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Christian Geffray - A causa das armas_ antropologia da guerra contemporânea em Moçambique-Edições Afrontamento (1991)


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T í lu lo : A C au sa das A rm as, A n tro p o lo g ia da G u e rra C o n te m p o râ n e a em 
A u ío r : C h ris tian G cITray
© 1991, C h ris tian G c ffray e E d içõ es A fro n tam en to
E d iç ã o : E d içõ es A fro n tam en to / K. d e C o s ia C ab ra l, 8 59 / P orto
N .“ d e e d iç ã o : 587
ISI1N: 972-36-0257-1
D e p ó s ito L e g a l: 4 5 6 5 0 / 91
Im p re s s ã o : L ito g ra fia A ch . H rilo
A c a b a m e n to : R ain lio & N eves , L da. / S a n ta M aria d a F eira
C h ristian G e f fr ay
0 p - p - &
A CAUSA 
DAS ARMAS
A N TROPO LO GIA DA (SUERRA CONTEM PORÂNEA 
EM M OÇAM HÍQUE
Tradução de 
A delaide O dete Ferreira
E d iç õ e s A f r o n ta m e n to
.UNICAMP
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NOTA PRÉVIA
A única motivação da investigação c a vontade de conhecer e compreender. 
Mas a apresentação dos resultados assume um carácter tanto mais subversivo 
quanto o seu objecto, a guerra, palco de sofrimentos c de riscos e desafios 
extremos, suscita as mais veementes e apaixonadas opiniões. Gostaria de 
expressar aqui o meu respeito e estima a todos quantos em Moçambique, pela 
sua maturidade-intelectual e coragem política, me perm itiram exercer a minha 
profissão com a independência que lhe é devida. Eles reconhecer-se-ão— e os 
outros também.
A apresentação sem condescendência das responsabilidades que cabem ao 
actual poder moçambicano na guerra não deve ocultar a responsabilidade 
prim eira da Rodésia e da África do Sul no conflito, nem a grande responsabili­
dade da Renamo de hoje: uma instituição m ilita r sem projecto político, que 
encontra na guerra que fomenta as condições vitais da sua reprodução como 
corpo social armado.
Gostaria, finalmente, de agradecer a Calisto Linha, cuja colaboração no 
terreno fo i decisiva para a realização deste trabalho. Muitas das entrevistas 
foram feitas po r Calisto, que tinha consciência de se expor mais ao perigo que 
eu, dados a sua nacionalidade, o seu estatuto — e a cor da sua pele.
Mapa 1: A zona do inquérito
INTRODUÇÃO
H ájreze anos guçj.ini,b_ando,d(^sassino.s sanguinários sem fé nem lei 
semeia o terror, a destruição e a morte em Moçambique. lista é a imagem que 
as elites urbanas, os intelectuais nacionais e estrangeiros tem da guerra e da 
organização armada que a conduz na capital do país c nas grandes cidades das 
províncias. Como os jornalistas não podem trabalhar no terreno, os órgãos de 
informação internacionais reproduzem a informação e as análises que correm 
nesses meios. Os próprios investigadores têm contribuído para consolidar esta 
visão da guerra, e as raras «investigações» que foram feitas até agora revelam 
as mesmas deficiências de informação, agravadas com tuna certa, ingenuidade 
propagandista(". É verdade que tal imagem não é completamenie falsa e que ' 
tem o mérito de sensibilizar, òcasionalmentè, a opinião publica ocidental parai 
o drama de milhões de pessoas...
Trata-se, no entanto, de uma visão insuficiente, e o seu carácter apaixonado 
esconde a complexidade e a profundidade dos processos sociais e políticos em 
curso nas zonas rurais de Moçambique, impedindo a compreensão da sua 
natureza e alcance. De onde vêm os homens da Resistência Nacional Moçam­
bicana (Renamo) que combatem as autoridades nas regiões rurais? Que pre­
tendem? A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que detém o poder 
em Maputo, chama-lhes «bandidos armados». Mas será possível conceber que 
um punhado de indivíduos movidos simplesmente pela sede de poder, ou 
fascinados pela miragem de uma vida aventurosa e fácil, possa aumentar em 
poucos anos os seus efectivos e alargar o seu campo de acção a ponto de pôr 
todo o território rural moçambicano em estado de guerra? A Renamo dificulta
(1) Robert G ersoni, Summary of Mozambican. Refugee Accounts of Principally Conflict- 
Related Experience in Mozambique: Report submitted to Ambassador Jonathan Moore and Dr. 
