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O cálculo neurótico do gozo - Christian Ingo Lenz Dunker

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O CALCULO 
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NEUROTICO 
DO GOZO 
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©by autor 
1 ª edição: maio de 2002 
EDITORES 
Manoel Tosta Berlinck 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA 
Ediara Rios 
PRODUÇÃO EDITORIAL 
Araide Sanches 
Catalogação na Fonte do Depto. Nacional do Livro 
Dunker, Christian Ingo Lenz 
O cálculo neurótico do gozo / Christian Ingo Lenz 
Dunker - São Paulo: Escuta, 2002. 
232 p. ; 14x21 cm. 
ISBN 85-7137-193-8 
1. Sexo (Psicologia). 2. Neuroses. I. Título
Editora Escuta Ltda. 
Rua Dr. Homem de Mello, 351 
05007-001 São Paulo, SP 
CDD-155.3
Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 
e-mail: escuta@uol.com.br
acervo
Para Mathias, Nathalia e Cris 
. . . pois não há saber sem amor. 
AGRADECIMENTOS 
Considero o presente trabalho uma obra coletiva apesar 
de ter um único autor. São inúmeras as vozes e escutas com as 
quais pude contar ao longo de sua elaboração e que quero 
agradecer. Meus orientandos, alunos de iniciação científica e do 
mestrado em psicologia, especialmente Tati, Fuad Neto, Pau­
la, Gonçalo e Paulo que me ajudaram com fontes e comentários 
preciosos. Os professores da Universidade São Marcos, especial­
mente Consuelo, Daniel, Marisa, Ricardo e Ciampa que foram 
companheiros e amigos com quem pude dividir momentos di­
fíceis durante a redação do texto. No Fórum de Psicanálise de 
São Paulo e no Fórum do Campo Lacaniano, alguns capítulos 
deste livro foram apresentados e discutidos preliminarmente. 
Quero agradecer o acolhimento de muitos, nessas ocasiões, e 
também a presença, nesse período, de Dominique, Ângela e 
Mauro que à sua maneira permitiram o reinvestimento neces­
sário para a conclusão deste livro. Por vários e "impublicáveis" 
motivos quero agradecer a meus queridos amigos do consultó­
rio Conrado, Gui, Bia, Ana Laura e Michele que estiveram pre­
sentes nos embates crítico-metapsicológicos, além de Álvaro, 
João e Lu nos momentos de incerteza aguda. Devo muito ain­
da a Alfredo e Contardo que me escutaram em aspectos clíni­
cos do projeto e aos professores Luiz Carlos e Luís Cláudio que 
muito me ensinaram acerca da convivência precária, mas pos­
sível, entre psicanálise e universidade. Ana Cristina, Mathias e 
Nathalia ... obrigado. 
À Coorpesq da Unimarco que custeou horas necessárias 
para a realização desta pesquisa. 
SUMÁRIO 
PREFÁCIO, Angela Vorcaro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 
INTRODUÇÃO ...........................................................................•...... 11 
PARTE 1 
Gozo E TEORIA DO VALOR 
0 PROBLEMA DOS CONCEITOS ECONÔMICOS DE FREUD A LACAN ....... 21 
As RAÍZES DA NOÇÃO DE GOZO EM LACAN ..•...•..........••................... 29 
O gozo na matriz lingüística ............................................... 30 
O gozo na matriz ético-jurídica .......................................... 42 
O gozo na matriz econômico-política ................................ 54 
O gozo na matriz lógico-formal ........................................ 61 
A FALTA E O EXCESSO: MODULAÇÕES DO GOZO EM UM 
C/!<50 DE HISTERIA .......................................................•.....•.............. 67 
0 CÁLCULO NEURÓTICO DO GOZO ....................•..•.••......................... 77 
Sacrifício, restituição e resto ................................................ 80 
A crise de gozo ...................................................................... 88 
A DIMENSÃO QUANTITATIVA NA PSICOPATOLOGIA PSICANALITICA ..... 97 
PARTE II 
DA ESTRUTURA AO SINTOMA 
DESENCADEAMENTO DA NEUROSE: UM FALSO PROBLEMA? ............... 111 
A NOÇÃO FREUDIANA DE VERSAGUNG E O GOZO COMO PARASITA ... 123 
PRODUÇÃO, SUSTENTAÇÃO E FRACASSO DE SINTOMAS ...................... 133 
Sintoma e identificação ...................................................... 138 
Sintomas transitórios, típicos e individuais .................... 141 
A sustentação do sintoma na família ............................... 147 
Fantasma e traço de gozo .................................................. 150 
PARTE Ili 
QUADROS CLÍNICOS 
NEUROSE DE CARÁTER ••............... ···············•·································· 157 
NEUROSE TRAUMÁTICA •..•.•.............................•......................•....... 173 
NEUROSE DE DESTINO ......................................................•............. 183 
NEUROSES ATUAIS: NEURASTENIA E NEUROSE DE ANGÚSTIA ............ 191 
NEUROSE NARCÍSICA ••................................................................... 203 
ALÉM DO CÁLCULO: A SUPLÊNCIA .................................................. 215 
PREFÁCIO 
As modalidades de cálculo de gozo que este livro nos con­
vida a estimar oferecem-nos a possibilidade de abordar cifra­
mentos que os sujeitos efetuam singularmente e dão mostras 
da generosidade com que Christian Dunker nos apresenta o 
que se calcula para discernir a própria condição do sujeito. 
Este livro trata do que se mantém enigmático na comple­
xidade do sujeito, partindo da via trilhada por Freud. Afinal, 
um dos modos pelos quais Freud se esforça por nos apresentar 
o sujeito - essa insistência exterior ao saber por que imprevis­
ta e ao mesmo tempo repetitiva - é fazer a lista das inúmeras 
situações nas quais o domínio intelectual do mundo implica 
ditar universalidades organizadoras do caos. Mas, diz Freud, 
se tal trabalho simplifica os fenômenos, em contrapartida tam­
bém os falseia, especialmente quando dizem respeito a proces­
sos de transmutação. Nosso interesse por mudanças 
qualitativas seria, segundo Freud, responsável por nosso des­
cuido: omitimos o ordinário imperfeitamente consumado e as 
alterações apenas parciais. Enfim, Freud lembra que os fenô­
menos residuais e as pendências parciais sempre insistem por­
que nenhuma transmutação acontece de modo integral: "Uma 
vez que algo nasceu para a vida, sabe afirmar-se com tenacida­
de" . 1 Essa observação de Freud adquire neste livro todo o seu 
valor. Ela é o que Christian Dunker nos propõe enfrentar. 
1. Freud, S. (1937). Análisis terminable e interminable. OC. Buenos Aires: 
Amorrortu, 1976, p. 232. v. XXIII. 
8 CHRISTIAN INGO LENZ OUNKER 
Que saber insabido é esse, tão tenaz, que "sabe afirmar­
se"? Essa interrogação cinzela, no percurso traçado por Chris­
tian Dunker, aquilo que o termo cálculo condensa por meio da 
reordenação da clínica, lida com as considerações de tantos 
outros autores que lançaram luz sobre os resíduos cintilantes 
que testemunham presença e insistência subjetivas. 
Referindo-se ao Evangelho segundo São Mateus, o Lacan 
do Avesso da Psicanálise cita os lírios do campo, que podem ser 
imaginados como um corpo inteiramente entregue ao gozo: 
cada etapa de seu crescimento idêntica a uma sensação sem 
forma; gozo de planta, a que nada escapa. São Mateus, efetiva­
mente, descreve o usufruto pleno da vida sem qualquer cálcu­
lo, considerando-a assegurada por Deus, tal como a natureza. 
O desagradável é que nada sabemos do gozo de planta. Lacan 
introduz os lírios do campo para distinguir nossa dificuldade 
em saber sobre gozo( ... nem Salomão, com toda a sua glória ... ). 
Nada sabemos do gozo porque, diz ele, faltando significante, não 
há distância entre o gozo e o corpo. É nessa perspectiva que nos 
servimos da noção de instinto que dissolve nossa dificuldade, 
à medida que, afirma Lacan, o instinto traz a implicação de um 
"saber do qual não se é capaz de dizer o que isso quer, mas que 
se presume que tenha como resultado que a vida subsista." 
Como o instinto, o gozo é limitado por processos que chama­
mos de naturais por estarem fora do discurso, e dos quais, por­
tanto, nada sabemos. 
Entretanto, se a medida de nossa impossibilidade de 
enunciar o gozo deve-se ao fato de sermos efeitos da lingua­
gem - e, portanto, condenados, necessariamente, a modalida­
des de· gozo parcial-, é a -própria linguagem que permite 
formular hipóteseslógicas sobre as modalidades pelas quais o 
ser vivo é adquirido pela linguagem a ponto de essa aquisição 
produzir sujeito. Isso resume a importância e a atualidade ex­
pressas nas páginas deste livro. 
Com o mesmo vigor com que Christian Dunker trata os 
mistérios do sujeito formulados por Freud, podemos encontrar 
em suas páginas, efetivamente, uma leitura. O que faz deste tra­
balho um ato de ler é que ele tão bem nos ensina a ler e, nessa 
transmissão de um saber-Jazer com a linguagem em que nos 
PREFÁCIO 9 
contamos, a distinguir essa inscrição do sujeito, corno exclusão 
que coagula o saber, na repetição de cálculos própria à sua con­
dição de contador. De fato, se o gozo é impossível, é pela even­
tualidade de o sujeito posicionar-se corno contador que um 
gozo entra em ação. Tal acidente permite esse uso específico da 
linguagem que suporta a sustentação mítica de equivaler-se a 
si mesmo. 
Nessa falha chamada sujeito, os efeitos da ligação discur­
siva operam, induzindo e determinando um cálculo, cujo tra­
ballw de contar articula o saber. Como o sujeito que o si mesmo 
representa não é unívoco, algo fica oculto e determina a errân­
cia do cálculo em que o funcionamento da linguagem se de­
monstra pela retroatividade em que ela manifesta que é falta, e 
não êxito. A linguagem é repetição que se relaciona, pelo cálculo, 
aos confins do saber, meio de gozo. 
O sujeito, diferentemente da planta, tem urna economia. Na 
busca de gozo ele repete seu traço que nunca é o mesmo, por­
que nunca está só: o traço só comparece escandido pelo signi­
ficante. Assim, a repetição presentifica a ordem da linguagem, 
porque o saber ultrapassa a lei do prazer. O saber se debulha, 
se enumera, se detalha, e o rosário se desfia sozinho, fazendo 
do sujeito um empregado da linguagem. Na repetição, o saber 
é o meio do gozo, ao mesmo tempo em que produz perda de gozo. No 
lugar dessa perda, introduzida pela repetição, aparece o que está 
além do princípio do prazer: a repetição, mais-de-gozar a recuperar. 
