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As andorinhas by Paulina Chiziane

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AS ANDORINHAS 
Ficha Técnica 
- NÚMERO DE REGISTO: 
"As andorinhas"- 5756/RLINLD/2008 
-PRODUÇÃO: 
MATIKO EDITORES 
-AUTORA: 
Paulina Chiziane 
-REVISÃO: 
Américo Pacule 
- LAYOUT & PAGINAÇÃO: 
Mauro Matsinhe 
-TIRAGE~: 
1 000 exemplares 
- IMPRESSÃO: 
CIEDIMA, LDA 
11 11 Edição --------------------------
À memória de RICARDO CHIZIANE 
Nosso herói, nosso patriarca, 
que nos embalou com hinos de liberdade; 
um dia reuniu-nos e disse: 
"Da pobreza das nossas vidas nascerá a 
grandeza das nossas almas." 
"Thomba ngu wusiwana" 
A nobreza reside no coração dos pobres 
Provérbio Chope 
AS ANDORINHAS 
., 
Paulina Chiziane III 
AS ANDORINHAS 
Se queres conhecer a liberdade 
Segue o rasto das andorinhas 
(ditado chope) 
,. 
IV 11 Edição --------------------------
AS ANDORINHAS 
Este livro nasceu em Luanda na casa 
de Helena Zefanias Lowe, 
Numa noite de conversas 
intermináveis. 
Helena: obrigado por todos os 
momentos!. .. 
Paulina Chiziane V 
,. 
Prefácio 
AS ANDORINHAS 
- As grandes mentiras incubam 
grandes verdades. 
- E as andorinha~ General? 
- Se queres conhecer a 
liberdade, segue o rasto das 
andorinhas ... 
Paulina Chiziane 
A andorinha é uma ave ágil, com uma capacidade de voo invejável. 
Agitada e rápida, faz voos rasantes. O seu alto sentido de orientação 
permite voltar ao ponto de partida, após uma migração de largas 
centenas de quilómetros. 
As Andorinhas é a nova incursão literária de Paulina Chiziane, 
um composto de relatos em torno de três personalidades ágeis 
no seu tempo e saber. A primeira foi um gordo que chefiava um 
império, porém, atrapalhada por uma andorinha cuja caganita lha 
caiu no olho. A segunda, nobre, viveu numa extrema pobreza, 
mas conquistou a América, mesmo com os pés descalços. A 
sexualidade da terceira foi questionada por outras mulheres 
porque, entre tantas "anomalias", nada fazia para ter uma pele 
lisa, como o caju , para agradar aos homens. Foi pontapeada por 
se intrometer em coisas masculinas. 
Após longos voos, as três personalidades retornam às origens, 
tal como as andorinhas, mas, cada uma, desenhando os seus 
próprios contornos. 
Este livro narra, sucessivamente, a rivalidade entre dois povos 
amigos; a rota invejável de um unificador que não viveu para celebrar 
o seu sonho; e a glória de uma águia que foi ao encontro do seu 
sonho e elevou, como ninguém, a bandeira da sua nação. Pelo meio, 
estão algumas notas da resistência à dominação colonial, da luta pela 
independência de Moçambique e a procura da gestão da liberdade. 
Paulina Chiziane VIl 
AS ANDORINHAS 
VIII 11 Edição 
A escritora chope, filha de um alfaiate de esquina e de uma 
camponesa dona de casa, usa o seu poder de contadora de histórias 
para partilhar o percurso dessas três personalidades, desafiando o 
leitor com um debate sobre o passado e presente de Moçambique. 
Como referência, ressalta-se o diálogo que estabelece com Chitlango, 
filho de chefe, título da conhecida biografia de Eduardo Mondlane. 
As andorinhas é um livro que sai numa altura em que, 
acentuadamente, se fala das vantagens e desvantagens da 
globalização. Alguns se referem a isso como se de um barco 
abarrotado de referências do além se tratasse, que leiloa, sem 
quaisquer regras, soluções para uma infinita gama de problemas. 
Há, porém, quem diga que ao dito barco falta a consultora da lucidez, 
o que tem levado a que tais "soluções" sejam despejadas, sem ter 
em conta o conhecimento local. Chiziane brinda-nos com pitadas 
dessa lucidez, mostrando-nos que se trata de um assunto antigo: 
não terá sido por falta de lucidez que, noutros tempos, o imperador 
levou muitas luas para perceber que não existiam chicotes para 
castigar andorinhas? 
"Meu pobre imperador, a geração que vem buscará a nossa 
grandeza em monumentos de pedra, sem perceber que nós, 
antepassados, escrevemos a nossa história em monumentos de 
sangue.'.Os nossos descendentes rir-se-ão das nossas crenças, 
das nossas rezas; comerão peixe e todos os insectos marinhos, 
sem se importarem com a nossa realeza; tudo muda, ah, meu 
gordo imperador!" 
Definitivamente, Paulina Chiziane é mesmo uma contadora de 
estórias. E histórias. Depois de Balada de Amor ao Vento (1990), 
Ventos do Apocalipse (1995), O Sétimo Juramento (2000), Niketche 
- uma história de poligamia (2002) e O alegre Canto da Perdiz 
(2008), ei-la agora, aqui, com As Andorinhas, como se estivesse à 
volta da fogueira, onde se sente bem. 
Maputo, 9 de Abril de 2008. 
Amâncio Miguel 
I 
AS ANDORINHAS 
( 1 ) 
Depois do pasto de xíma branca, branquíssima, sílada·no alguidar, 
acompanhado de nhewe cozido, leite coalhado e carne grelhada, 
sente muito calor, o imperador! Não é da comida, não. O calor vem 
do sol e das banhas daquele corpo de elefante. O imperador é 
moderado e muito requintado no prato. Ao pequeno-almoço toma 
leite coalhado ou leite fresquinho que sai quentinho da vaca. Gosta 
de carne grelhada, mal passada, e xíma azeda. Toma o seu copo 
de aguardente, mas pouco. A natureza faz, por vezes, isto: tamanho 
grande, feito de pouca comida. É de boa raça, o imperador! 
Desloca o grande corpo para o repouso predilecto debaixo da 
sombra da grande mpháma . Deita-se de papo para o ar, ao lado da 
sua dama preferida. Pousa os olhos no horizonte criador. Descobre 
que são seus, os espaços terrestres e o infinito celeste; que são 
suas, as estrelas que à noite brilham; que são suas, as árvores que 
transportam a brisa do entardecer. Contempla a sua obra e suspira 
de orgulho: 
- Fui eu quem transformou tudo isto em vida. Coloquei luz nos 
olhos dessa gentalha. Quando aqui cheguei, a terra era selvagem e 
era macho. Domestiquei-a. Tornei-a fêmea, é toda minha, faço o que 
quero. Dá-me bons frutos, cereais, gado. Dá-me sol e chuva. Nesta 
terra efeminada, os homens me servem de joelhos, porque já não 
são homens. Sou o único macho na superfície da terra. 
Uma andorinha canta alegrias no espaço. De pança cheia, 
baila. Liberta os intestinos e a caganita balança na cloaca. Cede à 
gravidade e cai no olho do imperador. 
O corpo ·bojudo, movido pela fúria, ergue-se como uma mola. 
Dos olhos túrgidos, desprende-se o dragão que dorme por dentro. 
O imperador pode resistir a tudo, menos àquele ultraje: cocó de 
pássaro? Não, não pode suportar. Ele que venceu todas as batalhas, 
que transformou a vida, que vavou as orelhas dos cativos, que 
fecundou todas as mulheres da terra, que ngungunhou tudo à sua 
medida, não podia ser abusado por um simples pássaro. Desvairado, 
chama pelos seus guerreiros. Hoje ele é dragão, ele é leão. Ele ruge. 
- Nguyuza? Lumbulule? Marivate? Khumalo? Sithole? 
O grito que solta corta a respiração de quem o escuta. Os homens 
vêm correndo. Ajoelham-se diante do soberano, recitam em uníssono. 
Paulina Chiziane 03 
Quem manda aqui? 
- Às ordens, Alteza. 
- Quem manda debaixo do sol? 
- Deus- respondem de novo em uníssono. 
- Deus? - a raiva do imperador cresce. 
-Sim. 
- Quem é Deus aqui? 
O Nguyuza é o primeiro a falar. É o chefe. A ele cabe a primeira 
palavra e ao imperador, a última. 
-O nosso imperador é Deus. É o Mambo dos Mambos, o Nkulunkulu! 
Eles respondem a mesma ladainha de sempre, com tremor 
acrescido naquelas vozes de guerreiros. Pressentem que nada de 
bom virá daquele chamamento. 
- Ordenei o silêncio - barafusta o gordo imperador. 
- A aldeia inteira está em silêncio - responde Lumbulule - nem 
uma mulher a pilar. Nem uma criança a chorar. O silêncio é total. 
- E aquele pássaro? 
-Que pássaro? - Pergunta Khumalo. 
Pousados no tecto do céu, os olhos dos homens iniciam a busca. 
Descobrem. O calor da hora recolheu os pássaros ao aconchego 
dos seus ninhos. Na sombra da grande mpháma, elas balançam, 
elas bailam. Trazem nos bicos pios alegres que chovem aos ouvidos 
como a frescura da brisa. 
- São vozesdas andorinhas, Majestade- responde Marivate. 
- Foram enviados pelos espíritos para cantar louvores à sua 
Majestade, embalar o seu repouso, Hosí! -Acrescenta Lumbulule. 
- São vozes divinas prenunciando a paz - diz o filosófico Sithole, 
sem convicção nenhuma - no magnífico canto afirmam que sua 
Majestade é o mais potente dos homens e que fecundará todas 
as mulheres no mundo. Dizem, igualmente, que as vacas ficarão 
prenhes e as galinhas terão mais ovos. Prenunciam que os celeiros 
abarrotarão de alimentos na próxima colheita. 
- Conheces a linguagem dos pássaros, Sithole? - Questiona 
o imperador. 
- Não conheço, mas entendo. 
- Não conheces e nem entendes, seu cabeça de galinha, cala-te! 
- Eles dizem que o nosso imperador é o eterno Deus, o rei 
sobre todos os reis - acrescenta Khumalo, atiçando ainda a fúria 
de Sua Majestade. 
- Estúpidos, silenciem todas as andorinhas - ordena - apanhem-
nas. Tragam-nas aqui ao castigo, para que todas as aves do mundo 
saibam quem manda aqui! 
04 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
Os homens esquecem as ladainhas habituais de "Sim Alteza", 
"Viva Alteza", por tudo e por nada. Ficam simplesmente mudos, 
navegando perdidos num mar de espanto. Treinados para a 
guerra, são cegos cumpridores das ordens, mas hoje questionam 
em silêncio: 
- Estará, o imperador, enlouquecido? 
-Terá bebido um copo a mais? 
-Terá fumado daquelas ervas que crescem livres nos campos? 
Na mente do imperador, a loucura e a lucidez bailam no 
mesmo compasso. Parece que a demência começa a marcar 
presença. Subtilmente. 
- Silenciar as andorinhas, Majestade? - pergunta Nguyuza. 
- Não ouviste? Perdeste os ouvidos? 
- Perdão, Majestade. A pergunta é meramente técnica. Só queria 
confirmar a ordem para melhor estruturar as regras, depurar o 
método, refinar a estratégia desta missão. 
- Nguyuza, quero silêncio, muito silêncio. Que a natureza à volta 
se cale na hora do meu repouso. 
- Sim, Alteza. 
