há parecença alguma entre a criança da sala de aula e 
aquela de casa. bspertezae matur idade para desempenhar tarefas variadas 
e complexas são parte natural do cotidiano das crianças em suas casas.
Assim, chega ao fim um mistério e tem princípio a tentativa dc 
ultrapassá-lo. Maria Helena já está afeita à tarefa minuciosa de deinolir 
preconceitos, sobretudo quaiulo enunciados em nome da ciência. Ria já 
o fez em seu livro Psicologia e Ideologia quando demonstra o irreme­
diável comprorrtisso da Psicologia “neutra”, ensinada em nossos cursos 
universitários, com o poder político e econômico. Agora ela vai mais 
longe, e toma noções científicas, bem conceituadas 110 mercado do co­
nhecimento psicológico, e desmonta-lhes a substância paia encontrar, 
mais uma vez, 0 compromisso com o poder. Como é possível traduzir, 
para o domínio do cotidiano, esse compromisso? Maria Helena encontra* 
o dentro da escola: na transformaçáo dos alunos e professores em objetos 
de manipulação; nas relações de inferioridade-superioridade instruídas 
pelo discurso do sal>cr e da competência; nas relações hurocraticamcntc 
hierarquizadas próprias ao funcionamento da rede pública de ensino.
Mas, com muito otimismo ela vê, nessa mesma escola e nesses 
mesmos personagens, “a matéria-prima da transformação possível” uma 
vez que, como afirma, “a rebeldia pulsa no corpo da escola c a ambi­
güidade é uma constante no discurso de todos os envolvidos no processo 
educativo; mais do que isso. sob uma aparente impessoalidade, pode-se 
notar a ação constante da subjetividade". Desse modo o qu adro sombrio 
encontra sua contraparte de esperança: o sujeito social ativo, jamais 
plenamente dominado.
Esseé o fim do caminho que viemos palmilhando com Maria Helena. 
Mas é, também, como ela acredita, um começo possível Da mesma 
maneira e com a mesma confiança, unia grande pensadora política, 
Hannah Arendt, propõe, à nossa reflexão. 0 seu quinhão dc esperança: 
“A diferença decisiva entre as 'infinitas improbabilidades' sobre as quais 
se baseia a realidade de nossa vida terrena c o caráter miraculoso inerente 
aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na
A fMrMÍiiçàv do fracasso e u olor 17
dimensão humana, conhecemos o autor dos ‘milagres’. S io homens 
que os realizam - homens que, por terem recebido o dúplice dom da 
liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence 
de direito.”
S y l v i a L e s r r d e M e i j . o 
Sào Paulo, setembro de 1988
Introdução
A reprovação e a evasão na escola pública de ptiinciro grau con­
tinuam a assumir proporções inaceitáveis em plena década de oitenta. 
Este problema revela-se tanto mais grave quanto mais a análise dos 
números referentes às décadas passadas indica sua antiguidade c 
persistência: estatísticas publicadas na década de trinta já Tevelavam não 
só altos índices de evasto c reprovação mas também o então primeiro 
ano do curso primário como um ponto de estrangulamento do sistema 
educacional brasileiro.1 Ao longo dos sessenta anos que nos separam do 
início da instalação de uma política educacional no país, sucessivos le­
vantamentos revelam uma cronificaçào deste estado dc coisas pratica­
mente imune às tentativas de revertê-lo. seja através de sucessivas 
reformas educacionais, seja através da subvenção dc pesquisas sobre 
suas causas, seja pelo caminho de medidas técnico-administrativas 
tomadas pelos órgãos oficiais.
Um estudo realizado por Moysés Kessel (1954 ) mostrou a drama­
tic idade du situação na década dc quarenta: do total de crianças que se 
matricularam pela primeira vez no primeiro uno. em 1945. apenas 4% 
concluíram o primário em 1948. sem reprovações; dos 96% restantes, 
metade não concluiu sequer o primeiro ano. Trinta anos depois, Barret to
1 O serviço dc Estatística Educacional da Secretaria Geral dc Ediacaçto registrava 53.52% 
dc relidos no l.° ano em 1936(cf. Cardoso. 1949). Dados do INfcP<l94l) registram 
5&,83% dc perdas do I.* para o 2.* ano primário em 1938. Lourcnço lilho (1941) 
referia-se coin entusiasmo ao crescimentoquantitativo da rede dc ensino primário de 
1932 a 1939 c expressava duas novas prcocupaçfcs em primeiro lu^ar com os altos 
Indices dccvaslo c secundariamente em n a rcpctCncin que sc registravam nos primeiros 
anos da escola pública primária.
20 Afaria HnfeiM Schizíi f 'ai!t>
(1984) não nos autoriza qualquer otimismo: os dados oficiais, aparen­
temente indicativos de uma melltoria da prestação do serviços escolares 
à população, são relativizados quando repassados pelos olhos atentos de 
quem se propõe a procurar nos números sua face menos óbvia.
Segundo esse estudo, embora o II Plano Nacional de Desenvolvi­
mento (1975-1979) tenha estabelecido o índice de 90% de escolarização 
como mela para o ensino dc l.° grau. ao final du década de setenta a 
taxa de escolarização da população de 7 a 14 anos foi de 67,4%; isto 
corresponde, em números absolutos, a cerca de 7.100.000 crianças cm 
idade escolar primária fora da escola. Ú, verdade que. quando comparada 
à década anterior, a rede escolar cresceu durante os anos setenta; contudo, 
esta análise mais detida dos dados oficiais revela que em muitas regiões 
do país o aumento do número de vagas apenas acompanhou o cresci­
mento vegetativo da população e que em outras, onde o crescimento 
quaniitati vo da rede superou esse crescimento, dados relati vos à eficiência 
do ensino de primeiro grau continuam a indicar que a alta seletividade 
da escola, que encontra expressão no já conhecido afunilamento do fluxo 
do alunado desde a primeira até a oitava série, continua a ser um fato.
