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, O CALCULO , NEUROTICO DO GOZO �hristian lngo Le�z Dunk�r • escuta ; .-'! :1 ;t ·f .. i ' D919c ©by autor 1 ª edição: maio de 2002 EDITORES Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhães CAPA Ediara Rios PRODUÇÃO EDITORIAL Araide Sanches Catalogação na Fonte do Depto. Nacional do Livro Dunker, Christian Ingo Lenz O cálculo neurótico do gozo / Christian Ingo Lenz Dunker - São Paulo: Escuta, 2002. 232 p. ; 14x21 cm. ISBN 85-7137-193-8 1. Sexo (Psicologia). 2. Neuroses. I. Título Editora Escuta Ltda. Rua Dr. Homem de Mello, 351 05007-001 São Paulo, SP CDD-155.3 Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 e-mail: escuta@uol.com.br acervo Para Mathias, Nathalia e Cris . . . pois não há saber sem amor. AGRADECIMENTOS Considero o presente trabalho uma obra coletiva apesar de ter um único autor. São inúmeras as vozes e escutas com as quais pude contar ao longo de sua elaboração e que quero agradecer. Meus orientandos, alunos de iniciação científica e do mestrado em psicologia, especialmente Tati, Fuad Neto, Pau la, Gonçalo e Paulo que me ajudaram com fontes e comentários preciosos. Os professores da Universidade São Marcos, especial mente Consuelo, Daniel, Marisa, Ricardo e Ciampa que foram companheiros e amigos com quem pude dividir momentos di fíceis durante a redação do texto. No Fórum de Psicanálise de São Paulo e no Fórum do Campo Lacaniano, alguns capítulos deste livro foram apresentados e discutidos preliminarmente. Quero agradecer o acolhimento de muitos, nessas ocasiões, e também a presença, nesse período, de Dominique, Ângela e Mauro que à sua maneira permitiram o reinvestimento neces sário para a conclusão deste livro. Por vários e "impublicáveis" motivos quero agradecer a meus queridos amigos do consultó rio Conrado, Gui, Bia, Ana Laura e Michele que estiveram pre sentes nos embates crítico-metapsicológicos, além de Álvaro, João e Lu nos momentos de incerteza aguda. Devo muito ain da a Alfredo e Contardo que me escutaram em aspectos clíni cos do projeto e aos professores Luiz Carlos e Luís Cláudio que muito me ensinaram acerca da convivência precária, mas pos sível, entre psicanálise e universidade. Ana Cristina, Mathias e Nathalia ... obrigado. À Coorpesq da Unimarco que custeou horas necessárias para a realização desta pesquisa. SUMÁRIO PREFÁCIO, Angela Vorcaro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 INTRODUÇÃO ...........................................................................•...... 11 PARTE 1 Gozo E TEORIA DO VALOR 0 PROBLEMA DOS CONCEITOS ECONÔMICOS DE FREUD A LACAN ....... 21 As RAÍZES DA NOÇÃO DE GOZO EM LACAN ..•...•..........••................... 29 O gozo na matriz lingüística ............................................... 30 O gozo na matriz ético-jurídica .......................................... 42 O gozo na matriz econômico-política ................................ 54 O gozo na matriz lógico-formal ........................................ 61 A FALTA E O EXCESSO: MODULAÇÕES DO GOZO EM UM C/!<50 DE HISTERIA .......................................................•.....•.............. 67 0 CÁLCULO NEURÓTICO DO GOZO ....................•..•.••......................... 77 Sacrifício, restituição e resto ................................................ 80 A crise de gozo ...................................................................... 88 A DIMENSÃO QUANTITATIVA NA PSICOPATOLOGIA PSICANALITICA ..... 97 PARTE II DA ESTRUTURA AO SINTOMA DESENCADEAMENTO DA NEUROSE: UM FALSO PROBLEMA? ............... 111 A NOÇÃO FREUDIANA DE VERSAGUNG E O GOZO COMO PARASITA ... 123 PRODUÇÃO, SUSTENTAÇÃO E FRACASSO DE SINTOMAS ...................... 133 Sintoma e identificação ...................................................... 138 Sintomas transitórios, típicos e individuais .................... 141 A sustentação do sintoma na família ............................... 147 Fantasma e traço de gozo .................................................. 150 PARTE Ili QUADROS CLÍNICOS NEUROSE DE CARÁTER ••............... ···············•·································· 157 NEUROSE TRAUMÁTICA •..•.•.............................•......................•....... 173 NEUROSE DE DESTINO ......................................................•............. 183 NEUROSES ATUAIS: NEURASTENIA E NEUROSE DE ANGÚSTIA ............ 191 NEUROSE NARCÍSICA ••................................................................... 203 ALÉM DO CÁLCULO: A SUPLÊNCIA .................................................. 215 PREFÁCIO As modalidades de cálculo de gozo que este livro nos con vida a estimar oferecem-nos a possibilidade de abordar cifra mentos que os sujeitos efetuam singularmente e dão mostras da generosidade com que Christian Dunker nos apresenta o que se calcula para discernir a própria condição do sujeito. Este livro trata do que se mantém enigmático na comple xidade do sujeito, partindo da via trilhada por Freud. Afinal, um dos modos pelos quais Freud se esforça por nos apresentar o sujeito - essa insistência exterior ao saber por que imprevis ta e ao mesmo tempo repetitiva - é fazer a lista das inúmeras situações nas quais o domínio intelectual do mundo implica ditar universalidades organizadoras do caos. Mas, diz Freud, se tal trabalho simplifica os fenômenos, em contrapartida tam bém os falseia, especialmente quando dizem respeito a proces sos de transmutação. Nosso interesse por mudanças qualitativas seria, segundo Freud, responsável por nosso des cuido: omitimos o ordinário imperfeitamente consumado e as alterações apenas parciais. Enfim, Freud lembra que os fenô menos residuais e as pendências parciais sempre insistem por que nenhuma transmutação acontece de modo integral: "Uma vez que algo nasceu para a vida, sabe afirmar-se com tenacida de" . 1 Essa observação de Freud adquire neste livro todo o seu valor. Ela é o que Christian Dunker nos propõe enfrentar. 1. Freud, S. (1937). Análisis terminable e interminable. OC. Buenos Aires: Amorrortu, 1976, p. 232. v. XXIII. 8 CHRISTIAN INGO LENZ OUNKER Que saber insabido é esse, tão tenaz, que "sabe afirmar se"? Essa interrogação cinzela, no percurso traçado por Chris tian Dunker, aquilo que o termo cálculo condensa por meio da reordenação da clínica, lida com as considerações de tantos outros autores que lançaram luz sobre os resíduos cintilantes que testemunham presença e insistência subjetivas. Referindo-se ao Evangelho segundo São Mateus, o Lacan do Avesso da Psicanálise cita os lírios do campo, que podem ser imaginados como um corpo inteiramente entregue ao gozo: cada etapa de seu crescimento idêntica a uma sensação sem forma; gozo de planta, a que nada escapa. São Mateus, efetiva mente, descreve o usufruto pleno da vida sem qualquer cálcu lo, considerando-a assegurada por Deus, tal como a natureza. O desagradável é que nada sabemos do gozo de planta. Lacan introduz os lírios do campo para distinguir nossa dificuldade em saber sobre gozo( ... nem Salomão, com toda a sua glória ... ). Nada sabemos do gozo porque, diz ele, faltando significante, não há distância entre o gozo e o corpo. É nessa perspectiva que nos servimos da noção de instinto que dissolve nossa dificuldade, à medida que, afirma Lacan, o instinto traz a implicação de um "saber do qual não se é capaz de dizer o que isso quer, mas que se presume que tenha como resultado que a vida subsista." Como o instinto, o gozo é limitado por processos que chama mos de naturais por estarem fora do discurso, e dos quais, por tanto, nada sabemos. Entretanto, se a medida de nossa impossibilidade de enunciar o gozo deve-se ao fato de sermos efeitos da lingua gem - e, portanto, condenados, necessariamente, a modalida des de· gozo parcial-, é a -própria linguagem que permite formular hipóteseslógicas sobre as modalidades pelas quais o ser vivo é adquirido pela linguagem a ponto de essa aquisição produzir sujeito. Isso resume a importância e a atualidade ex pressas nas páginas deste livro. Com o mesmo vigor com que Christian Dunker trata os mistérios do sujeito formulados por Freud, podemos encontrar em suas páginas, efetivamente, uma leitura. O que faz deste tra balho um ato de ler é que ele tão bem nos ensina a ler e, nessa transmissão de um saber-Jazer com a linguagem em que nos PREFÁCIO 9 contamos, a distinguir essa inscrição do sujeito, corno exclusão que coagula o saber, na repetição de cálculos própria à sua con dição de contador. De fato, se o gozo é impossível, é pela even tualidade de o sujeito posicionar-se corno contador que um gozo entra em ação. Tal acidente permite esse uso específico da linguagem que suporta a sustentação mítica de equivaler-se a si mesmo. Nessa falha chamada sujeito, os efeitos da ligação discur siva operam, induzindo e determinando um cálculo, cujo tra ballw de contar articula o saber. Como o sujeito que o si mesmo representa não é unívoco, algo fica oculto e determina a errân cia do cálculo em que o funcionamento da linguagem se de monstra pela retroatividade em que ela manifesta que é falta, e não êxito. A linguagem é repetição que se relaciona, pelo cálculo, aos confins do saber, meio de gozo. O sujeito, diferentemente da planta, tem urna economia. Na busca de gozo ele repete seu traço que nunca é o mesmo, por que nunca está só: o traço só comparece escandido pelo signi ficante. Assim, a repetição presentifica a ordem da linguagem, porque o saber ultrapassa a lei do prazer. O saber se debulha, se enumera, se detalha, e o rosário se desfia sozinho, fazendo do sujeito um empregado da linguagem. Na repetição, o saber é o meio do gozo, ao mesmo tempo em que produz perda de gozo. No lugar dessa perda, introduzida pela repetição, aparece o que está além do princípio do prazer: a repetição, mais-de-gozar a recuperar. A partir do instante em que se encontra aparelhado com a