O Poder é uma armadura invisível que eleva o espírito humano 
aos píncaros do absurdo. Pelo poder, os guerreiros sangram a terra e 
castram a virilidade dos homens. De tanto poder, o imperador sente-
se no pico das montanhas de Zulwine, esquecendo o pormenor mais 
importante: no topo da pirâmide, o seu corpo de elefante não terá 
equilíbrio. Cairá. 
- A ordem está dada - remata o imperador. 
- Estamos aqui para obedecê-lo, Alteza- completa Nguyuza- as 
suas ordens serão cumpridas a rigor. De resto, as andorinhas são 
aves inúteis que nem servem para comer. Não respeitam o nosso 
imperador nem o nosso império. Vamos castigá-las. 
- Quero uma solução rápida, de qualidade! 
- Sim, Alteza. Só preciso de algum tempo para organizar uma 
expedição forte e dar lição a esses insubmissos. 
- Assim é que se fala General, assim é que gosto - sorria o 
imperador acariciando o ventre reluzente de bons manjares. 
- A estratégia será infalível, Alteza - assegurou Nguyuza - A 
vitória será retumbante. Traremos esses passarinhos ao magno 
julgamento, juramos. Serão castigados e aprenderão, na dor, 
Paulina Chiziane 05 
Quem manda aqui? 
quem manda nos raios do sol e na direcção dos ventos. Todas as 
andorinhas do mundo saberão de uma só vez, quem ordena as 
tempestades e as trovoadas medonhas que ngungunham o mundo! 
- Concedo-vos apenas esta noite para se prepararem. 
-Sim, Alteza. 
- Agora desapareçam da minha frente. 
Todos baixam as cabeças e batem as palmas em sinal de total 
submissão. Eles sabem que cada palavra do imperador é um escarro 
sobre a vida. Ali mata-se. Ali morre-se. Para perder o sopro, basta 
apenas pisar o mais ínfimo risco. 
- É para já, Alteza! - responde Marivate. 
- Longa vida, Alteza! - diz Lumbulule com voz de mulher. 
Com a alma empanturrada de grandeza, o imperador regressa ao 
seu repouso e ronca, sereno. Era ele Mudungazi, o Ngungunhana! 
Que ngungunha homens e mulheres. Por isso, o mundo pertence-lhe! 
( 2) 
Nguyuza sente calor e frio. O estômago comprime-se numa 
náusea profunda, e o vómito vem a caminho. Os intestinos também 
se rebé"Jam, e ele corre em direcção à moita. Defeca e vomita 
fel, muito fel. Já livre do desconforto, procura repouso na sombra 
predilecta. A purga traz-lhe clareza na mente. 
Pensa nas ordens acabadas de receber. As palavras do gordo 
imperador são o prenúncio da dança de sangue à volta do fogo. 
Com a história das andorinhas, o imperador busca pretexto para 
uma nova sangria, as suas ordens são mais mortíferas do que as 
balas dos portugueses. Seria mais fácil receber ordens para matar 
um homem. Mas um pássaro? 
Na capital do império, o luto ainda enjoa as pobres viúvas. Na 
semana finda, guerreiros valentes foram atirados à vala comum, 
como gatos mortos. Tudo porque o gordo imperador mandou 
silenciar uma manada de hipopótamos que se refrescava no lago, 
em pleno sol. Organizou uma expedição, e os homens fizeram-se 
ao desafio. Hipopótamos e humanos não lutam com as mesmas 
armas. Enquanto os guerreiros nadavam e tentavam desferir golpes 
com as frágeis lanças de ferro, os hipopótamos, numa só dentada, 
quebravam o guerreiro pela coluna e atiravam o corpo para dar 
06 11 Edição ---------------------------
AS ANDORINHAS 
de comer aos peixes! Cem guerreiros mortos é o balanço. Outros 
cinquenta e tal sofreram graves mutilações. Perderam os braços, 
perderam as pernas, perderam as cabeças. Agora é a guerra contra 
os pássaros. Quantos se irão perder desta vez? 
Na diarreia acabada de ter, a expressão de medo. Naquele vómito, 
o espelho do pânico. Nguyuza começa, então, a falar sozinho como 
um louco. Revoltado, faz um exame do seu percurso e conclui: "a 
vaidade deste gordo, eu é que a sustento. Consumi a minha vida, de 
batalha em batalha, de conquista em conquista, somando vitórias, só 
para sustentar a grandeza que o enlouquece". 
O pôr-do-sol vem e dialoga com a sua imagem que se reflecte 
nos últimos raios de sol. Espelha-se. Renega-se. Não, não é minha 
aquela imagem de sanguinário estampada no sol, que parte correndo 
atrás do imperador, na conquista do nada, não, não posso ser eu. De 
onde me veio esta cegueira, a ponto de me deixar montar como um 
cavalo louco correndo ao gosto do imperador, aperfeiçoando a arte 
de matar para sobreviver? Que poder é este que destrói, derruba, 
elimina? Eu quero mudar, ser outro. Gostaria tanto de nascer outra 
vez, para ser outro, e não este! 
Outras andorinhas dançam na copa da mafurreira. Nguyuza 
levanta os olhos e observa atentamente. Tenta identificar a que 
logrou a maior proeza da história. Sorri e monologa: "Cagar no olho 
do imperador? Bravo macho é essa andorinha! Ousou desafiar a 
virilidade do mais alto do império, o Ngungunhana, que ngungunha 
todos os homens e todas as mulheres do planeta. Ah!" 
O riso traz nova inspiração. Irá, sabiamente, preparar a melhor 
estratégia militar para abrilhantar a carreira dos bravos guerreiros, 
com uma caçada de pássaros, só para aplacar a ira do soberano. 
Irão todos armados de escudo e lança. Com que armas se iriam 
defender as pobres andorinhas? 
Uma brisa repentina arrebata-lhe para o outro lado da vida, num 
sono de magia, e os deuses se revelam. Num curto sonho, vê 
primaveras e flores. Vê muito espaço azul e muita nuvem branca. 
Descobre que está no céu. Os seus olhos machos procuram um 
encanto celeste, uma estrela, um anjo do sexo oposto ao seu, um 
pedaço de céu, para guardar na memória e recordar. Foi então que 
viu uma andorinha fêmea de penas sedosas, reflectindo cores de 
diamante. Atraído por tanta beleza, transformou-se em pássaro, voou 
em direcção a ela. Esta, mais veloz, eclipsou-se entre as nuvens. 
----------------------------- Paulina Chiziane 07 
Quem manda aqui? 
Ele foi voando, voando, procurando, desesperadamente, aquela 
imagem deslumbrante. Acabou entrando na fortaleza do reino das 
andorinhas. Ficou morto de espanto. A fortaleza não tinha paredes, 
nem tecto, nem armas. No meio dela, viu um palácio de pérola e 
cristal sem guardas nem generais, completamenteadornado de 
estrelas, e protegido por correntes de ar puro. Na entrada do palácio 
estava um velhinho simpático, dormindo a sesta. 
- Bom velho, não viu a andorinha mais bela do mundo a passar 
por aqui? 
- Ah - respondeu o velho - ela espera-te no horizonte do sonho. 
- É tão bela! Eu amo-a tanto! Onde fica o horizonte do sonho? 
- Dentro de ti? 
- Como a encontrar? 
- Encontrá-la-ás. Mas é muito caprichosa e só abre o coração a 
seres livres. 
- Eu sou um homem livre. 
- Tu és um general! 
( 3 ) 
Depois do mágico sono, o doce despertar. Nguyuza corre para a 
casa da sacerdotisa para decifrar o enigma. Respira fundo e diz tudo 
num só fôlego. 
-Tive um sonho. Eu flutuava como pássaro no mais alto dos céus. 
-Sonho bonito- confirma a sacerdotisa- és um homem de sorte. 
-Sorte? 
- Sim. Só as almas abençoadas vencem o peso, voam no alto e 
alcançam a sagrada dimensão! 
Nos olhos da sacerdotisa, um mar de ternura se reflecte. Nguyuza 
mergulha na imensidão desse mar e se perde. Sorve todas as ondas 
de frescura e se engasga. O coração navega em sentimentos novos. 
Suspira. Meu deus, como ela é bela, como é pura! 
- Decifra o meu sonho - implora o general. 
- É a chave do teu destino. 
-Destino? Que destino se pode esperar na loucura do imperador? 
- A lucidez e a loucura são filhas do mesmo parto. Quando se 
fundem no mesmo ponto o destino se revela. 
08 11 Edição --------------------------
AS ANDORINHAS 
Nguyuza sorri. 
- Fala-me, então, das cores do destino. 
- No Zulwini , o reino das andorinhas aguarda a tua ct:tegada. 
- Eu? Lograrei conhecer esse lugar maravilhoso com estes olhos 
que a terra irá comer? - pergunta Nguyuza, inspirado. 
-Já lá estiveste. 
- Eu? 
- De lá todos partimos. 
- Marchei a vida inteira e nem cheguei perto desse lugar. 
- É o útero da vida sem o qual nenhum ser existiria. Regressar é 
a sorte de poucos. 
-Onde fica? 
- Zulwini é o princípio e o fim. É aqui ou qualquer lugar. 
-Chegarei? 
- Escolhe. Entre a lucidez e a loucura. A via longa ou a via curta. 
Qual dos caminhos prefere? 
- Ah, Sacerdotisa bela! Sou um simples guerreiro, não sei decifrar 
os enigmas do destino. Vem comigo, e ensina-me o caminho. 
- Oh, grande honra! - pergunta ela emocionada - como posso 
recusar o pedido do mais poderoso dos generais? 
Envolvem-se num abraço com sabor a mel. A sacerdotisa 
transforma-se na andorinha do sonho, e Nguyuza, num homem 
livre. De braços dados, voam no azul em direcção ao horizonte. No 
silêncio do general, a inspiração, a poesia: eu admiro-te sacerdotisa! 
Eu amo-te! Os teus olhos de mar incendeiam o meu corpo. O teu 
sorriso massaja-me o peito num fogo cálido, ah, Sacerdotisa! Ele 
e ela ardem de desejo, mas não se beijam. Ela é uma eleita pelos 
deuses, é celibatária, é virgem como todas as freiras. Freiras na 
versão bantu, evidentemente. Se Nguyuza ousar possui-la, mesmo 
por amor, sofrerá o supremo castigo: a impotência. E ela será 
repudiada pelos espíritos. Ficará cega, surda e coberta de pústulas. 
- Partiremos antes do raiar do sol, prepare-se, doce Sacerdotisa. 
Como uma criança no despontar da aurora, Nguyuza ganha 
leveza na alma. Caçar andorinhas? Um encanto. Que melhor 
diversão podia ter um velho general cansado de guerras? Na voz 
do general , o lamento do tempo perdido. Meu pobre imperador: a 
geração que vem buscará a nossa grandeza em monumentos de 
pedra, sem perceber que nós, antepassados, escrevemos a nossa 
Paulina Chiziane 09 
Quem manda aqui? 
história em monumentos de sangue. Os nossos descendentes rir-
se-ão das nossas crenças, das nossas rezas; comerão peixe e todos 
os insectos marinhos, sem se importarem com a nossa realeza feita 
de penas de pavão, tudo muda, ah, meu gordo imperador! 
( 4 ) 
O sol surge dourado do ventre mãe da nascente. Está tudo 
organizado. Zelosamente. As estratégias refinadas cuidadosamente. 