Mais do que isto. outros dados oficiais, que aparentemente denotam 
uma melhoria da prestação de serviços escolares à população, foram 
igualmente relativizados pela análise dc Barretto. Segundo as estatísticas, 
entre 1954 e 1961, de cada 1.000 crianças que ingressaram no primeiro 
ano da escola primária, 395 passaram para o segundo sem reprovações 
e apenas 53 atingiram oito anos de escolaridade em 1961. De 197] a 
1978 (na vigência portanto, da 5692/71), dc cada mil crianças que se 
matricularam na primeira série, 526 matricularam-se na segunda série 
no ano seguinte c 180 conseguiram terminar a oitava série cm 1978. A 
conclusão mais apressada seria a de que houve uma sensível melhora no 
panorama educacional brasileiro. Mas Barretto demonstra que, se dc 
um lado a unificação dos antigos primário e ginásio aumentou o número 
dc anos de permanência na escola para uma parcela maior da população 
ingressante - uma vez que o número dos que conseguem terminar a 
oitava série sem reprovações triplicou no período 1971 -78 - de outro, o 
perfil de atendimento do sistema escolar, fundamentalmente seletivo, 
não se alterou entre os anoscinqüenta e setenta. Sua análise da distri­
buição das matrfcuias cm cada uma das séries do pri moiro grau desnuda 
a incapacidade do sistema escolar brasileiro dc manter “um fluxo
A [trtxiuçda do fracusao escoiar 21
razoavelmente equilibrado de entrada e saída de alunos (...); o que ocorre 
é exatamente um refluxo, dado que o fenômeno mais freqüente é a 
retenção quase que sistemática de boa parte dos alunos". Quando processa 
esta análise em dois segmentos - da primeira à quarta e da quinta à 
oitava sdries - esta pesquisadora revela que, com a 5692/71, "as 
oportunidades de pen nanecer na escola de primeiro grau não se alarg;iram 
indistintamente, tendo aumentado sobretudo para aqueles que conseguem 
chegar até a quarta série’*. E ainda nas séries iniciais que o tráfego 
escolar fica congestionado: “um grande contingente dc cri anças cm idade 
escolar no país atualmente fora da escola, aí nfio está não somente porque 
nunca chegou a ter acesso aos hancos escolares, senão porque deles foi 
eliminado prematuramente. A maior prova disso é a precocidade e a 
severidade com que se revela o processo de seletividade escolar, na 
medida cm que, já no primeiro degrau da escolaridade. isto é, na passagem 
da primeira para a segunda série, ainda são retidas cerca de metade das 
crianças.” Sua análise converge para uma revelação surpreendente: a 
maioria das crianças matriculadas na rede pública de ensino no país 
encontra-se n a p r im e ir a série da prime iro grau.
Estes dadas evidenciam que a surrada promessa dos políticos, o 
insistente sonho dos educadores progressistas dc cducaç&o para todos c 
o jjcrmanente desejo ile escolarizado das classes populares conservam, 
ainda hoje, sua condição apenas de promessa, dc sonho e dc desejo.
. A coexistência de altos índices de evasão e repetência e de um 
grande número de pesquisas sobre as causas do fracasso escolar justificou 
a realizaçSo de duas tarefas: cm primeiro lugar, uma revisão crítica da 
literatura voltada para esse tema, tendo em vista entender sua constituição 
ao longo da história e definir a sua natureza através da análise dc seu 
discurso no que ele diz, no que ele nua diz no que se contradiz; ean 
segundo lugar, dar continuidade às pesquisas nessa área já que, do ponto 
dc vista teórico-metodológico, a pesquisa educacional se encontra num 
momento de impasse, no qual. ao questioname nto das teorias e métodos 
tradicionais, ainda não correspondem alternativas claras que superem as 
maneiras usuais de conceber e de pesquisar os problemas escolares.
Com o objetivo de contri buir para a compreensão do fracasso escolar 
enquanto processo psico-social complexo, permanecemas numa escola 
pública de primeiro grau e num bairro da periferia da cidade de Sào 
Paulo, onde foram realizadas observações em vários contextos e
22 Maria Helena Souza Potto
entrevistas formais c informais com todos os envolvidos no processo 
educativo que nela se desenrola, incluindo os alunos e suas famílias.
A decisSo dc incl uir as crianças na pesquisa deveu-se à constataçSo 
de que elas são as grandes ausentes na pesquisa sobre a escola e sobre o 
fracasso escolar.2 Nas publicações sobre evasüo e repetência, as crianças 
são invariavelmente reduzidas a números friose impessoais, que acabam 
por insensibilizar a todos para o drama humano que estes números e s ­
condem, acostumando-nos à existência de um contingente crônico de 
repetentes c excluídos na rede púlilica de ensino fundamental. Jnexiste, 
na pesquisa educacional brasileira, o discurso das crianças que freqüen­
tam esta rede, invariavelmente substituído por um discurso retórico e 
questionável sobre cias. A importância de ouvi-las ainda nâo foi in ­
corporada à pesquisa ck> fracasso escolar, tanto que. num estudo recente, 
encontramos a seguinte afirmação: “no decorrer deste estudo foram 
entrevistados todos aqueles envolvidos di rela ou indiretamente no processo 
educacional: professores, pais e equipe técnico-administrativa das 
escolas" (o grifo é nosso).3
Por isso. convivemos com quatro mullirrepclcntes. à procura de 
respostas para as seguintes perguntas: quem sõo estas crianças? Como 
vivem na escola e fora dela? Como vivem a escola c como participam 
do processo que resulta na impossibilidade de escolarizarem-se?
Esta busca dc conhecimento das vicissitudes da escolarização das 
crianças de uma parcela das classes trabalhadoras que se comprime na 
periferia de um grande centro urbano industrial passou pela análise 
institucional: olhos e ouvidos atentos à rede complexa de relações 
inteTsubjetivas que se düo entre os participantes diretos do processo 
escolar foram a ferramenta para a apreensão da vida na escola enquanto 
parte integrante da vida na sociedade concreta que a inclui. O desafio
2. Nota-se também a ausência dos funcionários da cscola que. embora desempenhem um 
papel importante da dinâmico institucional, ainda nflo foram devidamente levados 
a n conta na pesquisa educacional.
3. Cl discurso sobre o oprimido vem sendo substituído pelo discurso do oprimido nas 
ciências humanas e sociais. No caso da pesquisa educacional, primeiramente loi a vez 
dos professores e mais recentemenie a dos pais das crianças de escolas periféricas. A 
vo-t da criança começou a ser registrada em pesquisas sobre o chamada *’menor", 
provocando mudanças radicai s iki caracteriKiçâo destas crianças c adolescentes (veja 
Ferreira. 1979; Violauie. I9$2).
A {mMiuçào do fracasso i->ci>Uir 23
teórico e metodológico foi encontrar uma forma de pesquisare entender 
a vida na escola que nüo passasse ao largo da vida social. Para enfrencá 
lo, fomos buscar subsídios no complexo conceito sociológico de vida 
cotidiana.
Não perder de vista as pessoas pode significar, aparentemente, uma 
adesão ao psicoLogisnio, isto é, a tendência a tomar a dimensão psíquica 
como algo que antecede o social e a ele se sobrepõe. Mas a intenção não 
foi esta. Au contrário, o enquadramento teórico subjacente tem como 
pressuposto a determinação histórico-social da ação humana. Porém, 
fazer esta afirmação nào significa nem reduzir as manifestações indi­
viduais àcategoria de idiossincrasias, sem interesse científico, nem negar 
a existência da diferença e da heterogeneidade onde uma ciêneia aderida 
às aparências fala cm absoluta homogeneidade. Somente quando temas 
a possibilidade de apreender o heterogéneo no aparentemente homo­
géneo. o plural onde se costuma falar no singular é que adquirimos 
condições de realizar a ascensüo do abstrato ao concreto de que fala o 
materialismo dialético. Este nüoé, portanto, um estudo sotwe o professor. 
a escpla pública, o aluno reprovado e a família carente, mas sobre edu­
cadores que aluam numa escola situada num bairro onde habitam crianças 
e adultos num certo sentido únicos mas que « m por isso deixam de ser 
porta-vozes dos que vivem cm condições sociais de exploração e opressüo. 
