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Guilherme de Souza Nucci Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor concursado da PUC-SP, atuando nos cursos de Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. ■ ■ ■ ■ ■ A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição (impressão e apresentação a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseá-lo e lê-lo). Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoa ou bens, decorrentes do uso da presente obra. Todos os direitos reservados. Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais, é proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, fotocópia e gravação, sem permissão por escrito do autor e do editor. Impresso no Brasil – Printed in Brazil Direitos exclusivos para o Brasil na língua portuguesa Copyright © out./2014 by EDITORA FORENSE LTDA. Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 – Térreo e 6º andar – 20040-040 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3543-0770 – Fax: (21) 3543-0896 forense@grupogen.com.br | www.grupogen.com.br O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível (art. 102 da Lei n. 9.610, de 19.02.1998). Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98). Capa: Danilo Oliveira Produção Digital: Geethik CIP – Brasil. Catalogação na fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. N876e Nucci, Guilherme de Souza Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes / Guilherme de Souza Nucci. – Rio de Janeiro : Forense, out./2014. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-309-5900-5 1. Menores – Estatuto legal, leis, etc. – Brasil. I. Título. 14-14888 CDU: 347.157.1(81)(094.46) mailto:forense@grupogen.com.br mailto:www.grupogen.com.br INTRODUÇÃO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 LIVRO I – PARTE GERAL TÍTULO I – DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES Arts. 1º a 6º TÍTULO II – DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Arts. 7º a 69 Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde (arts. 7º a 14) Capítulo II – Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade (arts. 15 a 18-B) Capítulo III – Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária (arts. 19 a 52-D) Seção I – Disposições Gerais (arts. 19 a 24) Seção II – Da Família Natural (arts. 25 a 27) Seção III – Da Família Substituta (arts. 28 a 52-D) Subseção I – Disposições Gerais (arts. 28 a 32) Subseção II – Da Guarda (arts. 33 a 35) Subseção III – Da Tutela (arts. 36 a 38) Subseção IV – Da Adoção (arts. 39 a 52-D) Capítulo IV – Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer (arts. 53 a 59) Capítulo V – Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho (arts. 60 a 69) TÍTULO III – DA PREVENÇÃO Arts. 70 a 85 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 70 a 73) Capítulo II – Da Prevenção Especial (arts. 74 a 85) Seção I – Da Informação, Cultura, Lazer, Esportes, Diversões e Espetáculos (arts. 74 a 80) Seção II – Dos Produtos e Serviços (arts. 81 e 82) Seção III – Da Autorização para Viajar (arts. 83 a 85) LIVRO II – PARTE ESPECIAL TÍTULO I – DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO Arts. 86 a 97 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 86 a 89) Capítulo II – Das Entidades de Atendimento (arts. 90 a 97) Seção I – Disposições Gerais (arts. 90 a 94) Seção II – Da Fiscalização das Entidades (arts. 95 a 97) TÍTULO II – DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO Arts. 98 a 102 Capítulo I – Disposições Gerais (art. 98) Capítulo II – Das Medidas Específicas de Proteção (arts. 99 a 102) TÍTULO III – DA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL Arts. 103 a 128 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 103 a 105) Capítulo II – Os Direitos Individuais (arts. 106 a 109) Capítulo III – Das Garantias Processuais (arts. 110 e 111) Capítulo IV – Das Medidas Socioeducativas (arts. 112 a 125) Seção I – Disposições Gerais (arts. 112 a 114) Seção II – Da Advertência (art. 115) Seção III – Da Obrigação de Reparar o Dano (art. 116) Seção IV – Da Prestação de Serviços à Comunidade (art. 117) Seção V – Da Liberdade Assistida (arts. 118 e 119) Seção VI – Do Regime de Semiliberdade (art. 120) Seção VII – Da Internação (arts. 121 a 125) Capítulo V – Da Remissão (arts. 126 a 128) TÍTULO IV – DAS MEDIDAS PERTINENTES AOS PAIS OU RESPONSÁVEL Arts. 129 e 130 TÍTULO V – DO CONSELHO TUTELAR Arts. 131 a 140 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 131 a 135) Capítulo II – Das Atribuições do Conselho (arts. 136 a 137) Capítulo III – Da Competência (art. 138) Capítulo IV – Da Escolha dos Conselheiros (art. 139) Capítulo V – Dos Impedimentos (art. 140) TÍTULO VI – DO ACESSO À JUSTIÇA Arts. 141 a 224 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 141 a 144) Capítulo II – Da Justiça da Infância e da Juventude (arts. 145 a 151) Seção I – Disposições Gerais (art. 145) Seção II – Do Juiz (arts. 146 a 149) Seção III – Dos Serviços Auxiliares (arts. 150 e 151) Capítulo III – Dos Procedimentos (arts. 152 a 199-E) Seção I – Disposições Gerais (arts. 152 a 154) Seção II – Da Perda e da Suspensão do Poder Familiar (arts. 155 a 163) Seção III – Da Destituição da Tutela (art. 164) Seção IV – Da Colocação em Família Substituta (arts. 165 a 170) Seção V – Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente (arts. 171 a 190) Seção VI – Da Apuração de Irregularidades em Entidade de Atendimento (arts. 191 a 193) Seção VII – Da Apuração de Infração Administrativa às Normas de Proteção à Criança e ao Adolescente (arts. 194 a 197) Seção VIII – Da Habilitação de Pretendentes à Adoção (arts. 197-A a 197-E) Capítulo IV – Dos Recursos (arts. 168 a 199-E) Capítulo V – Do Ministério Público (arts. 200 a 205) Capítulo VI – Do Advogado (arts. 206 e 207) Capítulo VII – Da Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos (arts. 208 a 224) TÍTULO VII – DOS CRIMES E DAS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS Arts. 225 a 258-B Capítulo I – Dos Crimes (arts. 225 a 244) Seção I – Disposições Gerais (arts. 225 a 227) Seção II – Dos Crimes em Espécie (arts. 228 a 244-B) Capítulo II – Das Infrações Administrativas (arts. 245 a 258-B) DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS Arts. 259 a 267 SINASE E EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS – Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012 TÍTULO I – DO SISTEMA NACIONAL DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO (SINASE) Arts. 1º a 34 Capítulo I – Disposições Gerais (arts. 1º e 2º) Capítulo II – Das Competências (arts. 3º a 6º) Capítulo III – Dos Planos de Atendimento Socioeducativo (arts. 7º e 8º) Capítulo IV – Dos Programas de Atendimento (arts. 9º a 17) Seção I – Disposições Gerais (arts. 9º a 12) Seção II – Dos Programas de Meio Aberto (arts. 13 e 14) Seção III – Dos Programas de Privação da Liberdade (arts. 15 a 17) Capítulo V – Da Avaliação e Acompanhamento da Gestão do Atendimento Socioeducativo (arts. 18 a 27) Capítulo VI – Da Responsabilização dos Gestores, Operadores e Entidades de Atendimento (arts. 28 a 29) Capítulo VII – Do Financiamento e das Prioridades (arts. 30 a 34) TÍTULO II – DA EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS Arts. 35 a 80 Capítulo I – Disposições Gerais (art. 35) Capítulo II – Dos Procedimentos (arts. 36 a 48) Capítulo III – Dos Direitos Individuais (arts. 49 a 51) Capítulo IV – Do Plano Individual de Atendimento (PIA) (arts. 52 a 59) Capítulo V – Da Atenção Integralà Saúde de Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa (arts. 60 a 66) Seção I – Disposições Gerais (arts. 60 a 63) Seção II – Do Atendimento a Adolescente com Transtorno Mental e com Dependência de Álcool e de Substância Psicoativa (arts. 64 a 66) Capítulo VI – Das Visitas a Adolescente em Cumprimento de Medida de Internação (arts. 67 a 70) Capítulo VII – Dos Regimes Disciplinares (arts. 71 a 75) Capítulo VIII – Da Capacitação para o Trabalho (arts. 76 a 80) TÍTULO III – DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS Arts. 81 a 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APÊNDICE – Entrevistas realizadas com Juízes de Direito das Varas da Infância e Juventude da Capital do Estado de São Paulo ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO OBRAS DO AUTOR Crianças e adolescentes, no mundo inteiro, precisam de muito amor, acima de tudo. Se algo, desta obra, resta firme em minha mente, distante de qualquer controvérsia ou polêmica, é essa simples necessidade, tão difícil de ser materializada por atos dos adultos. Este é o meu primeiro trabalho publicado, em formato de livro, que foge das áreas de Penal e Processo Penal, motivo pelo qual assumo integral responsabilidade pelos novos estudos aos quais me dediquei no último ano; espero ter formado bagagem suficiente para expor o meu entendimento em área tão importante dentre todas as do Direito, que é a Infância e Juventude. Tenho para mim, hoje, com nitidez incontestável, tratar-se de matéria destacada das demais, com princípios próprios, normas específicas e operadores especializados. Não se confunde com o Direito Civil, embora dele aufira importantes substratos; não se mescla com o Direito Penal, de onde, também, capta relevantes bases; não depende integralmente de Processo Civil ou Penal, mas constrói procedimentos próprios; não se calca em Direito Administrativo, porém dele se serve para completar conceitos; finalmente, irmana-se com o Direito Constitucional, pois retira da Constituição Federal seus mais notórios princípios. É o Direito da Infância e da Juventude. Por que escrever sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente? – indaguei-me há pouco mais de um ano. – Por que não? – seguiu-me tal questão. Em primeiro lugar, no referido Estatuto, há vários crimes, cujo objeto