Os rapazes farão as fisgadas. As raparigas farão a colecta das 
andorinhas presas ou mortas. As mulheres irão tecer as redes e 
armadilhas, caso seja necessário. Os guerreiros farão a protecção 
contra as feras. Mobilizam-se famílias inteiras: pais, mães, filhos e, 
até, avós. Ninguém fica. 
O imperador manda soltar as fanfarras para celebrar a partida 
dos guerreiros. Enche os ouvidos dos homens com palavras de 
ordem, mesmo sabendo que não se tratava de missão nenhuma. 
Era simples teatro. Diversão. Gozando dos poderes que tem, pondo 
gente em movimento, por actividade nenhuma. 
Os guerreiros, apesar de contrariados, reconhecem no líder louco, 
inegá\léis talentos. Bom estratega. Cérebro astuto, que o conduziu 
de vitória em vitória à construção do Império de Gaza. Sabiam de 
que aquela farsa era para privá-los da gordura e preguiça. Era para 
mantê-los ocupados e não perderem habilidades de guerra; há 
muito que não havia combates. O imperador repara que Nguyuza 
mobilizou os melhores guerreiros, mas não se rala. Tratava-se de 
uma caçada de pássaros, no final da tarde estariam de regresso e o 
império não ficaria privado de segurança. 
-Nobres guerreiros do império; desejo-vos sorte no cumprimento 
da vossa missão- grita o imperador. 
-Sim, Alteza. 
As mentes dos guerreiros, ainda sonolentas, resmungam. De tanto 
poder, o imperador já não sabia o que fazia. Por isso, respondem aos 
gritos e, sem a menor excitação, dizendo apenas o que ele gostava 
de ouvir. De resto, não iam matar. Nem morrer. Iam dar um passeio 
pelos campos, regressar ao leito e dormir. 
- Quero ver todas as andorinhas de castigo e em silêncio- repete 
o imperador. 
10 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
- Sim, Alteza! 
- Na vossa missão, aproveitem a ocasião para ngungunhar os 
chopes, esses infelizes. 
- Porquê os chopes agora, Alteza - questiona Nguyuza - se eles 
andam bem quietinhos e já não provocam os habituais distúrbios? 
- Os chopes? Só eles podem enviar-me as andorinhas para 
provocar-me. Só eles. Estão interessados no meu desassossego. 
Os infelizes confiam nas suas flechas e nos seus arcos, porque não 
querem reconhecer que é a mim que o poder pertence. 
- Acha, então, que a andorinha que cagou no seu olho é 
mágica, Majestade? 
- Não acho, tenho a certeza. Os chopes, esses insubmissos, têm 
o dom do feitiço e só eles podem fazer-me essas afrontas! 
- Usando cocó de andorinha para derrubar um império? 
- Ah, vê-se mesmo que não conhecem os poderes maléficos 
desses infelizes! Parem de fazer perguntas e cumpram as 
minhas ordens! 
-Sim, Majestade! 
O sentimento do imperador é de temor e respeito pelos chopes, 
esses rebeldes machos de arco de flecha. Que o desafiam 
continuamente. É o único povo que não consegue ainda subverter. 
Por isso, os humilha sempre que pode. 
- Agora, repeti o grito de guerra para que os chopes escutem. 
Ordena o imperador. 
-Submetei-vos, chopes malditos -gritam os guerreiros- submetei-
vos ao nobre imperador e serão salvos. Ele venceu os infiéis. Invadiu 
a pátria dos Khambane e matou o poderoso Mbinguana. Invadiu a 
terra dos N'wanati e construiu a capital do grande império. Quem 
não crê nele, morrerá! 
-Dizei-me bravos guerreiros- incita o imperador- que tratamento 
se deve dar a esses chopes, a esses bastardos? 
- Transformá-los em fêmeas. Vavar-/hes as orelhas e enfiar-lhes 
brincos de mulher. 
- Para quê? - questiona divertido o gordo imperador- para quê? 
- Para que a grandeza do império se reconheça à distância. Para 
que os bastardos exibam, no corpo, a falta de virilidade. 
- E se encontrarem os nobres trabalhando nos campos? 
- Saudá-lo-emos de joelhos. Colocá-lo-emos o m 'boti , a coroa 
negra destinada aos iluminados do império. 
----------------------------- Paulina Chiziane 11 
I _ _ _ 
Quem manda aqui? 
12 11 Edição 
( 5 ) 
É velha a marcha desta vida. Em cada geração apenas 
define uma nova meta e um novo mote. Os guerreiros renovam 
os passos da grande marcha, buscando a paz na lonjura dos 
caminhos. A estrada das andorinhas é no azul , no alto. A estrada 
humana é cinzenta, poeirenta, de barro negro. Com espinhose 
pedregulhos. A multidão tenta alcançar os pássaros em voo e a 
marcha transforma-se em corrida. 
A cada passo, a paisagem vai mudando de forma, trazendo vislumbre 
nos olhos das mulheres, que suspiram: afinal é bom viajar fora do 
cercado da cozinha. Lavar os olhos com as formas da terra. Encher 
a mente de belas imagens. Conhecer caminhos, paisagens, lugares. 
Sentir o peito a dilatar de prazer perante a grandeza dos montes. 
Na mente dos guerreiros a mesma pergunta. Terá, Nguyuza, 
capacidade de agarrar andorinhas vivas? Como se castiga uma 
andorinha? Existem chicotes para andorinhas? Continuam a marchar, 
um sol sucedendo a outro, ininterruptamente, como as etapas de 
uma vida. As pessoas extasiam-se: é maravilhoso ver o mágico Rio 
Save, com olhos vivos. Mergulhar os pés nas águas mansas do rio 
belo, tortuoso, fertilizante. Atravessam-no e continuam a marcha. 
Dias depois, encontram o mítico Rio Mussapa, de águas límpidas. 
Banham os pés nas águas sagradas. Exorcizam dos maus espíritos 
nas águas bentas. Purificam os corpos com bênçãos dos mortos que 
residem nas ondas e continuaram a marcha. 
Numa certa noite, um leão ruge. Os braços fortes dos soldados 
empunham as armas, matam o leão e a sua leoa, e continuam a 
marcha. Chegaram ao Rio Púnguê, esse rio majestoso, rio macho, 
rio bravo, que não se deixa montar como uma fêmea qualquer. 
Lutam contra a bravura das águas e atravessam. Descobrem que 
as ondas bravas repousam sobre o leito feito de terra fêmea, negra, 
doce e fresca. Uma terra em cio, aguardando os braços amorosos 
de um povo macho, pronta para a fecundação perfeita. As mulheres, 
loucamente apaixonadas pelo lugar, sonham com hortas verdes e 
celeiros fartos. Mas, o general Nguyuza não permite sequer uma 
paragem, e elas encheram as bocas de murmúrios: 
- Quantos sóis terão passado, depois da partida? Quando 
deixamos a capital do império, a lua tinha a forma de uma banana. 
AS ANDORINHAS 
Cresceu, engravidou , pariu muito luar e já emagreceu. Voltou a 
ser a casquinha de banana, e Nguyuza ainda não nos deu um dia 
de descanso. 
As perguntas indisciplinadas das mulheres começam a chover 
como granizo. 
- Por que nos arrasta para tão longe, se em todos os bosques 
podemos caçar? Olha a quantidade de andorinhas naquela árvore. 
Podíamos parar aqui e fazer uma boa caçada, encher sacos e sacos, 
e regressar. 
- Perderíamos, nós, o nosso tempo, caçando estes- responde Nguyuza. 
- Por quê? 
- Estas são como nós, de escalão inferior. São andorinhas 
fêmeas, subalternas, obedecendo a um comando macho, de um rei 
ou imperador. Não posso arriscar a vida deste povo, regressando 
sem a missão cumprida. 
Os olhos delas fazem buscas na floresta. Descobrem. 
- Nguyuza, nosso General - murmuram as mulheres - podíamos 
parar um pouco, cortar os ramos das árvores mortas para o conforto 
da noite. As crianças tremem de frio . 
- Se virem uma árvore morta, de dia, desconfiem - responde o 
general com palavras sábias - estamos em terras desconhecidas, 
a natureza está repleta de segredos. Árvores mortas que florescem 
em noites de magia, rainhas da vida e da morte que dão poderes de 
ressurreição. Quem tem a sorte de comer dos seus frutos, vence a 
morte e a escuridão dos túmulos. 
- Só queremos o combustível dos seus ramos, as crianças morrem 
de frio nas noites, General. 
- Na árvore da eternidade, não se toca. Ela pune com a morte 
todos os que a ferem. 
-Onde iremos buscar a lenha para as noites de frio? 
- No céu. Ou no solo sagrado do reino das andorinhas. 
- Só os loucos seguem o rasto das andorinhas, meu General -diz 
uma das mulheres. 
- Louco? -pergunta-se. 
De repente, é assaltado por um temor incrível: ser chamado de 
louco por um homem é uma afronta que se paga com a morte. Por 
uma mulher é um mau sinal. De onde lhe vem esta ousadia? Não 
tardarão as crianças e os velhos a tratarem-no como um louco, sem 
o menor respeito. A anarquia em breve estará instalada no grupo. 
Paulina Chiziane 13 
Quem manda aqui? 
Inspirado pelo zelo no cumprimento da missão, lança ao ar todos 
os dados: se no meio da mata um rato surge, há um celeiro por 
perto. Se uma ave doméstica aparece, há uma aldeia por perto. Uma 
palavra injuriosa contra o líder é mensageira da conspiração que se 
avizinha. De certeza, a mulher apenas repetiu a palavra ouvida na 
voz de um homem nos suspiros do leito. 
Chamaram-me de louco, logo agora que o mundo das andorinhas 
está mais nítido, mais visível, mais próximo. Agora que se tem a 
pista, as mulheres lançam murmúrios com palavras mortas. Quem 
está a cultivar a horta dos murmúrios? Quem as aduba? Lamentos 
de mulher? Os homens lançam gemidos cancerígenos nos ouvidos 
delas. Quem terá sido? Algum guerreiro? O que virá depois deste 
insulto? Desordem. Anarquia. Fracasso. Decide, então, disciplinar o 
grupo. O General manda interromper a marcha e põe em prática as 
cogitações que lhe correm na mente. 
- Quem me quer chamar de louco que se acuse! 
A pergunta remete os guerreiros ao silêncio. Sabem o que significa 
desafiar um General em plena acção. 
- Quem ousa desafiar a minha autoridade? 
De novo, o silêncio. 
- Passei por provas muito duras para me tornar homem - recorda 
o General- venci muitas batalhas para merecer este posto. Querem, 
agora, fazer-me recuar, perante um bando de pássaros? Jurei 
fidelidade ao imperador. Cumprirei a missão com muita dignidade. 
Serei condecorado, acreditem. A história da minha vitória será 
contada e recontada. Serei consagrado herói depois desta missão. 
Não me respondem? 
Chegou a hora do desembainhar de espadas para recordar a 
todos que a lei existe. 
- Marivate, amarra o Lumbulule no tronco daquela árvore- ordena. 
A ordem é imediatamente cumprida, e os soldados tremem de 
medo. De onde vinha aquela aspereza? E por que a escolha do 
Lumbulule, como vítima? E, por que se elegeu o Marivate como 
carrasco? Não conseguem resposta. São os mistérios do acaso 
escolhendo, criteriosamente, as suas vítimas. Tanto um como outro 
eram muito disciplinados. Mas também são os mais preguiçosos 
que, com maior prazer, saboreiam o descanso. 