linguagem, o sujeito visa um saber sobre o gozo. Mas ele só o perde, mais um pouco, porque o cálculo o esquadrinha em sig nificante, infletindo-o na língua. Não é surpreendente que, então, o sujeito faça do saber o meio de gozo possível, retiran do da perda de gozo, que o saber implica, o possível de gozo, através de urna economia de repetição? Através de um cálcu lo da sua mais valia, que, corno diz Lacan, é traço de cinzel do discurso, impresso a cada repetição, nas modalidades pelas quais ele pode simular o gozo absoluto no gozo possível. É essa outra ordem de saber que Christian Dunker expõe, a partir do que só urna excelência clínica poderia permitir, dis tinguindo modalidades de cálculo pelas quais o sujeito, via 10 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER discurso, opera o jogo de gozo que secciona libido e natureza. Mas interessa notar, ainda, o estilo em que esse autor mostra saber-fazer, singularizando a vigência freudiana da extensão da clínica, para fazer a teoria trabalhar e operar. Tal cálculo, surpreendente, é o maior ensinamento de método deste livro. Angela Vorcaro INTRODUÇÃO Na elaboração desta pesquisa procurei rever um conjun to de práticas discursivas que levaram a um certo esgotamen to da criatividade conceitua! e ao fechamento complacente da interlocução científica, na tradição psicanalítica inaugurada por Lacan. Cito alguns exemplos: o uso do texto de Lacan como mero argumento de autoridade, o achatamento do texto de Freud de forma a fazê-lo confessar apenas o que interessava comprovar como já sabido, a recusa deliberada ao trabalho crí tico construtivo e a soberba indiferença com relação ao que se produz em campos institucionalmente vizinhos ou mesmo ao que vem sendo feito em outras tradições dentro da psicanáli se. Soma-se a isso uma espécie de horror a ser compreendido e o cultivo de certas formas retóricas facilitadoras que sofreram o desgaste esperado de um estilo, quando este torna-se um gê nero. Tais práticas, há muito apontadas pelas mais variadas fontes, exigem, de fato, uma mudança de atitude, ao risco de uma sectarização ainda maior da psicanálise. Uma mudança que implique retorno ao texto, em confronto e reconhecimen to de sua disparidade e contradição com teses freudianas, além de uma abertura aos interessantes avanços da psicanálise não lacaniana. Neste sentido estabeleci algumas condições que deveria cumprir na redação deste estudo e agora, ao seu fim, noto que nem sempre permaneci tão fiel a tais condições quanto gosta ria. Mas isso caberá também ao leitor julgar. Pretendi, antes de tudo, falar sobre clínica. Contar algumas passagens, narrar fragmentos de casos, transmitir não só exemplos e ilustrações, 12 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER mas isolar aspectos que não me pareciam encontrar um corre lato teórico muito estável. Falar sobre a clínica enfatizando a dimensão intensiva· desta experiência, valorizando aquilo que nem sempre está em primeiro plano na chamada escuta estru tural, ou seja, a dimensão de força dramática ou trágica do so frimento neurótico. Mas o que significa falar sobre clínica? Como transmitir, pensar e pôr à prova este campo tão heterogêneo e sujeito a idiossincrasias onde temos sempre o sentimento de que o es sencial escapa por entre as tentativas de representá-lo? Neste quesito adotei uma estratégia híbrida. Combinar fragmentos de casos com a regularidade clínica que estes poderiam apresen tar, procurando sempre manter uma certa diversidade de fon tes para enriquecer ou questionar seu poder descritivo. A idéia é manter-se entre dois extremos: de um lado, a formalização conceitual, cujo ápice talvez seja o materna; de outro, o puro relato clínico, quase anedótico, cujo ápice talvez seja o poema. Essa atitude retoma aspectos que discuti anteriormente1 quanto ao valor das descrições clínicas, uma vez advertidas contra um certo realismo ingênuo que por vezes as atravessa. Isso signi ficou retomar e valorizar certos quadros clínicos, descritos clas sicamente, por Freud o u não, e que encontraram pouca receptividade na tradição lacaniana: neuroses atuais, neuroses de caráter, neuroses traumáticas e, por fim, os quadros de bor da (borderline) ou também chamados casos-limites. Admito com isso que o quadro clínico - assim como uma tela de pintura - é sempre mais rico do que a sua combinató ria composicional, do que a estrutura de sua perspectiva ou do que a sua técnica de mistura de cores. O quadro clínico é uma possibilidade relativamente genérica da estrutura clínica. En tendo, nesta medida, que é preciso introduzir um terceiro nível psicopatológico entre o sintoma e a estrutura, para lidar com tais quadros. Poder-se-ia dizer que este corresponderia ao ní vel do funcionamento psíquico. Prefiro delimitá-lo com a noção de gozo e de variações possíveis de seu cálculo. 1. Dunker, C.l.L. Tempo e linguagem na psicose da criança. 1996. 280p. Tese (Doutorado em Psicologia Experimental). Instituto de Psicologia da USP. I NTRODUÇÃO 1 3 O objetivo deste livro é mostrar que a noção de cálculo neurótico do gozo pode ter alguma utilidade na clínica e na pesquisa psicanalítica que considere a singularidade de agru pamentos sintomáticos e algumas condições subjetivas adjacen tes. Tal noção não será explicitada rigorosamente antes das análises que proponho. Ela será construída ao longo da apre ciação dos problemas tratados. Inicialmente procurei detalhar, especialmente na primei ra parte, que a noção de cálculo do gozo possui uma conver gência possível com algumas acepções e usos da noção de gozo que encontramos em Lacan. 2 Mais especificamente, apontei para a idéia de que o gozo é a referência para o cálculo do va lor e de que este cálculo está exposto a certos paradoxos que o tornam imperfeitamente realizável. Isso servirá de preparação para a tese, desenvolvida nos capítulos subseqüentes,· de quecertos sintomas neuróticos podem ser compreendido como mo dulações deste cálculo. Boa parte da psiquiatria, e do senso comum de nossa épo ca, afirmam que os sintomas constituem um prejuízo psíquico ao sujeito. O sintoma pode limitar, constranger e empobrecer a vida do neurótico É a.lgo qve está em excesso e que. portan to, deveria ser sumariamente eliminado, controlado ou ameni zado. Isso deve ser feito, na medida do possível, de modo permanente, pela transformação das causas que o produzem. A dissolução de sintomas sempre foi considerada a prin cipal tarefa terapêutica a ser enfrentada pela psicanálise. Mas coube a Freud mostrar que os sintomas não são mero desajus te, nem excesso que pode impunemente ser abreviado. Decor ren temente , a psicanálise não é apenas uma prática de eliminação de sintomas. De fato, estes representam um obstá culo ao amor, ao trabalho e uma fonte a mais de infelicidade, além daquelas que a existência, por si só, impõe. Nada toma mais tempo e é mais oneroso ao neurótico do que sua dedica ção aos sintomas. 2. Para aqueles lei tores menos interessados nos aspectos conceituais da noção de gozo em Lacan, recomendo que iniciem a leitura pelo tercei ro capítulo. 1 4 CHRISTIAN INGO LENZ Ü U NKER Outro ponto elementar para a questão é de que os sinto mas possuem sentido e função. Como conseqüência dessa tese, devemos estar dispostos a apreender o sintoma como efeito de um laborioso trabalho de construção psíquica e, igualmente, como uma espécie de "forma de vida" . Constituir um sintoma é uma tarefa árdua para o sujeito e disso depende uma parte do valor que a partir de então este passa a ter. O sintoma não é, portanto, apenas um problema, mas uma solução, uma res posta, por vezes precária, para conflitos que constituem o pró prio sujeito e localizam o ser em sua ex-sistência . O sintoma, neste último sentido, pode assumir a função de uma espécie de religião particular, mas também de uma obra de arte à procu ra de um destinatário . Há, portanto, esta dupla face: a do prejuízo, da contra vontade e a do sintoma como uma espécie de obra de arte . Nela pode-se notar em suas ranhuras e aparas os restos e as marcas do esforço levado a cabo na sua construção . Obra de arte que faz persistir e representar seu autor e ao mesmo tem po o nega em sua destituição subjetiva. Obra que perdeu sua função social preservando em seu núcleo rígido apenas a satis fação de sua própria continuidade. Essa comparação com a obra a ser decifrada em seu sentido e rearticulada em sua fun ção social permite entender porque mn sintoma não é propria mente curado, na acepção médica do termo, por uma psicanálise. Melhor seria dizer que ele cai, é encostado, entra em desuso ou perde sua importância. Freud empregava o ter mo Losung, solução ou dissolução para se referir a isso. Disso lução deste fragmento petrificado de gozo que se encontra em seu interior. Assim como a obra de arte, o sintoma tem um destinatá rio, constituindo em seu incomum arranjo de linguagem um enigma capaz de estranhar a seu próprio autor. Assim como o sintoma, a obra de arte é algo completamente sem sentido, inú til do ponto de vista da razão calculante, instrmnental e fundo-: nal hegemônica em nossa época. A pergunta que pretendo investigar diz respeito ao valor do sintoma. Valor tão difícil de calcular quanto o de uma obra de arte. Valor cujo cálculo coloca em jogo a mais paradoxal for- INTRO D U Ç ÃO 1 5 ma de satisfação que a experiência psicanalítica trouxe à luz: o gozo. A expressão cálculo costuma remeter à realização de urna medida ou a um conjunto de operações sobre números e sím bolos algébricos na matemática ou na lógica. O termo calculus referia-se originariamente a uma pequena pedrinha utilizada para marcar tais operações, como as que se vê nos ábacos orien tais. Uma pedra que acabou por metaforizar e condensar o con junto das operações que ela permitia realizar. É nesse sentido de condensado ou precipitado que o termo cálculo aparece ain da no vocabulário da medicina. Esta pedra de gozo é o que Lacan apontava como crucial na análise do sintoma. Mais difícil é entender como cálculo ganhou a conotação de conjectura, estimativa, que no sentido figurado indica ain da "sentimento de cobiça e interesse" . 