Chester A. Crocker. W ashington, Department o f State Bureau for Refugee Programs, A bril de 
1988; W illiam M inter, The Mozambican National Resistence (Renamo) as Described by Ex- 
participants: Research Report Submitted to Ford Foundation and Swedish International Devel­
opment Agency, W ashington, African Studies Program, G eorgetown University, 1989.
ou paralisa as comunicações, a produção c a circulação dos bens, comprometendo 
gravemcntc as condições da vida material c social de todo o país. Quantas 
centenas de milhar de pessoas morreram durante os últimos treze anos por 
causa da guerra? Podcr-sc-á atribuir a um bando dc delinquentes um conflito de 
tal amplitude...?
Rccordcm-se .aqui as tensões c conflitos regionais c internacionais que favo­
receram a criação da Rcnamo c o desencadeamento da guerra em Moçambique, 
pouco depois da independência.
1. A agressão estrangeira
A Frelimo chegou ao poder cm 1975, depois dc uma longa luta armada, 
iniciada em 1964 no Norte do país, c da «revolução dos cravos» cm Lisboa, 
que cm 1974 marcou o fim da empresa colonial portuguesa. Os dirigentes 
nacionalistas assumiram então o controlo dc um território que se estende ao 
longo de dois mil quilómetros na cosia sul-oriental dc África, onde se tinham 
desenvolvido três grandes portos abertos ao tráfico internacional: Maputo (ex- 
-Lourenço Marques), no Sul, Beira, ao centro, c Nacala, no Norte. Destas 
cidades pártiam três linhas dc caminho-dc-fcrro que serviam o Transvaal, na 
África do Sul (cm particular as zonas mineiras), bem como todos os outros 
países vizinhos do interior, a Swazilândia, a Zâmbia, o Malawi c, sobretudo, a 
então ainda Rodésia, Dada a sua situação geográfica, Moçambique estava, pois, 
cm condições dc „controlar. o Jrfinsito dc uma grande parle das mercadorias 
exportadas c importadas pelos seus vizinhos (cf. mapa 1). Esta posição geo- 
-cstratégica permite compreender que a orientação política dos novos dirigentes;, 
moçambicanos tenha preocupado não só os seus parceiros da África Austral j 
como igualmente as potências ocidentais que tinham interesses comerciais ou; 
industriais na região. ^
Numa primeira fase, os dirigentes sul-africanos não se implicaram dircc- 
tamente na formação dc um movimento dc subversão armada que visasse 
enfraquecer Moçambique, ou mesmo derrubar o novo poder nacionalista.
1 Contrariamente aos outros países vizinhos, a África do Sul dispunha dc uma série dc outras saídas marítimas, dc recursos próprios c de uma indústria nacional desenvolvida, cuja prosperidade não se encontrava ameaçada pela descolonização dc Moçambique. Dc facto, era Moçambique que se encontrava 
numa situação de dependência vital em relação à África do Sul. Evidente­
mente, o Governo sul-africano preocupava-se com o facto dc ter junto da sua 
fronteira um país cujos dirigentes manifestavam uma vontade obstinada de 
independência política, proferiam discursos de conteúdo emancipador e mili­
tavam pelo fim do apartheid. O grande projecto sul-africano dc incorporar os 
países vizinhos numa cintura de Estados satélites, malcrialmcntc dependentes
numa cintura de Estados satélites, matcrialmentc dependentes do seu poder 
económico c submetidos à sua autoridade política, ficava a curto prazo com­
prometido pelo acesso de Moçambique (c dc Angola) t) independência. No 
entanto, a existência e a prosperidade do regime não estavam ameaçadas: a 
burguesia sul-africana continuava a dominar e a constituir o pólo da vida eco­
nómica da África Austral, c o seu Governo dispunha dc um forte exército. Em 
1975, a África do Sul estava ainda forte c tinha tempo para esperar c ver.