A partir do instante em que se encontra aparelhado com a 
linguagem, o sujeito visa um saber sobre o gozo. Mas ele só o 
perde, mais um pouco, porque o cálculo o esquadrinha em sig­
nificante, infletindo-o na língua. Não é surpreendente que, 
então, o sujeito faça do saber o meio de gozo possível, retiran­
do da perda de gozo, que o saber implica, o possível de gozo, 
através de urna economia de repetição? Através de um cálcu­
lo da sua mais valia, que, corno diz Lacan, é traço de cinzel do 
discurso, impresso a cada repetição, nas modalidades pelas 
quais ele pode simular o gozo absoluto no gozo possível. 
É essa outra ordem de saber que Christian Dunker expõe, 
a partir do que só urna excelência clínica poderia permitir, dis­
tinguindo modalidades de cálculo pelas quais o sujeito, via 
10 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
discurso, opera o jogo de gozo que secciona libido e natureza. 
Mas interessa notar, ainda, o estilo em que esse autor mostra 
saber-fazer, singularizando a vigência freudiana da extensão 
da clínica, para fazer a teoria trabalhar e operar. Tal cálculo, 
surpreendente, é o maior ensinamento de método deste livro. 
Angela Vorcaro 
INTRODUÇÃO 
Na elaboração desta pesquisa procurei rever um conjun­
to de práticas discursivas que levaram a um certo esgotamen­
to da criatividade conceitua! e ao fechamento complacente da 
interlocução científica, na tradição psicanalítica inaugurada por 
Lacan. Cito alguns exemplos: o uso do texto de Lacan como 
mero argumento de autoridade, o achatamento do texto de 
Freud de forma a fazê-lo confessar apenas o que interessava 
comprovar como já sabido, a recusa deliberada ao trabalho crí­
tico construtivo e a soberba indiferença com relação ao que se 
produz em campos institucionalmente vizinhos ou mesmo ao 
que vem sendo feito em outras tradições dentro da psicanáli­
se. Soma-se a isso uma espécie de horror a ser compreendido 
e o cultivo de certas formas retóricas facilitadoras que sofreram 
o desgaste esperado de um estilo, quando este torna-se um gê­
nero. Tais práticas, há muito apontadas pelas mais variadas 
fontes, exigem, de fato, uma mudança de atitude, ao risco de 
uma sectarização ainda maior da psicanálise. Uma mudança 
que implique retorno ao texto, em confronto e reconhecimen­
to de sua disparidade e contradição com teses freudianas, além 
de uma abertura aos interessantes avanços da psicanálise não 
lacaniana. 
Neste sentido estabeleci algumas condições que deveria 
cumprir na redação deste estudo e agora, ao seu fim, noto que 
nem sempre permaneci tão fiel a tais condições quanto gosta­
ria. Mas isso caberá também ao leitor julgar. Pretendi, antes de 
tudo, falar sobre clínica. Contar algumas passagens, narrar 
fragmentos de casos, transmitir não só exemplos e ilustrações, 
12 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
mas isolar aspectos que não me pareciam encontrar um corre­
lato teórico muito estável. Falar sobre a clínica enfatizando a 
dimensão intensiva· desta experiência, valorizando aquilo que 
nem sempre está em primeiro plano na chamada escuta estru­
tural, ou seja, a dimensão de força dramática ou trágica do so­
frimento neurótico. 
Mas o que significa falar sobre clínica? Como transmitir, 
pensar e pôr à prova este campo tão heterogêneo e sujeito a 
idiossincrasias onde temos sempre o sentimento de que o es­
sencial escapa por entre as tentativas de representá-lo? Neste 
quesito adotei uma estratégia híbrida. Combinar fragmentos de 
casos com a regularidade clínica que estes poderiam apresen­
tar, procurando sempre manter uma certa diversidade de fon­
tes para enriquecer ou questionar seu poder descritivo. A idéia 
é manter-se entre dois extremos: de um lado, a formalização 
conceitual, cujo ápice talvez seja o materna; de outro, o puro 
relato clínico, quase anedótico, cujo ápice talvez seja o poema. 
Essa atitude retoma aspectos que discuti anteriormente1 quanto 
ao valor das descrições clínicas, uma vez advertidas contra um 
certo realismo ingênuo que por vezes as atravessa. Isso signi­
ficou retomar e valorizar certos quadros clínicos, descritos clas­
sicamente, por Freud o u não, e que encontraram pouca 
receptividade na tradição lacaniana: neuroses atuais, neuroses 
de caráter, neuroses traumáticas e, por fim, os quadros de bor­
da (borderline) ou também chamados casos-limites. 
Admito com isso que o quadro clínico - assim como uma 
tela de pintura - é sempre mais rico do que a sua combinató­
ria composicional, do que a estrutura de sua perspectiva ou do 
que a sua técnica de mistura de cores. O quadro clínico é uma 
possibilidade relativamente genérica da estrutura clínica. En­
tendo, nesta medida, que é preciso introduzir um terceiro nível 
psicopatológico entre o sintoma e a estrutura, para lidar com 
tais quadros. Poder-se-ia dizer que este corresponderia ao ní­
vel do funcionamento psíquico. Prefiro delimitá-lo com a noção 
de gozo e de variações possíveis de seu cálculo. 
1. Dunker, C.l.L. Tempo e linguagem na psicose da criança. 1996. 280p. Tese 
(Doutorado em Psicologia Experimental). Instituto de Psicologia da USP. 
I NTRODUÇÃO 1 3 
O objetivo deste livro é mostrar que a noção de cálculo 
neurótico do gozo pode ter alguma utilidade na clínica e na 
pesquisa psicanalítica que considere a singularidade de agru­
pamentos sintomáticos e algumas condições subjetivas adjacen­
tes. Tal noção não será explicitada rigorosamente antes das 
análises que proponho. Ela será construída ao longo da apre­
ciação dos problemas tratados. 
Inicialmente procurei detalhar, especialmente na primei­
ra parte, que a noção de cálculo do gozo possui uma conver­
gência possível com algumas acepções e usos da noção de gozo 
que encontramos em Lacan. 2 Mais especificamente, apontei 
para a idéia de que o gozo é a referência para o cálculo do va­
lor e de que este cálculo está exposto a certos paradoxos que o 
tornam imperfeitamente realizável. Isso servirá de preparação 
para a tese, desenvolvida nos capítulos subseqüentes,· de quecertos sintomas neuróticos podem ser compreendido como mo­
dulações deste cálculo. 
Boa parte da psiquiatria, e do senso comum de nossa épo­
ca, afirmam que os sintomas constituem um prejuízo psíquico 
ao sujeito. O sintoma pode limitar, constranger e empobrecer 
a vida do neurótico É a.lgo qve está em excesso e que. portan­
to, deveria ser sumariamente eliminado, controlado ou ameni­
zado. Isso deve ser feito, na medida do possível, de modo 
permanente, pela transformação das causas que o produzem. 
A dissolução de sintomas sempre foi considerada a prin­
cipal tarefa terapêutica a ser enfrentada pela psicanálise. Mas 
coube a Freud mostrar que os sintomas não são mero desajus­
te, nem excesso que pode impunemente ser abreviado. Decor­
ren temente , a psicanálise não é apenas uma prática de 
eliminação de sintomas. De fato, estes representam um obstá­
culo ao amor, ao trabalho e uma fonte a mais de infelicidade, 
além daquelas que a existência, por si só, impõe. Nada toma 
mais tempo e é mais oneroso ao neurótico do que sua dedica­
ção aos sintomas. 
2. Para aqueles lei tores menos interessados nos aspectos conceituais da 
noção de gozo em Lacan, recomendo que iniciem a leitura pelo tercei­
ro capítulo. 
1 4 CHRISTIAN INGO LENZ Ü U NKER 
Outro ponto elementar para a questão é de que os sinto­
mas possuem sentido e função. Como conseqüência dessa tese, 
devemos estar dispostos a apreender o sintoma como efeito de 
um laborioso trabalho de construção psíquica e, igualmente, 
como uma espécie de "forma de vida" . Constituir um sintoma 
é uma tarefa árdua para o sujeito e disso depende uma parte 
do valor que a partir de então este passa a ter. O sintoma não 
é, portanto, apenas um problema, mas uma solução, uma res­
posta, por vezes precária, para conflitos que constituem o pró­
prio sujeito e localizam o ser em sua ex-sistência . O sintoma, 
neste último sentido, pode assumir a função de uma espécie de 
religião particular, mas também de uma obra de arte à procu­
ra de um destinatário . 
Há, portanto, esta dupla face: a do prejuízo, da contra 
vontade e a do sintoma como uma espécie de obra de arte . 
Nela pode-se notar em suas ranhuras e aparas os restos e as 
marcas do esforço levado a cabo na sua construção . Obra de 
arte que faz persistir e representar seu autor e ao mesmo tem­
po o nega em sua destituição subjetiva. Obra que perdeu sua 
função social preservando em seu núcleo rígido apenas a satis­
fação de sua própria continuidade. Essa comparação com a 
obra a ser decifrada em seu sentido e rearticulada em sua fun­
ção social permite entender porque mn sintoma não é propria­
mente curado, na acepção médica do termo, por uma 
psicanálise. Melhor seria dizer que ele cai, é encostado, entra 
em desuso ou perde sua importância. Freud empregava o ter­
mo Losung, solução ou dissolução para se referir a isso. Disso­
lução deste fragmento petrificado de gozo que se encontra em 
seu interior. 
Assim como a obra de arte, o sintoma tem um destinatá­
rio, constituindo em seu incomum arranjo de linguagem um 
enigma capaz de estranhar a seu próprio autor. Assim como o 
sintoma, a obra de arte é algo completamente sem sentido, inú­
til do ponto de vista da razão calculante, instrmnental e fundo-: 
nal hegemônica em nossa época. 
A pergunta que pretendo investigar diz respeito ao valor 
do sintoma. Valor tão difícil de calcular quanto o de uma obra 
de arte. Valor cujo cálculo coloca em jogo a mais paradoxal for-
INTRO D U Ç ÃO 1 5 
ma de satisfação que a experiência psicanalítica trouxe à luz: o 
gozo. 