Procurou-se, ponanto, evitar o modo de trabalhar de uma ciência cujos 
resultados, segundo Chauí (1979), “tendem, afinal, à simplificação e à 
generalização, empobrecendo a complexidade real da existência de seres 
concretos" (p. XXV).
Realizamos, cm síntese, um estudo 110 qual a atenção do pesquisador 
esteve voltada para a especificidade da situação e das pessoas pesqui­
sadas. Nàu se trata, assim, de um estudo preocupado coin a amostragem 
nem com a quantificação de seus achados. É importante ressaltar que ao 
fazer esta afirmação nào estamos querendo desqualificar o produto do 
trabalho, rebaixando-o à categoria de estudo exploratório, na acepção 
de estudo menor, cuja maioridade científica só será atingida quando 
estudos subseqüentes o colocarem nos moldes da pesquisa experi mental4
4. Esta c u maneira coim» o nxHodo do “estudo dc caso" comparece nos manuais d* 
metodologia dc pesquisa cm Ciências Sociais dc orientação experimental Veja. por 
cxtmplo. Goode c Halt. 1973. c Keriinger. 1979.
24 AUirui licíciui Souza Pattt>
Em I960, ao prefaciar o estudo realizado por Luiz Pereira (1976)cm 
uma escola numa área metropolitana, Florestan Fernandes afirmava: 
“as conclusões só são válidas para o caso particular anal isado (...) mas a 
focalização também vale para outros casos, independentemente do grau 
de analogia, pois a descrição apanha o próprio drama da escola brasileira" 
(p. 17).
Tendo em vista uma forma alternativa dc cnlcndcr o lugar e o 
significado do “caso” no universo do qual faz parte, de entendera relação 
enirc o particular e o geral, poder-se-ia dizer, modificando aquela afir­
mação, que as conclusões são c não são válidas apenas para o caso par­
ticular analisado. Desta perspectiva, trata-se de um estudo representativo, 
numa acepção de representatividade que difere de sua definição 
estatística: o particular representa o geral exatamente porque eles são 
entidades separadas somente no contexto de uma maneira idealista dc 
pensar a realidade social.
A revisão da literatura sobre as cuusas das desigualdades sociais e 
educacionais entre grupos e classes na sociedade brasileira encontra-se 
na Primeira Parte: o relato da pesquisa e dc seus resultados constitui a 
Segunda Parte. Juntas elas dào corpo a um trabalho que, partindo da 
afirmação de que a produç&o do conhecimento é um processo permanente 
de exame das teses existentes e de criação dc novas sinteses, sempre 
precárias e passíveis de superação, é um retrato sem retoques dc nossa 
condição inevitavelmente lacunar enquanto trabalhadores intelectuais 
datadas.
P r im e ir a P a r te
O fracasso escolar 
como objeto de 
estudo
O pesquisador deve sempre esforçar-se 
para apreender a realidade lotai e con­
creta. mesmo que saiba não poder alcan­
çá-la, a não ser de maneira parcial e 
limitada; para isso. deve empenhar-se 
para ínfegrar ao es t mio dos fa tos sociais 
a histdria das teorias a respeito desses f a ­
tos. bem como para ligar o estudo dos 
fatos da consciência à sua focalizpção his­
tórica e á sua infra-estrutura económica 
e social.
L u c ih n G o t o m a n n
A Arvore que não dA frutos 
É xingada de estéril. Quem 
Examina o solo?
O Ralho que quebra 
Ê xinyado de ptfdre. mas 
Não havia neve sobre ele?
Do rio que tudo arrasta 
Se d iz que é violento. 
Ninguém diz violenJas 
A* margens que o cerceiam
Bertold Brecht
1
Raízes históricas das concepções 
sobre o fracasso escolar, o triunfo de 
uma classe e sua visão de mundo
As idéias atualmente em vigor no Brasil a respeito das dificuldades 
de aprendizagem escolar - dificuldades que. todos sabemos, sc mani­
festam predominantemente entre crianças provenientes dos segmentas 
mais empobrecidos da população - têm uma história. Quando tentamos 
reconstituí-la, percebemos rapidamente que para entender o modo de 
pensar as coisas referentes ã escolaridade vigente entre nós precisamos 
entender o modo dominante de pensá-las que se instituiu em países do 
leste europeu e da América do Norte durante o século XIX: é visível 
que os primeiros pesquisadores brasileiros que se voltaram para o estudo 
desta quesiào - e que imprimiram um rumo duradouro ao pensamento 
educacional no país - o fizeram baseados numa visão dc mundo que se 
consolidou nesse tempo e nesse espaço.
Quando falamos em visão de mundo trazemos à tona a questão da 
natureza <ias idéias: serão elas resultado dc “puro esforço intelectual, 
dc uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos 
da observação científica c da especulação metafísica, sem qualquer laço 
de dependência com as condições sociais e históricas” ou “são, ao con­
trário. expressão destas cond ições reais”? As idéias explicam a realidade 
histórica e social ou precisam ser explicadas por ela? Quando um teórico 
elabora uma expl icaçãodo mundo, ele está produzindo idéias verdadeiras 
que nada devem á sua existência histórica e soeial ou está realizando 
uma transposição involuntária para o plano das idéias de relações sociais 
muito determinadas? (Chauí, 1981 a, p. 10-ltí)
Partindo do modo materialista histórico de pensar esta relação é 
que afirmamos a necessidade de conhecer, pelo menos em seus aspectos 
fundamentais, a realidade social na qual se engendrou uma determinada
20 H una I M ena Umixa Püílo
versão sobre as diferenças dc rendimento escolar existentes entre crianças 
de diferentes origens sociais. É este o objetivo deste capítulo: reunir 
informações que nos permitam ao menos vislumbrar a filiaçào histórica 
das idéias quer assumam a forma de crenças, quer a d!c certezas cien­
tificamente fundadas - sobre a pobreza e seus reveses, entre os quais se 
inclui a dificuldade de escolarizar-se.
RcaJizar esta tarefa requer, além do retomo a que nos referimos, 
um contorno, dc natureza epistemológica, que possibilite captar o que 
esta realidade social é (incluindo o entendimento do que é a ciência que 
nela se faz), a partir e além do que ela parece ser.1 Nesse retomo, é 
inevitável o encontro com o advento das sociedades industriais 
capitalistas, dos sistemas nacionais de ensino e das ciências humanas, 
especialmente da psicologia. Esse contorno, por sua vez. permite captar 
a essíncia do modo de produção capitalista c das idéias produzidas cm 
seu âmbito, condição necessária para que se faça a crítica destas idéias. 
Sem qualquer intcnçSo de resumir a história do século XIX ou de repro­
duzir a análise materialista histórica do modo capitalista de produçüo, 
propomo-nos a elaborar uin quadro de referências histórico e sociológico 
apenas suficiente para encaminharmos uma reflexào a respeito da 
natureza das concepções dominantes sobre o fracasso escolar nuina 
sociedade de classes.