jurídico tutelado é a boa formação físico-moral de crianças e adolescentes, em relação aos quais tive a oportunidade de tecer comentários, incluídos em minha obra Leis Penais e Processuais Penais comentadas. Em segundo, há as infrações administrativas, também com vistas a proteger o desenvolvimento positivo da personalidade infantojuvenil, cuja base se concentra no princípio da legalidade, similar ao Direito Penal. Em terceiro, emergem os atos infracionais, equiparados, por lei, aos crimes e contravenções penais, necessitando, pois, de uma análise científica de seu conceito e sua aplicação, o que se vincula, igualmente, ao Direito Penal. Em quarto, várias das garantias concedidas, expressamente, aos adolescentes advêm de normas-irmãs do Processo Penal, no tocante às quais já me debrucei noutras obras. Essas quatro primeiras razões seriam suficientes para que comentasse mais da metade do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas outras questões vieram-me à mente, despertando-me basicamente um dever de estudar, conhecer a fundo, refletir e tecer críticas e sugestões ao cerne dessa Lei tão relevante para a sociedade brasileira. Sou pai, biológico e adotivo, além de ter sido voluntário, durante trinta anos, em unidades de acolhimento institucional de crianças e adolescentes em situação de risco. Ademais, vivi a experiência, no início da carreira, de ter atuado como juiz de menores, ainda sob a vigência do antigo Código de Menores. Porém, em lugar de me afastar dessa área infantojuvenil, permaneci a ela conectado por motivos pessoais. Debrucei-me, então, nas leituras dos especialistas em Direito da Infância e Juventude, além de esmiuçar os pensamentos dos profissionais igualmente dedicados aos infantes e aos jovens, como psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e tantos outros. Busquei a pesquisa de campo, conversando e entrevistando vários juízes da Infância e Juventude. Estive em contato com membros do Ministério Público e integrantes de equipes técnicas de inúmeras Varas da Infância e Juventude. Ouvi bastante. Conheci muito. Emocionei-me, conhecendo casos reais de crianças e adolescentes, cujo destino ainda é incerto e tal situação lhes é bem clara no âmago, despertando uma tristeza imensa. Creio que aprendi bastante e também apreendi sentimentos. A partir daí, ingressa a minha experiência como magistrado, hoje atuando em segundo grau, como professor e também como jurista, sempre em busca de mais conhecimento. Sei da importância dos princípios regentes de todas as áreas do Direito, em particular o da dignidade da pessoa humana, que jamais poderia ser olvidado na sensível área infantojuvenil. Mas esta matéria goza de princípios próprios, dentre os quais um deles é evidentemente o sol no horizonte dos demais: o princípio da proteção integral, que se associa ao princípio da absoluta prioridade (ou do superior interesse) da criança e do adolescente. Cabe aos operadores do Direito respeitar, com fidelidade, os princípios norteadores da Infância e da Juventude, o que ainda não ocorre. Eis o primeiro motivo para preocupação. Outro ponto distinto, no estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente, não muito diverso de outras Leis, é o descaso do Poder Público para implementar as normas que ele mesmo – por intermédio do Legislativo – criou. Surgem inúmeros confrontos entre lei e realidade, entre Executivo e Judiciário, enfim, entre o certo e o errado, que necessitam solução adequada em nome do superior interesse da criança e do adolescente. É disso que muitos se esquecem: o Legislativo, ao editar mais leis, sem nem atentar para o descumprimento das anteriores; o Executivo, ao destinar verbas pífias para a área infantojuvenil; o Judiciário, ao permitir que Varas da Infância e Juventude sejam meros anexos de outras, sem juízes especializados, além de desaparelhadas, inclusive e especialmente, de equipe técnica de apoio. A Constituição Federal indica, com perfeita clareza, constituir dever da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a proteção integral (art. 227). Portanto, somos todos responsáveis pelo insucesso, ainda predominante, no setor infantojuvenil; não somente no fórum, mas na vida em geral. O que fazemos pelas crianças e adolescentes do nosso país? Eis uma indagação que cada um deve responder a si mesmo. Da minha parte, envolvo-me na publicação deste trabalho, construído com muita dedicação, após vários momentos de intensa reflexão. A família é a base da sociedade e goza de especial proteção do Estado (art. 226, CF). Entretanto, várias famílias se encontram, hoje, desestruturadas, sem conseguir proporcionar às suas crianças ou adolescentes o saudável ambiente que se espera para um desenvolvimento promissor em todos os prismas. Uma parte desse problema encontra-se em mãos do Executivo – Federal, Estadual e Municipal – que promete, em leis, programas de auxílio efetivo aos núcleos familiares, mas não lhes fornece o suficiente (ou absolutamente nada lhes proporciona). Pais e mães pobres, que mal conseguem cuidar de si mesmos, não precisam de um dinheirinho no final do mês, dado pelo Estado, sem nenhum outro recurso. Na vida real, eles necessitam ser considerados cidadãos, com acesso a muito mais que uma mesada; precisam de emprego, educação de qualidade, tratamentos de saúde, moradia digna, transporte público facilitado, dentre outros fatores. Somente assim, os que tiverem verdadeiro desejo de criar seus filhos, poderão fazê-lo. Sob outro aspecto, não se pode desconhecer que o sistema legislativo brasileiro permite, com plena liberdade, o planejamento familiar, fundado na dignidade humana e na paternidade responsável, devendo o Estado propiciar recursos para o exercício desse direito (art. 226, § 7.º, CF). Nem sempre ter um filho é um ato de responsabilidade. Nemsempre os pais que o geraram efetivamente o querem como tal. Rejeições existem em todas as esferas, mormente quando estão presentes os sentimentos humanos, em grande parte indecifráveis. O Estado, em função do superior interesse da criança, precisa zelar pelo seu futuro, mesmo que, para isso, deva inseri-la em família substituta. Certa vez, li uma colocação muito apropriada, no sentido de que o superior interesse e a absoluta prioridade são princípios em favor das crianças e dos adolescentes, mas, na prática, quem fala por eles são os adultos. São estes os intérpretes do que os infantes e os jovens querem para suas vidas, o que ambicionam, quais são seus sonhos e desejos, tomando as medidas concretas para garantir o bem-estar de todos. Indaga-se: será que os adultos são bons intérpretes dos sonhos infantojuvenis? Tenho minhas dúvidas, em vários pontos, no tocante a certas normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e, justamente por isso, expresso minhas críticas e faço também sugestões. Talvez, tornar – ainda mais – polêmicos determinados assuntos, permitindo o debate no universo adulto, somente traga bons frutos àqueles que não podem falar por si mesmos. A família natural tem sido privilegiada pelo ECA e suas posteriores modificações legislativas. A adoção e a tutela ficam em segundo plano. A edição da Lei 12.010/2009, indevidamente chamada por muitos de Lei da Adoção, é o espelho nítido desse quadro. Dificulta-se a adoção, tanto a nacional como – e especialmente – a internacional. Deveria denominar-se Lei da Família Natural. Independentemente da opção política tomada, pergunta-se: está o Estado garantindo o superior interesse “da” criança e do adolescente dessa forma? Será que a criança realmente prefere viver num ambiente conturbado, com brigas constantes, miséria absoluta, sem acesso à escola, desde que esteja com seus pais naturais? Aliás, na maioria absoluta dos casos, com sua mãe natural, pois o pai já a abandonou há muito tempo. Pode ingressar nesse cenário o padrasto, que já não é o genitor biológico. Ou optaria, se pudesse, por viver num lar de afeto e tranquilidade, com acesso à escola, presente e futuro, recebendo apoio e amor, mesmo que sejam de pais adotivos? Sem dúvida, são respostas difíceis. Nem me atrevo a respondê-las, pois incidiria no mesmo erro de interpretar a vontade de crianças e adolescentes. Mas posso ousar apontar alguns erros e propor sugestões para corrigi-los. A família biológica é o primeiro e principal núcleo de amor e afeto de qualquer ser humano. Creio nisso. Mas não é o único, pois afetividade se constrói, amor se conquista, carinho se obtém de variadas fontes. Aliás, não fosse assim, novas famílias não se formariam. Ao chegarem à idade adulta, filhos saem de casa, embora possam amar seus pais biológicos, para amar, ainda mais, um “estranho”, que não possui consigo nenhum laço de sangue. Com esse “estranho” forma um novo núcleo familiar. É o amor construído – e não imposto por vínculo natural. Outro relevante ponto a ser analisado é o fracasso das relações familiares de sangue em vários núcleos mundo afora. Irmãos que se odeiam; pais que se separam de filhos; filhos que rejeitam pai ou mãe; filho que mata o pai; filha que mata os pais; pai que estupra a filha etc. O número de desatinos encontrados em famílias naturais é impressionante e encontra-se estampado em Varas de Família, Varas da Infância e Juventude e, infelizmente, em Varas Criminais. A realidade prova ser a família a base mais importante para o ser humano desenvolver-se em nível ideal, mas é preciso acrescer que deve ser igualmente a família ideal. Não é qualquer núcleo familiar, biológico ou não, que consegue proporcionar aos filhos o ambiente adequado para a sua boa formação moral, intelectual e física. Quero com isso evidenciar ser perfeitamente viável o fracasso da família natural, como também há os desastrosos deslindes de famílias adotivas. Se ninguém é dono da verdade, também se pode afirmar