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Liberalismos e educação. Ou por que o Brasil não podia ir além de Mandeville

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Fichamento do texto: 
FERRARO, Alceu R. Liberalismo e educação: ou por que o Brasil não podia ir além de 
Mandeville? Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.14, n° 41, maio/ago. 2009. 
 
O artigo em questão busca estabelecer uma relação entre educação e o liberalismo, 
tomando como referencial teórico Mandeville, Adam Smith e Marquês de Condorcet pelas 
suas posições quanto à escolarização. O autor parte de três problemáticas debruçando-se nos 
debates sobre a temática do voto dos analfabetos no Império, sobretudo no período de reforma 
eleitoral de 1878 a 1881 e o tipo de liberalismo dominante corporificado na análise dos 
discursos. Ferraro identifica uma contradição entre a realidade brasileira – inexistência de 
escolas para o povo se alfabetizar – e o surgimento desse debate, que objetivava estabelecer 
barreiras à participação política da população, servindo o analfabetismo generalizado apenas 
como pretexto legitimador. 
 O objetivo geral deste artigo é, portanto, identificar a relação que o tipo de liberalismo 
dominante manteve com a educação popular no Brasil no Segundo Reinado, sobretudo em 
suas últimas décadas. 
 Partindo para a análise teórica dos clássicos liberais utilizados na pesquisa, Ferraro 
inicia sua análise com Mandeville, autor de Fábula das abelhas (1705-1729). Sua metáfora da 
colmeia veio a se tornar uma das principais fontes literárias da doutrina liberal, por ter 
antecipado dois conceitos angulares para essa tendência, a noção de divisão do trabalho e o 
princípio de não intervenção. 
 Sua especificidade no campo da educação deriva, no entanto, da clareza com que 
expressa insatisfação com as ideias de instrução geral, para ele um povo instruído poderia se 
tornar facilmente um povo insatisfeito. Segundo ele: 
 
Para fazer feliz a sociedade e manter as pessoas contentes, mesmo nas 
circunstâncias mais humildes, é indispensável que o maior número delas 
seja, ao mesmo tempo que pobres, totalmente ignorantes. (...)Portanto, o 
bem-estar e a felicidade de todo Estado ou Reino exigem que os 
conhecimentos da classe pobre trabalhadora se limitem à esfera de suas 
ocupações. (apud. FERRARO, 2009, p. 312) 
 
Parte de sua posição contrária a educação dos pobres se materializou na sua crítica às 
Escolas de Caridade que se ocupavam da educação dos pobres, justamente por contrariar o 
princípio da não intervenção na colmeia, - a sua metáfora para a sociedade - afirmando que é 
o mercado que deve regular a educação. 
 Para Mandeville, não somente os pobres deveriam ser excluídos da escolarização, mas 
também as mulheres, às quais, segundo ele, deveriam restringir-se ao mundo da costura e do 
governo da casa, argumentando que não há falta de homens instruídos na Inglaterra para 
justificar esta necessidade. 
 Ferraro identifica que há duas avaliações antagônicas quanto a Mandeville, a qual o 
autor usa duas análises teóricas para exemplificá-las. A primeira, apoiada na perspectiva de 
Gertrude Himmelbarb (1988) caracteriza que 
 
A fábula das abelhas está longe de ser representativa de sua época, 
porquanto teria desagrado profundamente a seus contemporâneos, 
provocando ataques frenéticos e fazendo até com que o grande júri de 
Middlesex condenasse a obra como uma calamidade pública. (FERRARO, 
2009, p. 313). 
 