A expressão cálculo costuma remeter à realização de urna 
medida ou a um conjunto de operações sobre números e sím­
bolos algébricos na matemática ou na lógica. O termo calculus 
referia-se originariamente a uma pequena pedrinha utilizada 
para marcar tais operações, como as que se vê nos ábacos orien­
tais. Uma pedra que acabou por metaforizar e condensar o con­
junto das operações que ela permitia realizar. É nesse sentido 
de condensado ou precipitado que o termo cálculo aparece ain­
da no vocabulário da medicina. Esta pedra de gozo é o que 
Lacan apontava como crucial na análise do sintoma. 
Mais difícil é entender como cálculo ganhou a conotação 
de conjectura, estimativa, que no sentido figurado indica ain­
da "sentimento de cobiça e interesse" . 3 Como a imparcialida­
de, aparentemente contida na idéia de cálculo matemático, se 
conjugaria aos sucedâneos menos nobres da vontade? Nisso se 
expressa uma ambigüidade moderna abrigada no termo. A ra­
zão calculadora é capaz de nos oferecer garantia e previsibili­
dade sobre o futuro, capaz de domesticar o infinito e regular de 
forma planetária as trocas simbólicas humanas, mas ao mesmo 
tempo o termo é revestido de suspeita quanto à sua extensão. 
Qual o limite do que pode ser calculado? 
Para falarmos em cálculo, mesmo na acepção genérica que 
pretendo, é necessário supor três condições. A primeira é o que 
se pode chamar de ciframento, ou seja, estabelecer os represen­
tantes daquilo que se pretende representar. Tais representan­
tes podem ser numéricos, algébricos ou matemáticos, podem 
ser simplesmente palavras, sinais ou marcas. 
A segunda condição implica estabelecer as regras de opera­
ção entre estes representantes, ou seja, circunscrever os tipos de 
trocas, identidades e relações que esses elementos admitem 
entre si. Tais relações podem se reduzir a regras de substituição, 
o modo de uma gramática, o modo das regras que constituem 
3. Ferreira, A. Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa . 
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1 996. 
1 6 CHRI S TIAN I NG O LENZ DUNKER 
ou regúlam um jogo. As regras de transformação pressupõem um 
universo cifrável, fazem uma segunda borda do cálculo. 
A terceira condição é que se possa abstrair, pelo cálculo, 
um valor ou produto daquilo que se calculou. Por exemplo, na 
matemática fala-se em função e argumento (regras de operação), 
em variáveis (ciframento), mas também há ainda o valor. Temos 
aqui uma espécie de raiz do processo. O cálculo nos leva de um 
ponto ao outro, que presumivelmente já se encontrava prescri­
to pelo primeiro. Ele não introduz nada novo. 
Sucede que se aplicamos tais categorias à produção do 
sintoma neurótico veremos que este nos surge como uma espé­
cie de paradoxo ou contradição relativo ao valor. Um valor que 
parece imperfeitamente redutível à sua regra de formação. 
Como Freud mostrou vivamente, o sintoma possui um valor 
do qual o neurótico não quer se livrar. Um valor do qual se 
desconhece o percurso de produção e as regras de seu cifra­
mento. 
O argumento central deste estudo é que, no que toca ao 
gozo, o cálculo em questão responde bem às duas primeiras 
condições: ele é capaz de ser cifrado e é capaz de ser exposto 
a uma economia de trocas. No entanto, quanto à terceira, o que 
se obtém é uma inconsistência quanto ao seu produto ou valor. 
O gozo não cessa de não se inscrever no sintoma porque seu 
valor representa um paradoxo para o sujeito.4 
A idéia de algo que resiste a inscrever-se plenamente na 
razão regida pelo cálculo não é nova. Historicamente diversos 
valores foram e são candidatos a baluartes neste anteparo ao 
cálculo: o homem, a vida, a liberdade, são alguns exemplos 
mais conhecidos. São termos que representam valores intrínse­
cos ou imanentes para os quais as operações de ciframento, tro­
ca e uso não deveriam ser aplicadas. O homem, por exemplo, 
não deve ser pensado como possuindo um valor, mas apenas 
dignidade. 
A modernidade está em associação direta com uma série 
de impasses éticos, estéticos e epistêmicos onde a noção de cál-
4. Correa, I. A psicanálise e seus paradoxos. Salvador: Ágalma, 2001 . 
INTRO DUÇÃO 1 7 
culo se revela imprópria ou paradoxal. Como mos trou 
Bauman,5 uma contradição constitutiva da modernidade reside 
na pretensão de discriminação, cálculo e organização que se 
impuseram às sociedades ocidentais. Mas o sucesso de tal pro­
jeto historicamente se associou à produçãode mais ambigüida­
de, indiscriminação e barbárie. Atenção - não se está afirmando 
que o cálculo por si e em si seja contracivilizatório, mas que a 
extrapolação de seu âmbito e o exagero de suas pretensões têm 
sérias conseqüências sociais. É só quando a ambigüidade é re­
cebida como sintoma, e só quando o sintoma torna-se um mal 
a ser erradicado por novas forças e estratégias de 
desambiguação6 que nos arriscamos a tornarmo-nos "infeliz­
mente saudáveis" . Analogamente é como se por um excesso de 
precisão, por um ultrapassamento do limite ao gozo, que cer­
tos grupos sintomáticos são desencadeados no interior da neu­
rose. É nesse tipo de movimento, onde quanto mais se luta 
contra algo, mais isso se acirra e insiste, que pretendo isolar o 
cálculo neurótico do gozo. Quanto mais o gozo se cifra, menor 
valor este tem. Inversamente, quanto maior seu valor menor 
sua possibilidade de inscrição. 
Entendo, desta maneira, que o sintoma pode e deve ser 
escutado como a realização inconsciente deste cálculo parado­
xal próprio à neurose. Ele pode ser escutado em conjunto com 
aquilo que faz estrutura, assim como em uma audição musical 
pode-se estar atento ao ritmo, à melodia e ao volume simulta­
neamente. Escutar as operações de ciframento, intercâmbio e 
valorização que estão envolvidas no cálculo supõe dar alguma 
atenção às modulações de intensidade, força ou investimento 
que são trazidas pela fala do paciente, mais especificamente na 
expressão de seu sofrimento. Argumento, com isso, que a clí­
nica que pretenda tratar o gozo deve acolher, de alguma forma, 
suas variações quantitativas e não apenas qualitativas. 
5. Bauman, Z. Modern idade e a111biva lê11cia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 
1999. 
6. Haroche, C . Fazer, dizer, querer, dizer. São Paulo: Hucitec, 1992. 
PARTE 1 
Gozo E TEORIA DO VALOR 
Ü PROBLEMA DOS CONCEITOS 
ECONÔM I C OS DE FREUD A LACAN 
O primeiro resultado da nova ciência (cartesiana) foi o de cortar o real 
em duas metades, quantidade e qualidade, das quais uma foi 
entregue aos corpos e outra às almas. 
Bergson 
Uma crítica usualmente levantada contra a leitura lacania­
na de Freud diz respeito ao pouco peso conferido aos afetos e 
por extensão ao que Freud chamava de ponto de vista econô­
mico em psicanálise. Se percorrermos um texto kleiniano ou 
winnicottiano e o compararmos a um escrito inspirado no en­
sino de Lacan, uma curiosa diferença estilística salta aos olhos. 
No primeiro caso o texto costuma estar repleto de expressões 
quantitativas tais corno "muito", "pouco", "maciçamente", "in­
tensamente", e assim por diante. Surge a impressão de que 
sempre se está a falar de diferenças dispostas segundo uma 
continuidade, de acordo com uma gradação, onde a combina­
ção, a mistura e a co-presença de processos e dimensões é a tô­
nica. No caso lacaniano se dá o oposto: tudo é uma questão de 
qualidades, diferenças irredutíveis, descontinuidades e ruptu­
ras . Tal diferença estilís tica replica, superficialmente, a impor­
tância assumida pelo ponto de vista econômico no primeiro 
caso e a suspeita do qual ele é cercado na segunda situação. 
A crítica de que Lacan abandonou o ponto de vista econô­
mico é imprecisa. Aspectos sumamente dependentes das con­
siderações econômicas em Freud receberam atenção sistemáti-
22 CHRI S T I AN INGO LENZ DUNKER 
ca de Lacan, vale citar sua interpretação das teses sobre o nar­
cisismo, nos termos do estádio do espelho e da concepção de 
imaginário; sua teoria da angústia, ainda não inteiramente exa­
minada; além da controversa teoria da sexuação. 
Poder-se-ia objetar então que o abandono do ponto de vis­
ta econômico não é temático mas trai a inspiração metodológi­
ca freudiana de considerar, por exemplo, a libido como uma 
espécie de "energia psíquica de natureza sexual" . Energia cuja 
quantidade não pode ser medida mas que em sua distribuição, 
deriva, concentração ou dispersão, determina o funcionamen­
to psíquico. A imagem freudiana da libido como um rio cauda­
loso, de fonte constante, procurando caminhos por onde escoar 
e encontrando resistências e transbordamentos em sua trajetó­
ria, é uma imagem que valoriza a força, a exigência, o impul­
so, não apenas qualidades diferenciais neutras . A imagem do 
rio pressupõe a existência primária da água como substância 
dotada de realidade material. O que está em jogo aqui é saber 
se a libido é um conceito que reflete uma realidade semelhan­
te à de um neurotransmissor, por exemplo, onde seus aspectos 
quantitativos podem ser calculados com exatidão. 
Nesse caso a crítica se concentra em torno da recusa laca­
niana em considerar o elemento quantitativo, contido na acep­
ção original, oferecendo em troca uma perspectiva epistemoló­
gica formalista. Mas quando Lacan critica a adoção da energia 
como elemento primário para pensar o psiquismo, ele o faz 
tendo em vista a ingenuidade metafísica que nela se encerra. A 
energia não é um fato primário na constituição da realidade 
psíquica, mas uma suposição sobre a eficácia deste sistema, a 
chamada realidade como Wirklichkeit. Isso porque a energia só 
interessa ao aparelho psíquico na medida em que estabelece, 
para ele, um princípio elementar de trocas e equivalências . 
Freud foi levado pela noção energética a forjar uma noção 
que se deve usar na análise de modo comparável à da energia. 
É uma noção que, assim como a da energia, é inteiramente abs­
trata, e que consiste nu:ma simples petição de princípio, desti­
nada a permitir um certo jogo de pensamento. Ela permite 
unicamente expor - e ainda assim de forma virtual - uma equi­
valência, a existência de uma medida comum, entre manifesta-
G o z o E TEO RIA DO VALO R 23 
ções que se apresentam como qualitativamente muito distintas. 