que ninguém é dono do futuro. Eis que surge o Estado para contemporizar, ao máximo, as incertezas da vida, agindo em nome do superior interesse infantojuvenil. Deve o Poder Público preocupar-se em agraciar uma criança ou adolescente com um lar e não insistir em manter o filho na família onde é rejeitado. Eis outro fato, que, segundo creio, ninguém contesta: viver institucionalizado, longe de qualquer família, é uma experiência negativa e dolorosa para a criança ou adolescente. Muito li e muito ouvi: um dia de abrigo para a criança ou adolescência soa como uma eternidade. Pelo menos, diante dessa incontroversa realidade, é fundamental que o Judiciário esteja atento, não permitindo a vida de crianças em abrigos, tornando-se adolescentes e depois sendo colocadas para fora, ao completarem 18 anos, sem destino, sem amparo, sem ninguém. Para quem não sabe, infelizmente, é exatamente assim que acontece em muitos casos concretos. O infante ingressa no abrigo em tenra idade, por variados motivos (abuso sexual; abandono; agressão etc.); em nome da família natural, passam-se meses tentando uma reaproximação, que, na essência, vários profissionais já sabem ser inútil (mas é o objetivo do ECA – respondem, se e quando indagados a respeito); os meses transformam-se em anos. Faço um destaque: enquanto isso, essa (ainda) criança está indisponível para adoção. Há casos teratológicos em que se busca a reaproximação com a família biológica até o menor atingir os seus 18 anos; passou a vida inteira no abrigo, sem carinho ou afeto suficiente, sem individualidade, à custa da preservação dos laços de sangue. Para mim, cuida-se de crueldade (isto sim deveria constar de lei como tal). Quando completa a maioridade, abre-se a porta e ele é constrangido a sair. Como não houve recuperação alguma com a família biológica, ele se perde pela vida afora, morando com estranhos e começando a conhecer o mundo, da forma mais árida possível. Muitos voltam à instituição, onde passaram toda a infância e adolescência, buscando ajuda e não podem obter. O abrigo é para crianças ou adolescentes, e não para adultos. É o paradoxo de um sistema enfermo, que precisa do remédio da reformulação de seus objetivos. São situações que eu vi e acompanhei – não li num manual ou artigo de outrem, nem ouvi dizer. Aliás, valendo-me das três décadas de voluntariado numa entidade de acolhimento, dentre vários exemplos que cito ao longo desta obra, atrevo-me a narrar mais um: algum tempo depois da edição do ECA, três irmãos, abrigados na instituição há algum tempo, foram entregues, de volta, para a mãe biológica. Haviam ingressado – todos eles, recém-nascidos praticamente – um após o outro, com mínima diferença de idade. A mãe paria e internava. Quando saíram, perguntei ao dirigente da unidade o que havia acontecido. Disse-me que o juiz da infância e juventude convocou a mãe ao fórum e a colocou contra a parede: ou ficava com os filhos ou eles seriam postos para adoção. Ela, então, os levou. Simples assim. Semanas depois, encontro-me em meu veículo, parado num cruzamento, aguardando a abertura do sinal, quando um garoto bate no vidro, pedindo esmola. Reconhecemo-nos. Ele (o mais velho), que me chamava de tio, quando estava no abrigo, renovou o cumprimento: “oi, tio, que saudade; o senhor não quer me dar uma ajuda? Senão não posso voltar para casa, pois minha mãe briga”. Perguntei, rapidamente, sobre os três. Disse-me que viviam nas ruas a esmolar. Nunca mais me esqueci dessa cena e jamais poderia entender o sistema judiciário que lançou esses três meninos nas ruas. Seriam facilmente adotados, mas se optou pelo caminho mais simples ou conveniente. Chamou-se a mãe (eles não tinham pai registrado) e, seguindo a linha estatutária, entregou-se os garotos (um deles, praticamente bebê) de volta à “família natural”. Depois disso, ninguém foi checar o estado dessa família; nenhum relatório social foi apresentado ao juiz; o Poder Público não se ocupou mais daquela família. Lembre-se: eles foram entregues, um a um, pela mãe diretamente na instituição, com o beneplácitodo Judiciário, que, anos depois, devolveu-os à mesma genitora que os havia abandonado. Quem puder explicar esse caso de maneira a extrair algo positivo que o faça. Eu sinceramente não consigo. Retornando ao ponto iniciado em parágrafo anterior, quando o infante ingressa no abrigo, em tenra idade, pode ser colocado para adoção em alguns meses (jamais depois de anos) e possui grandes chances de viver em família substituta, muito querido e amado, como toda criança merece ser. Não há garantia de sucesso para a adoção, mas, comparativamente, famílias que adotam tratam melhor os seus filhos, enquanto muitas famílias biológicas abusam do poder familiar. A explicação é simples: quem adota buscou o filho; quem gera um filho nem sempre o quis. Quem adota vai atrás do sonho da paternidade/maternidade, por razões variadas. Quem gera o filho pode simplesmente buscar o sexo e ter por resultado uma concepção indesejada. O número de abortos clandestinos é outro fator a comprovar essa rejeição. Privilegiar o convívio familiar natural é o ponto de partida, mas não pode ser necessariamente o ponto de chegada. Por isso, o meio-termo precisa ser colocado em prática, justamente pelo superior interesse infantojuvenil. E esse meio-termo está nas mãos dos operadores do Direito, auxiliados pelas equipes técnicas das Varas da Infância e Juventude. Quanto tempo é preciso para se ter certeza de que uma mãe abandonou seu filho e não o quer? Para responder a essa indagação, deve-se lembrar que o calendário infantojuvenil corre muito mais rápido do que o calendário do mundo adulto e das Varas da Infância e Juventude. O tempo da criança é extremamente dinâmico, pois cada dia ela evolui e altera seu estado físico e mental. O tempo dos operadores do Direito – aquele mundo dos prazos processuais – é infinitamente mais lento. Esse contraste tem sido fatal para o sucesso da primazia do princípio da absoluta prioridade. Não sou 100% a favor da adoção, atropelando famílias de sangue. Não sou, também, 100% a favor da família biológica, como se fosse a única chance de o ser humano ser feliz. Entendo-me, hoje, como defensor do interesse da criança e do adolescente, onde quer que ele se sinta bem, esteja bem e possa viver bem. Outro aspecto encontrado nos escritos infantojuvenis concentra-se na terminologia. Muitos pretendem alterar a realidade pela simples adoção de novos termos. A novidade não é prática, mas puramente teórica. Explico. Há os que manifestam verdadeira repulsa pela expressão menor de 18 anos (e, pior, por quem a utiliza). Ninguém que se pretenda moderno, no sentido de atualizado, pode chamar uma criança ou adolescente de menor (decretam alguns). Ora, mas cronologicamente se trata de um menor de 18 anos. Para fins legais, o menor tem um certo e devido tratamento; o maior, outro. Emergem, então, argumentos com os quais não posso concordar: o filho do pobre é menor; o filho do rico é adolescente ou teen. Ao contrário, quem muitas vezes se apresenta para a polícia, no momento de um flagrante, como sendo de menor – para evitar a prisão –, é o próprio adolescente. Pode haver, sim, um estigma em torno do termo menor, mas não foi criado intencionalmente por cientistas do Direito, nem por operadores. Meus filhos, por ora, são menores de 18 anos e não vejo nada de errado em mencionar isso. Pode parecer estranho uma referência a tal ponto na apresentação da obra, porém é preciso cessar a polícia e a censura dos termos – e a política das expressões. Não bastasse, agora surge a expressão adolescente em conflito com a lei, demandando a eliminação do adolescente infrator. É isso que muda a realidade das unidades de internação? Essa alteração modifica alguma coisa na vida real do jovem? Absolutamente nada. O próprio Legislativo patrocina essa alteração, como na Lei 12.594/2012. Ora, quem pratica ato infracional é um infrator. Quem comete um crime, criminoso. Trocou-se, ainda, o termo abrigo por acolhimento institucional. Há quem sustente a existência de um direito penal juvenil, expressão com a qual não concordo, mas é mera terminologia. Decididamente, não são os termos ou expressões que maculam o sistema infantojuvenil no Brasil; é o manifesto descaso do Poder Público. Concentrar os esforços nessa crítica, para auferir modificações efetivas, é o objetivo responsável do infantojuvenilista – e não se referir ao menor de 18 anos com as formas politicamente corretas, como se as outras fossem ofensivas. Não pretendo escrever linhas em prol da criança e do adolescente fazendo parte do coro dos contentes. Esclareço: são os que simplesmente comentam a lei, como se ela fosse cumprida à risca, sem tecer críticas e sem manifestar opinião pessoal. São anódinos. Nunca constituem minoria em polêmicas, pois não têm posição. Recuso-me a isso. Ao contrário, visualizei, ao longo de décadas, o desprestígio da pessoa menor de 18 anos no Brasil. Não tem voz; não tem amparo; não tem afeto; não tem estudo; não tem tratamento de saúde. Não tem o que a Constituição Federal expressamente promete (art. 227, caput). Portanto, segundo me parece, é fundamental mudar o enfoque do mundo do dever-ser para o universo do ser. Assim sendo, menciono outro desvio da rota do superior interesse da criança e do adolescente, trazido pela Lei 12.010/2009. A referida Lei 12.010/2009, que incentiva ao máximo o convívio familiar biológico, quando tratou da adoção, evidenciou um lado, no mínimo, paradoxal. Debateremos ao longo desta obra a vedação à adoção dirigida, as dificuldades para a adoção internacional e também a criação de uma fila de postulantes à adoção, que mais parece um conjunto de consumidores à espera de um produto. Esses equívocos – ainda bem – têm sido corrigidos pelo Poder Judiciário, que busca