A era das revoluções e a era do capital
O século XIX, em todas as suas manifestações, é filho Içgítimo da 
dupla revolução que se deu na Europa ocidental no final do século XVIII: 
a revoluçãopolítica francesa (1789-1792) e a revolução industrial inglesa, 
que tem pomo marco n construção, em 1780. do primeiro sistema fabril 
do mundo moderno: us históricas indústrias têxteis localizadas na região 
britânica de Lancashire. Ambas vem coroar2 o surgimento dc relações
1. A respeito desta distinção, veja Kosik 11969).
2. Esta exprcxsio está sendo utilizada aqui deliberadamente no lugar do verbo ••produzir"; 
somente através desta distm çlo é possível fazer justiça à complexidade dos 
movimentos da história Mobsbawm (1982) ressalta a importância desta diferença 
quando afirma: MÉ evidente que unia transforniaçfto tilo profunda nâo pode s-er 
entendida sem retrocedermos na história bem antes dc 1789. ou mesmo das décadas
A produçda do fntcaSM > rnoJar 29
de produção inéditas na história, no seio das quais se elaboram 
jus.titlc ativas para uma nova maneira de organizar a vida social.3
Segundo Hobsbawm (1982), “a grande revolução de 1789-1848 
foi o triunfo não da 'indústria' como tal mas da indústria capitalista; 
não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da 
sociedade 'burguesa 'liberal: não chi ‘economia moderna’ ou do ‘Estado 
moderno’ mas das economias e estados em uma determinada região 
geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do 
Norte), cujo centro eram os estados rivais e vizinhos da Grã-Bretanha e 
da França” (p. 17). A passagem do modo de produção feudal para o 
modo de produção capitalista não se fez sem .grandes convulsões sociais, 
que culminaram no período de 1789-1848: em termos sociais e políticos, 
o advento do capitalismo mudou gradual mas inexoravelmente a tace 
do mundo: até o final do século XIX praticamente varreu da face da 
terra a monarquia como redime político dominante, destituiu a nobreza 
e o clero do poder econômico e político, inviabilizou a relação servo- 
senlior feudal enquanto relação dc produção dominante, empurrou 
grandes contingentes das |x>pulações rurais para as centros industriais, 
gerou os grandes centros urbanos com seus contrastes, veio coroar o 
processo de constituição dos estados nacionais modernos c engendrou 
uma nova classe dominante - a burguesia - c uma nova classe dominada- o proletariado - explorada economicamente segundo as regras do jogo 
vigente no novo modo de produção que se instala c triunfa no decorrer 
desse século. Na prim eira metade do século XIX, as mudanças 
propiciadas pela dupla revolução foram de tais proporções que alguns 
historiadores, como Hobsbawm (1982), não hesitam cm considerá-las
que imedinlanK-nlc i precederam e que refletem clanmtcnle a crise dos attcic/u rvxitnvs 
Ai parte ivxoeslc do mundo, q uc seriam demolidos peta dupla revolução ...A* forças 
ccoiVmiiíc.t» c sociais, as ferramentas políticas c iniclcctuais dcua transformado jA 
estavam preparadas ... a n uma parte da Europa suficientemente grande piira 
revolucionar o resto ... Nosso problema é explicar nflo a existência deste* elementos 
dc uma nova economia c sociedade, mas o seu triunfo: Iraçar n3o a evoltiçllo do 
gradual solapamentu que foram exercendo em s&ulos unteriares. minando a velha 
sociedade, mas sua decisivu conquista da fortalc/a " (p. 18*19).
3. Ü leitor encontrará uma análise do processo da passagem das sociedades feudais para 
us sociedades capitalistas na buropa. bem como de sua consol idaç.lo. cm 1 lohsKiwm 
(1979; 1982). As idéias que apresentamos a seguir sAo pouco mais do que um resumo 
dc algumas dc suas principais pussugeru.
30 /Míirvi H títna fo u n t huio
como “a muior transfoi mação da história humana desde os tempos 
remotos, quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, 
a cidade e o Estado" (p. 17).
Se a ordem feudal ainda estava socialmente muito viva nesta pas­
sagem dc século, ela se mostrava cada vez mais ultrapassada e impro­
dutiva cm termos econômicos; tecnicamente, a agricultura européia era. 
com raras exceções, tradicional e ineficiente, colocando obstáculos às 
novos exigências de produç&o agrícola, o que tornava o mundo agrícola 
especialmente lento e inviável a uma massa crescente de camponeses.
O oposto ocorria simultaneamente no mundo comercial e industrial 
manufatureiro; seu desenvolvimento, proporcionado pela rede cada vez 
mais complexa das relações comerciais tecida pela ampliação da explo­
ração colonial e pelo crescimento em volume e capacidade do sistema 
de vias comerciais marítimas, foi acompanhado por intensa auvidade 
intelectual e tecnológica. Neste contexto, foi-se consolidando uma ca­
tegoria social ativa e determinada que se beneficiou, mais do que as 
demais setores da burguesia emergente, das novas oportunidades de 
enriquecimento: o mercador, precursor do capitalista industrial.
O mercador “comprava os produtos dos artesãos ou do tempo de 
trabalho não-agrícola do campesinato para vende-los num mercado mais 
amplo” . Nesta nova relação, o artesão transformou-se pouco a pouco 
num trabalhador pago por artigo produzido, principalmente nos casos 
cada vez mais freqüentes em que o mercador era o fornecedor dc matéria- 
prima e o arrendatário do« instrumentos de produçüo. Neste novo pro­
cesso produtivo, o mestre artesão podia transfonnar-se num empregador 
ou num subcontratador de mão-de-obra assalariada; a especialização de 
processos c funções começou, por sua vez. a criar subcategorias dc tra- 
ba Ihadores semiqualificados entre os camponeses. Precursores dos gran­
des industriais capitalistas, estes novos empregadores que saíam das 
próprias fileiras dos produtores ainda nSo passavam, neste período de 
transição, de simples gerentes, dependentes dos mercadores e longe, 
portanto, de se transformar nos proprietárias d e indústrias que já existiam, 
como exceção c cin pequeno número, na Inglaterra. O mercador era 
controlador de ssa produção descentralizada e elemento de ligação entre 
o produtor e o mercado mundial (cf. Hobsbawm. 1982, p. 36).
A coexistência da nobreza com este novo homem empreendedor, 
que apostava no processo econômico e científico viabilizado pela
A frnniintlu do fraaisso escolar 31
racionalidade, nào se dava sem antagonism os. À medida que o 
anacronism o da produção agrária dim inuía seus rendim entos, a 
aristocracia procurava ocupar os altos cargos governamentais, valendo- 
sc dc seus privilégios hereditários de prestígio e posição social. Nesta 
luta, freqüentemente esbarrava com os "mal nascidos" que, pelas mãos 
dos próprios monarcas, já ocupavam muitos destes postos na máquina 
estatal.4 Segundo análises históricas, a determinação da nobreza em 
expulsar do aparelho estatal os altos funcionários plebeus e sua rejeição 
aos que adquinram títulos de nobreza por vias que não a do nascimento
- movimento conhecido como “reação feudal" - parece ter sido um dos 
precipitadores da revolução francesa
Mas a "reação feudal" não consistiu apenas em contra-atacar a 
escalada dos comerciante» e industriais ambiciosos que íaziam fortuna 
nas cidades e suas pretensões políticas reformistas; economicamente 
ameaçada, a nobreza procurava recuperar o controle político e econômico 
da situação ocupando, a qualquer preço, os postos oficiais na admi­
nistração central c provinciana e usando os diretos adquiridos nestes 
postos para extorquir o campesinato. Portanto. "a nobreza não só 
exasperava a c/asse média mas também o campesinata" (Hobsbawm. 