Trata-se da noção de libido. 1 
Nessa passagem fica claro como Lacan lê o ponto de vis­
ta econômico freudiano, no que toca a noção de libido, isto é, 
como um artifício de método e não como um a priori ontológi­
co. A energia só passa a ser levada em conta quando responde 
a três condições : (a) quando ela pode ser medida no interior de 
um sistema simbólico, (b) quando ela não é um sucedâneo da 
realidade natural, (c) quando se torna necessária para justificar 
a realidade eficaz (Wirklichkeit) do sistema. Vê-se assim que a 
tese da anterioridade do simbólico em relação ao imaginário 
não versa sobre a concepção do ser mas sobre como se pode 
apreendê-lo. 
De fato há muitos ganhos a considerar neste giro anti­
essencialista, nesta crítica da metafísica fisicalista, prisioneira 
do contexto científico no qual se desenvolveu a obra de Freud 
e de uma parcela substancial de seus continuadores. No entan­
to este movimento crítico redundou, paralelamente, na conde­
nação ao ostracismo de certos temas clínicos freudianos, por 
parte da tradição lacaniana que se seguiu. 
O ensino de Lacan parece caminhar de uma interpretação 
lingüística do inconsciente (a teoria do significante) para uma 
teoria dialética do sujeito (a subversão do sujeito), terminando 
por tematizar a paradoxalidade do objeto (a topologia das pul­
sões). É justamente este terceiro ponto que exige uma releitu­
ra do pon to de vista econôm ico, o que oferece maior 
dificuldade de integração teórica e clínica. Um dos motivos 
para isso é a forte presença do fisicalismo biologista que im­
pregna a apreensão econômica dos conceitos em Freud. Biolo­
gismo expresso por noções quantita tivas como força, 
intensidade, pressão, investimento, solicitação somática, etc. 
Biologismo que reaparece no compromisso freudiano com cer­
tos aspectos da clínica clássica. Na sua semiologia, na sua 
diagnóstica e em parte de sua concepção etiológica a dimensão 
1 . Lacan, J. O seminário. Livro IV. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar, 1995, p. 44. 
24 CHRISTIAN I NGO LENZ ÜUNKER 
intensiva ora aparece como um axioma teórico, como no "Pro­
jeto de psicologia científica para neurólogos" ,2 ora como o fiel 
da balança na possibilidade de cura, como em "Análise termi­nável e análise interminável",3 ou ainda como determinante 
conjuntural na causação de sintomas, como em "Os caminhos 
da formação de sintoma" .4 Ou seja, tanto na teoria do aparelho 
psíquico quanto na psicopatologia ou na prática da cura o ele­
mento quantitativo é decisivo no entender de Freud. 
Lacan, como se sabe, procura reler Freud de modo a des­
biologizar seus conceitos. Em linhas gerais isso significará uma 
substituição regrada, sistemática e argumentada de noções 
quantitativas por noções qualitativas. Por exemplo no Seminá­
rio XX5 e nos textos adjacentes fica nítida a estratégia de Lacan 
quanto à substituição do paradigma freudiano fisicalista, pela 
consideração lógica dos problemas derivados da teoria das 
pulsões. Exemplo desta substituição são as chamadas fórmulas 
da sexuação . Uma novidade apresentada por este modelo é 
considerar como ponto de partida a tese de que há uma impos­
sibilidade de realizar uma relação (no sentido de proporção 
perfeita) entre masculinidade e feminilidade. O gozo masculi­
no se organiza em relação ao falo e o gozo feminino (gozo Ou-
2. "O propósito deste projeto é alcançar uma psicologia como ciência na­
tural, a saber, apresentar processos psíquicos como estados quantitati­
va men te comanda dos p o r partes mater ia i s comprov a d as . . . " ln: 
Freud, S. Projeto de uma psicologia científica para neurólogos . OC. 
Buenos Aires: Amorrortu, 1988, p. 339. v . I . Edição de controle: Edi­
ção de controle: Sigmund Freud Studienausgabe. Frankfurt: S. Fischer, 1975. 
3 . " . . . tratando-se do desenlace de uma cura analítica, este depende no es­
sencial da intensidade e profundidade do enraizamento destas resistên­
cias de alteração do eu." Freud, S. Análise terminável e análise inter­
minável. ln: OC. Op . cit. , p. 240. v. XXIII. 
4. "Não menos decisivo é o fato quantitativo para a capacidade de resis­
tência a contrair uma neurose. Interessa o mon tante de libido não apli­
cada que uma pessoa pode conservar flutuante, e a quantia da fração 
de sua libido que é capaz de desviar-se do sexual para as metas da su­
blimação." Freud, S. Os caminhos da formação de sintomas. ln: OC. 
Op. cit. , p . 342. v . XVI. 
5 . Lacan, J. O seminário. Livro XX. Mais ai1uia . . . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. 
G ozo E TEORIA DO VALOR 25 
tro) se organiza em relação ao objeto. Como o falo é irredutível 
e desproporcional ao objeto, no sentido aqui de objeto a, have­
ria uma disparidade entre estas duas formas de gozo. 
Ora, isso equivale a traduzir um problema freudiano, pos­
to em termos quantitativos, relativo ao investimento libidinal, 
em um problema qualitativo, relativo à forma de inscrição da 
libido e não à intensidade desta inscrição. O resultado é que tal 
proporção estável e fixa se torna insustentável em função de 
qualidades formais irredutíveis e não em função de predomí­
nios energéticos no interior do aparelho psíquico. A teoria da 
sexuação apóia-se assim em uma desproporção, incomensura­
bilidade ou não pareamento sis temático entre os elementos 
envolvidos em uma suposta totalidade. Essa estratégia de lei­
tura encontra-se de forma tônica no ensino de Lacan. Constitui 
uma espécie de princípio metodológico de sua obra. 
No entanto, se tal tese parece contornar o problema quan­
titativo na esfera do inconsciente ela soa para muitos como 
francamente insuficiente para dar conta da pulsão e dos afetos . 
A objeção de que Lacan haveria simplesmente eliminado o 
ponto de vista econômico, através de uma sobrevalorização da 
esfera freudiana do representacional, aparece por exemplo na 
obra de André Green6 ou em um autor brasileiro atento ao mes­
mo problema como Chaim Samuel Katz.7 Uma linha crítica se­
melhante s e encontrará em Laplanche, 8 no que toca à 
concepção de metáfora e em Jurandir Freire Costa9 em relação 
ao conceito de estrutura. É importante mencionar ainda os re­
centes trabalhos de Joel Birman, 10 que vem apontando, sistema-
6. Ver por exemplo, Green, A. Teoria das Representações. ln: Conferên­
cias Brasileiras de André Green. Rio de Janeiro: Imago, 1991 , p. 46. 
7. Ver, por exemplo, Katz, C.S . O primado da teoria das representações. 
In: Freud e as psicoses . Rio de Janeiro: Xenon, 1994, p. 1 15 . 
8 . Laplanche, J . O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 
9. Ver por exemplo, Costa, J.F. Pragmática e processo analítico: Freud, 
Wittgenstein, Davidson, Rorty . In: Costa, J .F . (org.) Redescrições da psi­
ca nálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1 994. 
10 . Birman, J . O mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 
1 999. 
f"AFICH / UfMG 
BIBLIOTECA 
26 CH R ISTIAN INGO LENZ DUNKE R 
ticamente, convergências ideológicas e clínicas para a exclusão 
do corpo, do afeto e, de forma mais geral, da dimensão inten­
siva, do cenário psicanalítico. Isso seria um aspecto empobre­
c edor da herança l a caniana. Penso que não se pode 
negligenciar o que está sendo apontado, de diferentes manei­
ras, por estes autores. Não se deve atribuir tais críticas apenas 
a mazelas políticas institucionais ou rancores históricos. 
A maior parte destes autores, que salientam o esqueci­
mento do ponto de vista econômico, concentraram seus esfor­
ços críticos sobre os desenvolvimentos de Lacan centrados na 
teoria do significante e na teoria do sujeito. A partir da década 
de 1960, mas de forma pontual em diversos momentos antes 
disso, Lacan utiliza a noção de gozo (jouissance) para sinalizar 
a presença incômoda de noções quantitativas no interior de seu 
sistema teórico. Ao que tudo indica tal noção torna-se realmen­
te importante somente a partir de uma melhor formalização de 
uma instância metapsicológica conhecida como Real . De fato 
não há uma paridade direta entre os pontos de vista tópico, 
dinâmico e econômico em Freud e as ordens Simbólica, Imagi­
nária e Real em Lacan, mas se procurarmos uma localização 
para a experiência enquanto acontecimento ou encontro inten­
sivo, inominável e resistente à representação 01.: à inscrição 
simbólica, isso certamente residirá no que Lacan chamou de 
Real e no seu principal correlato clínico que é o gozo. Isso sig­
nifica que o Real ocupa a mesma função teórica destinada por 
Freud à esfera da quantidade? Mas se isso é verdade o que di­
zer de certos temas freudianos, ligados à esfera quantitativa, 
que foram "esquecidos" pela tradição lacaniana? Por exemplo, 
o tema do desencadeamento da neurose (esquecido por trás da 
noção de estrutura), o tema do caráter (esquecido por trás da 
noção de imaginário) e o tema da formação, fracasso e deslo­
camento de sintomas específicos (esquecidos por trás da noção 
de metáfora paterna). É a esses temas que pretendo voltar neste 
livro, procurando lê-los a partir da noção de gozo. 
Dentre as inúmeras implicações que esta noção traz con­
sigo, a começar por sua complexa e polêmica definição, gosta­
ria de chamar a atenção para sua utilidade na compreensão de 
um fenômeno clínico, sem o qual a psicanálise e talvez as psi-
Gozo E TEORIA DO VALOR 27 
coterapias em geral não possuiriam a presença que hoje tem na 
nossa cultura. Refiro-me a relação do sujeito com seu sofrimen­
to, com a dor psíquica nas suas mais diversas e trágicas formas 
de apresentação. Relação esta que está marcada por uma reco­
nhecida paradoxalidade: prazer e desprazer, desejo e aversão, 
satisfação e insatisfação, amor e ódio. A tensão entre estes pa­
res em oposição constituiu um dos pilares da reflexão ética da 
modernidade e ainda hoje organiza a concepção comum sobre 
a felicidade e o bem-estar, geralmente alinhado aos primeiros 
elementos da série. Ocorre que a noção de gozo parece combi­
nar ou desfazer essas oposições. O uso teórico e a experiência 
clínica nos levam a reconhecer a existência de algo como uma 
satisfação insatisfatória, ou um desprazer prazeroso ou ainda 
uma aversão desejante na relação do sujeito com seu sofrimen­
to. Esse conjunto de oxímoros por si só serviria como definição 
preliminar do gozo.Na neurose o gozo se mostra pelo apego 
e pelo valor que o sujeito confere ao seu sintoma, mais exata­
mente para o que é produzido pela economia do sintoma sob 
forma de ganho primário. Uma ligação intensa com aquilo que 
não lhe serve para nada e que não obstante toca-lhe no mais 
fundo de sua experiência subjetiva. 