privilegiar o superior interesse da criança e do adolescente. Como guardião das leis, mas sobretudo da Constituição Federal, não se poderia esperar outra postura. Veio-me à memória a frase de Charles Dickens: “a família não consiste apenas daqueles com quem compartilhamos nosso sangue, mas inclui também aqueles por quem daríamos o nosso sangue”. Não é assim que escolhemos os nossos amigos? Não é assim que se formam os casais? Deve ser assim também no universo da criança e do adolescente. Dentre os vários artigos e livros dos especialistas da área da Infância e Juventude, encontrei pouco material tratando do permitido procedimento de escolha de crianças (especialmente crianças) e adolescentes quando da inscrição e habilitação para adotar. A lei silencia integralmente a esse respeito. Alguns parcos comentários encontrados mencionam o acerto desse método, pois propicia, no futuro, o sucesso da adoção. Se bem entendi, escolher uma criança recém-nascida, branca, do sexo feminino, saudável, significa garantir o sucesso da nova família? Afinal, esse é o perfil da criança ideal no Brasil. Está errado, pelos seguintes motivos, dentre outros: a) é a criança que escolhe a família (pelas mãos dos operadores do Direito), e não o adulto que escolhe o filho/a; b) estimula-se ao máximo a abolição do preconceito racial, com leis e campanhas (inclusive no futebol), enquanto, justamente no delicado movimento de formação da família, permite-se o preconceito corra solto; c) adoção não é para todo mundo – disse um juiz paulista; sou obrigado a concordar, pois quem muito escolhe um filho, não me parece preparado a adotar; adoção é, acima de qualquer coisa, doação, o que é incompatível com seleção de cor, sexo, cor de olho, cabelos etc.; d) com o devido respeito aos que pensam de modo contrário, mas, em minha concepção, escolhe-se, com naturalidade, a cor de um filhote de animal; nunca de um ser humano. Deveriam estar na frente do tal cadastro os postulantes que não fazem discriminação, aceitando qualquer criança. Eles deveriam ser os primeiros a ser chamados, em qualquer circunstância. Recordo-me da seguinte passagem: “este filho não veio do seu óvulo e do seu espermatozoide, mas tem uma alma sem cor e deseja compartilhar de sua vida, mesmo quebrando as regras da geração biológica.Veio da sua potencial afetividade e da vontade de se doar e de querer viver uma nova família, com todas as alegrias e dificuldades” (Hália Pauliv de Souza & Renata Pauliv de Souza Casanova, Adoção. O amor faz o mundo girar mais rápido, p. 17, grifamos). Não há nada de utópico nisso. Ao contrário, está-se afirmando a raiz da cidadania, num mundo despido de preconceitos. Quanto aos adolescentes autores de atos infracionais, concordo plenamente com a visão de que não os cometem, ao menos nessa fase da vida, porque desejam praticar o mal ou infringir de propósito a lei. São seres humanos em desenvolvimento físico-mental, com particular foco para a sua personalidade. Na essência, são carentes de afeto, de amparo e de orientação. Precisam muito mais de apoio do que de repressão; necessitam de educação, bem precioso, obtido em família, na escola e em comunidade; idealizam uma vida, saem em busca e equivocam-se quanto ao método. Tenho por certo que o Poder Público – quase sempre ele – é o responsável maior pelo incremento dos atos infracionais, tendo em vista que literalmente abandona as crianças, seja em suas famílias desestruturadas na origem, seja em acolhimentos institucionais perenes. Surge o círculo vicioso inconfundível. Do berço para as ruas, sem freios, sem orientação, sem condições dignas de vida. Da sobrevivência quase selvagem do dia a dia, essas crianças se transformam em adolescentes e, com isso, surge a força física, associada à falta de responsabilidade, fazendo com que muitos partam para o lado mais fácil desse vale-tudo, que é justamente a infração. Por que essas crianças cresceram na rua o tempo todo? É um direito infantil ser destratado, menosprezado, mal alimentado, como alguns sugerem, ao defender o direito de estar na rua? Mais uma vez, em minha visão, está errado. Se um filho nosso não cresce nas ruas, por que haveria o direito do filho dos outros de fazê-lo? Inexiste direito nessa agrura da vida; o que existe é falta de compaixão e irresponsabilidade do Estado. Em tenra idade, como preceitua o ECA, a criança tem outros direitos, tais como brincar, divertir-se, praticar esportes, ter uma família onde encontre amparo – biológica ou substituta –, ter acesso a educação e morada digna. Pode-se sustentar que um infante é feliz vivendo embaixo de um viaduto, sozinho, cuidando de receber migalhas para se alimentar? Não é crível, segundo o disposto pelo art. 227, caput, da Constituição Federal. Assim sendo, as crianças largadas pelo Poder Público, tornam-se problemas a esse mesmo Estado desidioso, que, além de não cuidar dos pequenos, ignora os jovens, bastando acompanhar o estado lastimável de várias unidades de internação. Abandonar os infantes tem vários prismas, passando pelo critério comodista de deixá-los em famílias naturais completamente desestruturadas, a pretexto de que a vida com os parentes de sangue é tudo o que a criança necessita, até alcançar o descaso das que são abrigadas em instituições por prazo indeterminado. Diante desse cenário viciado – e apesar dele –, creio firmemente em recuperação do tempo perdido, tratando os jovens infratores com benevolência e estendendo-lhes a mão do apoio, que provavelmente nunca tiveram, mas impondo limites, aliás, os mesmos que deveriam ter composto o seu universo educacional na infância. As medidas socioeducativas – todas, sem exceção – precisam ser vistas como as chances ideais para o adolescente aprumar-se, antes de completar a maioridade, delinquir e ser lançado no nefasto mundo dos presídios. Até mesmo a internação deve produzir bons frutos; não se pode encará-la como um martírio, sob pena de negar a própria essência do Estatuto e, além dele, da Constituição Federal. Deve ser excepcional, breve, adequada, sem dúvida, mas precisa existir em certos casos. Por isso, surgiu a lei da execução da medida socioeducativa, possibilitando a criação do programa individual de atendimento (PIA), que envolve progressão e regressão no âmbito educacional, como se dá em qualquer nível, com qualquer pessoa. Críticas já surgiram, mormente as voltadas ao aspecto da viabilidade de regressão. São bem-vindas, pois fomentam o debate e aprimoram os porquês da existência da medida socioeducativa. Por todo o exposto, não somente o Estatuto da Criança e do Adolescente é comentado, mas também a Lei 12.594/2012, que tratou da execução da medida socioeducativa, com paradigmas muito semelhantes à Lei de Execução Penal. Porém, observa-se que a referida Lei buscou, positivamente, regular uma fase do procedimento, que estava esquecida: a execução do conteúdo da sentença no processo de conhecimento do ato infracional. E o fez, na maior parte dos dispositivos, corretamente. Durante a elaboração desta obra, surgiu a Lei 13.010/2014 (denominada Lei da Palmada), pretendendo fazer o País ingressar no Primeiro Mundo, onde vários ordenamentos já proibiram a simples palmada, como método de educação infantojuvenil. Recuso-me a crer que, diante do manifesto descaso do Poder Público com a infância e a adolescência, seja essa a preocupação do momento. Enquanto vários dispositivos do ECA são flagrantemente descumpridos por profissionais do Executivo e também do Judiciário, o Legislativo, em lugar de prever sanções severas para isso, preocupa-se em vedar a palmada. Não pretendo ingressar no mérito do método educacional – se com palmada ou sem palmada. A vida nos ensina – e muito – para que hoje, em minha casa, meus filhos sejam educados com limites, mas sem qualquer agressão física. Mas isso sou eu. Não quer dizer que eu aplauda a intervenção do Estado na intimidade familiar, nem aprove a Lei 13.010/2014, porque, se realmente o Poder Público agisse como deveria, jamais permitiria que filhos espancados pelo pai ou pela mãe (ou ambos) voltassem aos seus algozes algum tempo depois, a pretexto de que estão sempre bem ao lado dos “parentes de sangue”. Esse mesmo Estado que intenciona conceituar singelas correções como castigos físicos e tratamento cruel e degradante, pretendendo ditar a famílias honradas, de bem, que amam seus filhos, como educá-los, não dá conta de zelar pelos mais pobres e muito menos pelos que são colocados sob sua tutela, como carentes ou como infratores. Para o atual estado vivenciado pelas crianças e adolescentes do nosso país, a edição da Lei 13.010/2014 simboliza a alienação do nosso Legislativo. Buscou-se, inclusive, conceituar castigo físico e tratamento cruel e degradante, fazendo-o de maneira insatisfatória e banalizando termos tão relevantes. Leis raramente devem introduzir conceitos, pois eles são objetos da ciência, que os estuda de acordo com a dinâmica da vida real. Na prática, a novel Lei desmereceu os termos cruel e degradante, geralmente reservados para a tortura, um dos delitos mais graves contra a humanidade, da forma como os definiu. Além disso, introduziu normas que não vão alterar absolutamente nada a prática. Não se pode acertar sempre, mas também não se deve errar sempre. Eis uma grande falha em nosso sistema: determinada lei nem é ainda aplicada integralmente quando outra surge buscando corrigi-la. Estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente significa conhecer um pouco mais do que todos nós queremos para os nossos filhos e para os filhos de outros brasileiros; comentá-lo representa a oportunidade de tecer críticas construtivas, propondo soluções; ingressar no tema infantojuvenil provoca sentimentos ambivalentes de esperança e incredulidade. Todos podemos errar – e certamente temos registros