- Chicoteia-o, Marivate, mas não o mate. 
14 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
Lumbulule retorce-se no tronco, fazendo par às chicotadas e uivos, 
na dança e contradança. Um castigo sem história, sem suspiros 
nem lágrimas das mulheres. Elas estavam preocupadas com a 
própria fome, com o cansaço que fazia deles seres morto-vivos. Só 
Lumbulule chorava de dor e de raiva, por estar a ser castigado sem 
saber por quê. 
- Se alguém, entre vós, me chamou de louco, nos ouvidos de uma 
mulher, que se acuse! 
De novo, o silêncio. 
- Vocês são soldados, e a vossa missão é disciplinar o grupo, 
lembrem-se. Não quero mais ouvir a palavra, louco. De agora em 
diante, quero apenas ouvir o choro das crianças e as cantigas dos 
pássaros. Nada de lamentos, de quem quer que seja, ouviram? 
- Sim, meu General. 
Depois da sessão de castigo, a lavagem cerebral e a moralização 
do grupo. Nguyuza retoma a palavra em gritos de guerra. 
- Somos um exército forte ou fraco? 
- Somos fortes. Fortíssimos. Imbatíveis!- Respondem todos 
os guerreiros. 
-Sabem de onde vem esta força? 
-Sabemos. 
- Então, digam-me. Quero ouvir. 
- De Macupulane, o rei dos chopes. 
- O que aconteceu? 
- Matamo-lo. 
- E depois? 
- Bebemo-lo! 
- Sim, bebemos o rei dos chopes - remata Nguyuza - têm boa 
memória, vocês, mas quero que me digam tudo em pormenores. 
Para facilitar a tarefa, começo. Eu, Nguyuza, a mando do imperador, 
atraí o rei dos Chopes para uma cilada e matei-o. Pronto. Cada um 
que fale da sua parte nesse acto. Começa tu , Lumbulule. 
- Eu, Lumbulule, extirpei-o. Tirei-lhe o cérebro, o coração e as costelas. 
- Eu, Marivate, preparei a fogueira. 
- Eu, Khumalo, calcinei as partes do finado na grande fogueira. 
- Eu, Sithole, recolhi os pedaços calcinados e triturei-os num pilão 
de mulher. 
O general retoma a palavra num breve sumário. 
- Depois de tudo, eu Nguyuza, prepareia bebida. Misturei as 
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Quem manda aqui? 
cinzas das partes do finado, num barril de água que todos beberam. 
O grande imperador tomou o primeiro gole e embriagou-se. No 
delírio da celebração, todos gritamos: "bebemos o rei dos chopes! 
Não foi assim?" 
- Foi - respondem todos como crianças na sala de aula. 
- Assola-vos o medo do impossível? - Pergunta Nguyuza -
Temeis a viagem ao infinito? A ordem já foi dada, escolhei. Cumprir 
e viver ou recuar e morrer! 
- Cumpriremos as suas ordens, General! 
Os homens ficam estarrecidos. Levavam aquela missão de ânimo 
leve, mas eis que outro louco transforma-a num autêntico jogo de 
vida e de morte. 
- Quem me desobedecer será imediatamente imolado no fogo 
da desonra. Atirá-lo-ei ao abismo por cobardia. Não será bebido, 
porque não presta. Só se bebe o que é corajoso e bom, como o 
Macupulane, o rei dos chopes. 
O General é sempre assim. Depois de castigar alguém, renova os 
ânimos. Sente o prazer de disciplinar e submeter. Depois da frieza 
glacial, o degelo. Finalmente a bonomia. 
- Falemos, agora, como homens - convida o General - dizei-me 
com 9inceridade, bravos guerreiros: qual a causa desta insubordinação? 
Com palavras controladas, os guerreiros dão as respostas necessárias. 
- A fome, meu General - responde Khumalo - as crianças 
passaram dias e dias sem comer. A marcha é bárbara e as mulheres 
já emagreceram bastante. 
- As mulheres! Existem seres mais resistentes que elas? Elas 
conhecem o sacrifício supremo no parto da vida . Elas aguentam. 
E ainda bem que emagreceram - diz o General -a gordura atrasa 
a marcha. 
Não existe tirania nas atitudes do General. Ela conhece o sacrifício 
a consentir e os caminhos da soberania. Sabe tudo sobre os limites 
do corpo humano, mas a meta está na próxima etapa, não pode 
permitir a desordem e o desassossego neste instante. 
- No conforto e no repouso reside a morte da liberdade- explica o 
General - liberdade é buscar, caminhar e, por vezes, sofrer. 
- Estão todas cansadas, General. 
- Sim. Por causa das inúteis cargas que transportam. Atirem-nas 
todas às águas do Rio Púngue. 
- São mantimentos, General! 
16 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
- Só servem para engordar. 
- O que será das crianças, General? 
- Já viram as andorinhas? As fêmeas nunca transportam cargas 
à cabeça, mas comem. Nunca fizeram guerra, mas são soberanas. 
Os machos nunca voaram com lanças, nem arcos, nem flechas, mas 
vivem em liberdade. Sejamos como as andorinhas. Falemos a oração 
de todos os pássaros no despontar de cada sol, vamos, aprendam 
e recitem: "Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós, 
também". Vamos, repitam. 
Os homens repetem: 
- Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós, também. 
Arriscando-se a um novo castigo, Lumbulule questiona: 
- Estamos longe de casa, General. Deixamos muito para trás a 
terra dos chopes. Afinal , aonde vamos? 
- A um lugar sem nome, caçar a andorinha que cagou no olho 
do imperador. 
- Mas , General , não estará também a ficar louco como o 
nosso imperador? 
- Lumbulule, meu refilão, já ouviste falar do país das andorinhas? 
- Quer mesmo a minha opinião sincera, meu General? 
- Fiz-te uma pergunta. 
- O reino das andorinhas nunca se alcança- explica Lumbulule-
Elas vivem a primavera eterna, sem noite, sem sofrimento, sem calor 
nem frio. São livres. 
- Livres? O que é para ti a liberdade, Lumbulule? 
Fica em silêncio e voa num mundo sem guerras, nem castigos. 
Um mundo onde tudo é azul, frescura e arco-íris. 
- Não me respondes? - insiste o General. 
De novo, o silêncio. 
- Tens muita razão, Lumbulule. A liberdade não se expressa. Vive-se. 
( 6 ) 
- O General ainda não voltou? - Pergunta o imperador pela 
milésima vez. 
- Não - responde Xabalala, o conselheiro. 
- Porque demora tanto? 
Paulina Chiziane 17 
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Quem manda aqui? 
- Porque as andorinhas refugiam-se por trás da abóbada, depois 
do Zulwine , nesse lugar onde ninguém já conseguiu chegar, com os 
pés vivos. 
- Pressinto traição. 
- Não, não creio. Doze luas completas durou a viagem de 
Mossurize a Manjacaze. Dez ciclos da lua demora o parto de uma 
criança. Quanto tempo leva a marcha até ao país das andorinhas? 
- E se o General não regressar? 
-Voltará. 
-Quando? 
-Em breve. 
O gordo imperador está a emagrecer. As guerras dos portugueses 
são poderosas e Nguyuza não volta. 
- Será que devo mandar outra expedição para resgatá-los? 
-Ficaria sem guarnição, Majestade. É perigoso-aconselha Xabalala. 
(7) 
Os olhos dos viajantes espalham-se no céu onde as andorinhas 
bailam, cantam e brincam. Qual delas provocou esta tortura? Esta? 
Aquela? Nenhuma? O império de Gaza ficou lá atrás, com as 
suas andorinhas loucas, destemidas. As que bailam neste céu são 
elegantes, respeitosas, não cagam em qualquer lugar. 
A marcha prossegue com a maior disciplina do mundo, 
com as vozes dos guerreiros a gritar como pastores de gado: 
vai, segue, marcha. Chegaram às margens do Rio Nhathe, o 
Zambeze. Mergulharam naquelas águas e purificaram-se. E 
voltaram a caminhar. 
Chegaram ao Rio Chire e atravessaram. Chegaram a um lugar. 
Divino. A música do éden ouve-se das almas das andorinhas, aqui 
reside o princípio do mundo. O útero grávido dos montes dá à luz 
dois rios irmãos gémeos, Licungo e Malema, que seguem destinos 
opostos como o homem e a mulher, aqui nascem todos os pássaros. 
Nguyuza escuta a melodia verde e azul que vem da flauta dos 
canaviais e sorri: o alimento do meu povo brotará ao lado das rosas 
e antúrios que embelezam este solo. O meu túmulo estará nos 
contornos mais altos destes montes desenhados com exactidão e 
elegância, porque aqui nascem todos os sonhos. 
18 11 Edição ---------------------------
AS ANDORINHAS 
A Sacerdotisa olha para o General. Ele olha para ela. Sentem 
chegado o momento. 
Nguyuza ordena uma paragem. 
-Chegamos. 
-Aonde? - perguntam os soldados. 
- Ao reino das andorinhas. 
Todos levantam os olhos para o céu. 
- Chegamos? - Perguntam as mulheres e as crianças. 
-Chegamos, sim. 
O êxtase, finalmente! 
- Como é belo, o reino das andorinhas! - suspiram as crianças. 
Todos conheciam, afinal, este lugar que fazia parte de todos os 
sonhos, sem imaginar que ele existia, de facto. Não sabiam que a ele 
chegariam, nas asas das andorinhas. Os cajus maduros, as mangas, 
os ananases e mapfílwa, colam-se às bocas sedentas de beijos, e a 
fome daquele povo morre num instante. 
- Boa gente, - diz o General - estamos aqui para semear uma 
nova bandeira. Chegamos à terra prometida. 
O sonho maravilhoso transforma-se em realidade. O fim em 
princípio. Para trás ficou o triste cenário de um império em queda. 
Com as capulanas das mulheres, fizeram-se redes de pesca. 
Com as catanas dos homens desbravaram-se as matas e nasceram 
as hortas. Nos bicos das cegonhas vieram os grãos de milho, de 
laranja, limão. Da cloaca das andorinhas vieram as sementes de 
goiaba, de tomate, de papaia. Finalmente a fartura, o delírio. 
- Porque não nos disse a verdade General? - perguntam todos 
ao mesmo tempo. 
-Eu menti? 
-Não, mas ... 
-As grandes mentiras incubam grandes verdades-íemata Nguyuza. 
- E as andorinhas, General? 
- Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das andorinhas! 
&&& 
A Sacerdotisa e o General sobem ao monte de mãos dadas. 
Chegam ao ponto alto do Namuli, bem perto do Zulu. No trono 
de pedra que a natureza criou. Nguyuza senta-se como um rei e 
contempla as estrelas a partir do alto. Cansado de contemplar os 
céus, desce aos rios para olhar os raios de sol a deixar-se reflectir no 
----------------------------- Paulina Chiziane 19 
Quem manda aqui? 
espelho da água. Recorda o seu percurso de homem: menino, ainda, 
foi recrutado para a guerra e sofreu as mais terríveis privações. Era 
proibido amar ou apaixonar-se. Com tanta mulher bela que morria 
de amores por ele, como guerreiro não podia tocar em nenhuma, 
sob pena de morte, porque, naquele exércitode loucos, mulher era 
o galardão reservado aos guerreiros vitoriosos. Das tantas batalhas, 
coleccionou o seu harém. Dez esposas ao todo. Escolhidas pelo 
imperador para o vencedor. Recebidas sem amor nem paixão, como 
cabras mortas, espólio com sabor à guerra. 