3 Como a imparcialida de, aparentemente contida na idéia de cálculo matemático, se conjugaria aos sucedâneos menos nobres da vontade? Nisso se expressa uma ambigüidade moderna abrigada no termo. A ra zão calculadora é capaz de nos oferecer garantia e previsibili dade sobre o futuro, capaz de domesticar o infinito e regular de forma planetária as trocas simbólicas humanas, mas ao mesmo tempo o termo é revestido de suspeita quanto à sua extensão. Qual o limite do que pode ser calculado? Para falarmos em cálculo, mesmo na acepção genérica que pretendo, é necessário supor três condições. A primeira é o que se pode chamar de ciframento, ou seja, estabelecer os represen tantes daquilo que se pretende representar. Tais representan tes podem ser numéricos, algébricos ou matemáticos, podem ser simplesmente palavras, sinais ou marcas. A segunda condição implica estabelecer as regras de opera ção entre estes representantes, ou seja, circunscrever os tipos de trocas, identidades e relações que esses elementos admitem entre si. Tais relações podem se reduzir a regras de substituição, o modo de uma gramática, o modo das regras que constituem 3. Ferreira, A. Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1 996. 1 6 CHRI S TIAN I NG O LENZ DUNKER ou regúlam um jogo. As regras de transformação pressupõem um universo cifrável, fazem uma segunda borda do cálculo. A terceira condição é que se possa abstrair, pelo cálculo, um valor ou produto daquilo que se calculou. Por exemplo, na matemática fala-se em função e argumento (regras de operação), em variáveis (ciframento), mas também há ainda o valor. Temos aqui uma espécie de raiz do processo. O cálculo nos leva de um ponto ao outro, que presumivelmente já se encontrava prescri to pelo primeiro. Ele não introduz nada novo. Sucede que se aplicamos tais categorias à produção do sintoma neurótico veremos que este nos surge como uma espé cie de paradoxo ou contradição relativo ao valor. Um valor que parece imperfeitamente redutível à sua regra de formação. Como Freud mostrou vivamente, o sintoma possui um valor do qual o neurótico não quer se livrar. Um valor do qual se desconhece o percurso de produção e as regras de seu cifra mento. O argumento central deste estudo é que, no que toca ao gozo, o cálculo em questão responde bem às duas primeiras condições: ele é capaz de ser cifrado e é capaz de ser exposto a uma economia de trocas. No entanto, quanto à terceira, o que se obtém é uma inconsistência quanto ao seu produto ou valor. O gozo não cessa de não se inscrever no sintoma porque seu valor representa um paradoxo para o sujeito.4 A idéia de algo que resiste a inscrever-se plenamente na razão regida pelo cálculo não é nova. Historicamente diversos valores foram e são candidatos a baluartes neste anteparo ao cálculo: o homem, a vida, a liberdade, são alguns exemplos mais conhecidos. São termos que representam valores intrínse cos ou imanentes para os quais as operações de ciframento, tro ca e uso não deveriam ser aplicadas. O homem, por exemplo, não deve ser pensado como possuindo um valor, mas apenas dignidade. A modernidade está em associação direta com uma série de impasses éticos, estéticos e epistêmicos onde a noção de cál- 4. Correa, I. A psicanálise e seus paradoxos. Salvador: Ágalma, 2001 . INTRO DUÇÃO 1 7 culo se revela imprópria ou paradoxal. Como mos trou Bauman,5 uma contradição constitutiva da modernidade reside na pretensão de discriminação, cálculo e organização que se impuseram às sociedades ocidentais. Mas o sucesso de tal pro jeto historicamente se associou à produçãode mais ambigüida de, indiscriminação e barbárie. Atenção - não se está afirmando que o cálculo por si e em si seja contracivilizatório, mas que a extrapolação de seu âmbito e o exagero de suas pretensões têm sérias conseqüências sociais. É só quando a ambigüidade é re cebida como sintoma, e só quando o sintoma torna-se um mal a ser erradicado por novas forças e estratégias de desambiguação6 que nos arriscamos a tornarmo-nos "infeliz mente saudáveis" . Analogamente é como se por um excesso de precisão, por um ultrapassamento do limite ao gozo, que cer tos grupos sintomáticos são desencadeados no interior da neu rose. É nesse tipo de movimento, onde quanto mais se luta contra algo, mais isso se acirra e insiste, que pretendo isolar o cálculo neurótico do gozo. Quanto mais o gozo se cifra, menor valor este tem. Inversamente, quanto maior seu valor menor sua possibilidade de inscrição. Entendo, desta maneira, que o sintoma pode e deve ser escutado como a realização inconsciente deste cálculo parado xal próprio à neurose. Ele pode ser escutado em conjunto com aquilo que faz estrutura, assim como em uma audição musical pode-se estar atento ao ritmo, à melodia e ao volume simulta neamente. Escutar as operações de ciframento, intercâmbio e valorização que estão envolvidas no cálculo supõe dar alguma atenção às modulações de intensidade, força ou investimento que são trazidas pela fala do paciente, mais especificamente na expressão de seu sofrimento. Argumento, com isso, que a clí nica que pretenda tratar o gozo deve acolher, de alguma forma, suas variações quantitativas e não apenas qualitativas. 5. Bauman, Z. Modern idade e a111biva lê11cia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 6. Haroche, C . Fazer, dizer, querer, dizer. São Paulo: Hucitec, 1992. PARTE 1 Gozo E TEORIA DO VALOR Ü PROBLEMA DOS CONCEITOS ECONÔM I C OS DE FREUD A LACAN O primeiro resultado da nova ciência (cartesiana) foi o de cortar o real em duas metades, quantidade e qualidade, das quais uma foi entregue aos corpos e outra às almas. Bergson Uma crítica usualmente levantada contra a leitura lacania na de Freud diz respeito ao pouco peso conferido aos afetos e por extensão ao que Freud chamava de ponto de vista econô mico em psicanálise. Se percorrermos um texto kleiniano ou winnicottiano e o compararmos a um escrito inspirado no en sino de Lacan, uma curiosa diferença estilística salta aos olhos. No primeiro caso o texto costuma estar repleto de expressões quantitativas tais corno "muito", "pouco", "maciçamente", "in tensamente", e assim por diante. Surge a impressão de que sempre se está a falar de diferenças dispostas segundo uma continuidade, de acordo com uma gradação, onde a combina ção, a mistura e a co-presença de processos e dimensões é a tô nica. No caso lacaniano se dá o oposto: tudo é uma questão de qualidades, diferenças irredutíveis, descontinuidades e ruptu ras . Tal diferença estilís tica replica, superficialmente, a impor tância assumida pelo ponto de vista econômico no primeiro caso e a suspeita do qual ele é cercado na segunda situação. A crítica de que Lacan abandonou o ponto de vista econô mico é imprecisa. Aspectos sumamente dependentes das con siderações econômicas em Freud receberam atenção sistemáti- 22 CHRI S T I AN INGO LENZ DUNKER ca de Lacan, vale citar sua interpretação das teses sobre o nar cisismo, nos termos do estádio do espelho e da concepção de imaginário; sua teoria da angústia, ainda não inteiramente exa minada; além da controversa teoria da sexuação. Poder-se-ia objetar então que o abandono do ponto de vis ta econômico não é temático mas trai a inspiração metodológi ca freudiana de considerar, por exemplo, a libido como uma espécie de "energia psíquica de natureza sexual" . Energia cuja quantidade não pode ser medida mas que em sua distribuição, deriva, concentração ou dispersão, determina o funcionamen to psíquico. A imagem freudiana da libido como um rio cauda loso, de fonte constante, procurando caminhos por onde escoar e encontrando resistências e transbordamentos em sua trajetó ria, é uma imagem que valoriza a força, a exigência, o impul so, não apenas qualidades diferenciais neutras . A imagem do rio pressupõe a existência primária da água como substância dotada de realidade material. O que está em jogo aqui é saber se a libido é um conceito que reflete uma realidade semelhan te à de um neurotransmissor, por exemplo, onde seus aspectos quantitativos podem ser calculados com exatidão. Nesse caso a crítica se concentra em torno da recusa laca niana em considerar o elemento quantitativo, contido na acep ção original, oferecendo em troca uma perspectiva epistemoló gica formalista. Mas quando Lacan critica a adoção da energia como elemento primário para pensar o psiquismo, ele o faz tendo em vista a ingenuidade metafísica que nela se encerra. A energia não é um fato primário na constituição da realidade psíquica, mas uma suposição sobre a eficácia deste sistema, a chamada realidade como Wirklichkeit. Isso porque a energia só interessa ao aparelho psíquico na medida em que estabelece, para ele, um princípio elementar de trocas e equivalências . Freud foi levado pela noção energética a forjar uma noção que se deve usar na análise de modo comparável à da energia. É uma noção que, assim como a da energia, é inteiramente abs trata, e que consiste nu:ma simples petição de princípio, desti nada a permitir um certo jogo de pensamento. Ela permite unicamente expor - e ainda assim de forma virtual - uma equi valência, a existência de uma medida comum, entre manifesta- G o z o E TEO RIA DO VALO R 23 ções que se apresentam como qualitativamente muito distintas. Trata-se da noção de libido. 