Apoiada na análise de Philippe Sassier referindo-se a tentativa de alfabetização geral 
na França do século XVIII, Ferraro expõe outra perspectiva. Segundo a ela, as análises de 
Mandeville em nada diferem do “estado da arte” do Iluminismo, onde mesmo Voltaire 
chegava a copiar Mandeville ao pé da letra. 
 O segundo referencial teórico utilizado no texto é o de Adam Smith. Em sua 
caracterização sobre este cientista econômico, Ferraro buscou fazer as aproximações que 
assemelham as duas perspectivas, ressaltando também as suas diferenças. A primeira 
semelhança apontada se trata da teoria da divisão do trabalho, objeto de investigação 
sistemática de Smith no primeiro capítulo da Riqueza das nações. Sua problemática central 
era entender a explosão de riqueza que ocorreu na Inglaterra em princípios do século XVIII 
com o início da Revolução Industrial, que para ele tinha na divisão do trabalho o fundamento 
da grande expansão do poder produtivo do trabalho. Mas uma das principais diferenças entre 
os dois, e de grande importância neste trabalho, são as diferentes perspectivas que os autores 
possuem quanto à educação do povo. 
 Ao contrário de Mandeville, Smith enxerga um aspecto crítico na complexificação do 
processo de divisão do trabalho da sociedade, que influencia diretamente a sua perspectiva a 
respeito da instrução geral. Ele avalia “como uma afronta a criaturas humanas o estado de 
estupidez e ignorância que realmente acaba afetando os trabalhadores submetidos a esse 
‘progresso da divisão do trabalho’” (FERRARO, 2009, p. 315) e a sua posição quanto à 
posição do Estado neste processo é taxativa: “Mas em toda a sociedade melhorada e 
civilizada é este o estado [de estupidez e ignorância] em que os trabalhadores pobres, ou 
seja, a maioria da população, cai necessariamente, a menos que o governo faça alguma coisa 
para impedi-lo” (apud. Idem, ibidem.) Ao contrário dos aspectos centrais de sua teoria 
econômica, Smith apresenta uma posição favorável à intervenção do Estado quanto a essa 
questão. 
 Outro aspecto digno de comparação entre os dois diz respeito à doutrina do papel do 
Estado, ou princípio da não intervenção. A formulação elaborada por Smith possui três 
princípios centrais. O primeiro deles, denominado por ele “sistema de liberdade natural”, se 
tornou a pedra angular do liberalismo econômico, que nada mais é do que o sistema da livre 
concorrência. O segundo deles, derivado do primeiro, postula mais diretamente a respeito do 
caráter de não intervenção do Estado, o qual se diz que o indivíduo é portador de liberdade 
natural, nesse sentido cabe ao Estado o dever de respeitar essa liberdade e não intervir nessa 
ordem natural da economia. 
 Até aqui vimos dois pontos de intersecção entre os dois, no entanto a diferença mais 
fundamental deriva do terceiro princípio, sobretudo no que tange ao centro de nossa 
discussão, a educação. Este terceiro princípio é denominado por Smith como “atribuições ou 
deveres do soberano”, as quais foram abordadas sistematicamente por 200 páginas, podendo 
ser resumidas nas despesas com a defesa, com a Justiça, com os serviços públicos e as 
instituições públicas, inclusive as de educação. O filósofo defende que a educação do povo 
requer mais atenção do poder público do que a educação das pessoas de posição e fortuna, 
argumentando que os filhos dos trabalhadores pobres possuem pouco tempo de escolarização 
por sua necessidade produtiva já na infância. A educação popular de Smith deveria centrar 
seus conteúdos nas questões mais fundamentais da geometria e da mecânica, bem como no 
processo que entendemos hoje como alfabetização. 
 Por outro lado, suas reflexões pouco avançaram na educação das mulheres, excluindo-
as da escolarização universal, sendo-lhes apenas ensinado “aquilo que os pais ou tutores 
julgam necessário ou útil à educação, e nada mais.” (apud. Idem, ibidem, p. 317) 
 O terceiro referencial teórico de Ferraro para a construção da problemática deste artigo 
se trata de Marquês de Condorcet, um dos principais teóricos da educação republicana. Como 
os outros autores analisados, Condorcet também está inserido no pensamento liberal, no 
entanto o mesmo possui uma perspectiva essencialmente diferente dos autores anteriores. 
Enquanto Mandeville e Adam Smith estão embasados no princípio burguês de liberdade, o 
pensamento de Condorcet se assenta sobremaneira no princípio, também burguês-
revolucionário, da igualdade. 
 Essa leitura explica, por exemplo, o seu posicionamento quanto à educação. Segundo 
ele, “a sociedade deve ao povo uma instrução pública”. E deve-a: “1º.Como um meio de 
tornar real a igualdade dos direitos. [...] 2º. Para diminuir a desigualdade que nasce da 
diferença de sentimentos morais. [...] 3º. Para aumentar na sociedade a massa de luzes 
úteis.” (apud. FERRARO, 2009, pg. 319) 
 Esse trecho carrega algumas reflexões acerca da relação do liberalismo de Condorcet 
com a sua defesa de uma educação pública universal. Para esse autor, o conceito de igualdade 
jurídica, intrínseco a doutrina liberal, só se torna real e concreto com a igualdade de instrução. 
 