1982, p. 75). Análises históricas indicam que, nos vinte anus que pre­
cederam a revolução, a situação do homem do campo francês piorou 
sensivelmente; compreendendo 80#. da população, o campesinato fran­
cês, embora proprietário majoritário de terras, nào as possuía em quan­
tidade suficiente, defmntava-se com dificuldades advindas do atraso 
técnico, não conseguia fazer frente às pressões que o aumento popu­
lacional exercia sobre a produção agrícola e era saqueado por tributos 
de toda ordem.
4. Segundo Hobsbawm. os monarcas absolutos que reinavam cm todos os listados 
europeus, com cxccçlo da Grfl-Bretanha, já haviam percebido que para enfrentar a 
intensa rivalidade internacional era preciso governar dc modo cocso c eficiente, 
caso contrário seria a ruína c a incorporarão pelos vizinhos mais forte*. Contra a 
ociosidade e a dissipaç&o da nobreiu, procuraram prccnchcr o aparato estatal com 
pessoal civil, n lo aristocrata. Nesta conjuntura, tudo indica que os monarcas usavam 
a classe média ilustrada e empreendedora para implantar um Estado modernizado c 
planejado que. com busc cm x h ^ m x iluministas. garantisse a m u l t i p l i c a ç ã o de sua 
riqueza e dc seu poder; a classe media, por sua vez. necessitava do apoio da monarquia 
“i lummada” paru realizar seus interesses e esperanças. Amhas. portanto, apoiavam- 
se mutuamente em busca da realizaçéo dc interesses próprios e essencialmente 
inconciliáveis (1982, p. 39).
32 Marta HHetta Souza Pauo
As dificuldades financeiras de monarquia agravavam ainda mais o 
quadro. Uma estrutura fiscal e administrativa ohsoleta, aliada;»tentativas 
dc reforma incipientes e malsucedidas, gastos palacianos e o envolvi­
mento com a guerra de independência americana, numa tentativa de 
enfraquecer o poderio inglês. tomaram a situação insustentável. Nas 
palavras de llobsbawm (1982), “a guerra e a dívida partiram a espinha 
dorsal da monarquia’* (p. 76).
O combate ü aristocracia não foi obra, no movimento revolucionário 
francês de 1789, dc uma liderança partidária nem se deu de forma 
organizada. Sua unidade foi garantida pelo consenso existente entre os 
integrantes de um grupo bastante coerente - a burguesia - constituído 
de advogados, negociantes e capitalistas. O “Terceiro Estado" entidade 
fictícia destinada a representar todas os que não eram nobres nem 
membros do clero, mas de fato dominada pela classe média - tinha em 
sua retaguarda uma massa popular faminta e militante que se acumulava 
em Pans. Na verdade, a revolução francesa foi uma reaçõo política da 
burguesia, cujos líderes mais radicais, militantes e instruídos - os 
jacobinos - tomaram-se porta-vozes dos interesses dos trabalhadores 
pobres das cidades (os sans-cuioUes) e dc um campesinato insatisfeito e 
revolucionário.5 Os suns-culottes - grupo militante formado por traba­
lhadorespobres, pequenos artesãos. lojistas, artífices, pequenos empre­
sários. etc. - formavam a linha de frente das manifestações, agitações e 
barricadas.6
Mas na transiçào do modo dc produção feudal para o capitalista, os 
antigos artesãos e camponeses v3o perdendo suas condições anteriores 
de produtores independentes e de agricultores que ocupavam e 
cultivavam a gleba; destituídos de seus instrumentos de produção, de 
sua matéria-prima e da terra para cultivar, suas condições dc vida 
tornanun-se insustentáveis; a peste e eventos climáticos contribuíram
5. Por ocasiflo da rcvoluçio francesa. náo havia ainda na França uma classe operária 
slriclo sem w. esta rcstringia-se a uma massa dc assalariados contratados cm 
estabelecimentos quase sempre nâo-mdusiriais.
6. “Os sam < ulu t/a s3o um mino daquela importante e universal tendência política que 
procuro expressar os interesses da grande massa dc 'pequenos homens’ que existe 
entre os pólos do ‘burguês* c do ‘proletário’, freqüentemente tal ve/, mais próximos 
desle do que daquele porque slo. cm sua maioria, pobres.” (I lobsbawm, 1982 (>.81)
A pruciuçòo do/ntcasso escolar 33
para tum aro quadro mais dramático. São eles que vào integrar os grandes 
contingentes famintos que se acumularam nas cidades e que vieram a 
constituir um tipo dc trabalhador inédito na história da humanidade: o 
trabalhador assalariado, que vende no mercado de trabalho o único bem 
que lhe resta, a energia de seus músculos e cérebro. São eles que vão 
formar o contingente dos traballiadores da indústria e as populações 
pobres das cidades, submetidos a um regime e a um tipo de trabalho que 
lhes eram estranhos mas dos quais não podiam fugir. São eles que vão 
trabalhar nas máquinas e na indústria extrati va dc sol a sol, em troca de 
salários aquém ou no limite fisicilógico da sobrevivência.
A medida que o capitalista ia acionando diversos mecanismos técni­
cos e políticos que garantissem o aumento do lucro e a acumulação do 
capital, a situação do proletariado ia-se deteriorando progressivuuicntc Se 
no momento da revolução francesa burguesese trabalhadores pobres e ex­
plorados pela nobreza se imianarani na luta contra o i ni migo comum, à me­
dida que os anos passam a divisão social se expressa basicamente pelo 
antagonismo entre capitalistas c proletários. A conccntraç ào cre scentc da 
renda nas mãos dos grandes financistas e capitalistas e a primeira crise de 
crescimento que se abateu si ibrc a produção capitalista em torno da década 
de 1830gerar.im misénae descontentamento; nestaépoca, os trabalhado­
res pobres quebravam as máquinas, acreditando que elas eram responsá­
veis pela onda dc desemprego, tal como já havia acontecido na década de 
1811). Mas a insaüsfaç ào não era apenas da classe trabalhadora: a pequena 
burguesia de negociantes também foi vítima da nova economia.
A partir dc um período inicial de expansão da produção e do 
mercado c de lucros fantásticos, crises periódicas afetarum a vida eco­
nómica entre 1825 e 1848. No contexto destas crises, a diminuição da 
margem de lucro necessitava ser contida e o rebaixamento direto ou 
indireto dos salários era a medida mais eficaz no barateamento da pro­
dução. Diminuí-los tomou-se a meta: pura atingi-la. o valor da mercadoria 
“força de trabalho" foi diminuído, trabalhadores mais caros foram 
substituídos e o trabalho da máquina interferiu sobre a quantidade c a 
qualidade de trabalho humano necessário.7 Nas palavras de Catani
7. lembremos que, segundo a análise dc Mane. o aumento da mais-valia c possível 
mediante duas medidas fundamentais: o aumento da jornada de trahalho (ma/s vaJia 
ahsohêta) c a rcduçlo do tempo dc trabalho necessário (ntats-valia reUuiva) pelo 
recurso á mecanização da produçio c á segmentação do trabalho.