Nos braços da Sacerdotisa, celebra a primeira paixão, o primeiro 
beijo e descobre que o verdadeiro amor é uma viagem curta para 
dentro do próprio íntimo. 
( 8 ) 
Andorinhas! 
Quem nunca as viu? Cantam e dançam por cima de todas I 
as coisas. Querem ouvi-las? Têm de levantar os olhos para 
1
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o céu, o Zulwine, lavar os olhos no azul que desperta, na 
voz, , acordes de ternura. Elas inspiram-nos a descobrir 
a grandeza da alma na imensidão do mundo. Quem lhes I 
conhece a idade? Quando nasceram? , 
Elas dançam, em roda, as cantigas da eternidade. De onde vêm ! 1 
elas? Daqui. Dali. De todo o lado. De lugar nenhum. São o olho . 
de Deus no controle do mundo. Primeiro foi o verbo. Segundo, a I 
natureza, os rios, os ventos e as estrelas. Em seguida foram os 
animais. Mais tarde, o homem e, finalmente, a mulher. 
Ninguém se pode gabar de ter assistido ao parto de uma 
andorinha. Porque elas existiram sempre e testemunham a todos os 
nossos partos. Em cada nascimento, elas estão lá colorindo o céu, 
anunciando, ao mundo, o parto de uma nova estrela. Trazem no 
bico, a mensagem dos mortos na celebração da vida. Elas informam 
da partida do sol e da chegada das flores. Dão-nos notícias sobre o 
sol e a chuva, verdadeiros guardiões da vida. 
Se, na ordem da criação, as andorinhas são mais velhas que a 
humanidade, como pode um simples mortal, pretender silenciar o 
seu superior, na hierarquia da existência? 
20 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
( 9 ) 
Os olhos do imperador se perdem no milheiral verde, carregando 
às costas espigas fartas. Faz as contas à vida. O rebanho cresceu. 
O gado triplicou. As mulheres engravidaram e pariram muitos filhos 
homens, guerreiros do amanhã. Os inimigos foram dominados. O 
poder é absoluto. 
Um dia, chegou um homem forte e ajoelhou-se diante do imperador 
pedindo clemência. 
-Quem és? 
- Sou o Matibyana, o rei dos rongas. 
-O que queres aqui? 
- A protecção. 
O gordo imperador olha para os lados. Chama o principal conselheiro 
-O que achas, Xabalala? 
- Não o receba, Majestade. 
-Por quê? 
-Vai atrair o azar para a nossa terra. 
-Qual azar? 
-Os portugueses. 
- Esses? Que poder têm, eles, para me afrontar? 
-Tem armas de fogo, Alteza. Esse homem pede abrigo porque 
andou metido em querelas. Virão importunar-nos. 
- Estás cego, Xabalala. Não vejo homem nenhum. É apenas 
um ser vencido, de joelhos, com aquela submissão que dá prazer 
aos meus olhos. Mal me viu transformou-se em mulher. Não é rei 
nenhum. Um rei não se ajoelha e nem pede clemência. Como posso 
eu recusar uma fêmea pedindo abrigo? 
-Os portugueses vão reagir, Majestade. 
-Tenho um exército poderoso. 
- De momento está ausente. 
-Onde foi? 
- Ah, Majestade! Enviou-o numa missão punitiva para disciplinar 
as andorinhas. Já se esqueceu? 
-Ainda não regressaram? 
- Não. Por isso mesmo não se deve meter em querelas. 
- Ah, mas voltarão dentro em breve . Os portugueses não 
me assustam . 
Paulina Chiziane 21 
Quem manda aqui? 
- E se não voltarem? 
-Voltam sim, voltam. Eles são meus cães de guarda e obedecem-
me cegamente, sou o seu imperador. 
-Pressinto traição, Majestade! 
-Não me fale em traição, Xabalala. Jamais serei traído. Deixem 
o Matibyana refugiar-se aqui , para aumentar o meu poder sobre 
os rongas. 
Xabalala tenta persuadir, em vão. O gordo imperador é teimoso e 
só faz o que lhe apetece. Matibyana ficou e os portugueses zangaram-
se. Vieram armados, colocando todo o império sob ameaça. 
&&& 
- Onde está o meu melhor general para me libertar dos invasores 
- gritava o imperador, atrapalhado - Xabalala? Tens notícias 
do Nguyuza? Porque é que não regressa? Onde estão os meus 
melhores homens? 
- As lanças dos guerreiros não alcançam os céus. Eles partiram 
para o princípio do mundo e só voltarão com a missão cumprida. 
-Vocês sabiam da traição e nada me disseram! Porque não 
me a.conselharam? 
-Acaso nos pediu um conselho? 
- O império está ameaçado - gemia o imperador entre lágrimas 
- Em breve será destruído, Alteza. 
- Xabalala, faz alguma coisa. Envia mensageiros e chama de 
volta o Nguyuza e os meus guerreiros! 
- As vozes humanas não atingem o horizonte! 
&&& 
Coo/e/a. 
Sipaios negros sitiam o abrigo do imperador, obedecendo ao 
comando dos portugueses. Penetram na fortaleza do império sem 
a menor dificuldade, os bravos guerreiros ainda não regressaram 
da caçada às andorinhas. Amarram o gordo imperador pelos 
pulsos. Um nó. Outro . nó. Arrastam-no para fora e exibem a 
caçada, para que o povo veja a nova aurora com os olhos que a 
terra irá comer. Não há resistência. Nem sangue. Nem generais 
gritando ordens de guerra. 
22 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
- Só te enfeitiça quem contigo vive - recorda o imperador, 
desconfiando dos autores daquela trama. 
Xabalala, seu conselheiro, é um homem afável, de muitas palavras 
e muitos rostos. Dono do gado e das belas mulheres; é capaz de 
castrar o próprio sexo para aumentar o poder. O Mbinguana, esse 
chefezinho dos chopes, deve estar por detrás disto. Revolta-se. 
Arrepende-se. 
- Nguyuza, por que me traíste? Por uma caganita de andorinha 
enfraqueci a segurança do meu império e tu, Nguyuza, levaste os 
melhores guerreiros e suas famílias para nunca mais voltar! 
O povo inteiro confere e confirma os ditados e os provérbios antigos. 
-Tudo passa. 
- Só não cai o que o feitiço segura. 
- Não há mal que perdura. 
- De bom mel não se enche a colher. 
- A hora chega para todos, aqui se faz, aqui se paga. 
O imperador nascera num berço de ouro. Nunca tivera uma 
ferida no corpo. Vavava as orelhas dos outros. Humilhava os 
vassalos e os inimigos, mas, hoje, chegou a sua hora. Matava a 
ferros e com o mesmo ferro será morto. Sonhos, tempestades, 
remorsos, esperança, desespero, bailam na mente do imperador 
como uma revoada de pássaros. Nos olhos, o desalento ao 
reconhecer que estava perdido para sempre. Lamenta. 
- Os meus guerreiros deixaram-me à mercê dos invasores. 
A vingança dos mortos caiu sobre mim. Por quê? Por causa do 
cheiro de sangue impregnado no solo do império? Por causa dos 
cem guerreiros mortos no lago, quando tentavam silenciar os 
hipopótamos que tamborilavam no lago, para eu dormir a minha 
sesta de imperador? Pelos milhares de chopes, cujas orelhas, 
mandei vavarcom canivete a sangue frio, só para lhes enfiar brincos 
de mulher? Pelo derramamento de sangue nas guerras sem fim? 
Houve tirania nos meus actos? Não, não houve. Governar é matar 
antes de ser morto. Conquistar é roubar para não ser roubado. É 
mudar tudo antes de ser mudado. Cometi algum crime ao proteger 
o rei dos rongas? Não, não cometi crime contra português nenhum. 
Que espécie de imperador seria eu, se não protegesse os meus 
aliados, só por temer os estrangeiros? Agora que me têm cativo, que 
farão de mim? Deportar-me? Matar-me? Destituir-me? 
- Senta-te no chão, imperador bantu- berrou um soldado branco. 
Paulina Chiziane 23 
Quem manda aqui? 
- Humilha-te perante o poder do novo império! - ordena o sipaio 
negro com a prepotência de um assimilado. 
Nova andorinha lança uma caganita que cai no cocuruto do 
imperador. O gordo tenta limpar a cabeça, mas tem as mãos atadas. 
O riso dos invasores desperta no imp_erador ondas de revolta: por 
causa de uma andorinha, perdi o meu exército, e, agora, o que é 
que esta nova andorinha quer de mim? Move os lábios e cospe no 
rosto de um soldado branco. Os sipaios se espantam. O preso que 
parecia vencido, agora se reveste de novos poderes. Cuspir sobre 
um branco? De onde lhe vem a ousadia? 
- Estás preso imperador bantu- grita um homem a cavalo! 
- Querem me ver a chorar? Enganam-se - explode o imperador-
um rei não chora e nem verga. O rei não implora mesmo queo matem. 
Um rei nasce rei e morre rei. Nessas vossas democracias, elegerão 
apenas serviçais sem linhagem, porque os soberanos nascem 
soberanos. Sou imperador, apesar de preso. Serei imperador mesmo 
depois de morto. Serei sempre imperador na memória do meu povo. 
Nunca me ajoelharei perante nenhum poder deste mundo. Sentar-
me na areia diante dos subalternos? Nunca! 
Estrelas faíscam na mente. Espadas tilintam lhe aos ouvidos, e 
escuta vozes dos bravos guerreiros do tempo que ainda há de vir. 
Extasiado de futuro, faz profecias. 
- Vem a mim, amanhã distante, e abre os olhos destes sipaios 
que me atormentam. Vai, meu coração, vai. Leva-me a galope no 
jumento do tempo, para lá onde o corpo se transforma, quero voar 
como as andorinhas para mais depressa trazer de volta a primavera, 
porque o inverno acaba de entrar nesta terra. 
- Despede a tua terra, rei bantu. 
- Despedir? Sou imortal, não sairei daqui! A alma de um povo é 
leve, é livre, como as andorinhas, não se prende. í 
- Sonhas ainda vencer as nossas espingardas com o teu exército I 
de tangas e armas de pau? - Pergunta o soldado branco. 
- Eu sou o futuro e a certeza. Conheço os enigmas do além. 
Dentro de mim reside a chave dos mistérios do amanhã. O futuro é 
risonho e verdejante para lá do tempo. Esta terra, juro-vos, vestirá as 
cores de todas as primaveras. 
- Como é que sabes, rei bantu? 
- Sinto o aroma do canhu, as buganvílias, mapfílwas e cajus 
24 11 Edição ---------------------------
AS ANDORINHAS 
maduros. Ouço o toque dos batuques de glória. A liberdade virá! 
- Insultas a dignidade do novo império. Vamos matar-te. 
- Matai-me à vontade, que o ventre desta terra está fecundo de 
futuro. O salvador desta terra será incubado no ventre virgem dos 
espíritos dos N'wanati, e eu hei-de voltar, com outra forma, num 
outro tempo, nas asas de uma andorinha! 
Se os sipaios tivessem olhando para aquele prisioneiro com 
mais atenção, teriam visto, nos olhos do imperador, o parto de uma 
certeza. Os chopes celebram o momento, porque as suas orelhas 
não mais serão vavadas . Mas lamentam a perda. Perde-se a ocasião 
de exercitar a arte do arco e da flecha e as boas emboscadas contra 
os guerreiros do império. 