Oferecer a todos os indivíduos da espécie humana os meios de prover as suas 
necessidades, de assegurar seu bem-estar, de conhecer e exercer seus 
direitos, de entender e cumprir seus deveres; assegurar a cada um deles a 
facilidade de aperfeiçoar sua habilidade, de habilitar-se para as funções 
sociais para as quais venha a ser chamado, de desenvolver toda a extensão 
dos talentos que recebeu da natureza, e por esse meio estabelecer entre os 
cidadãos uma igualdade de fato e tornar real a igualdade política reconhecida 
pela lei. Tal deve ser o primeiro objetivo da instrução nacional; e, sob este 
ponto de vista, ela é para o poder público um dever de justiça. (apud. 
FERRARO, 2009, 320. Grifo meu.) 
 
 Ele propõe a organização da instrução pública em três níveis, a instrução comum, a 
relativa às diversas profissões e a científica. Além disso, caracterizando todos os objetivos da 
instrução nacional denotados na citação acima, ele transpõe os limites dos conteúdos 
propostos pelos autores anteriores. São três os princípios da instrução comum segundo a 
perspectiva aqui analisada: 
 
Ensinar a cada um, segundo o nível de sua capacidade e a duração do tempo 
de que dispõe, aquilo que é bom que todos os homens conheçam, qualquer 
que seja a sua profissão e o seu gosto; [...] assegurar um meio de conhecer as 
potencialidades particulares de cada pessoa, a fim de poder tirar daí 
vantagem geral e [...] preparar os alunos para os conhecimentos exigidos 
pela profissão a que se destinem. (apud. Idem, ibidem, p. 319). 
 
Outra diferença fundamental deste autor em relação aos anteriores tem relação com o 
seu posicionamento quanto à educação para mulheres. Em Condorcet, o princípio de 
igualdade de instrução aplica-se a todo povo, incluídas explicitamente também as mulheres. 
 Mas o que isto tem a ver com o Brasil? É a pergunta que Alceu Ferraro faz para 
recuperar as problemáticas iniciais do texto quanto aos debates acerca da instrução pública a 
partir da temática do voto dos analfabetos nas últimas décadas do Império. Seu objetivo é, a 
partir do confronto teórico entre as perspectivas abordadas, denotar o tipo de liberalismo que 
vingou no Brasil Império. 
 A principal fonte utilizada no arremate do artigo trata-se do texto Memória de Martin 
Francisco (1816), preparado para a reforma dos estudos na Capitania de São Paulo. Embora 
em grande parte copiasse a obra Écrits sur l’instruction publique de Condorcet, suas propostas 
foram escamoteadas, tanto no plano teórico e conceitual, por ter esvaziado o princípio 
fundamental do pensamento de Condorcet que é a igualdade, bem como em seus aspectos 
práticos ao diminuir a duração prevista do primeiro grau de instrução. 
 Percebe-se que o liberalismo traduzido à realidade brasileira constituiu-se a partir de 
uma realidade social fundada no escravismo, em que as elites intelectuais liberais ao passo 
que defendiam a emancipação e liberdade política lutavam para conservar a economia e 
sociedade brasileira, fundada em relações escravistas e na desigualdade. 
 É nesse sentido que o Brasil não pode ir além de Mandeville, que aos trabalhadores e 
filhos de trabalhadores reserva apenas aquilo que é estritamente útil e necessário ao exercício 
da profissão.

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