Para os colonos brancos da Rodésia, cm rebelião contra a coroa britânica(2), 
a questão punha-se diferentemente, pois encontravam-se numa situação mais 
delicada, e a independência dc Moçambique constituíapara eles uma ameaça 
directa. Os rodesianos estavam no inde.v das nações do Mundo inteiro, cuja 
maioria nunca reconhecera o Estado racista nascido da Declaração Unilateral 
dc Independência. A ONU linha aprovado a aplicação dc sanções económicas, 
c a sua prosperidade dependia cm grande medida da saída para o mar pelo 
.território moçambicano (porto da Beira). Punha-sc então a questão dc saber se 
o jovem país independente aplicaria as sanções. Do ponto dc vista econômico, 
Moçambique teria toda a vantagem cm negociar com os rodesianos c assegurar- 
-lhes a continuidade do trânsito de mercadorias pela Beira e Lourenço Marques, 
fonte dc receitas cm divisas que lhe eram vitais. Mas os novos dirigentes de 
Maputo foram intransigentes e decidiram a aplicação rigorosa das sanções, 
‘ contando que a comunidade intcrnacionalos ajudaria a compensar as pesadas 
consequências financeiras dc lai decisão.
Entretanto, numerosos antigos grandes colonos portugueses chegavam a 
Salisbury (capital da Rodésia), fugindo do Moçambique efervescente c levando 
atrás dc si comerciantes, pequenos proprietários, assim como grupos dc soldados 
desmobilizados das unidades especiais do exército colonial e das milícias 
privadas dos grandes latifundiários. O conjunto desta população imigrada era 
muito heterogéneo, mas partilhava o mesmo ódio intenso contra o «comunismo». 
Por último, sublinhe-sc sobretudo que o Governo dos colonos devia fazer face 
ao aumento das incursões armadas dos combatentes nacionalistas da ZANU 
(actualmente no poder), que dispunham dc uma série dc bases no território do 
Moçambique independente... No imaginário dos meios dc extrema-direita 
internacionais, a Rodésia era considerada nessa altura como um dos postos 
avançados da «defesa do Ocidente» face ao «perigo comunista». Algumas 
agencias especializadas recrutavam mercenários cm Londres, através dc pequenos 
anúncios publicados na Imprensa, e os jovens neofascistas europeus sonhavam 
fazer o seu baptismo dc fogo indo «matar pretos» — vermelhos! — nas savanas 
selvagens da velha África...
(2 ) Em 1965 tinham feito secessão da an tiga m etrópole colonial c proclam ado nnilalC' 
ralm cntc a independência com o apo io da Á frica d o Sul.
Moçambique era uma base estratégica para a guerrilha dos nacionalistas da 
ZANU na Rodésia; pouco depois da independência começavam a chegar a 
Maputo os primeiros cooperantes dos países socialistas — médicos, engenheiros 
da indústria açucareira e do algodão, professores, lodos civis mas soviéticos, 
cubanos, alemães de Leste, romenos, búlgaros, coreanos.,.; e, por último, ós 
dirigentes moçambicanos impediam aos homens de negócios e industriais: 
rodesianos o acesso ao mar pela Beira, para eles uma saída marítima vital^Gm 
Salisbury, os colonos, encarnados e gordos, com os seus calções, meias altas e 
botas, estavam em contacto com uma fauna imigrada sobre-excitada e 
heterogénea, com a qual partilhavam a mesma exaltação racista c anticomunista, 
sob o olhar protector da potência sul-africana. Foi neste contexto que òs 
rodesianos criaram o MNR (Mozambique National Resistance), como o explica 
Ken Flower, chefe dos serviços secretos nessa altura, num livro publicado em 
Í978 (,). Como é evidente, para a formação do MNR os agentes rodesianos . 
i contaram com a colaboração dos grandes colonos portugueses imigrados, espo­
liados, ressentidos e frustradosw, com os quais procederam ao recrutamento, à 
’ organização e ao treino de uma tropa mercenária, composta essencialmente por 
.antigos soldados moçambicanos desmobilizados do exército colonial também 
imigrados na Rodésia e que tinham apenas um savoir-faire, o da guerra.'As 
primeiras operações importantes em território moçambicano tiveram lugar em 
1977. As acções de terror desencadeadas nessa altura, por vezes com o apoio 
directo dos helicópteros do exército rodesiano, foram sem dúvida alguma obra 
de um apêndice mercenário da burguesia racista de Salisbury em colaboração 
c o in ps elementos mais decididos e exaltados dos meios coloniais expulsos 
4e_Moçambique, A guerra que nessa altura atingia a região do Centro de 
Moçambique era uma pura guerra tie agressão.
Em Fevereiro de 1980, as eleições organizadas na Rodésia levaram a ZANU 
go poder de, forma pacíficajdepois de um processo de negociações conduzidas 
magislralmente pela antiga metrópole britânica, um processo em que a diplomacia ' 
moçambicana se mostrou particularmente brilhante. A Rodésia desaparece com 
a proclamação da independência, intérnacionalmenle reconhecida, do Zimba­
bwe, em 18 de Abril de 1980. O MNR abandona com armas e bagagens o 
território, que a partir de então se linha tornado perigosamente hostil, para 
encontrar refúgio, como seria de esperar, junto do grande vizinho sul-africano.