34 Mana /trtcnu 5otua fa tio
(1982), da "aurora do capitalismo, quando ele se desenvolvia no invólucro 
de uma sociedade predominantemente feudal" (p. S3) e nào existia ainda 
o trabalhador proletário, até a desintegração final da produção artesanal 
(na qual um artesão já semiproletarizado se tomou um operário industrial 
e os que o financiavam e muitos dos que produziam nas condições semi- 
industriais se transformaram nos capitalistas em ascensão), os grandes 
desafios enfrentados pela indústria capitalista foram a racionalização e 
o aumento da produç3o e o incremento das vendas. Embora a produção 
por trabalhador tivesse aumentado muito até os anos 30 e 40 do século
XIX, Hobsbawm (1982) nos informa que Ma aceleração realmente 
substancial das operações da indústria iria ocorrer na segunda metade 
do século" (p. 59).
O trabalho alienado tem suas origens no momento em que o produtor 
começa a ser destituído dos meios de produção e começa a produzir 
para outrem e os homens começam a dividir-se em proprietários exclu­
sivos das máquinas e da matéria-prima e trabalhadores que não as pos­
suem. As relações de produção que assim se estabelecem fazem pane 
da própria natureza do modo de produção que começa a vigorar. No 
Primeiro Manuscrito Económica e Filosófico, Marx (em l;romm, 1970) 
propõe-se a des vendar a verdadeira natureza desse trabalho, dessa forma 
dc trabalho na qual a) o trabalhador se sente contrafeito, na medida em 
que o trabalho não é voluntário mas lhe é imposto, é trabalho forçado'. 
b) o trabalho não é a satisfação dc uma necessidade mas apenas um 
meio para satisfazer outras necessidades; c) o trabalho não é para si. 
mas para outrem; e d) o trabalhador não se pertence, mas sim a outra 
pessoa. Para Marx, a alienação do objeto do trabalho simplesmente se 
resumo na alienação da prõpria atividade do trabalho.
O caráter alienado ties te processo dc trabalho fica patente, segundo 
Marx, pelo fato deque, sempre que possível, eleé evitado. Trabalhar, nes­
tas novas condições da indústria capitalista, significa mais do que sacri­
ficar-se. significa mortificar-se. De vida produtiva o trabalho reduz-se a 
mero para satisfação da necessidade dc manter a existência. Esta iden­
tificação com a atividade vital d característica do animal, que nào distingue 
a atividade de si mesmo; elo é sua atividade. Já o homem faz de sua ativi­
dade vital um objeto de sua vontade econômica. A atividade vital cons­
ciente do homem é que o distingue da atividade vital dos animais; mas 
quando submet ido a um trabalho alienado, o trabalhador só se sente livre
A prvduçào do fracatst»n co kn 35
quando desempenha suas funções animais: comcr, beber, procriar etc., 
enquanto atos à parte dc outras atividades humanas e convertidos em fins 
definitivos e exclusivos. Uma tal condição dc vida produz uma inversão 
desumanizadoru: em suas funções especificamente humanas, o trabalha­
dor anima liza-se; no exercício de suas funções animais, humoniza-sc.
A medida que a reação do proletari ado foi se delineando e passou a 
se expressar através de formulações teóricas socialistas e movimentos 
revolucionários concretos, como ocorreu entre 1815 e 1848, os vários 
üpos de governo reformista que se sucediam nào passavam de formas 
de defender os interesses da burguesia das pressões revolucionárias 
socialistas e monarquistas. Mas a ruptura entre burguesia e proletariado 
não se daria, exceto na Grã-Bretanha, antes de 1848. Nesta primeira 
metade do século, o proletariado, mesmo o mais consciente e militante, 
considerava-se um dos extrem os de uma luta comum em prol da 
democracia c via a república democrálico-burguesa como o caminlio 
em direção ao socialismo.8 Mas a história deste período é também a 
história da desintegraçüo dessa aliança.
Durante o século X VIII e nas primeiras décadas do século seguinte, 
a burguesia foi porta-voz do sonho humano de um mundo ig u a litá r io , 
/ rale nu/ e l i v r r % mais do que isto, do lugar que ocupava na nova ordem 
social gerou c disseminou a crença de que este sonho se concretizaria 
na sociedade industrial capitalista liberal; em meados do século XIX. o 
sonho havia acabado para alguns setores mais conscientes das classestrabalhadoras c para seus intelectuais orgânicos. Em tomo de 1830, um 
movimento socialista e proletário era visível na Grü- Bretanha e na Fran­
ça; uma massa de trabalhadores pobres “ via nos reformadores e liberais 
seus prováveis traidores e nos capitalistas seus inimigos seguros" 
(Hob-sbawm, 1982. p. 139). Em contrapartida, os liberais moderados e 
os situacionistas passaram a nào ver com bons olhos os críticos da so­
ciedade capitalista e os radicais militantes, especialmente cm sua versão 
operária revolucionária, o que resultou no rompimento da aliança de 
radicais, republicanos e proletários com os grupos liberais conserva­
dores.v
8. Para llobsbawm (1982. p. 146), o Manifesto Comunista dc Marx c Engels (1848> d 
uma declaração de guerra futura contra a burguesia, ma* dc aliança prcsenie
9. “As forças sociais que erigiram o que hoje se chama de século XIX encontraram pe la
36 A tom H fkiia Soiua /'a tlo
O que inviabilizou o sonho? Segundo Hobsbawm (1979), “a sú 
vasta e aparentemente inesgotável expansão da economia capita 
mundial forneceu alternativas políticas aos países mais avançados 
revolução política recuou, a revolução industrial avançou; “a revoli 
industrial havia engolido a revolução política” (p. 22), quebram 
simetria destas duas dimensões. A sociedade colimada era o rein 
igualdade de oportunidades a todos os cidadSos. da melhoria 
condições de vida que o liberalism o econôm ico supostanv 
viabilizaria: a sociedade real foi a do triunfo da alta burguesia, à c 
do sacrifício das classes trabalhadoras, que através de seu esgol 
trabalho cotidiano produziam a sua própria miséria e o enriqoecim 
crescente dos empresários. Esta contradição fundamental, instalad 
medula do modo de produção capitalista, será o motor da história 
anos posteriores a 1848.