É p ortanto pelas transformações do gozo que procuro en­
tender as variações intensivas que se verificam no estado do 
sintoma, em sua produção, deslocamento e sustentação ao lon­
go do tratamento. Em outras palavras por que e sob quais cir­
cunstâncias um sintoma faz sofrer mais ou tem seu valor de 
gozo aumentado ou diminuído. Por que - como diriam os clí­
nicos clássicos - um sintoma torna-se agudo, extremo ou ins­
tável? 
Para melhor examinar este problema, abordarei noções 
clínicas derivadas diretamente de teses puramente econômicas, 
tais como as que estão implicadas na etiologia e desencadea­
mento da neurose em geral. Mais particularmente levarei em 
conta o conjunto psicopatológico formado pelas neuroses atuais, 
pelas neuroses de caráter e por certos grupos sintomáticos que 
giram em torno da repetição, como a neurose de guerra, a neu­
rose traumática e a neurose de destino. Com o mesmo objeti­
vo tecerei algumas considerações sobre algumas inflexões do 
28 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
narcisismo na neurose, em particular sobre o difuso campo for­
mado pelas neuroses narcísicas, os transtornos borderline e os 
estados limites. 
Tal escolha não se deve ao intento de propor a existência 
de novas estruturas clínicas, pelo contrário, o uso do termo neu­
rose para designar tais quadros é assumidamente não estrutu­
ral. Mesmo em Freud a maior parte destes grupos sintomáticos 
é redutível à estrutura da neurose (histérica ou obsessiva) ou 
da psicose (neuroses narcísicas). Mas é justamente por isso que 
nestas situações estamos às voltas com uma condição onde o 
ponto de vista econômico parece possuir primazia na determi­
nação do quadro. Ele encontra-se agindo de forma quase iso­
lada e independente fornecendo, assim, um bom campo para 
o desenvolvimento de nossa questão. 
As RAÍZES DA NOÇÃO DE GOZO EM lACAN 
Em lugar da energética de Freud proponho a economia polít ica . 
Lacan 
A noção de gozo em Lacan é extensa e heterogênea. Não 
farei uma exposição exaustiva de seu desenvolvimento e das 
transformações a que o termo está sujeito pois, ao que tudo 
indica, ele serviu a diferentes propósitos ao longo do ensino de 
Lacan, assumindo portanto diferentes conotações, por vezes 
contraditórias se as comparamos entre si . O objetivo aqui será 
o de apresentar as teses de Lacan de forma parcial, submeten­
do-as a uma hipótese de leitura e dela extraindo certas conse­
qüências clínicas para o tema em questão. 
Como vimos anteriormente, a noção de gozo em Lacan 
vem a ocupar, parcialmente, o campo energético e quantitati­
vo denotado por Freud. No entanto, há nesta passagem uma 
recusa metodológica em substancializar a noção de libido. 
Para tanto Lacan parece ter examinado a função deste conceito 
na obra de Freud e em seguida procurado substitutos para esta 
função. Ora, Freud precisa da idéia de libido não apenas por­
que isso garantiria certa dignidade epistemológica, conferindo 
à psicanálise cidadania no campo das ciências naturais, mas 
fundamentalmente porque este conceito lhe permite pensar as 
transformações do "acento psíquico" a que uma representação 
está suj eita. Em outras palavras, porque uma representação, 
complexo ou instância possuiria mais ou menos valor dentro 
30 CHRISTIAN I NGO LENZ Ü UNKER 
do aparelho psíquico, reunindo sobre si uma soma de exci ta­
ção tomando-se então investida (Bezetzung) . 
A solução para o biologismo fisicalista não está na proli­
feração de metáforas e analogias que tornem mais pala tável 
uma certa metafísica da energia ou da experiência, mas em 
uma teoria mais sólida ou eficaz para o problema da diferen­
ça de valores psíquicos. Nossa hipótese de leitura é que a teo­
ria do gozo em Lacan cumpre justamente este papel. É por isso 
que as referências à noção gozo em Lacan variam imensamen­
te. Da ordem jurídica (o gozo como direito a), à esfera sexual 
e ao júbilo imaginário, o gozo comporta ainda um cenário de 
leitura ligado à economia-política (Seminário XVII) e à ética 
(Seminário VII) . O problema se torna aind a mais complexo 
pois do ponto de vista do método de Lacan também varia a 
forma de apreensão do gozo passando pela via lingüística, 
pela via da lógica dos conj untos (Seminário XX) e ainda pela 
via dialética (Seminário XI) . No entanto, na maior parte dessas 
extrações, derivas e assimilações, realizadas por Lacan na 
construção do conceito de gozo, uma referência permanece co­
mum: trata-se de lançar mão de aspectos de uma teoria do va­
lor, ou seja, de retirar das suas fontes aquilo que nelas ocupava 
o lugar de uma axiologia. 
O g o zo n a m at r i z l i n g ü íst ica 
O gozo é interditado a quem fala . 
Lacan 
A idéia de gozo, como sucedâneo de prazer, satisfação ou 
deleite sugere que seu uso em psicanálise prenda-se a alguma 
esfera de convergência com a erotologia ou ao menos com as 
vicissitudes mais diretas da sexologia . Não p arece ser esse o 
caso, se observarmos que o uso mais freqüente do seu corre­
lato em alemão (Genuss) liga-se a textos de Freud que versam 
predominantemente sobre teoria da cultura ou sobre estética. 
Mesmo neste contexto o espectro semântico do termo é bastan-
Gozo E TEORIA DO VALOR 31 
te amplo entrando em associação coin noções como as de des­
prazer, insatisfação, dor, asco, masoquismo erógeno,1 ao lado 
de noções como as de libido, gozo sexual, satisfação e mais 
prazer (Mehrlust). 
Esse parece ser o caso de uma curiosa passagem de "Chis­
tes e sua relação com o inconsciente" na qual Freud analisa o 
chiste como um processo social e procura os motivos pelos 
quais este se propaga. O chiste nos proporciona uma satisfação 
cujo índice é o riso e a sensação de relaxamento corporal. No 
entanto, não se pode contar um chiste para si mesmo e reapro­
veitar a graça do instante inicial, nem recuperar a surpresa e 
desconcerto que ele evoca com suas relações inusitadas. É pre­
ciso contar o chiste a outra pessoa para poder resgatar uma 
parcela do prazer que anteriormente ele evocou. Assim " . . . re­
cupera-se um fragmento de possib i l idade de gozo 
(Genussmoglichkeit) que faltava, em decorrência da ausência de 
novidade". 2 
Uma série de propriedades enfatizada pela concepção la­
caniana de gozo está contida nessa observação. Vê-se que o 
gozo realiza-se em uma repetição, que nesta repetição algo 
perdido é retomado, mas que nesta retomada preserva-se ape­
nas um parco simulacro da experiência que a repetição visa 
reconstituir. 
O exemplo do chiste pode parecer trivial e circunscrito a 
um ato de linguagem muito específico, mas penso que ele re­
trata bem uma propriedade geral da linguagem no que diz 
re$peito à repetição. O efeito de algo escutado pela primeira 
vez, seja pela textura poética, semântica ou gramatical, está 
sujeito a uma espécie de desgaste pelo uso. Em outras pala­
vras, a força evocadora de um determinado efeito de lingua­
gem é um fato temporal, dependente de seu contexto de 
enunciação e sujeito à perda de valor em sua reutilização. Isso 
não vale apenas para o chiste, a piada e o cômico de maneira 
1 . Valas, P. As dimensões do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 35. 
2 . Freud, S. O chiste e sua rela ção com o inconsciente. Op. cit., p . 134. 
V . VIII. 
32 CH R ISTIAN INGO LENZ DUNKER 
gerai, mas também para as mais diversas formas de textuali­
dade, para os discursos e formações ideológicas. Em estudo 
anterior3 procurei mostrar como isso afeta diretamente a forma 
retórica da interpretação em psicanálise. A repetição da forma 
retórica que caracterizava as intervenções de Freud torna-se 
gradualmente inócua na medida em que se assimila à cultura 
e a um saber constituído. Por exemplo, um paciente diantede 
um lapso de linguagem desculpa-se imediatamente com a ex­
pressão: "isso não quer dizer nada, foi só um ato falho", outro 
se justifica com um "não tenho nada que ver com isso, foi in­
consciente". 
A repetição, na acepção fraca do conceito, caracteriza um 
certo modo de fala e escuta cotidiana que Heidegger chamou 
de "falação" e Lacan de "fala vazia", isto é, a fala onde a an­
tecipação da intencionalidade de seu autor, o seu caráter fáti­
co ou meramente reprodutivo, impõe-se completamente ao 
dizer. É a fala que parece não ser feita para ser escutada, mas 
meramente ouvida. É o caso de um marido que se refere ao 
encontro com a esposa, depois de um dia de trabalho, da se­
guinte maneira: "No começo percebo logo aquele tom de quei­
xa e fico à espera do próximo pedido. Aí ela começa a falar e 
falar. As palavras vão se desagregando, vão se tornando todas 
iguais até que só consigo distinguir o tom de voz. Depois é 
corno se entrasse um único zumbido e aquilo vai irritando sem 
que eu perceba. É corno rádio ligado ou música ambiente que 
perturba e cansa sem que a gente se dê conta. É urna sensação 
ruim e difusa que vai tomando conta sem que eu consiga fa­
zer nada." 
Vê-se aqui outro exemplo da presença do gozo na lingua­
gem em estreita ligação com a repetição, onde esta parece ter 
perdido a possibilidade de reintroduzir algo de novo. É como 
ouvir a mesma piada muitas vezes de modo que aquilo que 
antes propiciara alguma satisfação torna-se agora extrema­
mente insatisfatório. Mesmo neste caso a satisfação é ainda 
suposta ao outro e retorna agora sobre o sujeito de forma 
opressiva, mas irresistível. 