1 Nessa passagem fica claro como Lacan lê o ponto de vis ta econômico freudiano, no que toca a noção de libido, isto é, como um artifício de método e não como um a priori ontológi co. A energia só passa a ser levada em conta quando responde a três condições : (a) quando ela pode ser medida no interior de um sistema simbólico, (b) quando ela não é um sucedâneo da realidade natural, (c) quando se torna necessária para justificar a realidade eficaz (Wirklichkeit) do sistema. Vê-se assim que a tese da anterioridade do simbólico em relação ao imaginário não versa sobre a concepção do ser mas sobre como se pode apreendê-lo. De fato há muitos ganhos a considerar neste giro anti essencialista, nesta crítica da metafísica fisicalista, prisioneira do contexto científico no qual se desenvolveu a obra de Freud e de uma parcela substancial de seus continuadores. No entan to este movimento crítico redundou, paralelamente, na conde nação ao ostracismo de certos temas clínicos freudianos, por parte da tradição lacaniana que se seguiu. O ensino de Lacan parece caminhar de uma interpretação lingüística do inconsciente (a teoria do significante) para uma teoria dialética do sujeito (a subversão do sujeito), terminando por tematizar a paradoxalidade do objeto (a topologia das pul sões). É justamente este terceiro ponto que exige uma releitu ra do pon to de vista econôm ico, o que oferece maior dificuldade de integração teórica e clínica. Um dos motivos para isso é a forte presença do fisicalismo biologista que im pregna a apreensão econômica dos conceitos em Freud. Biolo gismo expresso por noções quantita tivas como força, intensidade, pressão, investimento, solicitação somática, etc. Biologismo que reaparece no compromisso freudiano com cer tos aspectos da clínica clássica. Na sua semiologia, na sua diagnóstica e em parte de sua concepção etiológica a dimensão 1 . Lacan, J. O seminário. Livro IV. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 44. 24 CHRISTIAN I NGO LENZ ÜUNKER intensiva ora aparece como um axioma teórico, como no "Pro jeto de psicologia científica para neurólogos" ,2 ora como o fiel da balança na possibilidade de cura, como em "Análise terminável e análise interminável",3 ou ainda como determinante conjuntural na causação de sintomas, como em "Os caminhos da formação de sintoma" .4 Ou seja, tanto na teoria do aparelho psíquico quanto na psicopatologia ou na prática da cura o ele mento quantitativo é decisivo no entender de Freud. Lacan, como se sabe, procura reler Freud de modo a des biologizar seus conceitos. Em linhas gerais isso significará uma substituição regrada, sistemática e argumentada de noções quantitativas por noções qualitativas. Por exemplo no Seminá rio XX5 e nos textos adjacentes fica nítida a estratégia de Lacan quanto à substituição do paradigma freudiano fisicalista, pela consideração lógica dos problemas derivados da teoria das pulsões. Exemplo desta substituição são as chamadas fórmulas da sexuação . Uma novidade apresentada por este modelo é considerar como ponto de partida a tese de que há uma impos sibilidade de realizar uma relação (no sentido de proporção perfeita) entre masculinidade e feminilidade. O gozo masculi no se organiza em relação ao falo e o gozo feminino (gozo Ou- 2. "O propósito deste projeto é alcançar uma psicologia como ciência na tural, a saber, apresentar processos psíquicos como estados quantitati va men te comanda dos p o r partes mater ia i s comprov a d as . . . " ln: Freud, S. Projeto de uma psicologia científica para neurólogos . OC. Buenos Aires: Amorrortu, 1988, p. 339. v . I . Edição de controle: Edi ção de controle: Sigmund Freud Studienausgabe. Frankfurt: S. Fischer, 1975. 3 . " . . . tratando-se do desenlace de uma cura analítica, este depende no es sencial da intensidade e profundidade do enraizamento destas resistên cias de alteração do eu." Freud, S. Análise terminável e análise inter minável. ln: OC. Op . cit. , p. 240. v. XXIII. 4. "Não menos decisivo é o fato quantitativo para a capacidade de resis tência a contrair uma neurose. Interessa o mon tante de libido não apli cada que uma pessoa pode conservar flutuante, e a quantia da fração de sua libido que é capaz de desviar-se do sexual para as metas da su blimação." Freud, S. Os caminhos da formação de sintomas. ln: OC. Op. cit. , p . 342. v . XVI. 5 . Lacan, J. O seminário. Livro XX. Mais ai1uia . . . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. G ozo E TEORIA DO VALOR 25 tro) se organiza em relação ao objeto. Como o falo é irredutível e desproporcional ao objeto, no sentido aqui de objeto a, have ria uma disparidade entre estas duas formas de gozo. Ora, isso equivale a traduzir um problema freudiano, pos to em termos quantitativos, relativo ao investimento libidinal, em um problema qualitativo, relativo à forma de inscrição da libido e não à intensidade desta inscrição. O resultado é que tal proporção estável e fixa se torna insustentável em função de qualidades formais irredutíveis e não em função de predomí nios energéticos no interior do aparelho psíquico. A teoria da sexuação apóia-se assim em uma desproporção, incomensura bilidade ou não pareamento sis temático entre os elementos envolvidos em uma suposta totalidade. Essa estratégia de lei tura encontra-se de forma tônica no ensino de Lacan. Constitui uma espécie de princípio metodológico de sua obra. No entanto, se tal tese parece contornar o problema quan titativo na esfera do inconsciente ela soa para muitos como francamente insuficiente para dar conta da pulsão e dos afetos . A objeção de que Lacan haveria simplesmente eliminado o ponto de vista econômico, através de uma sobrevalorização da esfera freudiana do representacional, aparece por exemplo na obra de André Green6 ou em um autor brasileiro atento ao mes mo problema como Chaim Samuel Katz.7 Uma linha crítica se melhante s e encontrará em Laplanche, 8 no que toca à concepção de metáfora e em Jurandir Freire Costa9 em relação ao conceito de estrutura. É importante mencionar ainda os re centes trabalhos de Joel Birman, 10 que vem apontando, sistema- 6. Ver por exemplo, Green, A. Teoria das Representações. ln: Conferên cias Brasileiras de André Green. Rio de Janeiro: Imago, 1991 , p. 46. 7. Ver, por exemplo, Katz, C.S . O primado da teoria das representações. In: Freud e as psicoses . Rio de Janeiro: Xenon, 1994, p. 1 15 . 8 . Laplanche, J . O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 9. Ver por exemplo, Costa, J.F. Pragmática e processo analítico: Freud, Wittgenstein, Davidson, Rorty . In: Costa, J .F . (org.) Redescrições da psi ca nálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1 994. 10 . Birman, J . O mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1 999. f"AFICH / UfMG BIBLIOTECA 26 CH R ISTIAN INGO LENZ DUNKE R ticamente, convergências ideológicas e clínicas para a exclusão do corpo, do afeto e, de forma mais geral, da dimensão inten siva, do cenário psicanalítico. Isso seria um aspecto empobre c edor da herança l a caniana. Penso que não se pode negligenciar o que está sendo apontado, de diferentes manei ras, por estes autores. Não se deve atribuir tais críticas apenas a mazelas políticas institucionais ou rancores históricos. A maior parte destes autores, que salientam o esqueci mento do ponto de vista econômico, concentraram seus esfor ços críticos sobre os desenvolvimentos de Lacan centrados na teoria do significante e na teoria do sujeito. A partir da década de 1960, mas de forma pontual em diversos momentos antes disso, Lacan utiliza a noção de gozo (jouissance) para sinalizar a presença incômoda de noções quantitativas no interior de seu sistema teórico. Ao que tudo indica tal noção torna-se realmen te importante somente a partir de uma melhor formalização de uma instância metapsicológica conhecida como Real . De fato não há uma paridade direta entre os pontos de vista tópico, dinâmico e econômico em Freud e as ordens Simbólica, Imagi nária e Real em Lacan, mas se procurarmos uma localização para a experiência enquanto acontecimento ou encontro inten sivo, inominável e resistente à representação 01.: à inscrição simbólica, isso certamente residirá no que Lacan chamou de Real e no seu principal correlato clínico que é o gozo. Isso sig nifica que o Real ocupa a mesma função teórica destinada por Freud à esfera da quantidade? Mas se isso é verdade o que di zer de certos temas freudianos, ligados à esfera quantitativa, que foram "esquecidos" pela tradição lacaniana? Por exemplo, o tema do desencadeamento da neurose (esquecido por trás da noção de estrutura), o tema do caráter (esquecido por trás da noção de imaginário) e o tema da formação, fracasso e deslo camento de sintomas específicos (esquecidos por trás da noção de metáfora paterna). É a esses temas que pretendo voltar neste livro, procurando lê-los a partir da noção de gozo. Dentre as inúmeras implicações que esta noção traz con sigo, a começar por sua complexa e polêmica definição, gosta ria de chamar a atenção para sua utilidade na compreensão de um fenômeno clínico, sem o qual a psicanálise e talvez as psi- Gozo E TEORIA DO VALOR 27 coterapias em geral não possuiriam a presença que hoje tem na nossa cultura. Refiro-me a relação do sujeito com seu sofrimen to, com a dor psíquica nas suas mais diversas e trágicas formas de apresentação. Relação esta que está marcada por uma reco nhecida paradoxalidade: prazer e desprazer, desejo e aversão, satisfação e insatisfação, amor e ódio. A tensão entre estes pa res em oposição constituiu um dos pilares da reflexão ética da modernidade e ainda hoje organiza a concepção comum sobre a felicidade e o bem-estar, geralmente alinhado aos primeiros elementos da série. Ocorre que a noção de gozo parece combi nar ou desfazer essas oposições. O uso teórico e a experiência clínica nos levam a reconhecer a existência de algo como uma satisfação insatisfatória, ou um desprazer prazeroso ou ainda uma aversão desejante na relação do sujeito com seu sofrimen to. Esse conjunto de oxímoros por si só serviria como definição preliminar do gozo.Na neurose o gozo se mostra pelo apego e pelo valor que o sujeito confere