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Quando as Orientadoras Educacionais se tornam bombeiros e o trabalho se resume em apagar incêndios O orientador educacional está sucumbindo no estado de Rondônia, porque atribuem a ele todas as tarefas do universo educacional que não são dele. Os seus reclames nos falam de uma escola muito mais voltada para “apagar incêndios” do que uma instituição organizada racionalmente para transmitir o conhecimento. As orientadoras mesmas falam e se intitulam como bombeiros, na quase totalidade dos textos. A expressão “apagar incêndio” nos remete a uma ideia de desespero, de caos, de falta de organização, de urgência imediata, de algo que não pode esperar. Um incêndio não é uma situação que ocorre toda hora e a todo o momento. Se acontecer, é porque não existe prevenção, cuidado e organização. Além de nos dizerem que estão esgotadas e cansadas, as falas das orientadoras nos apresentam uma escola que também vive na urgência e as situações limites se tornaram regra e não exceção. Segundo Orlandi (1996), é no discurso que os indivíduos produzem a realidade com a qual estão em relação. No transcorrer dos dias, surgem milhares de outras coisas que não estavam no planejamento e o Orientador Educacional que quase nunca diz “não posso”, acaba se sujeitando às necessidades imediatas da escola, do Diretor que não pode ir à reunião e pede para representá-lo, da Supervisora que chegou há pouco e está perdida com algumas coisas, dos professores que não querem mais aquele aluno indisciplinado na sala e pensam que o Orientador pode fazer um milagre para ele continuar sendo feliz sem inconvenientes em sua aula etc. Além de tudo, ainda tem os casos de pronto-atendimento que são alunos e alunas que caem e quebram os dentes, o braço, o dedo, que machucou na quadra de esportes, que caiu no parquinho, que levou uma bolada mal arremessada, que escorregou e bateu a cabeça no horário do recreio, que veio de casa passando mal, mas a mãe falou que tinha que vir porque senão cortam o Bolsa Família, aluno que aparece com uma arma branca e aqueles que passam mal na escola. A Orientadora encaminha tudo isso, chama os Bombeiros, encaminha ao conselho Tutelar quando necessário, ao Oftalmologista, ao Psicólogo e aos responsáveis. (Texto 05) Olhando para o texto acima, concordamos com Orlandi (1996) que os sentidos não se fecham e não são evidentes, embora pareçam ser. Eles jogam com a ausência, como os sentidos do não-sentido. Quando a orientadora fala que, diante dos “milhares” de outras coisas fora do planejamento, está dizendo que não consegue, por esta razão, fazer nada do que tinha planejado, do que estava em seu planejamento. Diz “quase nunca”, consegue dizer “não posso” o que significa que ela nunca é capaz de dizer não, de se posicionar criticamente diante desta escola que assim está constituída: de apagar incêndios. Há uma perda de autonomia que a faz se sentir responsável por tudo na escola, menos pelo trabalho que é dela. É um sujeitamento que a deixa assujeitada e que por sua vez a aliena. Ela diz que “acaba se sujeitando” e o faz, como podemos identificar no diálogo que segue proferido no encontro do dia 17 de abril de 2013 para orientadores educacionais do município onde realizamos nossa pesquisa. A fala é da coordenadora dos orientadores educacionais em nível de Coordenadoria Regional de Ensino. [...] Então, a sobrecarga, a carga é muito grande para os orientadores, né? Mas quem estava no encontro no ano passado em Porto Velho se lembra que foi colocado que a gente acaba assumindo coisas que não são da gente. E aí, faltou professor, o orientador assume, faltou diretor, o orientador assume. Neste momento uma orientadora interrompeu a fala da coordenadora e disse: eu não vou, eu não vou, pode me bater que eu não vou. (Diário de campo) É aquilo que a gente falou lá em Porto Velho. Aqui, a orientadora se refere a um momento de partilha das 1atividades diárias que houve no encontro. Eu achei que era só na minha vida que acontecia isso: o bombeiro, apagar fogo, mas é geral, né? (Entrevista inicial com a décima segunda orientadora) A coordenadora dos orientadores se inclui na situação de sobrecarga de trabalho, juntamente com os orientadores educacionais, ao dizer “a gente” e faz isto se lembrando do encontro para técnicos educacionais promovidos pela Seduc em setembro de 2012. Quem falou desta situação de sobrecarga foram os orientadores no momento da partilha de suas rotinas diárias. O encontro em Porto velho ao ser tantas vezes rememorado serviu para dar visibilidade à situação das orientadoras educacionais no Estado de Rondônia. A orientadora que fala acima se reconhece na fala da outra ou das outras, e este movimento despertou nelas, o sentimento de grupo, de pertença a um grupo que tem determinadas características e que nos conta das situações em que exercem suas funções. E nas falas aparecem também sinais de resistência, por exemplo, quando a orientadora, teimosamente repete que, diante das investidas para que ela resolva os “incêndios” na escola, “eu não vou, eu não vou, pode me bater que eu não vou”. 