de nossos equívocos ao longo da vida – junto à nossa família natural, seja na posição de pais, seja na de filhos. Dos nossos erros, para os cultores da esperança, emergem as oportunidades de redirecionar o caminho da vida, seja formando ou reformulando nossos núcleos familiares. Esta obra é um estudo dinâmico, acompanhado da voz dos tribunais, associado a relevantes opiniões doutrinárias, nem sempre de acordo com a deste autor, mas com a fiel observância de um princípio básico em ciência: posicionamento. Não pretendo acertar em tudo o quedefendo; no entanto, preciso sempre defender o meu entendimento; sem isso, não me sentiria um autor, mas um compilador das ideias alheias. E se fosse para apontar as teses de terceiros, melhor seria escrever uma resenha dos mais indicados livros e artigos. Por isso, tenho a ousadia, no bom sentido, de esmiuçar as linhas estatutárias infantojuvenis, em todos os seus prismas, buscando contribuir, à minha maneira, com as crianças e adolescentes do meu País. O subtítulo deste livro – Em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes – é o mais importante para mim. Lançamos a Editora Forense e eu um Estatuto da Criança e do Adolescente comentado, acompanhado da Lei de Execução das Medidas Socioeducativas, igualmente comentada, mas, sobretudo, escrevi algumas linhas que vão além de simples comentários ao texto de lei, avançando por meandros outros, desde o sentimento de ser pai, biológico e adotivo, passando pela minha experiência de magistrado, professor, estudioso e voluntário em entidade assistencial, até a expectativa que acredito seja de toda a sociedade brasileira no sentido de efetivamente mudar para melhor o cenário das crianças e dos adolescentes – do presente ao futuro, sem o conformismo do passado. Agradeço o empenho da Editora Forense para o lançamento deste título inédito e submeto-o ao leitor, para que possamos, juntos, verificar acertos e erros na operacionalização cotidiana dos direitos das crianças e adolescentes. Posso ser mais um a escrever sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também posso ser um dos que auxilia a fazer diferença nesse tão conturbado mundo de cerceamento de direitos fundamentais. Por isso, fugindo completamente à praxe de uma introdução, permito-me terminar com uma passagem simples, talvez até piegas para alguns, mas que me significa muito. “Era uma vez um escritor que morava em uma tranquila praia, junto de uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do mar para se inspirar, e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao chegar perto, ele reparou que se tratava de um jovem que recolhia estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente de volta ao oceano. ‘Por que está fazendo isso?’, perguntou o escritor. ‘Você não vê!’, explicou o jovem. ‘A maré está baixa e o sol está brilhando. Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na areia’. O escritor espantou-se. ‘Meu jovem, existem milhares de quilômetros de praias por este mundo afora e centenas de milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai perecer de qualquer forma.’ O jovem pegou mais uma estrela na praia e jogou-a de volta ao oceano e olhou para o escritor. ‘Para essa eu fiz a diferença’. Naquela noite, o escritor não conseguiu dormir, nem sequer conseguiu escrever. Pela manhã, voltou à praia, uniu-se ao jovem e juntos começaram a jogar estrelas-do-mar de volta ao oceano.” (Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Laços de ternura. Pesquisas e histórias de adoção, p. 64). LEI 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: 1. Fundamento constitucional: preceitua o art. 227 da Constituição Federal: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Neste dispositivo faz-se a concentração dos principais e essenciais direitos da pessoa humana, embora voltados, especificamente, à criança e ao adolescente. Evidencia-se o comando da absoluta prioridade, que alguns preferem denominar como princípio. Parece-nos, entretanto, um determinismo constitucional, priorizando, em qualquer cenário, a criança e o adolescente. Sob outro prisma, cria-se a imunidade do infante acerca de atos prejudiciais ao ideal desenvolvimento do ser humano em tenra idade. É a proteção integral voltada à negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Sobre o princípio da proteção integral, ver a nota abaixo. 2. Autonomia científica do Direito da Infância e Juventude: a começar da análise dos dispositivos constitucionais, cuidando das crianças e dos adolescentes, com normas próprias e específicas, passando pela edição deste Estatuto, até atingir outras leis esparsas, mas referentes ao menor de 18 anos, torna-se indiscutível o surgimento de um ramo relevante e destacado do Direito: Infância e Juventude. Alguns também o tratam de Direito da Criança e do Adolescente. Entretanto, não se trata de submatéria de Direito Civil, muito menos de Direito Penal. Da mesma forma que hoje se reconhece a autonomia do Direito de Execução Penal, embora contenha princípios comuns ao Direito Penal e ao Processo Penal, deve-se acatar a distinção do Direito da Infância e Juventude como regente de seus próprios passos, embora se servindo, igualmente, de princípios de outras áreas. Suas normas ladeiam o Direito Civil, servem-se dos Processos Civil e Penal, sugam o Direito Penal, adentram o Direito Administrativo e, sobretudo, coroam o Direito Constitucional. Mas são normas da Infância e Juventude, cujas peculiaridades são definidas neste Estatuto e, mais importante, consagradas pela Constituição Federal. Dedicar-se a este ramo é um objetivo ímpar, formando os infantojuvenilistas ou infancistas (já que se evita o termo menorista, para não mais trazer à baila o Código de Menores), que podem até ser, concomitantemente, constitucionalistas, penalistas, processualistas, civilistas etc. Compreendendo a importância de se destacar esta disciplina, retirando-se do contexto das demais, atinge-se um nível de perfeição teórica muito superior, podendo-se extrair resultados práticos positivos e eficientes para o trato da criança e do adolescente. Diante disso, não se trata de mera questão acadêmica, mas de ponto vibrante no cotidiano das Varas da Infância e Juventude e da política dos Direitos da criança e do adolescente. A bem da verdade, os juízes e promotores que subestimarem o Direito da Infância e Juventude, recusando-se a estudá-lo minuciosamente, convencidos de que, civilistas ou penalistas que são, estão aptos a operar com crianças e adolescentes, causam imensos danos concretos aos propósitos deste Estatuto. Somos avessos à ideia de um Direito Penal Juvenil ou Direito Penal do Adolescente. Como dissemos, jamais se poderá considerar este relevante ramo autônomo como subespécie do Direito Penal, seja para fins científicos, seja para finalidades práticas. Art. 1.º Esta Lei2-A dispõe sobre a proteção integral3 à criança e ao adolescente.4-6 2-A. Aplicabilidade do Estatuto: abrange todos os menores de 18 anos, independentemente da situação de vida. “Diferentemente dos Códigos de Menores que se destinavam ao menor abandonado ou em situação irregular, o Estatuto se aplica a toda e qualquer criança ou adolescente, impondo consequente e necessária interpretação de todas as normas relativas aos menores de idade à luz dos princípios ali estabelecidos” (Heloísa Helena Barboza, O Estatuto da Criança e do Adolescente e a disciplina da filiação no Código Civil, p. 104). “É um modelo do exercício da cidadania, uma vez que chama a sociedade para buscar soluções para os problemas infantojuvenis” (Naiara Brancher, O Estatuto da Criança e do Adolescente e o novo papel do Poder Judiciário, p. 152). 3. Princípio da proteção integral: um dos princípios exclusivos do âmbito da tutela jurídica da criança e do adolescente é o da proteção integral. Significa que, além de todos os direitos assegurados aos adultos, afora todas as garantias colocadas à disposiçãodos maiores de 18 anos, as crianças e os adolescentes disporão de um plus, simbolizado pela completa e indisponível tutela estatal para lhes afirmar a vida digna e próspera, ao menos durante a fase de seu amadurecimento. “A melhor exegese que se aplica à concepção dos princípios é a de que são standards que impõem o estabelecimento de normas específicas. Violar um princípio implica ofensa ao mandado específico como a todo o sistema de comandos por ele embasado” (Hélia Barbosa, A arte de interpretar o princípio do interesse superior da criança e do adolescente à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 18). A proteção integral é princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF) levado ao extremo quando confrontado com idêntico cenário em relação aos adultos. Possuem as crianças e adolescentes uma hiperdignificação da sua vida, superando quaisquer obstáculos eventualmente encontrados na legislação ordinária para regrar ou limitar o gozo de bens e direitos. Essa maximização da proteção precisa ser eficaz, vale dizer, consolidada na realidade da vida – e não somente prevista em dispositivos abstratos. Assim não sendo, deixa-se de visualizar a proteção integral para se constatar uma proteção parcial, como outra qualquer, desrespeitando-se o princípio ora comentado e, acima de tudo, a Constituição e a lei ordinária. “A proteção, com prioridade absoluta, não é mais obrigação exclusiva da família e do Estado: é um dever social. As crianças e os adolescentes devem ser protegidos em razão de serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento” (Tânia da Silva Pereira, O “melhor interesse da criança”, p. 14). Aliás, a Constituição Federal esmera-se na previsão de dispositivos que contemplem os direitos e as garantias fundamentais da criança e do adolescente, buscando a efetividade da denominada proteção