ao seu sintoma, mais exata mente para o que é produzido pela economia do sintoma sob forma de ganho primário. Uma ligação intensa com aquilo que não lhe serve para nada e que não obstante toca-lhe no mais fundo de sua experiência subjetiva. É p ortanto pelas transformações do gozo que procuro en tender as variações intensivas que se verificam no estado do sintoma, em sua produção, deslocamento e sustentação ao lon go do tratamento. Em outras palavras por que e sob quais cir cunstâncias um sintoma faz sofrer mais ou tem seu valor de gozo aumentado ou diminuído. Por que - como diriam os clí nicos clássicos - um sintoma torna-se agudo, extremo ou ins tável? Para melhor examinar este problema, abordarei noções clínicas derivadas diretamente de teses puramente econômicas, tais como as que estão implicadas na etiologia e desencadea mento da neurose em geral. Mais particularmente levarei em conta o conjunto psicopatológico formado pelas neuroses atuais, pelas neuroses de caráter e por certos grupos sintomáticos que giram em torno da repetição, como a neurose de guerra, a neu rose traumática e a neurose de destino. Com o mesmo objeti vo tecerei algumas considerações sobre algumas inflexões do 28 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER narcisismo na neurose, em particular sobre o difuso campo for mado pelas neuroses narcísicas, os transtornos borderline e os estados limites. Tal escolha não se deve ao intento de propor a existência de novas estruturas clínicas, pelo contrário, o uso do termo neu rose para designar tais quadros é assumidamente não estrutu ral. Mesmo em Freud a maior parte destes grupos sintomáticos é redutível à estrutura da neurose (histérica ou obsessiva) ou da psicose (neuroses narcísicas). Mas é justamente por isso que nestas situações estamos às voltas com uma condição onde o ponto de vista econômico parece possuir primazia na determi nação do quadro. Ele encontra-se agindo de forma quase iso lada e independente fornecendo, assim, um bom campo para o desenvolvimento de nossa questão. As RAÍZES DA NOÇÃO DE GOZO EM lACAN Em lugar da energética de Freud proponho a economia polít ica . Lacan A noção de gozo em Lacan é extensa e heterogênea. Não farei uma exposição exaustiva de seu desenvolvimento e das transformações a que o termo está sujeito pois, ao que tudo indica, ele serviu a diferentes propósitos ao longo do ensino de Lacan, assumindo portanto diferentes conotações, por vezes contraditórias se as comparamos entre si . O objetivo aqui será o de apresentar as teses de Lacan de forma parcial, submeten do-as a uma hipótese de leitura e dela extraindo certas conse qüências clínicas para o tema em questão. Como vimos anteriormente, a noção de gozo em Lacan vem a ocupar, parcialmente, o campo energético e quantitati vo denotado por Freud. No entanto, há nesta passagem uma recusa metodológica em substancializar a noção de libido. Para tanto Lacan parece ter examinado a função deste conceito na obra de Freud e em seguida procurado substitutos para esta função. Ora, Freud precisa da idéia de libido não apenas por que isso garantiria certa dignidade epistemológica, conferindo à psicanálise cidadania no campo das ciências naturais, mas fundamentalmente porque este conceito lhe permite pensar as transformações do "acento psíquico" a que uma representação está suj eita. Em outras palavras, porque uma representação, complexo ou instância possuiria mais ou menos valor dentro 30 CHRISTIAN I NGO LENZ Ü UNKER do aparelho psíquico, reunindo sobre si uma soma de exci ta ção tomando-se então investida (Bezetzung) . A solução para o biologismo fisicalista não está na proli feração de metáforas e analogias que tornem mais pala tável uma certa metafísica da energia ou da experiência, mas em uma teoria mais sólida ou eficaz para o problema da diferen ça de valores psíquicos. Nossa hipótese de leitura é que a teo ria do gozo em Lacan cumpre justamente este papel. É por isso que as referências à noção gozo em Lacan variam imensamen te. Da ordem jurídica (o gozo como direito a), à esfera sexual e ao júbilo imaginário, o gozo comporta ainda um cenário de leitura ligado à economia-política (Seminário XVII) e à ética (Seminário VII) . O problema se torna aind a mais complexo pois do ponto de vista do método de Lacan também varia a forma de apreensão do gozo passando pela via lingüística, pela via da lógica dos conj untos (Seminário XX) e ainda pela via dialética (Seminário XI) . No entanto, na maior parte dessas extrações, derivas e assimilações, realizadas por Lacan na construção do conceito de gozo, uma referência permanece co mum: trata-se de lançar mão de aspectos de uma teoria do va lor, ou seja, de retirar das suas fontes aquilo que nelas ocupava o lugar de uma axiologia. O g o zo n a m at r i z l i n g ü íst ica O gozo é interditado a quem fala . Lacan A idéia de gozo, como sucedâneo de prazer, satisfação ou deleite sugere que seu uso em psicanálise prenda-se a alguma esfera de convergência com a erotologia ou ao menos com as vicissitudes mais diretas da sexologia . Não p arece ser esse o caso, se observarmos que o uso mais freqüente do seu corre lato em alemão (Genuss) liga-se a textos de Freud que versam predominantemente sobre teoria da cultura ou sobre estética. Mesmo neste contexto o espectro semântico do termo é bastan- Gozo E TEORIA DO VALOR 31 te amplo entrando em associação coin noções como as de des prazer, insatisfação, dor, asco, masoquismo erógeno,1 ao lado de noções como as de libido, gozo sexual, satisfação e mais prazer (Mehrlust). Esse parece ser o caso de uma curiosa passagem de "Chis tes e sua relação com o inconsciente" na qual Freud analisa o chiste como um processo social e procura os motivos pelos quais este se propaga. O chiste nos proporciona uma satisfação cujo índice é o riso e a sensação de relaxamento corporal. No entanto, não se pode contar um chiste para si mesmo e reapro veitar a graça do instante inicial, nem recuperar a surpresa e desconcerto que ele evoca com suas relações inusitadas. É pre ciso contar o chiste a outra pessoa para poder resgatar uma parcela do prazer que anteriormente ele evocou. Assim " . . . re cupera-se um fragmento de possib i l idade de gozo (Genussmoglichkeit) que faltava, em decorrência da ausência de novidade". 2 Uma série de propriedades enfatizada pela concepção la caniana de gozo está contida nessa observação. Vê-se que o gozo realiza-se em uma repetição, que nesta repetição algo perdido é retomado, mas que nesta retomada preserva-se ape nas um parco simulacro da experiência que a repetição visa reconstituir. O exemplo do chiste pode parecer trivial e circunscrito a um ato de linguagem muito específico, mas penso que ele re trata bem uma propriedade geral da linguagem no que diz re$peito à repetição. O efeito de algo escutado pela primeira vez, seja pela textura poética, semântica ou gramatical, está sujeito a uma espécie de desgaste pelo uso. Em outras pala vras, a força evocadora de um determinado efeito de lingua gem é um fato temporal, dependente de seu contexto de enunciação e sujeito à perda de valor em sua reutilização. Isso não vale apenas para o chiste, a piada e o cômico de maneira 1 . Valas, P. As dimensões do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 35. 2 . Freud, S. O chiste e sua rela ção com o inconsciente. Op. cit., p . 134. V . VIII. 32 CH R ISTIAN INGO LENZ DUNKER gerai, mas também para as mais diversas formas de textuali dade, para os discursos e formações ideológicas. Em estudo anterior3 procurei mostrar como isso afeta diretamente a forma retórica da interpretação em psicanálise. A repetição da forma retórica que caracterizava as intervenções de Freud torna-se gradualmente inócua na medida em que se assimila à cultura e a um saber constituído. Por exemplo, um paciente diantede um lapso de linguagem desculpa-se imediatamente com a ex pressão: "isso não quer dizer nada, foi só um ato falho", outro se justifica com um "não tenho nada que ver com isso, foi in consciente". A repetição, na acepção fraca do conceito, caracteriza um certo modo de fala e escuta cotidiana que Heidegger chamou de "falação" e Lacan de "fala vazia", isto é, a fala onde a an tecipação da intencionalidade de seu autor, o seu caráter fáti co ou meramente reprodutivo, impõe-se completamente ao dizer. É a fala que parece não ser feita para ser escutada, mas meramente ouvida. É o caso de um marido que se refere ao encontro com a esposa, depois de um dia de trabalho, da se guinte maneira: "No começo percebo logo aquele tom de quei xa e fico à espera do próximo pedido. Aí ela começa a falar e falar. As palavras vão se desagregando, vão se tornando todas iguais até que só consigo distinguir o tom de voz. Depois é corno se entrasse um único zumbido e aquilo vai irritando sem que eu perceba. É corno rádio ligado ou música ambiente que perturba e cansa sem que a gente se dê conta. É urna sensação ruim e difusa que vai tomando conta sem que eu consiga fa zer nada." Vê-se aqui outro exemplo da presença do gozo na lingua gem em estreita ligação com a repetição, onde esta parece ter perdido a possibilidade de reintroduzir algo de novo. É como ouvir a mesma piada muitas vezes de modo que aquilo que antes propiciara alguma satisfação torna-se agora extrema mente insatisfatório. Mesmo neste caso a satisfação é ainda suposta ao outro e retorna agora sobre o sujeito de forma opressiva, mas irresistível. 