1 Este momento foi provocado pelo instrumental “Meu diário de bordo é assim”... Este instrumento que encaminhou a partilha tinha as seguintes questões: O que eu faço diariamente durante a manhã e tarde na escola? O que eu deveria fazer e não consigo? Patto (2010, p. 9) ao fazer memória de sua obra clássica e consagrada, “A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia”, publicada pela primeira vez em 1990, nos conta que estas resistências não são casos isolados na história da educação brasileira e no cotidiano de suas escolas. Nele, fiz o relato de uma pesquisa de longa duração no interior de uma escola municipal paulistana de Ensino Fundamental. Os resultados obtidos foram uma contribuição ao desvelamento, que já estava em andamento na literatura educacional, da miséria do cotidiano da escola fundamental brasileira e de sua relação com uma política educacional desde sempre ambígua na declaração de propósitos, tecnicista em matéria pedagógica e antidemocrática nos princípios que a norteiam. Nesse livro ficou registrado o sofrimento de educadores e alunos que, condenados à cegueira e à surdez da alienação que lhe é imposta, identificam erroneamente o inimigo, agridem-se mutuamente e sobrevivem à duras penas, embora não sem alguma ambiguidade que deixa aberta a fresta da resistência. Os espaços de estudos e encontros organizados pela equipe de formação continuada da Coordenadoria Regional de Ensino têm proporcionado a manifestação destas resistências, conforme podemos perceber no relato abaixo. E a coordenadora retoma a palavra: E aí, a gente assume a responsabilidade que não é nossa, muitos assumem, porque querem a escola funcionando. Aqui a coordenadora foi interrompida mais uma vez com muitos reclames o que impede de compreender o restante de sua fala. No entanto, é possível identificar a fala das orientadoras: Não sou quebra-galho, não sou tapa- buracos, não estou ganhando para isto, não sou diretora, não sou professora. Não recebo os benefícios que eles recebem. Quando a coordenadora diz que “muitos assumem porque querem uma escola funcionando” as orientadoras contestam: “Funcione para que”? “Para quem”? Neste movimento, elas começam a questionar o que ideologicamente foi sendo constituído, ou seja, que elas deveriam responder por tudo na escola e a qualquer preço. A constatação de que fazem tudo, menos o que deveriam fazer está presente de forma explícita nos textos. De um lado estão as orientadores trabalhando muito e de outro estão os professores dizendo que elas não fazem nada. Não sei dizer exatamente como ou quando todas essas atribuições foram sendo delegadas ao SOE. Só sei que elas são parte da minha rotina diária e ainda ouçoou percebo nos olhares de alguns professores que o SOE não faz nada. E até entendo este “não fazer nada”, afinal de contas o trabalho preventivo, os projetos com alunos, o resgate da autoestima, o trabalho de corpo a corpo com os grupos desinteressados, desestimulados e sem expectativas de vida ficaram em último plano, se sobrar tempo. (Texto Nosso dia a dia é uma correria “apagando fogo”, nossa dificuldade é a demanda de acompanhamento dos casos, nosso grande desafio é não descuidar do todo ou seja o coletivo e também desenvolver várias intervenções individuais com os alunos encaminhados pelos professores. (Texto 16) São tantas outras obrigações que vão sendo atribuídas a orientadora que o tempo se torna pequeno e o trabalho de acompanhamento individual, a formação pessoal desse aluno fica a desejar. (Texto 19) Os sentidos desta construção não foram ocultados, até porque isto seria impossível de se fazer; mas houve um apagamento do processo de como este discurso de que as orientadoras são as salvadoras foi sendo construído. Como uma orientadora mesma escreveu quando de uma palestra realizada pelo pesquisador para os orientadores educacionais. Questionada sobre como se percebia na escola, ela respondeu que (...) na escola, como a vice-diretora mesmo me disse, sou uma faz tudo. Acabamos fazendo de tudo um pouco. A maioria acha que não fazemos nada. (texto avaliativo) Nesta situação de ambiguidade, confusão e desconhecimento em relação as suas funções na escola ele acabar “apagando incêndios”. Ficando seu trabalho, reduzido, como elas mesmas afirmam, “às necessidades imediatas da escola”. No cotidiano de trabalho, acabamos perdendo nossa identidade profissional e passamos ‘apenas apagando fogo’, nos incêndios da escola. (texto da avaliação do