&&& 
O gordo imperador foi arrastado como um peixe morto. Foi 
metido num carro e, depois, num barco até ao degredo nas terras 
de Portugal. Ganhou um nome novo, foi baptizado e obrigaram-no a 
comer peixe fresco, arroz e bacalhau. 
&&& 
Os dois sipaios saboreiam o repasto recebido pelo serviço prestado: 
postas de bacalhau e cinco litros de vinho inquinado. Demasiado 
pouco para quem ajudou a derrubar um império. Comentam. 
- Gostei de ver o malandro a ser conduzido para a prisão- diz um 
deles - levitei de felicidade quando recebi a missão. 
- Porquê? -pergunta o outro. 
- Prender o homem mais importante do império não acontece 
todos os dias. Foi o acto mais importante da minha vida. 
- Gostaria de congratular-te, amigo, mas lamento dizer-te que 
fomos amaldiçoados. 
- Porquê? Não gostaste? 
-Ouviste aquelas coisas que o imperador dizia sobre a liberdade? 
Viste a forma como nos olhou? Foi como se descarregasse sobre 
nós todas as maldições deste mundo. Os olhos das vítimas que 
torturamos transmitem mau-olhado, sabes disso. Até cuspiu na cara 
do branco! Consegues tu entender aquilo? 
- Eu? O que queres dizer com isso? 
Paulina Chiziane 25 
Quem manda aqui? 
- O tipo dizia coisas do outro mundo. Estava humilhado e morto 
de medo, mas reanimou-se de forma milagrosa. Será que a caganita 
de pássaro injectou-lhe poderes mágicos pela cabeça? 
- Pode até ser. As andorinhas têm os seus mistérios. 
- O que nos vai acontecer então? Algum azar? 
Na mente dos dois, irrompe o tumulto das noites tenebrosas, e ambos 
caem no poço adormecido dos fantasmas, como espelhos quebrados. 
É mesmo isso. As ideias inquietantes conduzem-nos às trevas. 
-Vou partir- diz um deles 
-Para onde? 
- Para um lugar onde essa maldição não me alcance. 
O sipaio levanta-se cambaleante . Vai acelerando a marcha. 
Começa a correr como um louco e desaparece na mata. O outro 
termina de beber o seu copo para que o medo se afaste. Larga o 
copo e persegue o amigo. Encontra-o tarde demais: Era já um peixe 
flutuando no alto. Enforcou-se de medo! Os olhos abertos do morto 
pareciam transmitir imprecauções que faziam crepitar fogueiras 
mágicas adormecidas no monumento de cinzas. Não suportou 
aquele olhar e enlouqueceu para sempre. 
Perante o infortúnio dos dois sipaios, o povo inteiro aclamou a 
vingança dos espíritos! 
&&& 
Várias imagens ficam gravadas na mente daquele povo. Um branco, 
de chapéu e calças de caqui e botas altas. Uma montada vigorosa, 
nobre, de pêlo reluzente. Sipaios pretos, cofiá vermelho, calções e 
botas altas, caminhando a pé. Tiros de mauser . Pânico. Fim. 
&&& 
Muitos anos depois as mães ainda teriam o trabalho de satisfazer 
a curiosidade das crianças, que perguntavam sem parar. 
- Quem era o tal ser tão monumental, com quatro patas, duas 
cabeças, uma de animal e outra de gente com pele branca? 
-Era um homem-cavalo. Homem, sabem o que é. O cavalo é uma 
espécie de burro, mas é muito mais forte e só os chefes montam. 
- O homem tinha nome? 
26 11 Edição -----------------------------
AS ANDORINHAS 
-Sim. O homem da montada chamava-se Muzimo wa Buquene -
(Mouzinho de Albuquerque) . 
- E o cavalo? Tinha nome? 
-Hã? - As mães ficam embasbacadas. Encabuladas. 
- Quem derrubou o império foi o homem-cavalo. Porque se fala só 
da vitória do homem e não do cavalo? Será que o tal homem podia 
ganhar a vitória, sozinho, sem o cavalo? Quem foi vitorioso de facto: 
o homem ou o cavalo? 
As perguntas das crianças revolvem baús de amarguras no 
coração das mães. Elas não respondem, mas fazem o balanço da 
vida. Somos agora pássaros sem horizonte e sem azul por causa do 
homem-cavalo. Por isso, lançam suspiros das feridas abertas. 
- Ah, meninos, não incomodem os mais velhos com as vossas 
perguntas, vão, vão brincar longe, vão! 
As crianças, esses pequenos inocentes, são seres de questões 
profundas. Elas perguntam. Em cada questão revolvendo passados no 
reajuste das linhas do tempo. E o passado regressa ao presente. 
- Dizem que o imperador falou muitas coisas. O que dizia ele? 
-Cantou a liberdade. 
-A liberdade canta-se? 
A liberdade vive-se, dizia Nguyuza, o general desertor. Como 
explicar, então, às crianças o conceito de liberdade, quando por todo 
o lado há prisão, xibalo, deportação? Como explicar que liberdade 
é palavra, semente, diamante? Como ensinar que a liberdade é a 
fêmea que dará à luz uma nova estrela? 
-Canta, mãe, canta então essa liberdade. Canta um bocadinho, só! 
Elas então repetem a ideia. A essência. O resumo. 
-Ele disse: a liberdade virá. A liberdade é gema de pedra preciosa 
que resiste ao martelo dos tempos. 
- Onde está o imperador: morreu? Viajou? 
- Não morreu e nem vai morrer. Ele está sempre aqui na forma de 
uma andorinha. É ele que prediz o futuro e celebra os ritos de vida 
e de morte. Ele escolherá o homem bravo que lutará pela liberdade 
desta terra. · 
&&& 
Os chopes perceberam que o imperador, apesar da rivalidade , 
era um bom amigo. Compreenderam também que, depois de uma 
invasão, viria outra, com impostos pesados e a dor da escravatura. 
Paulina Chiziane 27 
Quem manda aqui? 
Por isso, organizaram o msaho , timbila e recitaram poemas. 
Gomocumu, poeta-cantor, tornou-se célebre nesse tempo. Ele 
cantou assim: 
Vinde, vinde todos 
Vinde todos ouvir a cantiga 
Não quereis conhecer quem governou o império? 
Ngungunhou homens, ngungunhou mulheres 
Mas perdeu a liberdade 
Por tentar matar uma andorinha! 
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28 11 Edição ------------------------------
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( 1 ) 
As histórias da avó começam da mesma maneira, 
que é sempre a melhor maneira de começar 
Karingana wa karingana! 
Era uma vez ... 
AS ANDORINHAS 
Um homem muito doente, depois de experimentar todas asformas 
de cura, sentiu-se desesperado. Então, pediu aos filhos para que 
procurassem o curandeiro de todos os milagres. O filho guerreiro, 
movido pela experiência dos grandes combates, partiu em busca 
do curandeiro. Venceu planícies, pântanos, montanhas e entrou na 
floresta. Chegado ao local indicado, pronunciou palavras mágicas. 
O curandeiro apareceu sob a forma de uma serpente medonha. O 
guerreiro, aterrorizado, esqueceu a missão e fugiu. Chegou a vez 
do segundo filho. Este tentou a sorte, e com o mesmo resultado. 
Pânico, medo e fuga. O terceiro também pediu para experimentar. O 
pai disse logo que não. Porque era pequenino, fraquinho, magrinho, 
inexperiente. Se até os mais velhos falharam, que faria uma 
criancinha indefesa? Depois de muitos choros e muitas súplicas, o pai 
deixou o menino experimentar a sorte. Partiu. Com muita dificuldade, 
chegou ao coração da floresta. Pronunciou encantamentos como o 
pai dissera. O monstro medonho fez a sua aparição. Contrariamente 
ao que se esperava, o menino não fugiu. Quem se espantou foi o 
monstro que pergunta: 
- Não tens medo de mim? 
-Tenho muito, muito medo. 
- Então, por que não foges? 
- Porque não posso voltar sem cumprir a missão. 
- E se eu te comer? 
- Mais importante que o meu medo é a saúde do meu pai. 
- Teimoso! Leva-me então nos teus ombros e mostra-me 
o caminho. 
A serpente enrolou-se no miúdo e ambos caminharam. Não vale 
a pena descrever o cansaço do rapaz, o espanto que despertou nas 
pessoas que o viram a caminho e que, apavorados, colocaram-se 
em lugares seguros para assistir ao insólito. Chegou à casa mais 
Paulina Chiziane 33 
Maund/ane - o criador 
morto que vivo. A serpente, que afinal era um deus, largou o menino, 
enrolou o pai e devolveu-lhe a vida. E tudo acabou bem. 
( 2 ) 
Um menino dorme e sonha com aquela história. À volta da 
fogueira, a história é simples fantasia, mas no sonho parecia muito 
real. O herói da história era ele. Espanta-se. 
- Porque é que só nos contos à volta da fogueira os pequenos 
vencem? - Pergunta-se. Serei algum dia um vencedor? Vencedor 
de quê, sendo eu um pobre sem pai? No sonho transportei aquela 
serpente medonha, muito mais pesada do que as minhas forças. Se 
foi sonho, porque é que o corpo me dói como se tudo tivesse sido 
verdade? Seria eu, na vida real, capaz de semelhante sacrifício? 
Há muito que a avó interrompera o leve sono dos adultos. Perante 
o rebolar incessante do neto, ela pergunta: 
- Chitlango, o que foi? Tens pesadelos? 
- O sonho, avó. 
-Ah? 
Sorrindo, o menino conta as aventuras daquele sonho. Fala do 
pai doente. Dos dois irmãos que falharam a missão. Explica como foi 
difícil transportar a serpente nos seus ombros pequenos e percorrer 
caminhos, montes, florestas, com os pés descalços. Espanta-se. 
- Serei eu capaz de tamanha coragem, avó? 
- Já foste capaz! 
-Aonde? 
- No sonho, ora essa. Para ser herói na vida, é preciso ser herói 
no sonho. 
Há gozo nas palavras daquela avó que arremessa de novo a 
mente do menino ao reino da fantasia. O menino não entende aquela 
resposta. 
- Estou a falar da vida real, avó! 
- Não crês em ti? 
-Em mim? 
- O sonho é seara da vida. 
Um sopro de saudade prQvoca o silêncio dos túmulos e o menino 
morre de ansiedade. Questiona. 
- O meu pai estava doente no sonho. 
34 11 Edição ----------------------------
AS ANDORINHAS 
- Ele está num lugar sem sofrimento. 
-Ele está morto, não está? 
- Nada disso! Só está a viver do outro lado do mundo; por isso, 
visitou-te no teu sonho, filho meu. Esteve contigo esta noite. Ele 
ama-te. Não fiques triste, vamos, dorme, para que ele venha de novo 
ao teu encontro. 
-Avó, diz-me, como era o meu pai? 
-O teu pai? - Responde pela milionésima vez- Grande filho ele 
foi. Grande marido. Grande pai ele foi, meu menino. 
As perguntas do menino despertam dores adormecidas e as 
lágrimas correm nos olhos da anciã. Ela funga. Também sente 
saudade do filho perdido. O menino já não dorme, pensa. As palavras 
da avó fazem pensar. 