integral. No Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), encontra-se a Seção IV (Da Assistência Social), em que se encontra o disposto pelo art. 203, II: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes (...)” (grifamos). No Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), na Seção I (Da Educação), encontra-se o art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (...) IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (grifamos). Porém, os Poderes da República respeitam esses princípios? Seguramente, não. A Constituição Federal caminha para os seus 26 anos; o Estatuto já chegou aos 24 anos. Não poderíamos, em hipótese alguma, hoje, visualizar unidades de internação de jovens em péssimas condições; o cadastro de adoção já deveria estar unificado em todo o Brasil há anos; nas Varas da Infância e Juventude já existiriam equipes técnicas sobrando para emitir laudos e pareceres de um dia para o outro; as leis da infância e juventude seriam editadas todos os meses, sempre complementando o que falta; o administrador público teria providenciado escola para todas as crianças; nunca faltaria vaga em hospital para jovens e infantes; as mães sem recursos financeiros teriam ampla proteção estatal para o pré-natal; enfim, a lista iria longe para evidenciar o descaso em face do princípio da proteção integral. “O princípio da proteção integral – emergente da Constituição Federal de 1988 – impõe e vincula iniciativas legislativas e administrativas dos poderes da República, de forma a atender, promover, defender ou, no mínimo, considerar a prioridade absoluta dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes” (Paulo Hermano Soares Ribeiro, Vivian Cristina Maria Santos & Ionete de Magalhães Souza, Nova lei de adoção comentada, p. 31). Na jurisprudência: TJMG: “Qualquer situação de ofensa aos direitos da criança e do adolescente deve ser objeto de atuação do juízo, aplicando-se o princípio da proteção integral consagrado no art. 1.º do Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo o exercício da jurisdição ser eficiente, tendo em vista a relevância dos interesses tutelados, sendo certo que, para aferição de qual a medida mais adequada dentre as aplicáveis, pode o julgador valer-se de estudo social, cuja realização pode ser determinada de ofício ou a requerimento das partes” (Apelação Cível 1.0481.09.095879-6/001, Terceira Câmara Cível, rel. Elias Camilo, DJ 21.01.2010). 4. Subprincípios da proteção integral: os denominados, pela própria Constituição Federal (art. 227, § 3.º, V), princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, na verdade, integram o princípio da proteção especial ou integral, constante do art. 227, § 3.º, caput (“o direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos...”). Eles são aplicáveis apenas ao contexto do adolescente infrator, quando recebe medida privativa da liberdade. Eis por que não podem ser considerados princípios norteadores do Direito da Infância e da Juventude. Como subprincípios: a) brevidade: encontra similar na duração razoável da prisão cautelar, no processo penal. Entretanto, possui maior amplitude, pois a privação da liberdade do adolescente deve ser a mais breve possível tanto na fase cautelar quanto após a decisão de internação. Conecta-se aos dois outros que vêm a seguir; b) excepcionalidade: seu semelhante, no processo penal, é a presunção de inocência (aplicável igualmente ao adolescente), que dá ensejo ao caráter excepcional das medidas cautelares restritivas de direitos. Se o réu é inocente até sentença condenatória definitiva, logicamente a sua prisão cautelar somente pode ocorrer em situação excepcional. No caso do adolescente, pela sua própria condição de pessoa em formação, a segregação é a ultima ratio (última opção); c) condição peculiar de pessoa em desenvolvimento: no cenário da privação da liberdade do adolescente, entende-se a preocupação do constituinte, afinal, a segregação pode afetar gravemente a formação da personalidade do jovem. Aliás, a privação da liberdade é capaz de modificar até mesmo a personalidade do adulto, portanto, com muito mais força o fará no tocante ao menor de 18 anos. Por isso, a orientação ao juiz é tríplice, ao impor uma internação: observe que se trata de pessoa em desenvolvimento físico-mental, de modo que a privação da liberdade precisa ser excepcional e breve. 5. Princípio da absoluta prioridade ou do superior interesse: cuida-se de princípio autônomo, encontrando respaldo no art. 227, caput, da Constituição Federal, significando que, à frente dos adultos, estão crianças e adolescentes. Todos temos direito à vida, à integridade física, à saúde, à segurança etc., mas os infantes e jovens precisam ser tratados em primeiríssimo lugar (seria em primeiro lugar, fosse apenas prioridade; porém, a absoluta prioridade é uma ênfase), em todos os aspectos. Precisam ser o foco principal do Poder Executivo na destinação de verbas para o amparo à família e ao menor em situação vulnerável; precisam das leis votadas com prioridade total, em seu benefício; precisam de processos céleres e juízes comprometidos. Se conjugarmos este princípio com a proteção integral, verificar-se-á o universo de equívocos lamentáveis cometidos pelos Poderes do Estado. O poder público sempre alega falta de recursos para prover unidades de acolhimento e de internação de maneira satisfatória, mas nunca falta verba para alargar uma avenida, construir uma ponte, comprar viaturas, dar festas, entre outros gastos. O legislador demora anos e anos para atualizar o Estatuto da Criança e do Adolescente e, quando comete erros, jamais os conserta de pronto. O Judiciário é omisso no controle dosprocedimentos e processos em trâmite nas Varas da Infância e Juventude. Exemplifique-se com o caso do rapaz G. S. (hoje com 20 anos), que ficou 15 anos da sua vida num abrigo, sem ingressar no cadastro de adoção, porque foi “esquecido” (Folha de S. Paulo, dia 2 de fevereiro de 2014, caderno Cotidiano, p. 6). A indenização é o mínimo que pode pleitear, mas o dano à sua formação é permanente. Pode-se, então, dizer que se cumpre, minimamente, o princípio da absoluta prioridade no Brasil? Definitivamente, não. Segundo Simone Franzoni Bochnia, “os termos absoluta e prioridade inseridos na Constituição Federal desempenham forte significado a princípio constitucional consagrado, obrigando a primazia do atendimento contra todos. Vale ressaltar que não há desrespeito à igualdade de todos, muito pelo contrário, há sim o respeito pela diferença entre os sujeitos de direito, pois elas são a própria exigência da igualdade. A igualdade por sua vez consiste em tratar, igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na proporção que se desigualam. No caso em tela, é notória a diferença de condições entre criança e adolescente e os demais sujeitos de direito. É neste sentido que a Constituição Federal tratou de ‘compensar’ a desigualdade com busca na igualdade, não ferindo de forma alguma o princípio da igualdade, porque leva em consideração a condição especial – a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A condição peculiar da criança e do adolescente refere-se à fragilidade natural desses sujeitos de direito, por estarem em crescimento. Faticamente aparece a vulnerabilidade de crianças e adolescentes em relação aos adultos como geradora fundante de um sistema especial de proteção” (Da adoção. Categorias, paradigmas e práticas do direito de família, p. 79-80). “Dentre os diversos princípios que consubstanciam o Direito da Criança e do Adolescente e que goza do status da primazia das suas necessidades como critério de interpretação da lei, destaca-se o interesse superior da criança, ao qual se deve conferir uma interpretação extensa e sistêmica de seu alcance, orientador de todos aqueles que irão aplicá-lo na garantia dos direitos fundamentais, enquanto sujeito de direitos e titular de todos os direitos: sempre o que for melhor para a criança e para o adolescente. (...) O superior interesse da criança e do adolescente é um princípio que, por sua natureza e extensão, está inserido nos documentos e tratados internacionais e interamericanos de proteção dos direitos humanos, como um instrumento de proteção e garantia para uma população que, também, por sua própria natureza, é especial, priorizada, portanto, pelo direito humanitário. (...) Esse princípio do best interest of the child ou o melhor interesse da criança é peremptório em atribuir ao Estado a obrigação de colocar a criança e o adolescente acima de todos os interesses, com prioridade absoluta como mandamento constitucional constante do art. 227, uma construção embasada nesse princípio como dever social, moral e ético, compartilhado com a família e a sociedade e com todos os habitantes do território nacional sob sua jurisdição, como um dever de todos” (Hélia Barbosa, A arte de interpretar o princípio do interesse superior da criança e do adolescente à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 19-24). Sob outro aspecto, jamais se pode utilizar esse princípio para prejudicar a criança ou adolescente. Por vezes, determinados juízes, afirmando o superior interesse infantojuvenil, atropelam a ampla defesa, descuidam do estrito cumprimento desta Lei, lesam interesses de terceiros (família biológica, guardião etc.), dentre outras medidas. Adverte, com razão, Nayara Aline Schmitt Azevedo: “verificou-se ainda que, em certa medida, é o próprio Estatuto que contribui para a legitimação dessa ‘bondade totalitária’ (Lopes; Rosa, 2011, p. XXII), pois, ao mesmo tempo em que silencia sobre muitos aspectos, prevê o princípio do superior interesse da criança, o que, somando-se um ao outro, acaba servindo de fundamento à supressão de garantias individuais do adolescente suposto autor de ato infracional e à aplicação, por exemplo, de uma medida socioeducativa de internação quando, nas mesmas circunstâncias, um adulto não seria privado da liberdade” (Apontamentos para uma abordagem criminológica do sistema socioeducativo a partir da aproximação entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais, p. 198). 