encontro). As orientadoras falam dos incêndios da escola e que se perdem neles. Rossler (2006, p.42-43) nos ajuda entender este processo de alienação quando explica que a condução livre e consciente da vida pelo homem, isto é, a possibilidade objetiva e subjetiva de o indivíduo ser o senhor de sua vontade, de seus pensamentos, de seus sentimentos e de suas ações, quando é senhor de sua própria existência, depende de sua elevação acima das contingências e limitações da vida cotidiana. Depende de sua relação com as esferas superiores da vida social humana: a esfera das objetivações genéricas para-si – a arte, a ciência, a filosofia, a política e a ética. Quando este processo não acontece, o indivíduo deixa de conduzir sua própria vida e passa a ser arrastado e conduzido por ela. Este fenômeno psicológico e social acontece em consequência das relações alienadas que marcam o cotidiano. Percebemos em suas falas que elas trabalham muito e mesmo assim não são reconhecidas. Elas falam de um desencantamento delas e dos professores; e este é um dos grandes reclames delas, conforme podemos perceber no fragmento discursivo que segue. Acredito que um grande desafio, ainda, é nos posicionarmos como Orientador Educacional e desenvolvermos nosso real papel, deixarmos de “quebrar tantos galhos”, parar de “apagar incêndio” e ser visto e reconhecido, principalmente pelos colegas de trabalho, como um profissional que tem algo a agregar, a contribuir, a ensinar e a aprender. Que temos dúvidas como qualquer um deles, que não sabemos tudo. Desculpa se minha fala é em tom de desabafo, mas por enquanto tem sido assim meu trabalho como orientadora educacional. (Texto 02) A orientadora quando fala, reivindica para si e seu congêneres o lugar que lhe é devido na escola e não qualquer lugar. Outra dificuldade é a origem dos problemas que “estouram” na escola. Estes nascem na família/sociedade e não temos poder de decisão, nem de interferência na vida extraescolar do aluno. (Texto 09) As escolas atualmente estão com número de alunos consideráveis, onde a grande demanda dificulta o desenvolvimento do trabalho do orientador, uma vez que fica o Orientador, envolvido em atender ocorrência de ordem disciplinar, deixando assim a desejar na sua real função. (Texto 10) Por vezes, porém, nos deparamos com situações que fogem ao nosso alcance e campo de ação e quase sempre estão relacionadas ao descaso das autoridades responsáveis pelo “ensino de qualidade” tão enfatizado e exposto a toda comunidade, porém, distantes da realidade escolar. (Texto 11). Quanto o planejamento do serviço de orientação de minha escola, é feito anual onde são traçadas as metas e ações que serão desenvolvidas durante o ano letivo, mas dificilmente consigo seguir um cronograma, visto que, meu trabalho costuma dizer que é desenvolvido tudo junto e misturado, ou seja, não consigo seguir uma agenda no momento em que estou atendendo aluno, chegam pai ou responsável pelo aluno para ser atendido então, termino de fazer o atendimento ao aluno, e, em seguida, atendo o pai/ mãe enquanto estou fazendo o atendimento aos pais, a diretora chama para atender alunos que estão brigando na quadra, ora chegam professores com cinco, seis ou mais alunos desesperados dizendo que os alunos estavam brigando e que eles não sabem mais Comentado [a1]: Texto da Patto. Comentado [a2]: Incêndio. Parecendo ao da Luci. INDISCIPLINA... ROTINA, COTIDIANO. ESTE INCENDIO É MENOS FOGO. o que fazer com estes alunos, ora motivo de indisciplina, ora dizem que o aluno está desmotivado e não consegue avançar na aprendizagem, outros não querem fazer as atividades na sala de aula. (Texto 11). - sistematizar os atendimentos individuais com maior regularidade, tendo estudos de casos. Realizar mais os projetos fora da sala do soe ( atendimento preventivo). (Texto 15) Preciso mudar minha prática: ‘abraço tudo’. Muito carregada de trabalho o que me leva a crer que estou fazendo trabalho de outros profissionais. Muito trabalho e pouca valorização. Gosto do meu trabalho como orientadora, porém, com a deficiência de alguns professores no domínio de sala de aula, há uma sobrecarga de trabalho para o Soe. Um apaziguador dos conflitos entre alunos x alunos e professores x alunos. É preciso mudar a mentalidade dos professores e da direção das escolas quanto ao real papel dos orientadores educacionais. Gosto muito; às vezes sinto-me cansada de ver que alguns colegas acham que temos que ficar apagando incêndios, mas como tenho uma vontade de poder estar nessa escola, procuro sempre desenvolver meu trabalho com carinho. Comentado [a3]: Atendimento preventido....a juntar. Oposição ao apagamento de incêndio. Comentado [a4]: bombeira Comentado [a5]: Sobrecarga, incêndios. Comentado [a6]: Bombeira. Comentado [a7]: Sujeita-se novamente.