3. Dunker, C.I .L . Lacan e a clín ica da interpretação. São Paulo: Hacker, 1996. 
G ozo E TEORIA DO VALOR 33 
O gozo mostra-se assim como uma satisfação em segun­
da potência, isto é, uma satisfação extraída da satisfação do 
outro. Mais especificamente uma satisfação mediada e interdi­
tada pela linguagem. Mediada porque no chiste trata-se da 
articulação entre significantes segundo as regras que consti­
tuem os processos .primários, regras estas que comandam as 
formações inconscientes . Por exemplo, a condensação reúne o 
valor psíquico de duas representações em uma terceira, o des­
locamento transfere o valor de uma representação para outra. 
O gozo exige portanto esta mediação da linguagem p ara se 
realizar. Compreende-se assim por que, às vezes, ele é referi­
do como uma forma de "satisfação inconsciente", isto é, uma 
forma de satisfação realizada por intermédio do processo pri­
mário, que atua como uma regra de composição ou articulação 
entre as representações . Isso permite falar do gozo como um 
afeto inconsciente, no duplo sentido de afeto, ou seja, de uma 
sensação no corpo (encare) e de uma afetação ou apassivação 
do sujeito. O inconsciente, no sentido tópico, estaria às voltas 
com a tarefa de tramitar o gozo; de inscrevê-lo ou organizá-lo, 
de conferir a ele algum valor psíquico. 
Lacan, como se sabe, lê a condensação como uma metáfo­
ra e o deslocamento como uma metonímia, e diz explicitamen­
te que estas operações constituem uma transferência no plano 
do valor e que desta transferência se extrai o gozo. "Eles não 
tomaram à letra que a metonímia é com efeito o que determi­
na como operação de crédito (Verschiebung quer dizer: trans­
ferência de fundos) o mecanismo inconsciente de onde é, sem 
dúvida, o ingresso-gozo que se extrai . "4 
Esta dupla passagem, do inconsciente ao gozo e do gozo 
ao inconsciente seria semelhante à inclusão ou exclusão de um 
elemento em uma operação de cálculo, como se afirma algu­
mas linhas abaixo no mesmo texto : "Fazer passar o gozo ao in­
consciente, quer dizer para a contabilidade, é, com efeito, um 
duplo deslocamento . "5 
4. Lacan, J . Radiofonia . ln: Radiofonia & Televisión . Barcelona: Anagrama, 
1977, p. 35. 
5. Lacan, J. Radiofonia . Scilicet, Paris : Seuil, 2/3, p. 72, 1970. 
34 CHRISTIAN INGO LENZ ÜUNKER 
No caso do chiste este cálculo estabelece como e quanto de 
gozo pode ser recuperado e quanto deve permanecer sob re­
calque. Por isso as regras de composição são necessárias, em 
termos freudianos, porque os verdadeiros motivos do chiste 
estão sujeitos à interdição e devem portanto sofrer algum dis­
farce ou censura. O chiste diz de uma maneira tolerável aqui­
lo que um determinado estado social sente como intolerável. 
Logo ele é uma manobra lingüística e social para extrair do 
Outro aquilo que este lhe nega. Daí a conhecida afirmação de 
Lacan de que "O gozo é interditado a quem fala".6 
Aqui reside um ponto de importante diferença em relação 
a diversos pós-freudianos. As experiências infantis, efetivas ou 
conjeturais, como a alucinação primária que originaria o dese­
jo, o narcisismo primário, o fusionamento mãe-criança, por 
exemplo, visa direta ou indiretamente cernir a imagem do 
gozo como uma totalidade sem fissuras. Tal imagem, e as nar­
rativas que delas se engendram, localizam o gozo como uma 
espécie de experiência essencial, originária e anterior à lingua­
gem. Nesta medida funcionam ao modo de um valor fixo ou ân­
cora ao qual se remeteriam todas as experiências subseqüentes. 
O campo do gozo, como vimos no exemplo do chiste, é 
constituído por uma perda inaugural, mas uma perda que pro­
duz mítica e retrospectivamente um momento originário onde 
este se mostraria não perdido. Portanto são as trocas, as rela­
ções ou a própria distribuição da libido que criam, necessaria­
mente, a representação futura ou passada da experiência de 
totalidade. Inversamente, é desta ficção de totalidade que o 
gozo se mostrará sempre parcial, fragmentário ou ainda loca­
lizado no órgão. A primeira vez em que Lacan faz referência 
à noção de gozo, no Seminário sobre o Homem dos lobos, de 
1950, é justamente um assinalamento sobre este ponto: "O pai 
introduz um novo modo de referência à realidade. É porque o 
gozo do sujeito lhe é de certa forma arrebatado, que ele pode 
ser situado: é o papel do complexo de Édipo".7 
6. Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. ln: Escritos . Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 1 998. Edição de controle: Écrits. Seuil : Paris, 1 970. 
7 . Lacan, J. O seminário. Livro 1 . O Homem dos lobos, primeira sessão, 
1 950. 
Gozo E TEO R I A DO VALO R 35 
Lembremos que neste momento Lacan ainda está sob for­
te e direta influência do estruturalismo de Lévi-Strauss. A im­
portância deste autor na construção do conceito psicanalítico 
de estrutura, de cadeia significante e de lei já foi bastante en­
fatizada. Mas a par desta contribuição vê-se que a primeira 
matriz de entendimento do gozo é também bastante tributária 
do pensamento deste antropólogo francês . Lévi-Strauss afirma 
que as regras que comandam a troca de palavras, em certas 
sociedades primitivas, são equivalentes às regras que regulam 
a troca de mulheres entre clãs articuladas sob uma mesma es­
trutura de parentesco, permitindo assim seu funcionamento 
exogâmico. Por isso a lei que proíbe o incesto é uma lei que se 
estrutura ao modo de uma linguagem. No entanto, e talvez 
isso tenha sido um pouco esquecido pelos comentadores de 
Lacan, essa proibição possui dois aspectos distintos : 
Encontramos, portanto, duas categorias de atos q u e se 
definem como uso indevido da linguagem, uns do p onto de 
vista quantitativo, como brincar ruidosamente, rir demasiado 
alto, manifestar com excesso seus sentimentos, e outros do 
ponto de vista qualitativo, por exemplo, responder a sons que 
não são palavras, tomar como interlocutor um indivíduo (es­
pelho ou macaco) que apenas tem aparência de humanidade. 
Todas estas proibições reduzem-se, portanto, a um denomina­
dor comum, a saber, constituem um abuso de linguagem, e 
são, por este aspecto, grupadas com a proibição do incesto ou 
com atos evocadores de incesto . 8 
Geralmente o tema da proibição do incesto é abordado de 
forma puramente qualitativa, isto é, priorizando o objeto tabu, 
formalmente indicado pelo significante. Isso deixa parcialmen­
te delado a idéia de interdição do excesso, ou seja, de uma li­
mitação do uso de modo que este não se transforme em abuso. 
Ora a distinção entre uso e abuso não é simétrica à distinção 
entre permitido e interditado. Entre o uso e o abuso há um 
gradiente, entre o possível e o impossível há uma alternativa 
8. Lévi-Strauss, C. Estmturas elemen tares de paren tesco. Petrópolis: Vozes, 
1 982, p. 535. 
36 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
binária e polar. O que por sua vez é aplicável também no que 
tange a troca de mulheres: 
Que significa isso senão que as próprias mulheres são 
tratadas como sinais, das quais se abusa quando não se lhes dá 
o emprego próprio dos sinais, que é serem comunicados . ( . . . ) Ao 
contrário da palavra que se tornou integralmente sinal, a mu­
lher permaneceu, portanto, sendo ao mesmo tempo que sinal, 
valor.9 
Aqui fica nítido como a lei de proibição do incesto é sub­
sidiariamente a lei da troca e que esta presume uma comensu­
rabilidade entre os sinais (mesma língua, reconhecimento da 
alteridade, etc . ), mas também uma regulação do valor que se 
acrescenta ou diminui em função das próprias trocas e que 
cada mulher preserva, independentemente de seu lugar no sis­
tema, como um sinal . Abre-se aqui uma pista para entender­
mos o incômodo lugar ocupado pela categoria de gozo no 
Lacan estruturalista . O inconsciente es truturado como uma 
linguagem permite compreender o sistema de trocas em ter­
mos significantes, mas isso é condição necessária mas não su­
ficiente para entendermos o valor de gozo dos efeitos desta 
estrutura. Isso relegará ao imaginário a ficção essencialista de 
um momento anterior a lei da troca mas não explicará a forma 
de funcionamento desta ficção, problema aliás reconhecido 
por Lévi -S trauss : " Até nossos d ias a humanidade sonhou 
apreender e fixar este instante fugitivo em que foi permitido 
acreditar ser possível enganar a lei da troca, ganhar sem per­
der, gozar sem partilhar" . 1º 
Esse caráter híbrido da noção de gozo, ao mesmo tempo 
ligada ao significante e ao valor, receberá sua solução, em La­
can, através do desenvolvimento do conceito de falo. Para tan­
to este recorrerá a uma noção de valor ligeiramente distinta da 
que vimos empregada acima por Lévi-Strauss, mais precisa­
mente à teoria do valor lingüístico desenvolvida por Saussu­
re . Tal teoria reconhece como ponto de partida o caráter 
9 . Idem, p . 536-7. 
10. Idem, p . 537. 
Gozo E TEORIA DO VALOR 37 
paradoxal da própria idéia de valor, pois este será sempre 
constituído: " 1 ) por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser 
trocada por outra cujo valor resta determinar; 2) por coisas se­
melhantes que se pode comparar com aquela cujo valor está em 
causa". 1 1 
O valor exprime assim a tensão entre a identidade e a di­
ferença. Ele se determina lingüisticamente pela relação que um 
significante possui com os outros significantes com os quais 
pode ser comparado, mas também pela troca que este signifi­
cante permite em relação a outros significantes, o que determi­
na sua significação. Por exemplo, a palavra portuguesa angústia ou 
francesa angoise pode ter a mesma significação que o alemão 
Angst, mas não o mesmo valor, isso por várias razões, em par­
ticular porque, por exemplo, ao falar da sensação produzida 
por um animal ameaçador, o alemão dirá Angst e o brasileiro 
medo. Isso ocorre porque na comparação entre termos seme­
lhantes angústia se colocará ao lado de termos como ansiedade 
e medo em português, sem correlato direto com o seu valor em 
alemão. Ou seja, a palavra pode ser trocada por uma significa­
ção aproximada, mas não possui, comparativamente, o mesmo 
valor. 