De repente, pensa nos lamentos do povo, por causa da chuva 
que não cai, por causa do sol que tudo queima. Pensa na pastagem, 
cada dia mais rala e nas vacas, cada dia mais magras. Pensa nos 
assimilados, cada dia mais arrogantes e nos sipaios, cada vez mais 
sanguinários. Pensa ainda no ser misterioso caminhando solto pelas 
ruas, metade homem, metade cavalo, o tal Muzimo wa Buquene que 
capturou o imperador de Gaza e faz desaparecer muitas pessoas no 
cruzamento dos caminhos. Pensa nos pastos. Nos pássaros. Nas 
estrelas que brilham lá fora. Adormece. 
( 3 ) 
Na sombra da micaia, o menino e seus amigos fazem planos do 
futuro. Bem pertinho deles, a manada, feliz, rumina as mais doces 
ervas dos pastos. Estão na pausa da pastorícia. 
- Eu quero ser polígamo. Casar duas mulheres de uma só 
vez - diz o .que parece ser mais velho. Primeiro vou trabalhar nas 
minas do Rand , ganhar dinheiro para o lobo/o , bem antes de ser 
apanhado pelos sipaios nas rusgas e ser levado para o xibalo. 
- Também, quando for grande, quero ser mineiro - diz outro 
com ar sonhador - quero comprar um relógio que toca, um rádio 
e uma bicicleta. 
- Eu quero guiar um camião e vender carvão. Quero ser casado 
com uma mulher gorda que cozinha bem - falava o gorducho com 
ares de comilão- a mim, os sipaios não apanham. Vou fintar-lhes. 
Pauli na Chiziane 35 
Maundlane - o criador 
36 11 Edição 
- Eu não quero ser nada - diz o malandrote - gostaria de ter 
nascido touro, para andar de curral em curral a cobrir as mais belas 
vacas sem pagar lobo/o . 
As fantasias dos meninos navegam em vôo rasante, as tesouras 
mágicas do xibalo decepam as asas dos sonhos que encalham 
como barcos velhos, num mar dos tormentos . Os colonos matam 
tudo o que lhes passa pela frente. Matam leões e elefantes, 
florestas, pessoas. 
-Hei, molengão - grita o futuro polígamo- tu, não dizes nada? 
Vais ficar a vida inteira nas saias da avó, reizinho da mamã? Já sei. 
Tens bom corpo para machileiro. Lenhador. Plantador. 
Chitlango responde com um olhar de desafio, não quer falar. 
Quer ouvir vozes que vêm de longe. Ouve os delírios da avó e o 
choro da mãe. Os lamentos do quotidiano na boca do povo. De 
repente se lembra desse ser misterioso; metade homem, metade 
cavalo; o tal Muzimo wa Buquene, (Mouzinho de Albuquerque) que 
capturou o imperador de Gaza. Estremece. Esse homem cavalo 
continua por aí à solta e abocanha os jovens para o xibalo no 
cruzamento dos caminhos. 
- Diz alguma coisa, Chivambo, reizinho da mamã! 
- SÇ>bre quê? 
Responde de mau humor, mas por de dentro sorri. Adoça a mente 
com belas imagens e fala de si para si. A avó me chama Chivambo 
o rei, sim. A mamã também. Dizem que fui rei , lá nesses tempos 
mortos. Um rei morto. Um rei nobre. A mamã acredita tanto nessa 
fantasia que passa a vida a chamar-me reizinho, por tudo e por nada. 
Sou rei, pois, porque não? Rei descalço em trono de palha, neste 
presépio que é a minha morada. Quando era pequeno, tudo fazia 
às birras e aos berros, só para me prestarem vassalagem. Bons 
momentos, aqueles! 
- Não tens sonhos, molengão? - pergunta o malandrote com ar 
de provocação - não tens sonhos? 
Chitlango olha para os amigos do alto do trono e sorri. As vacas 
ao lado ruminam lentamente, preludiando um futuro de guisados e 
matadouro, enquanto os meninos celebram o porvir de incertezas: 
partir para as minas e morrer no subterrâneo, ou regressar cheio de 
doenças. Ser deportado para o sofrimento, morte e esquecimento. 
As raparigas mais lindas da aldeia, recrutadas como criadas nas 
casas dos colonos e, finalmente, arruinadas pelo vinho e aguardente 
AS ANDORINHAS 
nos mercados de sexo. 
-Teimosos, o que querem saber? - Responde à pergunta com 
gozo no rosto - os sonhos de um rei são segredo do Estado! 
Entra na balada soturna e dança. Sou filho de uma pátria agreste 
onde se matam os homens para que as mulheres sofram de enxada 
na mão, al imentando, sozinhas, a nova geração de escravos. Sou 
desta pátria explorada,mas não serei machileiro, nem mineiro, nem 
polígamo. Muito menos um escravo. Porque um Chivambo não 
chora, dizia a mãe. Um Chitlango não se verga, mesmo que sofra, 
repetia a avó. De repente, cai na realidade. Serei mesmo rei? Sou 
Chitlango protector de quê, se nem sei ler? Protector de quem, se 
sou protegido por duas pobres mulheres, que se esfalfam de sol a 
sol para me garantir alimento? 
Recorda as palavras da avó nos lamentos de cada dia. 
"Os filhos deixam-nos, esquecem-nos - diz ela. Escrevem-nos 
uma vez, duas vezes, e mais nada! O meu filho mandou-me uma 
carta e um cobertor. Teve ao menos dó do meu reumatismo, mas a 
manta já apodreceu." 
Com novas palavras, a mãe canta o mesmo desespero. "Os 
homens, na África do Sul, comem, bebem, casam-se, enquanto nós, 
mulheres que os pusemos no mundo, vergamos debaixo da carga, 
somos desprezadas. Esta casa e esta cozinha já não se põem de pé. 
As térmitas, a podridão e o uso arruinaram-nas. Na próxima ventania 
vão desabar." 
Revolta-se. Esta terra amada se tornou viúva, se tornou solteira, 
não há homens bravos por aqui. Por causa do xibalo, das minas e 
das deportações. As mulheres é que têm que desbravar as matas, 
semear o milho e colocar os tectos das palhotas para o sustento 
dos filhos, os escravos de amanhã. Sou um pastorzinho de cabras, 
não sou rei nenhum. Sou Chitlango apenas no nome, Chivambo-
o-velho, apenas no sonho, não sou ninguém. Sente que será o 
próximo deportado, e treme de medo. Abandona os amigos, e busca 
segurança nos braços da avó. 
- Diz-me, avó, haverá um remédio para parar de crescer? 
- Remédio de quê? 
- Não quero crescer, avó. 
- Oh! Olha só! Munamasse wê? Vem ouvir o que me pede o teu 
filho! Oh, então, não queres crescer, malandro? 
- Quero ser sempre criança! 
- Posso saber por quê? 
Paulina Chiziane 37 
Maundlane - o criador 
- Para não ser mineiro. Para não ser deportado. Para não sair daqui. 
- Lindo menino! Fica, pois, sabendo que és o homem da casa. O 
único. Deves crescer muito depressa para ajudar a tua mãe e a tua 
avó. Tu és Chivambo, não te esqueças disso. 
-Sim, avó. 
- Promete-me, então, que vais crescer, e depressa. 
-Sim, mas não vou ser deportado, nem contratado. 
-Terás de lutar contra isso. 
- Sou bom no soco, avó. Lutarei mesmo. 
- Boa resposta! Assim é que os homens falam. 
Lutar? O menino começa a avaliar a força dos seus braços 
adolescentes. Lutar com os colegas das pastagens não é o 
mesmo que lutar com o criador de todas essas desgraças. Dá por 
si a questionar o mundo dos brancos. Não entende aquela gente 
que abandonava o conforto da grande metrópole para se fixar ali, 
naquela aldeia pobre e pacífica. Queria perceber por que é que, 
sendo eles estrangeiros, se julgavam donos de tudo. Por exemplo, 
diziam: aqui é Portugal-Moçambique. Que contradição! Como é que 
uma terra pode ser outra terra ao mesmo tempo? Achava engraçada 
aquela história de registar a terra, como se alguém pudesse pegá-
la, do!}rá-la, embrulhá-la num lençol, carregá-la no navio ou no 
avião para ser registada numa repartição qualquer de Portugal. O 
registo das pessoas, sim, é fácil, porque elas têm pernas e andam. 
Mas, ... a terra? Por que é que eles trazem agonia, desespero, noites 
intermináveis de medo e raiva? Queria perceber a raiz desse poder 
que só maltratava os indefesos, mas não conseguia mudar o ciclo 
das estações. 
Com um prato de mandioca, a avó interrompe-lhe os pensamentos. 
- Vamos comer rapaz; come e cresce depressa, para seres o 
homem da casa - dizia a mãe com um grande sorriso. 
-Homem da casa?- questiona-se Chitlango. 
-Claro! 
- Para que serve o homem da casa? - perguntava na maior 
ingenuidade do mundo. 
- Come e cresce. Depois saberás. 
Enquanto mastiga, o pensamento voa de novo para o espaço. 
Como saberei ser o homem da casa, se o pai morreu pouco depois 
do meu nascimento e nem teve tempo de me ensinar o que é ser 
38 11 Edição ------------------------------
AS ANDORINHAS 
homem? Vou usar nova estratégia: aprender essa língua com que os 
invasores conspiram contra a nossa gente. Conhecer os sinais que 
escrevem nos livros deles para nos tirar a terra. Para ser o homem 
da casa, tenho de saber de tudo. 
&&& 
Matriculou-se na escola para saber tudo e ser o homem da 
casa. Estudou na escola dos indígenas, onde professores negros, 
arrogantes, torturavam os alunos, obrigando-os a servi-los nas suas 
lides domésticas, como ir ao rio buscar água, deixando-os com pouco 
tempo para estudar. Nos livros daquela escola não encontrou sequer 
uma linha sobre o Chivambo- o rei que conduziu os homens à vitória, 
há cem anos. Mas havia rainhas brancas, cobertas de jóias e rendas 
como se os seus ombros fossem cabides. Nas cabeças, por que é 
que tinham coroas douradas e laços de seda? Não carregavam água 
nem lenha? Nas mãos, por que é que traziam os leques e não as 
enxadas? Se elas não trabalhavam, de onde lhes vinha o alimento? 
Nos livros de Geografia via tudo trocado. Por exemplo: aparece o 
Rio Limpopo, sem nenhuma referência aos N'wanati, espíritos e 
gentes desse rio. Do Zambeze, nada se diz sobre o Nhyathe, seu 
outro nome. O imperador de Gaza aparece muito gordo e muito feio, 
mas a avó diz que era bonito de cara, diz ainda que a vida era melhor 
com o imperador, e que piorou com o invasor. Tudo lhe desagradou. 
Desiludido, transferiu-se para o colégio da missão onde melhor 
se adaptou. Ali, as pessoas aprendiam Português, mas falavam a 
sua língua com toda a liberdade. E cantavam em coros lindíssimos. 
Na ânsia de melhor entender, tudo aprendeu. Infelizmente, antes de 
crescer para ser o homem da casa, a mãe perdeu a vida e a avó 
morreu pouco depois. 
( 4 ) 
Chitlango retornou à casa e chorou o infortúnio, o ventre do tempo 
deu à luz novas auroras. O passado acaba de parir o presente e 
o choro se torna melodioso como o canto. As palavras delirantes 
ganham a forma de profecias. 
--------------------- -------- Paulina Chiziane 39 
I 
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I 
I 
I 
i 
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Maundlane -o criador 
- Como poderei ser o homem da casa, se me deixaram sozinho? 
Já não sou homem da casa, sou um homem vazio, tudo acabou. 