Na “era do capital", que se inicia em 1K4X. a política se caracter 
por reformas sociais que tinham coma mela defender os interesse 
burguesia; dirigir as massas, traduzir sutis reivindicações em tei 
assimiláveis pela ordem social existente era o caminho mais eficaz, 
lhes permitir unia participação política sem que se tomassem ame 
incontmiáveis,10 já que n3o podiam ser simplesmente excluídas t 
participação. A superioridade econômica, tecnológica e conseqlk 
mente militar de estados da Europa central e do norte e de países 
dados em outros continentes por seus imigrantes, especialmente o« 
tadexs Unidos, toma-se um fato neste período. Embora poucos dos p; 
restantes se tenham tomado colônias desses estados, economican 
todos estavam ò sua mercé.
frente duas batalhas. Foram tempo» dc corooçAo do capitalismo, da consol idâ 
burguesia, mas foram tempos também de uma critica social violenta. de a 
revolucionárias.. dc produção filosófica coratanlc c crítica, de denúncia da mis. 
exploração do homem pelo homem, dc questionamento*.** Portanto, fazer a lii 
do século XIX significa f a « r a história do capitalismo cd o anticapitalismo (< 
1982. p. 13-14)
10. Quando, entre 1865-1875. uma onda de greves c agitação da classe trabalh 
espalhou-se pelo continente, alguns governo» c alguns setores da hurguesia fii 
apreensivos com a crescimento do Irabalhismo. As reformas sociais 
desencadeadas tinham como objetivo prevenir o surgimento deste movii 
como força política independente; as atividades e organizações trabalhistas 
reconhecidas para serem controladas, medida profilática contra o cnnfror 
classes. {Hobsbawm. 1979. p. 130-131)
A produção do fracassa m o la r 37
Nos últimos anus do século XIX, o mundo atingido direta ou indi­
retamente pela economia capitalista eslava basicamente dividido cm per­
dedores e vencedores, tanto dentro quanto fora das fronteiras nacionais. 
l£m teniins nacionais, os perdedores, nos estados europeus capitalistas, 
eram sobretudo os grandes contingentes de trabalhadores assalariados, 
no cam po c nas cidades, que se dedicavam à produção agrícola, às 
indústrias dc extração e de transformação e à variedade crescente dc 
serviços braçais subalternos e mal remunerados. As condições de vida
i no campo produziram não só um significativo êxodo do campo para as 
cidades, dentro de um mesmo país, como também grandes conentes 
cmigralórias internacionais.
O capitalismo agrário, resultado do crescimento e aprofundamento 
da economia mundial do período pós-1848, provocou nova expulsão de 
grandes massas camponesas que se dirigiam às cidades do continente e 
aos países dc ak*m mar. Hobshawm (1979) situa nesta segunda metade 
de século “o início da maior migração dos povos na História’’ (p. 207), 
que assumina proporções ainda maiores nos primeiros anos do século 
XX De outro lado, a c resccntc demanda de força de trabalho nos setores 
da produção industrial e de serviços atraía massas camponesas falidas e 
famintas para as cidades.
O que eram a cidade,- a indústria e classe trabalhadora a partir de 
meados do século XIX? Industrialização, urbanizaçào c migração andam 
juntas. A cidade industrial típica neste período era uma cidade super- 
povoada, carente de infra-estrutura, centro de comércio c de serviços 
que enquistava os trabalhadores na periferia e cm vilas operárias que 
contrastavam com os bairros que abrigavam a vida burguesa.11A grande 
indústria, por sua vez, ainda não era a regra; a manufatura ainda era 
freqüente no processo produtivo capitalista; as indíistrias geridas pelos 
membros de uma mesma família ainda não se haviam defrontado com 
as questões de direção, dc organização c de aumento de produtividade 
nos moldes em que elas começavam a se colocar para as grandes
II . Segundo Ilohshawin. em 1848 i população do mundo, mesmo na tíuropa, ainda 
consistia, sobretudo, dc homens do campo. No final da década dc 1870. a siiuaç&o 
havia >c modificado substancialmente mas a populaçAo rural ainda prevateda sobre 
a urbena. Assim sendo, a maior parte da humanidade c seus destinos ainda dependiam 
do que acontecesse na e com a terra ( 1979, p. 139).
38 Maria Hdetia Soma Palto
organizações capitalistas, na passagem do capitalismo liberal pa 
capitalismo monopolista que se verifica a partir da década dc 185C 
“a em presa característica da primeira metade do século tinha 
financiada de forma privada - poT exemplo, com recursos fami liare 
sofrido expansão através de reinvestimento do lucro” (cf. Hobsba 
1979, p. 226) a empresa que começa a se consolidar na segunda me 
baseia-se na mobilização dc capital para o desenvolvimento indusi
A insegurança era o fator que dominava a vida dos trabalhad 
do século XIX; a miséria era uma ameaça constante. É por isso 
Hobsbawm (1979) afirma: “O caminho normal ou mesmo inevitáv* 
vida passava por estes abismos nos quais o trabalhador e sua far 
iriam inevitavelmente cair: o nascimento dc filhos, a velhice 
impossibilidade de continuar o trabalho** (p. 2 3 1). A maioria das fam 
operárias com filhos ainda pequenos para o trabalho, mesmo que 
talhasse no limite dc suas possibilidades durante os anos especialm 
favoráveis ao comércio, nSo podia esperar mais do que viver abaix 
linha divisória da miséria. Aos quarenta anos o trabalhador braça 
sua capacidade de produçSo decair c com ela seu nível de vida.12
Embora a classe trabalhadora nüo fosse homogênea - havia gra 
diferenças salariais, de estabilidade no emprego e. portanto, dc condi 
de vida entre as várias categorias de operários - cia estava unida 
destino comum do trabalho manual, da exploração, da própria com! 
operária, enfim. No entanto, n empresariado e até mesmo a classe ope 
faziam uma distinçin entre o “trabalhador respeitável" e o “pobre 
respeito*'; estes últimos, não-especializados e sempre à beir 
desem prego e da nâo-sobrev ivência , tinham pouco acess 
organizações que começavam a dar expressào ao movimento trabal 
dos operários mais especializados e mais bem pagos.13
O século XIX caracteriza-se por uma contradiçüo básica: r 
período a sociedade burguesa atinge seu apogeu, segrega cada vez
12. Ao contrário do que acontcc ia na alia burguesia, que tevenos meados do- sécuk 
a tdade dc ouro das pessoas cm idade madura, na qual os. homens atingiam o 
culminante dc suas carreiras, de sua renda e de sua atividade (Hobsbawm,
p. 233).
13. Na sociologia fuucionalistn norte-americana, esta ttasura na classe uperàriu e ente 
como um processo de conslituiçâo de duas classes sociais distintas: a classe “I 
alta’* c a classe “baixa-baixa".
A prucitiçào do fracasso escolar 39
o trabalhador braçal c se toma inflexível na adm issio dos que vêm tie 
baixo. N o nível político e cultural, m antém-se viva a crença na 
possibilidade dc uma sociedade igualitária num mundo onde, na verdade, 
a |x>larizaçào social é cada vez mais radical. Entre as pequenas conquistas 
de uma minoria do operariado e a acumulação de riqueza da alta bur­
guesia cavara-se um abismo que saltava aos olhas. Justificá-lo será a 
tarefa das ciências humanas que nascem e se o fic ia liz a m neste período.