O conceito de valor é utilizado por Saussure para repre­
sentar a possibilidade que um signo possui de ser substituído 
e comparado dentro de um sistema de linguagem. O valor ex­
pressa assim o conjunto de dupla articulação a que o signo está 
destinado. O correlato do valor de um signo é sua significação 
pois neste caso contam menos as articulações diferenciais e de 
troca com outros significantes e mais a relação de semelhança 
e comparação do significante ao significado. Por exemplo, a 
oposição entre o fonema "pê" e "bê" é uma oposição que pos­
sui um determinado valor, em uma dada língua, apesar de não 
possuir nenhuma significação. 
Vê-se assim que as noções de significância e de autono­
mia do significante em Lacan são tributárias da ênfase no con­
ceito saussureano de valor. As formações do inconsciente, 
11 . Saussure, F. Curso de lingüística geral . São Paulo: Cultrix, 1975, p. 134. 
38 CHRISTIAN INGO LENZ DuNKER 
regidas pelos processos p rimários, determinam-se mais pelas 
trocas no plano do valor do que pelo deslizamento no plano da 
significação. O valor de uso, ou de gozo, expresso pela signi­
ficação, fica assim submetido a valor de troca regido pelo sig­
nificante, como se atesta na seguinte passagem: "este discurso 
do inconsciente está, como disse da última vez, articulado ao 
valor de gozo" . 1 2 
No entanto, é no conceito de falo que a teoria do valor as­
sume a sua importância mais explícita . Se o falo não é o pênis 
é porque o falo é o valor atribuído ao pênis . Valor que funcio­
nará como uma espécie de ponto fixo a partir do qual toda sig­
nificação poderá ser calculada e que, em si mesmo não p ossui 
valor al gum, por isso é impronunciável . Mas mesmo sendo 
impronunciável ele entra na�eração de constituição do valor, 
por isso Lacan o associa à "'Í -1 ), 13 ou seja, um número comple­
xo cujo valor não pode ser calculado, mas cuja operação é ple­
namente possível . 
Assim o falo resume o paradoxo indicado anteriormente 
como próprio a toda teoria do valor, isto é, ele é capaz de in­
troduzir o sujeito no problema da diferença sexual e lidar as­
sim com a heterogeneidade que esta traz consigo, assim como 
permite ao sujeito identificar-se, sempre por comparação a um 
traço, com uma determinada posição na sexuação. Se o falo é 
o representante da falta é p orque a atribuição de valor intro­
duz o sujeito simultaneamente na esfera do desejo e do gozo: 
" . . . o falo é o significante da razão do desejo (na acepção em 
que o termo é empregado como ' média e extrema razão' da 
divisão harmônica) " . 14 
Portanto o falo é razão e, aparentemente, no sentido lati­
no em que razão (ratio) se aproxima de proporção, de regra ou 
medida de comensurabilidade. A idéia é reforçada pela apro­
ximação realizada também com o termo grego, parcialmente 
correlato, ou sej a, o logos: "O falo é o significante privilegiado 
12. Lacan, J . O seminário. Livro XIV. A lógica do fantasma, 19 de abril de 
1 967. 
13. Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. Op . cit., p. 833. 
14. Lacan, J . A significação do falo (1958) . ln: Escritos . Op. cit . , p. 672. 
Gozo E T EO R IA DO VALO R 39 
dessa marca, onde a parte do logos se conjuga ao advento do 
desejo" . 1 5 
Ao ler o falo como um operador relacional Lacan permi­
te distingui-lo de sua idéia intuitiva, ou seja, na doutrina freu­
diana o falo: 
a) não é uma fantasia (um efeito imaginário) 
b) não é um objeto (parcial, interno, bom, mau, etc . ) 
c) não é um órgão (pênis ou clitóris que ele simboliza). 16 
Enquanto unidade de proporção ele é a condição de pos-
sibilidade do desejo. Neste sentido a forma como o valor se 
institui para o neurótico é semelhante à forma como este esta­
belece proporções a partir do significante fálico mas também 
a forma como este extrai uma porção parcial de gozo em res­
tituição à perda fálica. O conceito de falo abriga assim o ele­
mento que coordena as trocas necessárias ao desejo mas 
também induz valor de gozo que surge como efeito destas tro­
cas. Essa duplicidade aparece claramente no conceito de cas­
tração: "A castração significa que é preciso que o gozo seja 
recusado (refusé), para que possa ser atingido na escala inver­
tida da lei do desejo" . 17 
Isso obriga Lacan a distinguir o falo como operador des­
ta recusa, o (- q>), o representanteda falta, o objeto imaginário 
da castração simbólica , e o falo como agente de ciframento e 
regulação do gozo que pode ser atingido, ou seja, o (<1>), obje­
to simbólico da privação real . Alguns anos mais tarde este 
dualismo ainda se preserva, com uma crescente clareza de que a 
inscrição simbólica do gozo, sua mediação fálica, depende de 
um recobrimento instável entre o valor de troca e o valor de uso . 
. . . a mulher que se funda como sujeito no ato sexual, toma de 
fato a função de v a l o r de troca, recob r i n d o o que está insti­
tuído como valor no que a psicanálise revela com o nome de 
complexo de castração. Não é que o intercâmbio de mulheres 
possa voltar a se traduzir como intercâmbio de falos, mas que 
15 . Idem, p. 699 . 
16 . Op . cit. p. 696. 
17 . Lacan, J . Subversão do sujeito e dialética do desejo. Op. cit., p . 841 . 
40 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
· o primeiro simboliza o gozo, subtraído como tal, passa ao traço 
de valor . . . 1 8 
Vemos assim que o conceito de falo prolonga e especifi­
ca, contudo não resolve, o caráter híbrido do problema repre­
sentado pela disparidade entre o valor lingüístico de troca, 
consignado pelo falo, e o valor de uso, de consumo ou de abu­
so, representado pelo gozo. 
O ponto de ruptura com a concepção estrutural de lin­
guagem, da qual Lacan herda o problema do valor de troca em 
sua apreensão fonemática, encontra-se no seminário "De um 
discurso que não seria do semblante", de 1971 . Nele é desen­
volvida a noção de letra em oposição à de significante. A letra 
representa a face real da linguagem e constitui um limite ao 
seu funcionamento segundo o princípio das trocas e contras­
tes, baseado na diferença, que caracteriza seu valor lingüísti­
co. Por isso a letra faz agrupamento, não estrutura. Ela não 
pode ser traduzida nem feita equivalente à outra. Como um 
traço da caligrafia oriental, a letra dá um suporte para o signi­
ficante mas em sua materialidade o sistema de escrita assim 
produzido não possui as mesmas regras e propriedades da lin­
guagem entendida como fala ou como língua. Lacan afirma 
que a letra é um litoral entre o gozo e o saber, 19 o resultado do 
comércio, 20 ou ainda um efeito do discurso, que apreende o 
traço como uma formação de sentido onde antes havia apenas 
uma rasura. Portanto com o conceito de letra Lacan parece ter 
expandido e generalizado o grau zero da teoria do valor, o ele­
mento que limita e funda um conjunto possível de trocas, não 
possuindo, ele mesmo, valor algum. 
A imagem de um aluvião, de um depósito ou precipita­
do deixado pelo escoamento do significante é muito utilizada 
para designar este litoral formado pela letra ou caráter. Ora, 
este resto semilingüístico, que não cessa de não se inscrever no 
18 . Lacan, J . O seminário. Livro XIV. A lógica do fantasma, 7 de junho de 
1 967. 
19. Lacan, J . O seminário. Livro XVIII. De um discurso que não seria do 
semblante, 12 de maio de 1 971 . 
20. Lacan, J . O seminário. Livro XX. Mais a inda . . . Op. cit. 
Gozo E TEORIA DO VALOR 41 
simbólico, ocupa um lugar fronteiriço entre o saber, onde vi­
gora o regime de trocas próprio ao campo do Outro, e o gozo, 
onde vigora o regime do uso. 
Tudo indica que, com a noção de letra, o problema do 
gozo não admite mais uma solução através de operadores pu­
ramente lingüísticos. Isso explica porque Lacan gradualmen­
te l imita o concei to de falo, na medida em que refina a 
concepção de gozo. O falo passa a ser pensado então como 
uma função, a função fálica, a partir da qual o gozo ganha for­
ma e pode ser inscrito. As duas noções acabam se combinado 
na idéia de "gozo fálico", ou gozo na e pela linguagem. Assim, 
toda realização de significação se vê acompanhada de um tra­
ço de gozo. O falo, que nascera como uma noção ligada ao va­
lor de troca torna-se agora representante maior do valor de 
uso. Para dar conta da lacuna criada por este movimento teó­
rico o falo será substituído, por um lado, pela própria noção 
geral de significante e posteriormente pelo significante mestre 
(Sl ) e, por outro lado, pela idéia de objeto a, causa de desejo. 
À altura do Seminário XX chega-se à tese de que o objeto 
a, e não o falo, funciona como causa do desejo. Inversamente 
o significante, e não o objeto, é a causa do gozo. Mas causa in­
direta, se assim podemos dizer, na medida em que o que conta 
nesta causalidade é que o significante não pode apreender 
como significante, mas apenas como letra. Mesmo com esta 
manobra de inversão o problema permanece, ou seja, o falo e 
suas noções derivadas jamais recobrem perfeitamente o cam­
po delimitado pelo objeto a . Isso aparecerá claramente em um 
dos últimos seminários: 
O que podemos querer dizer quando utilizamos a ex­
pressão tão bem conhecida "estar castrado"? Poremos aí três 
significações: no princípio de que o ser falante não se confronta 
mais que com dois meios: o significante - sintoma ou não - e 
o fantasma, meios artesanais, incapazes de resolver o i mpasse 
do gozo, entendido como inexistência da relação sexual.2 1 
21 . Lacan, J. O seminário. Livro XXIV. A topologia e o teinpo, sessão de 
15 de maio de 1979. 
42 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
Deste breve percurso é importante reter a idéia de que o 
gozo, na sua apreensão lingüística, está sujeito a um parado­
xo. Este paradoxo é próprio e dependente da teoria do valor 
na qual ele é pensado. Entre a perda e a restituição de gozo, 
que se desenvolve por intermédio da repetição, as duas frações 
não são idênticas e nem proporcionais. Há uma assimetria ou 
disparidade entre o valor de troca (significante) e o valor de_ 
uso (efeito ou precipitado do significante). O problema maior 
da apreensão lingüística do gozo é que ele nos conduz a um 
entendimento meramente formal da produção do valor, esta­
belecendo assim um princípio sobre seu funcionamento qua­
litativo, mas não quantitativo. 
O g ozo n a mat r i z é t ico-j u ríd i ca 
O gozo é um mal porque comporta o mal do próximo. 