3. Dunker, C.I .L . Lacan e a clín ica da interpretação. São Paulo: Hacker, 1996. G ozo E TEORIA DO VALOR 33 O gozo mostra-se assim como uma satisfação em segun da potência, isto é, uma satisfação extraída da satisfação do outro. Mais especificamente uma satisfação mediada e interdi tada pela linguagem. Mediada porque no chiste trata-se da articulação entre significantes segundo as regras que consti tuem os processos .primários, regras estas que comandam as formações inconscientes . Por exemplo, a condensação reúne o valor psíquico de duas representações em uma terceira, o des locamento transfere o valor de uma representação para outra. O gozo exige portanto esta mediação da linguagem p ara se realizar. Compreende-se assim por que, às vezes, ele é referi do como uma forma de "satisfação inconsciente", isto é, uma forma de satisfação realizada por intermédio do processo pri mário, que atua como uma regra de composição ou articulação entre as representações . Isso permite falar do gozo como um afeto inconsciente, no duplo sentido de afeto, ou seja, de uma sensação no corpo (encare) e de uma afetação ou apassivação do sujeito. O inconsciente, no sentido tópico, estaria às voltas com a tarefa de tramitar o gozo; de inscrevê-lo ou organizá-lo, de conferir a ele algum valor psíquico. Lacan, como se sabe, lê a condensação como uma metáfo ra e o deslocamento como uma metonímia, e diz explicitamen te que estas operações constituem uma transferência no plano do valor e que desta transferência se extrai o gozo. "Eles não tomaram à letra que a metonímia é com efeito o que determi na como operação de crédito (Verschiebung quer dizer: trans ferência de fundos) o mecanismo inconsciente de onde é, sem dúvida, o ingresso-gozo que se extrai . "4 Esta dupla passagem, do inconsciente ao gozo e do gozo ao inconsciente seria semelhante à inclusão ou exclusão de um elemento em uma operação de cálculo, como se afirma algu mas linhas abaixo no mesmo texto : "Fazer passar o gozo ao in consciente, quer dizer para a contabilidade, é, com efeito, um duplo deslocamento . "5 4. Lacan, J . Radiofonia . ln: Radiofonia & Televisión . Barcelona: Anagrama, 1977, p. 35. 5. Lacan, J. Radiofonia . Scilicet, Paris : Seuil, 2/3, p. 72, 1970. 34 CHRISTIAN INGO LENZ ÜUNKER No caso do chiste este cálculo estabelece como e quanto de gozo pode ser recuperado e quanto deve permanecer sob re calque. Por isso as regras de composição são necessárias, em termos freudianos, porque os verdadeiros motivos do chiste estão sujeitos à interdição e devem portanto sofrer algum dis farce ou censura. O chiste diz de uma maneira tolerável aqui lo que um determinado estado social sente como intolerável. Logo ele é uma manobra lingüística e social para extrair do Outro aquilo que este lhe nega. Daí a conhecida afirmação de Lacan de que "O gozo é interditado a quem fala".6 Aqui reside um ponto de importante diferença em relação a diversos pós-freudianos. As experiências infantis, efetivas ou conjeturais, como a alucinação primária que originaria o dese jo, o narcisismo primário, o fusionamento mãe-criança, por exemplo, visa direta ou indiretamente cernir a imagem do gozo como uma totalidade sem fissuras. Tal imagem, e as nar rativas que delas se engendram, localizam o gozo como uma espécie de experiência essencial, originária e anterior à lingua gem. Nesta medida funcionam ao modo de um valor fixo ou ân cora ao qual se remeteriam todas as experiências subseqüentes. O campo do gozo, como vimos no exemplo do chiste, é constituído por uma perda inaugural, mas uma perda que pro duz mítica e retrospectivamente um momento originário onde este se mostraria não perdido. Portanto são as trocas, as rela ções ou a própria distribuição da libido que criam, necessaria mente, a representação futura ou passada da experiência de totalidade. Inversamente, é desta ficção de totalidade que o gozo se mostrará sempre parcial, fragmentário ou ainda loca lizado no órgão. A primeira vez em que Lacan faz referência à noção de gozo, no Seminário sobre o Homem dos lobos, de 1950, é justamente um assinalamento sobre este ponto: "O pai introduz um novo modo de referência à realidade. É porque o gozo do sujeito lhe é de certa forma arrebatado, que ele pode ser situado: é o papel do complexo de Édipo".7 6. Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. ln: Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1 998. Edição de controle: Écrits. Seuil : Paris, 1 970. 7 . Lacan, J. O seminário. Livro 1 . O Homem dos lobos, primeira sessão, 1 950. Gozo E TEO R I A DO VALO R 35 Lembremos que neste momento Lacan ainda está sob for te e direta influência do estruturalismo de Lévi-Strauss. A im portância deste autor na construção do conceito psicanalítico de estrutura, de cadeia significante e de lei já foi bastante en fatizada. Mas a par desta contribuição vê-se que a primeira matriz de entendimento do gozo é também bastante tributária do pensamento deste antropólogo francês . Lévi-Strauss afirma que as regras que comandam a troca de palavras, em certas sociedades primitivas, são equivalentes às regras que regulam a troca de mulheres entre clãs articuladas sob uma mesma es trutura de parentesco, permitindo assim seu funcionamento exogâmico. Por isso a lei que proíbe o incesto é uma lei que se estrutura ao modo de uma linguagem. No entanto, e talvez isso tenha sido um pouco esquecido pelos comentadores de Lacan, essa proibição possui dois aspectos distintos : Encontramos, portanto, duas categorias de atos q u e se definem como uso indevido da linguagem, uns do p onto de vista quantitativo, como brincar ruidosamente, rir demasiado alto, manifestar com excesso seus sentimentos, e outros do ponto de vista qualitativo, por exemplo, responder a sons que não são palavras, tomar como interlocutor um indivíduo (es pelho ou macaco) que apenas tem aparência de humanidade. Todas estas proibições reduzem-se, portanto, a um denomina dor comum, a saber, constituem um abuso de linguagem, e são, por este aspecto, grupadas com a proibição do incesto ou com atos evocadores de incesto . 8 Geralmente o tema da proibição do incesto é abordado de forma puramente qualitativa, isto é, priorizando o objeto tabu, formalmente indicado pelo significante. Isso deixa parcialmen te delado a idéia de interdição do excesso, ou seja, de uma li mitação do uso de modo que este não se transforme em abuso. Ora a distinção entre uso e abuso não é simétrica à distinção entre permitido e interditado. Entre o uso e o abuso há um gradiente, entre o possível e o impossível há uma alternativa 8. Lévi-Strauss, C. Estmturas elemen tares de paren tesco. Petrópolis: Vozes, 1 982, p. 535. 36 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER binária e polar. O que por sua vez é aplicável também no que tange a troca de mulheres: Que significa isso senão que as próprias mulheres são tratadas como sinais, das quais se abusa quando não se lhes dá o emprego próprio dos sinais, que é serem comunicados . ( . . . ) Ao contrário da palavra que se tornou integralmente sinal, a mu lher permaneceu, portanto, sendo ao mesmo tempo que sinal, valor.9 Aqui fica nítido como a lei de proibição do incesto é sub sidiariamente a lei da troca e que esta presume uma comensu rabilidade entre os sinais (mesma língua, reconhecimento da alteridade, etc . ), mas também uma regulação do valor que se acrescenta ou diminui em função das próprias trocas e que cada mulher preserva, independentemente de seu lugar no sis tema, como um sinal . Abre-se aqui uma pista para entender mos o incômodo lugar ocupado pela categoria de gozo no Lacan estruturalista . O inconsciente es truturado como uma linguagem permite compreender o sistema de trocas em ter mos significantes, mas isso é condição necessária mas não su ficiente para entendermos o valor de gozo dos efeitos desta estrutura. Isso relegará ao imaginário a ficção essencialista de um momento anterior a lei da troca mas não explicará a forma de funcionamento desta ficção, problema aliás reconhecido por Lévi -S trauss : " Até nossos d ias a humanidade sonhou apreender e fixar este instante fugitivo em que foi permitido acreditar ser possível enganar a lei da troca, ganhar sem per der, gozar sem partilhar" . 1º Esse caráter híbrido da noção de gozo, ao mesmo tempo ligada ao significante e ao valor, receberá sua solução, em La can, através do desenvolvimento do conceito de falo. Para tan to este recorrerá a uma noção de valor ligeiramente distinta da que vimos empregada acima por Lévi-Strauss, mais precisa mente à teoria do valor lingüístico desenvolvida por Saussu re . Tal teoria reconhece como ponto de partida o caráter 9 . Idem, p . 536-7. 10. Idem, p . 537. Gozo E TEORIA DO VALOR 37 paradoxal da própria idéia de valor, pois este será sempre constituído: " 1 ) por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar; 2) por coisas se melhantes que se pode comparar com aquela cujo valor está em causa". 1 1 O valor exprime assim a tensão entre a identidade e a di ferença. Ele se determina lingüisticamente pela relação que um significante possui com os outros significantes com os quais pode ser comparado, mas também pela troca que este signifi cante permite em relação a outros significantes, o que determi na sua significação. Por exemplo, a palavra portuguesa angústia ou francesa angoise pode ter a mesma significação que o alemão Angst, mas não o mesmo valor, isso por várias razões, em par ticular porque, por exemplo, ao falar da sensação produzida por um animal ameaçador, o alemão dirá Angst e o brasileiro medo. Isso ocorre porque na comparação entre termos seme lhantes angústia se colocará ao lado de termos como ansiedade e medo em português, sem correlato direto com o seu valor em alemão. Ou seja, a palavra pode ser trocada por uma significa ção aproximada, mas não possui, comparativamente, o mesmo valor. O conceito de valor é utilizado por Saussure para repre sentar a possibilidade que um signo possui de ser substituído e comparado dentro de um sistema de linguagem. O valor ex pressa assim o conjunto de dupla articulação a que o signo está destinado. O correlato do valor de um signo é sua significação pois neste caso contam menos as articulações diferenciais e de troca com outros significantes e mais a relação de semelhança e comparação do significante ao significado. Por exemplo, a oposição entre o fonema "pê" e "bê" é uma oposição que pos sui um determinado valor, em uma dada língua, apesar de não possuir nenhuma significação. Vê-se assim que as noções de significância e de autono mia do significante em Lacan são tributárias da ênfase no con ceito saussureano de valor. As formações do inconsciente, 11 . Saussure, F. Curso de lingüística geral . São Paulo: Cultrix, 1975, p. 134. 