Não morreste, avó; tenho a tua voz bem guardada no fundo do meu 
ouvido; tu estás aqui, para ti morte não existe. Prometi uma manta 
nova e um remédio para o teu reumatismo, eu vou crescer, vou 
ganhar dinheiro e cumprir a promessa. 
Nos olhos adolescentes, as marcas de água moldam imagens 
novas e ele balança na turbulência do fim e do princípio. 
- Rasgaste o ventre para me fazer homem, minha mãe. Não te 
perdi nem a ti, nem ao pai , cujo rosto não vi. 
No céu do entardecer, as andorinhas bailam enquanto no leito da 
eternidade semeia flores do campo. Reza. 
-Que não morra nunca o mugido das vacas que pastei. Que o sol 
nasça sempre ameno e renove o colorido das buganvílias com que 
farei coroas para a minha mãe e a minha avó, rainhas do meu trono 
Chivambo. Que a chuva caia e a vida se renove! 
Senta-se na entrada da casa. Gostaria de ficar ali até a noite cair, 
até a chuva chegar, até a vida acabar. Mas a vida é um peixe -
dissera uma vez a avó - carne e espinho no mesmo petisco. Viver 
é essa arte de separar o espinho e a carne para saborear o petisco. 
Então olha para o céu escuro onde pontos luminosos brilham. As 
estrelas piscando no céu iluminam o caminho dos justos. Toma uma 
decisão súbita. Arruma os pertences e parte. Antes, faz uma prece. 
- Que o Cruzeiro do Sul ilumine o meu caminho! 
Em cada passo, as palavras da avó caem-lhe na mente como 
chuva de granizo: "Tu não és igual aos outros rapazes, tu és o nosso 
grande Chivambo. Reinaste anos e anos sobre esta terra. Quando 
se é Chivambo, não se chora por tudo e por nada. Tu és o grande 
Chivambo, não te esqueças disso. És o senhor valente que conduziu 
os homens à batalha!" 
A brisa ganha a sonoridade da voz da mãe, afastando os fantasmas 
dos caminhos: "não tenhas medo, Chivambo. Lembra-te que Dzovo, 
Kambane, Chivambo-o-Velho velam por ti. És tu quem vai erguer de 
novo o nosso clã!" 
-Serei o homem da casa, mãe, eu sinto. - ele repete a si mesmo, 
enquanto lhe correm na mente as perguntas de sempre: 
- Como seria o meu pai se estivesse vivo? 
A voz da mãe, vencendo as fronteiras do tempo, preenche o 
vazio: "O teu pai era um homem benevolente, que se impunha pela 
40 11 Edição -----------------------------
AS ANDORINHAS 
sua inteligência, pela sua magna estatura e musculatura delicada. 
Só vestia peles de animais nobres caçados pelos próprios filhos, que 
lhe assentavam admiravelmente". 
Sente uma estranha vontade de derrubar as paredes do além e 
penetrar. Despertar todos os antepassados para lhe aliviar a angústia. 
Conhece-lhes os nomes que a mãe lhe ensinara a repetir, dia após 
dia. Mas ninguém conseguiu ainda a transposição da muralha 
tumular e realizar um passeio no reino das sombras. Compreende 
que só o tempo cura as feridas da alma, esse tempo que comanda 
as estações, amadurece a fruta e as mentes da gente. 
( 5 ) 
O menino dá passos largos e percorre o perímetro do mundo. Em 
cada passo, a renovação do sonho antigo: minha terra mãe, minha 
terra viúva e solteira; um dia voltarei para ser o homem da casa! 
Vive a emoção dos caminhos: este vale, este verde vivo, parece 
mesmo o das pastagens da minha infância. Esta pegada na areia faz 
lembrar o pé da minha mãe. Este azul, este brilho, fazem lembrar o 
lenço da minha mãe. Este sorriso, este rosto belo parecem mesmo 
da minha avó. E este homem? Tão alto, tão nobre, tão digno, é tal e 
qual o meu pai, cujo rosto nem ao menos vi. 
Caminha. Na Vila de Manjacaze vê homens condenados na 
construção do caminho-de-ferro. Vê o capataz branco, fuzil nas 
costas, chicote na mão. Vê o sipaio negro de bastão erguido, 
batendo e desfazendo as costas dos homens em papas de sangue. 
Ouve os gritos dos capatazes sobre os condenados: "Quer erguer os 
ombros? Chicote. Olhar para o lado? Chicote. Vai urinar? Chicote". 
A revolta de sangue se incuba. Ele caminha rápido para conhecer 
os mandantes da tragédia e obrigá-los a parar todas as maldades. 
- Quero alcançar o cerne da vida e ver onde tudo começa. Quero 
conhecer o ventre e o túmulo onde o sol nasce e morre. Quero 
caminhar para longe. Quero conhecer o falo mágico que engravida 
o útero das pedras e montanhas mortas, no maravilhoso parto dos 
rios. Quero conhecer as salinas onde se cristaliza o fel que derrama 
no coração dos homens. Eu vou sim. Vou descobrir o remédio para 
a doença de que padece a nossa terra. 
Paulina Chiziane 41 
I , 
! 
Maundlane - o criador 
42 11 Edição 
Dá muitos passos até lhe nascerem todos os dentes de siso. A 
barba nasce e cresce. Ele caminha até se tornar um homem feito, 
que não pode ser homem da casa, porque na casa que fora sua, o 
invasor montou o seu palco de tortura. Por isso atravessa fronteiras, 
mares e oceanos, até encontrar um abrigo seguro numa terra 
distante. Era já um homem forte e um bocadinho careca. Senta-se, 
repousa e faz o balanço da marcha. 
-Venho da nobreza, mas vivi em extrema pobreza. Os invasores 
transformaram a minha realeza Chivambo num trono de palha, mas 
duas mulheres bravas lutaram pela minha sobrevivência. Estou vivo 
e estou aqui. 
Foi a inteligência da minha avó que me fez sábio. 
Foi o amor da minha mãe que me fez nobre. 
Foi a imagem do meu pai que me fez mais homem. 
Fui às pastagens e tornei-me bom pastor. 
Veio a dor da morte da mãe e da avó. Lutei contra ela e venci. 
Parti à conquista dos saberes dos brancos, lá onde a memória 
das palavras é substituída por símbolos, letras, alfabeto. Escalei 
Manjacaze, Chicumbane, Mausse. Venci distâncias. Viajei para 
Lourenço Marques numa camioneta mais incômoda do que um 
chapa. Cheguei. 
Estudei tudo num zás e passei todas as classes. 
Na igreja tornei-me catequista. 
Na escola tornei-me professor. 
Em Portugal quiseram transformar-me em sipaio, arrumei as 
malas e parti. 
O regime sul-africano era mais feroz, queria sufocar a minha 
liberdade, fintei-o e fugi. 
Sou um pobre órfão de pai e mãe. 
Venho de longe! 
Conquistei esta América com os pés descalços! 
( 6 ) 
Serei eu alguém? 
Fixei os pés com firmeza nesta terra conquistada. De pastor de 
gado, passei a pastor de almas, agora sou Doutor. Tenho bom 
emprego, gabinete confortável, um computador, ar condicionado e 
AS ANDORINHAS 
tudo. Até tenho secretária executiva, sou chefe! Que bela casa, que 
belo carro eu tenho, meu Deus! Que belo futuro me espera, eu que 
vim do nada. Aqui neste serviço tudo se faz em inglês. Verdade seja 
dita: o majestoso embandeiro nasce na pequenez de uma semente, 
depois cresce e se agiganta. 
Sim senhor, eu sou alguém. Mas, .. . serei mesmo alguém? 
Tenho diploma, mas não tenho chão. Tenho pão, mas sofro 
com a fome de um irmão. O meu pai , chefe de terra ocupada, não 
tinha diploma nem dinheiro no bolso, mas era nobre e era alguém. 
Porque tinha nome e tinha chão. A minha mãe e a minha avó 
eram duas viúvas com orgulho de existir, porque tinham sombra 
e tinham chão. Até as mulheres da aldeia que vivem em lares 
polígamos, com muita fome e muitos filhos por cuidar, são pobres, 
mas têm dignidade. As que frequentam o mercado de sexo, têm 
boa comida, boas roupas e dinheiro no bolso, mas não são 
ninguém. Nesta América de sonhos, não sou nada, sou apenas 
mais um. Na minha pátria ocupada eu sou alguém, porque sou o 
Chivambo, o Chitlango, o Dzovo, o Maundlane! 
Não, não sou nada, aqui não sou ninguém! 
Os bravos guerreiros da minha pátria lutam com paus e pedras 
e resistem tenazmente como bandos dispersos nas greves do cais. 
Até as mulheres já são levadas para o xibalo e pagam o imposto de 
palhota. Escravizar as mulheres? É o fim. Quando os homens são 
levados para o desterro, as mães ficam com os filhos e a vida se 
ajeita. Mãe é pedra sagrada sem a qual a vida não existe. Uma avó 
é a luz sem a qual nenhum sonho se revela. 
Fecha os olhos e dá um mergulho fundo nos mugidos das vacas lá 
do seu tempo de pastorícia. De lá lhe vem o cheiro do solo e o choro 
da terra. Vem-lhe também a dor da orfandade. 
Não, não sou ninguém! 
Sabes o que é ser alguém, meu neto, sabes? - perguntava a avó 
- não sabes? Ser alguém - dizia ela - é parar de chorar. É ver a 
tristeza a morrer e o sorriso a nascer. É ter a certeza de que um 
corpo morre para que outro cresça. É olhar para o horizonte sem 
medo de mergulhar em liberdade no vôo das águias. 
A memória se ilumina na parábola dos tempos. Cem ovelhas ao 
todo e uma perdida. O bom pastor larga todas e busca a que se 
perdeu. Na sua terra, essa parábola se inverte. Lá, de cem ovelhas, 
salvou-se apenas uma, a que está na segurança das Américas. 
Noventa e nove encontram-se no meio das matas em chamas. 
Paulina Chiziane 43 
Maundlane - o criador 
Como recuperá-las? A experiência de pastorícia ganha na infância 
reergue-se e reafirma-se. Um dia, ele salvou uma manada inteira de 
uma queimada. Lembra-se. Já fiz isso com os bois e deu certo. E 
com os meus irmãos? Poderei eu ajudar as ovelhas de todo o meu 
país a vencer o círculo de fogo? 
Sente, por dentro, um tremor estranho. Era o ·despertar para 
o futuro dos séculos. Anuncia aos companheiros de trabalho a 
suprema decisão: 
-Vou partir. 
- Para onde assim tão de repente? 
- Para a minha terra. 
- Hã? Quando? 
-Agora! 
-Porquê? 
- Para ser o homem da terra. O homem da casa. 
- Pense bem, Doutor! Lá, nessas Áfricas, tudo é atrasado, tudo 
são trevas. Mosquito, malária, cólera. Aqui está bem. Muito bem. O 
mundo inteiro luta ter um emprego aqui nas Nações Unidas. Agora 
que o Doutor conseguiu tudo, quer voltar para trás? 
-Voltar atrás? 
O Dr. Chivambo responde ao nobre chamamento. Ergue-se. 
Coloça o chapéu na cabeça. No braço esquerdo pendura o casaco, 
e no direito a pasta. Em plenos pulmões ele grita: para trás? Não, 
não voltarei nunca mais! Vou, sim, para frente. Fixa os olhos no sol 
e lança-se no azul profundo, no vôo das águias! 
( 7 ) 
Aterrou no coração da floresta densa. Cabriolando no colo da sua 
mãe África, mata de uma só vez toda

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