5-A. Estrita observância pelo Poder Judiciário: não somente por se tratar de um princípio constitucional expresso, mas sobretudo por constituir o alicerce do Direito Infantojuvenil, deve o superior interesse da criança e do adolescente ser fielmente cumprido pelo Judiciário. Quando outros Poderes do Estado não o fizerem, a última esperança concentra-se no magistrado. Por isso, aguarda-se deste o exemplo, cumprindo rigorosamente os prazos previstos neste Estatuto, enfocando cada infante e cada jovem em seu caso concreto e fazendo valer, acima de tudo, o interessante aos menores de 18 anos. “A observância desse princípio pela autoridade judiciária da infância ou juízo comum é indispensável, sobremaneira quando se tratar do exercício do ‘poder familiar’, nas hipóteses de conflitos, divergências, suspensão ou perda, porque necessariamente, ao decidir, deverá identificar o que for melhor para a criança/adolescente, sempre e em qualquer circunstância, ainda que tiver que decidir por colocar a criança ou adolescente sob a responsabilidade de outra pessoa que não os pais. Inclusive, quando se tratar de tutela, matéria disciplinada pelo Código Civil, a autoridade judiciária deverá escolher entre os ascendentes aquele que for mais apto a exercê-la em benefício do menor de idade. Maior exigência na observância desse superior interesse quando se tratar de pedidos de adoção, especialmente, por estrangeiros, porquanto deverá avaliar os legítimos motivos e quando apresentar reais vantagens para o adotando, nada mais do que significa o maior interesse” (Hélia Barbosa, A arte de interpretar o princípio do interesse superior da criança e do adolescente à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 28). 5-B. Escorço histórico do princípio do superior interesse da criança: “dois julgados do Juiz Mansfield em 1763, envolvendo medidas semelhantes ao nosso procedimento de ‘busca e apreensão do menor’, identificados como caso Rex v. Delaval e caso Blissets, são conhecidos no Direito Costumeiro inglês como os precedentes que consideraram a primazia do interesse da criança e o que era mais próprio para ela. Somente em 1836, porém, este princípio tornou-se efetivo na Inglaterra. (...) Daniel B. Griffith informa que o princípio do best interest foi introduzido em 1813 nos Estados Unidos no julgamento do caso Commonwealth v. Addicks, da Corte da Pensilvânia, onde havia a disputa da guarda de uma criança numa ação de divórcio em que o cônjuge-mulher havia cometido adultério. A Corte considerou que a conduta da mulher em relação ao marido não estabelecia ligação com os cuidados que ela dispensava à criança. Naquela oportunidade, foi introduzida naquele país a Tender Years Doctrine, a qual considerava que, em razão da pouca idade, a criança precisava dos cuidados da mãe, de seu carinho e atenção e que ela seria a pessoa ideal para dispensar tais cuidados e assistência. Esta Doutrina proliferou por todo o país, passando a vigorar uma ‘presunção de preferência materna’, que somente não seria levada em conta caso ficasse comprovado o despreparo da mãe. (...) Pela primeira vez, coube à Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 mencionar, pela primeira vez, o superior interesse da criança” (Tânia da Silva Pereira, O “melhor interesse da criança”, p. 2-4). 6. Outros princípios: são citados, ainda, por parcela da doutrina, os princípios da dignidade da pessoa humana e da participação popular, como pertencentes ao Direito da Infância e Juventude. Permitimo-nos discordar. Em primeiro lugar, como já dissemos emDireito Penal e em Processo Penal, o princípio da dignidade da pessoa humana realmente é um princípio, mas não privativo da área das crianças e adolescentes (como não é exclusivo do campo penal, tampouco de processo penal). Cuida-se de um princípio regente de todas as disciplinas, integrando a base do Estado Democrático de Direito, como indica o art. 1.º, III, da Constituição Federal. “Assim, o princípio da dignidade humana é considerado um macroprincípio, de valor nuclear da ordem constitucional, demonstrando a preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social, do qual irradiam todos os demais, como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, solidariedade, uma coleção de princípios éticos. Representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, podendo ser identificado como o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de valores afetivos” (Dimas Messias de Carvalho, Adoção, guarda e convivência familiar, p. 16). A participação popular na área da infância e juventude é um predicado do sistema legislativo, mas não um princípio a orientar a interpretação de normas ordinárias. Da mesma forma que se conclama a sociedade a colaborar, diretamente, no processo de execução da pena (Conselho da Comunidade, Patronato etc.) – e jamais foi considerado um princípio do Direito de Execução Penal –, incita-se a comunidade a participar dos problemas vividos pelas crianças e adolescentes. Uma regra importante, mas não um princípio. Art. 2.º Considera-se7 criança, para os efeitos desta Lei,8 a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.9-10 Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.11 7. Criança e adolescente: estabelece-se, neste Estatuto, constituir criança o ser humano até 11 anos completos; adolescente, o ser humano com 12 anos completos. Associando-se ao disposto pelo Código Civil, torna-se adulto, para fins civis, o ser humano que atinge 18 anos de idade; no mesmo prisma, o Código Penal fixa em 18 anos a idade da responsabilidade para fins criminais. Diante disso, aplica-se o conteúdo da Lei 8.069/90, como regra, à pessoa com até 17 anos. 8. Para os efeitos desta lei: não nos parece adequada essa pretensa limitação, indicando o limite de 12 anos como marco de separação entre criança e adolescente, somente para fins de aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O legislador deveria ter sido ousado, porém racional, impondo os conceitos de criança e adolescente para todo o contexto jurídico. Ilustrando, o Código Penal especifica como agravante o cometimento de crime contra criança, sem maiores detalhes. Debate-se, até hoje, quem se deve considerar criança, existindo três correntes: a) o ser humano até sete anos; b) o ser humano até 11 anos; c) o ser humano até 13 anos. A primeira posição lastreia-se no amadurecimento indicado pelos critérios psicológicos, que aponta os sete anos como estágio final da primeira infância. A segunda, baseia-se no Estatuto da Criança e do Adolescente. A terceira, fundamenta-se na idade para o consentimento sexual, que se dá aos 14 anos, nos termos do art. 217-A do Código Penal. Temos defendido ser correta a segunda, justamente com base no art. 2.º desta Lei – e é o que tem predominado. Parece-nos insensato desprezar o estabelecimento dos conceitos de criança e adolescente previstos neste Estatuto, razão pela qual as demais correntes penais devem sucumbir à realidade da Lei 8.069/90. 9. Reflexo penal: disciplina o art. 228 da CF: “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Esta legislação especial à qual se refere o mencionado artigo constitucional é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Estão os menores de 18 anos imunes integralmente à legislação penal comum, por mais grave que possa ser o fato criminoso praticado. Cuida-se de política criminal do Estado, visando à mais eficiente proteção à pessoa em fase de amadurecimento. Debate-se, dentre outras medidas, a redução da idade para responsabilização criminal normal, segundo as regras do Código Penal. Cuidaremos desse tema mais adiante em comentário específico ao art. 104 desta Lei. 10. Criança/adolescente versus menor: muitos estudiosos do Direito da Infância e da Juventude têm criticado o uso do termo menor para designar crianças e adolescentes, na atualidade. Segundo André Karst Kaminski, “o menor, como era identificada a criança pobre brasileira, sempre ocupou um lugar desprestigiado na nossa sociedade, colocado em situação de dependência, sem o exercício natural de direitos, ou seja, sempre encarado como um verdadeiro ‘coitadinho’ e um objeto necessário de tutela penal (Neto, in Ribeiro & Barbosa, 1987, p. 69). Nesse sentido, as categorias jurídicas criança e adolescente, enquanto sujeito de direitos, foram inaugurações do legislador constitucional, que as tratou pela primeira vez por sua condição de seres humanos plenamente equipados de potencialidades nas relações sociais (Sêda, 1991, p. 64). (...) a palavra menor, em regra, sempre foi objeto de estigmatização, de rotulagem, significando o ‘filho dos outros’ (o menor era a clientela do sistema Funabem/Febem. Segundo Severiano (1999): ‘menor – aplicar a garoto(a) pobre. Chamar remediados e ricos de teens: é chique. Mas, decididamente, jamais usar teens para pobre’), ou aquele de quem se tem dó ou pena por sua situação de incapacidade” (O Conselho Tutelar, a criança e o ato infracional: proteção ou punição?, p. 39). “O Código de Menores, a rigor, ‘não passava de um Código Penal do Menor’ (cf. Liberati), uma vez que suas normas tinham mais um caráter sancionatório do que protetivo ou assistencial. Trouxe consigo a ‘Doutrina do Menor em Situação Irregular’, quando poucas foram as modificações; era o tempo do ‘menor’, do ‘menor abandonado’, do ‘menor delinquente’, expressões que estigmatizavam crianças e adolescentes e que ainda hoje albergam uma espécie de ranço, quando se ouve dizer: ‘ele é de menor’. Nessa fase o