Por mais que se desse ênfase à melhoria geral das condições e 
perspectivas de vida trazida pela nova estrutura social, a pobreza que 
ainda dominava a vida da maior parte das trabalhadores era por demais 
visível c contradizia concrctamcntc as palavras de ordem da revolução 
francesa. Tal como ocorrera neste movimento revolucionário, batalhões 
dc miseráveis participaram ativamente da Comuna de Paris (1871), 
liderada n3o mais pela burguesia inas pelos seus antigos aliados, agora 
antagonistas.14 Mesmo entre os operários especializados que conse­
guiram atingir um padrão de vida que guardava semelhanças remotas 
com o estilo de vida burguês, a vicia era pesada. Conseguiam, a duras 
penas, manter uma fachada de respeitabilidade: comiam pouco, dormiam 
mal, economizavam migalhas e eram constantemente perseguidos pela 
iminência da miséria. Segundo Hcibshawm ( 1979), "a distância que os 
separava do mundo burguês era imensa - e intransponível" (p. 240).
A visüode mundo da burguesia nascente foi profundamente marcada 
pela crença no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, 
na riqueza e no controle sobre a natureza. O ideário iluminista se for­
taleceu com o visível progresso ocorrido na produção e no comércio, 
resultado, segundo se acreditava, da racionalidade econômica c científica. 
E, fato compreensível., esta ideologia encontrou maior receptividade e 
entusiasmo entre aqueles mais diretamente beneficiados pela nova ordem 
econômica e social em ascensão: "os círculos mercantis e os financistas 
e proprietários; os administradores sociais c econômicos de espírito 
científico, a classe média instruída, os fabricantes e os empresários’' 
(Hobsbawm. 1982, p. 37). A partir dos dois principais centros dessa
14. Mas « nu do iriunlo burguâs. como I lobsbav.ni chama a segunda metade do século XIX. 
iiflo foi uma cm dc revoluções ou dc movimentos dc massa. O fato de a “miscelânea 
dos pobres'’ da cidade ter upoiado a Comuna deu apok» i tese dc ll.ikurin (retomada por 
H Marc use qu&sc cem unos depois) dc que o potencial dc insurrciç&o estava mais nos 
marginais e subproktarios do que no proletariado propriamente dito.
40 *kirut Helena Souxa ratio
ideologia (França c Inglaterra), ela irradiou-sc para as mais diversas e 
distantes regiões, tornando-se voz corrente internacional. Em termos 
individuais, o self-made rtutn, racional e ativo, representava o cidadão 
ideal.
O fato de os novos homens bem-sucedidos o serem aparentemente 
por habilidade e mérito pessoal - já que não o eram pelos privilégios 
advindos do nascimento - confirmava uma visão dc mundo na qual o 
sucesso dependia fundam enta lm ente do indivíduo: com o afirma 
llobsbawm (1979). “um individualismo secular, racionalista e pro­
gressista dominava o pensamento esclarecido’ ” (p. 37). Tudo contribuía, 
entre os vitoriosos na nova ordem, para o desenvolvimento da crença na 
liberdade individual num mundo racional como o valor máximo dc onde 
advinam todos os resultados positivos cm termos de progresso científico, 
técnico e econômico. A ordem feudal ainda em vigor, com seus esforços 
no sentido dc fazer frente aos avanços econômicos e políticos dc uma 
parcela da plebe, constituía o mais sério obstáculo à realização das 
aspirações da burguesia; por isso, um dos principais objetivos políticos 
dos que se organizavam em defesa da ideologia iluminista e do modo de 
produção capitalista era instalar uma ordem social que em tese libertaria 
a todos os cidadãos do tradicionalism ii medieval obscurantista, 
supersticioso e irracional, que dividia os homens em estruturas 
hierárquicas segundo critérios indefensáveis.
O liberalismo clássico , tal com o formulado pelos filósofos e 
economistas dos séculos XVII-XVIII, era a ideologia política da bur­
guesia. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. 
documento representativo das exigências burguesas, não é, segundo 
Hobsbawm. um libelo a favor de urna sociedade democrática e igualitária; 
é, acima dc tudo. “um manifesto contra a sociedade hierárquica dc 
privilégios dos nobres”: prevê a existência de distinções sociais, tem a 
propriedade privada como um direito natural e inalienável, preconiza a 
igualdade dos homens frente à Lei e às oportunidades de sucesso pro­
fissional. mas deixa claro q uc. embora seja dada a todos os competidores 
a possibilidade de começar no mesmo ponto de largada, “os corredores 
nào term inam juntos ”,
A pm tiiiçdo th fracasso escolar 41
Os sistemas nacionais de ensino
Sc a crença dc que a divisão social em classes superiores e inferiores 
leria como critério o talento individual irá, mais adiante, nas ajudar a 
compreender os caminhos trilhados pela psicologia nascente e pelas 
explicações do fracasso escolar, o nacionalismo, cuja primeira cxpress3o 
oficial é obra da burguesia dc 1789.6 o pano de fundo que nos permite 
entender, pelo menos cm parte, o advento dos sistemas nacionais de 
ensino. Através da defesa de um regime constitucional, a burguesia 
acreditava estar sendo (xirta-voz dos interesses “do povo”, tomado como 
sinônimo de “nação”.15
A pesquisa histórica revela que uma política educacional, em seu 
sentido estrito,16 tem início no século XIX e decorre de ires vertentes da 
visão de mundo dominante na nova ordem social: de um lado, a crença 
no pjxler da razio e da ciência, legado do iluminismo; de outro, o projeto 
liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a 
substituir a indesejável desigualdade baseada na herança familiar, 
finalmente, a luta pela consolidação dos estados nacionais, meta do 
nacionalismo que impregnou a vida política europdia no século passado. 
Mais do que os dois primeiros, a ideologia nacionalista parece ter sido a 
principal propulsora de uma política mais ofensiva de implantação de 
redes públicas de ensino em partes da Europa e da Aménca do Norte 
nas últimas décadas do século XIX.
A crença generalizada de que chegara o momento de uma vida 
social igualitária c justa era o cimento ideológico que unia forças e punha 
cm relevo a necessidade de instituir mecanismos sociais que garantissem
15 No momento histórico em que emerge, « tn identificavio entre estes dois conceito* 
6 no ntesino tempo revolucionária - na medida em que impugna a visôo dc mundo 
dominante ate cntlo. justificadora da estrutura social sob as monarquias absolutas - 
e conservadora, pois contém uma cvnccpcfio de homem. <k sociedade e dc liistóna 
que obscurccc a percepção da realidade social nascente, fa/endo crer na existência 
de inieçraváo e reciprocidade onde há contradiçlo e interesses inconciliáveis c de 
igualdade e liberdade onde se sedimenta uma nova fornia dc desigualdade c dc 
opressão
16. Segundo Xanolti (1972), política educacional é "a açlo sistemática c permanente do 
Estado dirigida à oricntaçSo, supervisflo c provisão do sistema educativo escolar” 
(p. 22).
42 hfúMiã tM ctia Souza Hallo
a transformação dos súditos cm cidadãos. Par:i isto. a constituição 
determinaria direitos e deveres; 0 aparelho judiciário, considerado um 
poder independente,

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