Lacan 
O paradoxo formal a que fomos conduzidos por nossa 
incursão sobre as relações entre o gozo e a linguagem encon­
tra correlatos em questões éticas. Apresentarei apenas alguns 
marcos que permitem situar a questão do gozo nesta perspec­
tiva de modo a mostrar como, em cada caso, o lugar conferi­
do ao gozo inspira, em Lacan, uma crítica a certas posições 
éticas consolidadas a partir da modernidade. O núcleo crítico 
da noção de gozo reside, como pretendo apontar, na decom­
posição que ele permite dos valores intrínsecos que orienta­
riam as ações éticas. 
Diversas noções freudianas podem nos fazer pensar no 
gozo como uma espécie de experiência individual de fruição, 
da qual o auto-erotismo seria um modelo e a tendência à des­
carga, própria ao princípio do prazer, seria o correlato. No en­
tanto, desde textos seminais como O estádio do espelho e Complexos 
fam iliares, Lacan insiste na idéia de que o gozo é algo que se 
imagina e se· antecipa como realizado no Outro. Por exemplo, 
mais além da satisfação obtida com uma experiência sexual 
restará sempre a pergunta acerca de como tal experiência con­
tou para o outro. Essa satisfação que procura incluir ou excluir 
a satisfação do outro situa a noção de gozo como um ultrapas­
samento, um acréscimo, na realização da pulsão. 
O que deste Outro retorna ao sujeito sempre portará a 
marca da parcialidade, da falta ou mesmo da insatisfação. 
Lembremos de que o termo satisfação, etimologicamente, refe­
re-se àquilo que é o bastante, aquilo que basta, introduzindo 
assim a noção de limite como coextensiva à de satisfação. O 
limite, por sua vez, pode ser representado pela idéia de lei, 
mas também pela idéia de um certo patamar de prazer, ou de 
desprazer, suportável pelo sujeito. 
O primeiro quadro de rderência para a questão do gozo, 
na matriz ética, é certamente o universo grego da tragédia e do 
nascimento da filosofia. Neste universo Lacan valorizará ini­
cialmente a figura do herói trágico que é posto em uma situa­
çãoem que um limite (A té) é ultrapassado. Situação onde a 
própria condição de mortal é, voluntária ou involuntariamen­
te, atravessada e o herói encontra-se com as conseqüências de 
seu ato. Ato transgressivo chamado pelos gregos de hybris . É 
nesta região solitária, entre duas mortes, vivida por Antígona 
fora dos muros da cidade, mas também por Édipo em sua jor­
nada pelo deserto, ou por Filolectes abandonado em uma ilha, 
que a tragédia fornecerá uma representação aguda do parado­
xo representado pelo gozo. 
No caso de Antígona, examinado em detalhes por Lacan, 
a questão poderia ser assim resumida. Ao enterrar seu irmão 
Polinice contrariando as ordens explícitas de Creonte, repre­
sentante da lei na cidade, Antígona condena-se à morte. Seu 
ato resume uma escolha absoluta uma vez que contraria as 
conveniências, os interesses e os motivos amplamente repre­
sentados pelos discursos que tentam dissuadi-la. Antígona 
funda sua ação no desejo, não no interesse ou no que Lacan 
chama de serviço dos bens, isto é, o regime das trocas de ob­
jetos. No entanto é exatamente este regime que permite a An­
tígona reconhecer seu desejo, por intermédio da negativização 
dialética dos interesses . "O que faz com que possa haver dese-
44 CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 
jo humano, que este campo exista, é a suposição de que tudo 
o que ocorre de real é contabilizado em algum lugar".22 
Está subentendida nesta passagem uma das principais 
inovações de Lacan em sua leitura da teoria freudiana das pul­
sões, ou seja, que o princípio do prazer identifica ao sujeito 
aquilo que constituirá seu bem, no sentido moral da expressão. 
A continuidade gradual que existe na esfera das quantidades, 
lida no quadro de uma teoria da energia por Freud, é interpre­
tada por Lacan como correlata da continuidade que se verifi­
ca na apreensão dos valores morais. Por exemplo, ao comentar 
o "Projeto de psicologia científica para neurólogos", Lacan cri­
tica a compreensão deste texto no quadro do fisicalismo asso­
ciacionista do final do século XIX: 
O que justifica colocar em primeiro plano a quantidade 
como tal é outra coisa bem distinta [ . . . ] vocês perceberão que, 
sob essa forma fria, abstrata, escolástica, complicada, árida, 
percebe-se uma experiência, e que esta experiência é, no fun­
do, de ordem moral .23 
Ou ainda, de forma mais genérica: 
. . . acredito que a oposição entre princípio do prazer e princípio 
de realidade, a do processo primário e do processo secundário 
sejam menos da ordem da psicologia do que da ordem da ex­
periência propriamente ética. 24 
Se o que se articula do desejo ao princípio do prazer pode 
ser considerado um bem o que está além do princípio do pra­
zer-realidade, o que ultrapassa o limite do prazer, ou seja, o 
gozo, passa a condição de mal. Isso colocaria a ética na psica­
nálise ·como uma variante das éticas utilitaristas, onde se tra­
ta de alcançar o maior grau de prazer, no menor tempo, com 
o menor dispêndio de esforço possível. Trata-se apenas de con­
tabilidade e de pôr em prática esta contabilidade com um certo 
ajuste aos imperativos morais, uma vez que se possa apaziguá-
22. Lacan, J. O seminário. Livro VII. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jor­
ge Zahar, 1988, p. 3.80. 
23. Idem, p . 4 1 . 
24. Idem, p . 49. 
Gozo E TEORIA DO VALO R 45 
los. Essa foi a tônica das discussões sobre a técnica psicanalí­
tica na década de 1940. Strachey, por exemplo, em um artigo 
clássico e muito influente,25 defendia como meta fundamental 
da análise a instituição de um superego mais benevolente. 
O caminho tomado por Lacan será oposto ao do utilita­
rismo. Em primeiro lugar porque o bem, produzido e busca­
do na esfera do princípio do prazer, é um bem sobre o qual se 
pode dispor, um objeto de ordem jurídica, uma coisa (Sache) 
sobre a qual se poderá incluir a fantasia. Ora, esta forma de 
bem não é o que é visado pelo movim�nto de reencontro 
( Wiederzufinden ) próprio da pulsão . Este se dirige à coisa 
(Ding), como alteridade absoluta e negatividade fundamental. 
Daí a importância exemplar do gesto de Antígona ao encontrar 
o desejo para além da realização da pulsão. Daí a radicalida­
de freudiana ao afirmar que não há Bem Supremo, e o objeto 
(Ding) do encontro originário é perdido. 
Em segundo lugar Lacan investirá contra a possibilidade 
de um superego benevolente, ou regulador como o chama 
Braunstein,26 uma vez que seu fundamento reside no caráter 
insens�to da lei como um imperativo. Kant e Sade fazem assim 
um círculo "vicioso" em torno da universalidade do impera­
tivo que representa a lei . " . . . ao tu deves de Kant, se substitui 
facilmente o fantasma sadeano do gozo erigido em imperati­
vo, puro fantasma seguramente, e quase irrisório, mas de 
modo algum exclui a possibilidade de sua ereção em uma lei 
universal" . 27 
Encontramos aqui novamente a forma paradoxal assumi­
da pela teoria dos valores em Lacan. Aquilo que se apresenta 
como a máxima positividade revela-se falta, ausência, priva­
ção. Inversamente o gozo como maldade será produzido pelo 
forçamento na realização do prazer, como excesso, transborda­
mento ou ultrapassagem do limite. Em síntese, a procura da 
realização do bem, de sua consecução no Outro, engendra a 
25. Strachey, J. The nature of therapeutic action of psycho-analysis. lnter-
11atio11a/ foumal of Pshyc/10-Analysis, London, v. 15, p. 127-59. 
26. Braunstein, N. Coce. México: Siglo XXI, 1 995, p. 237. 
27. Lacan, J . O seminário. Livro VII. A ética da psicanálise. Op. cit., p. 378. 
46 CHRISTIAN INGO LENZ ÜUNKER 
própria realização do mal. O que não significa que o contrário 
seja igualmente verdadeiro. 
Neste ponto os interlocutores de Lacan migram da anti­
guidade grega para os pensadores do século XVIII, mais pre­
cisamente para a ideologia utilitarista originada na filosofia do 
direito e na teoria das penas legais, desenvolvida por Jeremy 
Bentham e na tradição dos moralistas franceses, principalmen­
te La Rochefouca ul t. 
Jeremy Bentham, o idealizador do panopticum é também 
conhecido pela sua. apresentação do indivíduo como um ser 
movido pela procura do prazer e pelo cálculo que este envol­
ve em relação aos sacrifícios decorrentes . É curioso que sua 
teoria tenha se desenvolvido à luz do problema da restituição 
do gozo no caso da transgressão. Bentham coloca, muito obje­
tivamente, o problema relativo ao criminoso: como este pode 
reparar o mal feito à sociedade. Sua tese é de que seria possí­
vel o cálculo exato desta "medida da falta", desde que se pu­
desse contar com uma tota l idade fechada onde nenhum 
desperdício, nenhum prazer ou sacrifício pudessem ser excluí­
dos da contabilidade. Crime e castigo formariam assim uma 
equação de soma zero, tal qual a lei de Talião, que Freud afir­
ma vigorar no inconsciente.28 
Surge assim a prisão modelo, onde tudo no seu interior 
pode e deve ser aproveitado segundo uma finalidade especí­
fica regida pela utilidade absoluta. O destino do lixo, o tempo 
dos guardas, a arquitetura, o sistema de alimentação e traba­
lho, enfim, absolutamente tudo, no interior desta prisão, deve­
ria ser planejado e administrado de forma a que não houvesse 
espaço para o inútil, o disfuncional, o dispensável. Um regime 
sem lugar para o excesso, eis o maior castigo e a forma primá­
ria de reparação para o mal . A lição pedagógica é simples : 
28. Segundo algumas correntes da hermenêutica bíblica, a lei de Talião se­
ria um verdadeiro avanço jurídico para a época, pois ela estipularia 
que para 1 1 m olho só deve-se pleitear 11m,olho em contrapartida, e não 
mais do que isso. Neste sentido a lei de Talião é fundamentalmente 
um dispositivo para restringir o abuso na esfera da restituição. 
Gozo E TEORIA DO VALOR 47 
aprender que a inutilidade é um mal, e o crime é antes de tudo 
algo inútil. 
Como mostrou Monzani29 a construção histórica deste ali­
nhamento é tributária de um extenso debate que cercou a im­
plantação do princípio da utilidade na era moderna. Com a 
gradual

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