juiz não julgava o menor, apenas definia a ‘situação irregular’ aplicando medidas terapêuticas” (Antonio Cezar Lima da Fonseca, Direitos da criança e do adolescente, p. 8). Sem dúvida, com o passar do tempo, o desgaste do termo menor tornou-se visível, por variadas razões: a) havia o anterior Código de Menores, que conferia às crianças e adolescentes poucos direitos e várias punições, tornando a terminologia um sinônimo de extremada rigidez; b) os próprios adolescentes infratores, quando eram apreendidos, intitulavam-se para os agentes da polícia como sendo de menor; c) como o maior contingente de crianças e adolescentes a frequentar as Varas de Menores eram originários de famílias pobres, terminou-se por associar menor a pessoa pobre; d) os menores oriundos de famílias abastadas, se fossem surpreendidos em atos infracionais, também eram considerados menores, mas a proporção era ínfima, motivo pelo qual o estigma ficou saliente para as camadas menos favorecidas economicamente. Concordamos, portanto, que o termo desgastou-se; porém, aboli-lo do dicionário é medida inócua e ingênua. Proibi-lo nos escritos relativos à infância e juventude é um autoritarismo às avessas. Há autores, hoje, que, a pretexto de serem modernos, criticam todos os que ainda usam a palavra menor para designar criança ou adolescente. Nesse cenário, segundo nos parece, devemos evitar o falso proselitismo e a infantil caça aos antiquados. O termo menor é apenas a óbvia designação de quem tem menos de 18 anos, enquanto a palavra maior é destinada ao adulto, que já superou os 18. Nada mais que isso. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por certo, trouxe modernidade ao direito infantojuvenil e, somente por isso, deve prevalecer, na maioria das citações, a terminologia adequada à novel legislação. Nem por isso, o termo menor de 18 anos tornou-se dogmaticamenteincorreto ou um símbolo da tirania. Os filhos de pessoas pobres ou ricas são menores de 18 anos, logo, crianças e adolescentes. Aliás, se a singela troca de palavras resolvesse algum problema real do Brasil, já estaríamos com esse Estatuto implementado e nossos infantes e jovens não enfrentariam terríveis situações de descaso, a maioria delas provocadas pelo próprio Estado, omisso em seus deveres legais. 11. Excepcionalidade de aplicação do ECA aos maiores de 18 anos: quando editada a Lei 8.069/90, a maioridade civil ocorria aos 21 anos. A penal, aos 18. Portanto, visualizou-se, à época, um período intermediário, no qual se poderia considerar a pessoa penalmente capaz, porém, civilmente incapaz (relativamente). Tornava-se lógico sustentar que o menor, com 17 anos, por exemplo, ao cometer um ato infracional, pudesse ser internado até os 20 anos (a internação máxima é de 3 anos). Hoje, a situação não deixa de ser estranha, pois a pessoa, com 18 anos, é maior e capaz para todos os atos da vida civil. Diante disso, soa-nos incongruente mantê-lo, após os 18, sob tutela estatal, seja ela qual for. Porém, cuida-se de lei especial, que prevalece sobre lei geral (Código Civil e Código Penal). Para Nazir e Rodolfo Milano: “temos como melhor interpretação aquela que admite a aplicação de medida socioeducativa ao adolescente, mesmo que venha ele, no decorrer do processo de apuração de ato infracional ou no decorrer da própria medida aplicada, alcançar os dezoito anos de idade, seja qual for a medida socioeducativa (artigo 112), respeitada, entretanto, a idade limite para aplicação, ou seja, aos vinte e um anos de idade, em consonância com a própria estipulação contida no artigo 121, parágrafo 5.º, do Estatuto, dispondo sobre medida mais grave (internação)” (Estatuto da Criança e do Adolescente comentado e interpretado de acordo com o novo Código Civil, p. 217). Na jurisprudência: STF: “1. Não se vislumbra qualquer contrariedade entre o novo Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente relativamente ao limite de idade para aplicação de seus institutos. 2. O Estatuto da Criança e do Adolescente não menciona a maioridade civil como causa de extinção da medida socioeducativa imposta ao infrator: ali se contém apenas a afirmação de que suas normas podem ser aplicadas excepcionalmente às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade (art. 121, § 5.º). 3. Aplica-se, na espécie, o princípio da especialidade, segundo o qual se impõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é norma especial, e não o Código Civil ou o Código Penal, diplomas nos quais se contêm normas de caráter geral. 4. A proteção integral da criança ou adolescente é devida em função de sua faixa etária, porque o critério adotado pelo legislador foi o cronológico absoluto, pouco importando se, por qualquer motivo, adquiriu a capacidade civil, quando as medidas adotadas visam não apenas à responsabilização do interessado, mas o seu aperfeiçoamento como membro da sociedade, a qual também pode legitimamente exigir a recomposição dos seus componentes, incluídos aí os menores. Precedentes. 5. Habeas corpus indeferido” (HC 94.938/RJ, Primeira Turma, rel. Cármen Lúcia, 12.08.2008, v.u.); “O disposto no § 5.º do art. 121 da Lei 8.069/1990, além de não revogado pelo art. 5.º do Código Civil, é aplicável à medida socioeducativa de semiliberdade, conforme determinação expressa do art. 120, § 2.º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em consequência, se o paciente, à época do fato, ainda não tinha alcançado a maioridade penal, nada impede que ele seja submetido à semiliberdade, ainda que, atualmente, tenha mais de dezoito anos, uma vez que a liberação compulsória só ocorre aos vinte e um (art. 121, § 5.º, c/c os arts. 120, § 2.º, 104, parágrafo único, e 2.º, parágrafo único, todos da Lei 8.069/1990). Precedentes: HC 94.938, rel. min. Cármen Lúcia, DJe-187 de 03.10.2008; HC 91.492, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe-082 de 17.08.2007; e HC 90.248, rel. min. Eros Grau, DJe-004 de 27.04.2007. Ordem denegada” (HC 94.939/RJ, Segunda Turma, rel. Joaquim Barbosa, 14.10.2008, v.u.). STJ: “Para a aplicação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, leva-se em consideração apenas a idade do menor ao tempo do fato (ECA, art. 104, parágrafo único), sendo irrelevante a circunstância de atingir o adolescente a maioridade civil ou penal durante seu cumprimento, tendo em vista que a execução da respectiva medida pode ocorrer até que o autor do ato infracional complete 21 (vinte e um) anos de idade (ECA, art. 2.º, parágrafo único, c/c 120, § 2.º, e 121, § 5.º)” (STJ, HC 89.846/RJ, Quinta Turma, rel. Arnaldo Esteves Lima, 15.09.2009, v.u.). TJSC: “1. Por força do que dispõem os artigos 2.º, parágrafo único; 104, parágrafo único e 121, § 5.º, da Lei n. 8.069/90, o adolescente que comete ato infracional deve sujeitar-se aos ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente ainda que, durante o curso do processo de apuração do ilícito, atinja a maioridade penal, uma vez que, para os fins do Estatuto, deve ser levada em conta a idade do agente na data dos fatos, e não no curso do processo ou no cumprimento de medida socioeducativa que lhe venha a ser imposta. 2. O único limite etário que há, nesse sentido, é em relação à execução de eventual medida socioeducativa, que não poderá ultrapassar os 21 (vinte e um) anos do infrator. 3. O Superior Tribunal de Justiça já afirmou que ‘o ECA registra posição de excepcional especialidade tanto em relação ao Código Civil como ao Código Penal, que são diplomas legais de caráter geral, o que afasta o argumento de que o parágrafo único do art. 2.º do aludido estatuto teria sido tacitamente revogado pelo atual Código Civil’. (HC n. 44.168/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 09/08/2007)” (Apelação/Estatuto da Criança e do Adolescente 2013.028467-5, de Biguaçu, Primeira Câmara Criminal, rel. Paulo Roberto Sartorato, j. 09.07.2013). TJRS: “A maioridade civil não tem o condão de extinguir a demanda em que se busca apurar autoria de ato infracional. O adolescente infrator responde pelos atos praticados antes dos 18 anos, até que complete 21 anos de idade, nos termos do parágrafo único do art. 2.º do ECA. Entendimento diverso conduziria ao nefasto sentimento de impunidade” (Apelação Cível 70055436935, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 29.08.2013). TJSP: “Maioridade que não impede a continuidade do procedimento para a apuração do ato infracional nem a aplicação de medida socioeducativa se o adolescente, à data do fato, contava com menos de 18 anos de idade. Sentença que é anulada para o prosseguimento do feito. Recurso provido em parte para tanto” (Apelação Cível 0229204- 96.2009.8.26.0000, Câmara Especial, rel. Maia da Cunha, 10.05.2010). Art. 3.º A criança e o adolescente12 gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,13-14 sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,15 assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.16 12. Escorço histórico: na lição de André Karst Kaminski, na época medieval, “sob os olhos europeus, os menores não tinham quase nenhum valor, pois não produziam com a mesma capacidade do adulto e ainda tinham de ser alimentados, cuidados, vestidos... Enfim, eram indivíduos dependentes, motivo pelo qual muitos acabavam morrendo pelo abandono, pela negligência ou pela exploração quando vendidos para servir de escravos, ou embarcados para servir de mão de obra nas navegações, empreendendo esforços sobre-humanos, consumindo alimentação estragada e convivendo em um ambiente desprovido das mínimas condições de saúde e higiene. Além disso, e em decorrência da proibição da presença de mulheres nos navios, o que envolvia também um certo misticismo de que atraíam o azar à expedição, o menor era também seviciado, servindo de ‘mulher’
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