38 CHRISTIAN INGO LENZ DuNKER regidas pelos processos p rimários, determinam-se mais pelas trocas no plano do valor do que pelo deslizamento no plano da significação. O valor de uso, ou de gozo, expresso pela signi ficação, fica assim submetido a valor de troca regido pelo sig nificante, como se atesta na seguinte passagem: "este discurso do inconsciente está, como disse da última vez, articulado ao valor de gozo" . 1 2 No entanto, é no conceito de falo que a teoria do valor as sume a sua importância mais explícita . Se o falo não é o pênis é porque o falo é o valor atribuído ao pênis . Valor que funcio nará como uma espécie de ponto fixo a partir do qual toda sig nificação poderá ser calculada e que, em si mesmo não p ossui valor al gum, por isso é impronunciável . Mas mesmo sendo impronunciável ele entra na�eração de constituição do valor, por isso Lacan o associa à "'Í -1 ), 13 ou seja, um número comple xo cujo valor não pode ser calculado, mas cuja operação é ple namente possível . Assim o falo resume o paradoxo indicado anteriormente como próprio a toda teoria do valor, isto é, ele é capaz de in troduzir o sujeito no problema da diferença sexual e lidar as sim com a heterogeneidade que esta traz consigo, assim como permite ao sujeito identificar-se, sempre por comparação a um traço, com uma determinada posição na sexuação. Se o falo é o representante da falta é p orque a atribuição de valor intro duz o sujeito simultaneamente na esfera do desejo e do gozo: " . . . o falo é o significante da razão do desejo (na acepção em que o termo é empregado como ' média e extrema razão' da divisão harmônica) " . 14 Portanto o falo é razão e, aparentemente, no sentido lati no em que razão (ratio) se aproxima de proporção, de regra ou medida de comensurabilidade. A idéia é reforçada pela apro ximação realizada também com o termo grego, parcialmente correlato, ou sej a, o logos: "O falo é o significante privilegiado 12. Lacan, J . O seminário. Livro XIV. A lógica do fantasma, 19 de abril de 1 967. 13. Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. Op . cit., p. 833. 14. Lacan, J . A significação do falo (1958) . ln: Escritos . Op. cit . , p. 672. Gozo E T EO R IA DO VALO R 39 dessa marca, onde a parte do logos se conjuga ao advento do desejo" . 1 5 Ao ler o falo como um operador relacional Lacan permi te distingui-lo de sua idéia intuitiva, ou seja, na doutrina freu diana o falo: a) não é uma fantasia (um efeito imaginário) b) não é um objeto (parcial, interno, bom, mau, etc . ) c) não é um órgão (pênis ou clitóris que ele simboliza). 16 Enquanto unidade de proporção ele é a condição de pos- sibilidade do desejo. Neste sentido a forma como o valor se institui para o neurótico é semelhante à forma como este esta belece proporções a partir do significante fálico mas também a forma como este extrai uma porção parcial de gozo em res tituição à perda fálica. O conceito de falo abriga assim o ele mento que coordena as trocas necessárias ao desejo mas também induz valor de gozo que surge como efeito destas tro cas. Essa duplicidade aparece claramente no conceito de cas tração: "A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado (refusé), para que possa ser atingido na escala inver tida da lei do desejo" . 17 Isso obriga Lacan a distinguir o falo como operador des ta recusa, o (- q>), o representanteda falta, o objeto imaginário da castração simbólica , e o falo como agente de ciframento e regulação do gozo que pode ser atingido, ou seja, o (<1>), obje to simbólico da privação real . Alguns anos mais tarde este dualismo ainda se preserva, com uma crescente clareza de que a inscrição simbólica do gozo, sua mediação fálica, depende de um recobrimento instável entre o valor de troca e o valor de uso . . . . a mulher que se funda como sujeito no ato sexual, toma de fato a função de v a l o r de troca, recob r i n d o o que está insti tuído como valor no que a psicanálise revela com o nome de complexo de castração. Não é que o intercâmbio de mulheres possa voltar a se traduzir como intercâmbio de falos, mas que 15 . Idem, p. 699 . 16 . Op . cit. p. 696. 17 . Lacan, J . Subversão do sujeito e dialética do desejo. Op. cit., p . 841 . 40 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER · o primeiro simboliza o gozo, subtraído como tal, passa ao traço de valor . . . 1 8 Vemos assim que o conceito de falo prolonga e especifi ca, contudo não resolve, o caráter híbrido do problema repre sentado pela disparidade entre o valor lingüístico de troca, consignado pelo falo, e o valor de uso, de consumo ou de abu so, representado pelo gozo. O ponto de ruptura com a concepção estrutural de lin guagem, da qual Lacan herda o problema do valor de troca em sua apreensão fonemática, encontra-se no seminário "De um discurso que não seria do semblante", de 1971 . Nele é desen volvida a noção de letra em oposição à de significante. A letra representa a face real da linguagem e constitui um limite ao seu funcionamento segundo o princípio das trocas e contras tes, baseado na diferença, que caracteriza seu valor lingüísti co. Por isso a letra faz agrupamento, não estrutura. Ela não pode ser traduzida nem feita equivalente à outra. Como um traço da caligrafia oriental, a letra dá um suporte para o signi ficante mas em sua materialidade o sistema de escrita assim produzido não possui as mesmas regras e propriedades da lin guagem entendida como fala ou como língua. Lacan afirma que a letra é um litoral entre o gozo e o saber, 19 o resultado do comércio, 20 ou ainda um efeito do discurso, que apreende o traço como uma formação de sentido onde antes havia apenas uma rasura. Portanto com o conceito de letra Lacan parece ter expandido e generalizado o grau zero da teoria do valor, o ele mento que limita e funda um conjunto possível de trocas, não possuindo, ele mesmo, valor algum. A imagem de um aluvião, de um depósito ou precipita do deixado pelo escoamento do significante é muito utilizada para designar este litoral formado pela letra ou caráter. Ora, este resto semilingüístico, que não cessa de não se inscrever no 18 . Lacan, J . O seminário. Livro XIV. A lógica do fantasma, 7 de junho de 1 967. 19. Lacan, J . O seminário. Livro XVIII. De um discurso que não seria do semblante, 12 de maio de 1 971 . 20. Lacan, J . O seminário. Livro XX. Mais a inda . . . Op. cit. Gozo E TEORIA DO VALOR 41 simbólico, ocupa um lugar fronteiriço entre o saber, onde vi gora o regime de trocas próprio ao campo do Outro, e o gozo, onde vigora o regime do uso. Tudo indica que, com a noção de letra, o problema do gozo não admite mais uma solução através de operadores pu ramente lingüísticos. Isso explica porque Lacan gradualmen te l imita o concei to de falo, na medida em que refina a concepção de gozo. O falo passa a ser pensado então como uma função, a função fálica, a partir da qual o gozo ganha for ma e pode ser inscrito. As duas noções acabam se combinado na idéia de "gozo fálico", ou gozo na e pela linguagem. Assim, toda realização de significação se vê acompanhada de um tra ço de gozo. O falo, que nascera como uma noção ligada ao va lor de troca torna-se agora representante maior do valor de uso. Para dar conta da lacuna criada por este movimento teó rico o falo será substituído, por um lado, pela própria noção geral de significante e posteriormente pelo significante mestre (Sl ) e, por outro lado, pela idéia de objeto a, causa de desejo. À altura do Seminário XX chega-se à tese de que o objeto a, e não o falo, funciona como causa do desejo. Inversamente o significante, e não o objeto, é a causa do gozo. Mas causa in direta, se assim podemos dizer, na medida em que o que conta nesta causalidade é que o significante não pode apreender como significante, mas apenas como letra. Mesmo com esta manobra de inversão o problema permanece, ou seja, o falo e suas noções derivadas jamais recobrem perfeitamente o cam po delimitado pelo objeto a . Isso aparecerá claramente em um dos últimos seminários: O que podemos querer dizer quando utilizamos a ex pressão tão bem conhecida "estar castrado"? Poremos aí três significações: no princípio de que o ser falante não se confronta mais que com dois meios: o significante - sintoma ou não - e o fantasma, meios artesanais, incapazes de resolver o i mpasse do gozo, entendido como inexistência da relação sexual.2 1 21 . Lacan, J. O seminário. Livro XXIV. A topologia e o teinpo, sessão de 15 de maio de 1979. 42 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER Deste breve percurso é importante reter a idéia de que o gozo, na sua apreensão lingüística, está sujeito a um parado xo. Este paradoxo é próprio e dependente da teoria do valor na qual ele é pensado. Entre a perda e a restituição de gozo, que se desenvolve por intermédio da repetição, as duas frações não são idênticas e nem proporcionais. Há uma assimetria ou disparidade entre o valor de troca (significante) e o valor de_ uso (efeito ou precipitado do significante). O problema maior da apreensão lingüística do gozo é que ele nos conduz a um entendimento meramente formal da produção do valor, esta belecendo assim um princípio sobre seu funcionamento qua litativo, mas não quantitativo. O g ozo n a mat r i z é t ico-j u ríd i ca O gozo é um mal porque comporta o mal do próximo. Lacan O paradoxo formal a que fomos conduzidos por nossa incursão sobre as relações entre o gozo e a linguagem encon tra correlatos em questões éticas. Apresentarei apenas alguns marcos que permitem situar a questão do gozo nesta perspec tiva de modo a mostrar como, em cada caso, o lugar conferi do ao gozo inspira, em Lacan, uma crítica a certas posições éticas consolidadas a partir da modernidade. O núcleo crítico da noção de gozo reside, como pretendo apontar, na decom posição que ele permite dos valores intrínsecos que orienta riam as ações éticas. Diversas noções freudianas podem nos fazer pensar no gozo como uma espécie de experiência individual de fruição, da qual o auto-erotismo seria um modelo e a tendência à des carga, própria ao princípio do prazer, seria o correlato. No en tanto, desde textos seminais como O estádio do espelho e Complexos fam iliares, Lacan insiste na idéia de que o gozo é algo que se imagina e se· antecipa como realizado no Outro. Por exemplo, mais além da satisfação obtida com uma experiência sexual restará sempre a pergunta acerca de como tal experiência con tou para o outro. Essa satisfação que procura incluir ou excluir a satisfação do outro situa a noção de gozo como um ultrapas samento, um acréscimo, na realização da pulsão. O que deste Outro retorna ao sujeito sempre portará a marca da parcialidade, da falta ou mesmo da insatisfação. Lembremos de que o termo satisfação, etimologicamente, refe re-se àquilo que é o bastante, aquilo que basta, introduzindo assim a noção de limite como coextensiva à de satisfação. O limite, por sua vez, pode ser representado pela idéia de lei, mas também pela idéia de um certo patamar de prazer, ou de desprazer, suportável pelo sujeito. O primeiro quadro de rderência para a questão do gozo, na matriz ética, é certamente o universo grego da tragédia e do nascimento da filosofia. Neste universo Lacan valorizará ini cialmente a figura do herói trágico que é posto em uma situa çãoem que um limite (A té) é ultrapassado. Situação onde a própria condição de mortal é, voluntária ou involuntariamen te, atravessada e o herói encontra-se com as conseqüências de seu ato. Ato transgressivo chamado pelos gregos de hybris . É nesta região solitária, entre duas mortes, vivida por Antígona fora dos muros da cidade, mas também por Édipo em sua jor nada pelo deserto, ou por Filolectes abandonado em uma ilha, que a tragédia fornecerá uma representação aguda do parado xo representado pelo gozo. No caso de Antígona, examinado em detalhes por Lacan, a questão poderia ser assim resumida. Ao enterrar seu irmão Polinice contrariando as ordens explícitas de Creonte, repre sentante da lei na cidade, Antígona condena-se à morte. Seu ato resume uma escolha absoluta uma vez que contraria as conveniências, os interesses e os motivos amplamente repre sentados pelos discursos que tentam dissuadi-la. Antígona funda sua ação no desejo, não no interesse ou no que Lacan chama de serviço dos bens, isto é, o regime das trocas de ob jetos. No entanto é exatamente este regime que permite a An tígona reconhecer seu desejo, por intermédio da negativização dialética dos interesses . "O que faz com que possa haver dese- 44 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER jo humano, que este campo exista, é a suposição de que tudo o que ocorre de real é contabilizado em algum lugar".22 Está subentendida nesta passagem uma das principais inovações de Lacan em sua leitura da teoria freudiana das pul sões, ou seja, que o princípio do prazer identifica ao sujeito aquilo que constituirá seu bem, no sentido moral da expressão. A continuidade gradual que existe na esfera das quantidades, lida no quadro de uma teoria da energia por Freud, é interpre tada por Lacan como correlata da continuidade que se verifi ca na apreensão dos valores morais. Por exemplo, ao comentar o "Projeto de psicologia científica para neurólogos", Lacan cri tica a compreensão deste texto no quadro do fisicalismo asso ciacionista do final do século XIX: O que justifica colocar em primeiro plano a quantidade como tal é outra coisa bem distinta [ . . . ] vocês perceberão que, sob essa forma fria, abstrata, escolástica, complicada, árida, percebe-se uma experiência, e que esta experiência é, no fun do, de ordem moral .23 Ou ainda, de forma mais genérica: . . . acredito que a oposição entre princípio do prazer e princípio de realidade, a do processo primário e do processo secundário sejam menos da ordem da psicologia do que da ordem da ex periência propriamente ética. 24 Se o que se articula do desejo ao princípio do prazer pode ser considerado um bem o que está além do princípio do pra zer-realidade, o que ultrapassa o limite do prazer, ou seja, o gozo, passa a condição de mal. Isso colocaria a ética na psica nálise ·como uma variante das éticas utilitaristas, onde se tra ta de alcançar o maior grau de prazer, no menor tempo, com o menor dispêndio de esforço possível. Trata-se apenas de con tabilidade e de pôr em prática esta contabilidade com um certo ajuste aos imperativos morais, uma vez que se possa apaziguá- 22. Lacan, J. O seminário. Livro VII. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jor ge Zahar, 1988, p. 3.80. 23. Idem, p . 4 1 . 24. Idem, p . 49. Gozo E TEORIA DO VALO R 45 los. Essa foi a tônica das discussões sobre a técnica psicanalí tica na década de 1940. Strachey, por exemplo, em um artigo clássico e muito influente,25 defendia como meta fundamental da análise a instituição de um superego mais benevolente. O caminho tomado por Lacan será oposto ao do utilita rismo. Em primeiro lugar porque o bem, produzido e busca do na esfera do princípio do prazer, é um bem sobre o qual se pode dispor, um objeto de ordem jurídica, uma coisa (Sache) sobre a qual se poderá incluir a fantasia. Ora, esta forma de bem não é o que é visado pelo movim�nto de reencontro ( Wiederzufinden ) próprio da pulsão . Este se dirige à coisa (Ding), como alteridade absoluta e negatividade fundamental. Daí a importância exemplar do gesto de Antígona ao encontrar o desejo para além da realização da pulsão. Daí a radicalida de freudiana ao afirmar que não há Bem Supremo, e o objeto (Ding) do encontro originário é perdido. Em segundo lugar Lacan investirá contra a possibilidade de um superego benevolente, ou regulador como o chama Braunstein,26 uma vez que seu fundamento reside no caráter insens�to da lei como um imperativo. Kant e Sade fazem assim um círculo "vicioso" em torno da universalidade do impera tivo que representa a lei . " . . . ao tu deves de Kant, se substitui facilmente o fantasma sadeano do gozo erigido em imperati vo, puro fantasma seguramente, e quase irrisório, mas de modo algum exclui a possibilidade de sua ereção em uma lei universal" . 27 Encontramos aqui novamente a forma paradoxal assumi da pela teoria dos valores em Lacan. Aquilo que se apresenta como a máxima positividade revela-se falta, ausência, priva ção. Inversamente o gozo como maldade será produzido pelo forçamento na realização do prazer, como excesso, transborda mento ou ultrapassagem do limite. Em síntese, a procura da realização do bem, de sua consecução no Outro, engendra a 25. Strachey, J. The nature of therapeutic action of psycho-analysis. lnter- 11atio11a/ foumal of Pshyc/10-Analysis, London, v. 15, p. 127-59. 26. Braunstein, N. Coce. México: Siglo XXI, 1 995, p. 237. 27. Lacan, J . O seminário. Livro VII. A ética da psicanálise. Op. cit., p. 378. 46 CHRISTIAN INGO LENZ ÜUNKER própria realização do mal. O que não significa que o contrário seja igualmente verdadeiro. Neste ponto os interlocutores de Lacan migram da anti guidade grega para os pensadores do século XVIII, mais pre cisamente para a ideologia utilitarista originada na filosofia do direito e na teoria das penas legais, desenvolvida por Jeremy Bentham e na tradição dos moralistas franceses, principalmen te La Rochefouca ul t. Jeremy Bentham, o idealizador do panopticum é também conhecido pela sua. apresentação do indivíduo como um ser movido pela procura do prazer e pelo cálculo que este envol ve em relação aos sacrifícios decorrentes . É curioso que sua teoria tenha se desenvolvido à luz do problema da restituição do gozo no caso da transgressão. Bentham coloca, muito obje tivamente, o problema relativo ao criminoso: como este pode reparar o mal feito à sociedade. Sua tese é de que seria possí vel o cálculo exato desta "medida da falta", desde que se pu desse contar com uma tota l idade fechada onde nenhum desperdício, nenhum prazer ou sacrifício pudessem ser excluí dos da contabilidade. Crime e castigo formariam assim uma equação de soma zero, tal qual a lei de Talião, que Freud afir ma vigorar no inconsciente.28 Surge assim a prisão modelo, onde tudo no seu interior pode e deve ser aproveitado segundo uma finalidade especí fica regida pela utilidade absoluta. O destino do lixo, o tempo dos guardas, a arquitetura, o sistema de alimentação e traba lho, enfim, absolutamente tudo, no interior desta prisão, deve ria ser planejado e administrado de forma a que não houvesse espaço para o inútil, o disfuncional, o dispensável. Um regime sem lugar para o excesso, eis o maior castigo e a forma primá ria de reparação para o mal . A lição pedagógica é simples : 28. Segundo algumas correntes da hermenêutica bíblica, a lei de Talião se ria um verdadeiro avanço jurídico para a época, pois ela estipularia que para 1 1 m olho só deve-se pleitear 11m,olho em contrapartida, e não mais do que isso. Neste sentido a lei de Talião é fundamentalmente um dispositivo para restringir o abuso na esfera da restituição. Gozo E TEORIA DO VALOR 47 aprender que a inutilidade é um mal, e o crime é antes de tudo algo inútil. Como mostrou Monzani29 a construção histórica deste ali nhamento é tributária de um extenso debate que cercou a im plantação do princípio da utilidade na era moderna. Com a gradual
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