É então que se constata, para grande espanto daqueles que o tinham criado, que 
o MNR tinha mudado de natureza. Já não era um simples fantoche das burguesias 3 4
(3) Ken Flowcr, Sming secretfo: Rhodesia itilo Zimbabwe 1964-1981, 1987.
(4) M uitos rodesianos e antigos colonos vindos de M oçam bique conlieciam-se de longa data. 
Sem falar das relações de negócios, não passavam m uitos colonos de Salisbury uma boa parte do 
seu tem po de repouso nas praias, clubes e bordéis de luxo da Beira, cm M oçam bique, onde se 
vinham acanalhar?
rodesiana e colonial, e, do mesmo modo, a guerra que desenvolvia tinha 
deixado de ser uma simples guerra de agressão...
A maior parte dos observadores acreditava que com o fim do que origi­
nalmente tinha levado à sua criação o MNR iria desaparecer por si próprio. Tal 
não foi o caso, e Ken Flower reconhece que nessa altura os seus serviços tinham 
perdido o controlo da dinâmica c do destino do grupo militar, cuja formação 
tinham apoiado e orientado, e inlcrroga-sc se não teria criado um monstro: «I 
began to wonder whether we had created a monster that was now beyond con- 
trol» ^ (Flower, 1987: p. 262), É certo que o apoio da África do Sul a partir 
dessa altura foi decisivo do ponto de vista logístico (armas, treino, meios de 
comunicação por rádio), assim como foram importantes, embora de forma mais 
modesta, os apoios do Malawi, das Comores, de Bob Denard, de alguns países 
árabes e dos meios de direita ocidentais,6); mas isto não é suficiente para explicar 
que a Renamo m tènha conseguido reproduzir e aumentar consideravelmente 
os seus efectivos no terreno e alargar progressivamente o estado de guerra à 
totalidade do território rural moçambicano (é essa a situação em 1986). Os 
apoios internacionais permitiram que a Renamo dispusesse, num dado momento, 
dos meios técnicos para fomentar a guerra em todo o país, mas são insuficientes 
para explicar como ela o conseguiu e menos ainda para explicar a sua capacidade 
()e manter indefinidamente o estado de guerra, depois de terem praticamcntc 
desaparecido as fontes logísticas estrangeiras (ou nas regiões onde esses for­
necimentos não chegavam).
Na realidade, a guerra alimenta-se também das rupturas sociais c políticas 
internas das sociedades rurais moçambicanas, cuja importância os eslrategas- 
-terroristas rodesianos não tinham obviamcnlc previsto. Curiosamente, a «guerra 
dos serviços secretos» é perícilamenle conhecida pelos observadores, quer sejam 
jornalistas ou especialistas da região Sem subestimar a importância deste 
aspecto, considerado «oculto», do conflito nas suas diferentes fases (le desen­
volvimento, não o abordo na minha análise, que visa exclusivamcntejas condi­
ções sociais e políticas internas do enraizamento e do desenvolvimento das 
hostilidades, infelizmente desconhecidas por todos, mesmo pelas próprias auto­
ridades moçambicanas. Deixando de lado a dimensão internacional do conflito, 5 6 7 8
(5) Em inglês no texto (N.T.).
(6) Certos m eios privados ligados aos serviços secretos da RFA e dos EUA estiveram 
directam ente im plicados, assim com o alguns sectores do CD U-CSU alemão. São por vezes 
referidas personalidades com o Franz-Joseph Slrauss, na Alem anha,ou Jcan-François Deniau da 
U DF francesa, um próxim o das guerrilhas anticom unistas do Terceiro Mundo.
(7) A partir desta altura, o M NR passa a utilizar correntem ente a versão portuguesa da sua 
sigla: Resistência Nacional Moçambicana.
(8) Ver em especial Paul Fauvet, «Roots o f Counler-Revolulion: The M ozam bique National 
Resistance», Review of African Political Economy, 29, 1984, pp. 108-121.
cuja gravidade vai muito além dum complot montado por agentes secretos, é 
importante ver agora a história recente do próprio Moçambique.
2. A Frclim o: pensar a Nação
Nos anos setenta, os dirigentes da Frclimo que conduziam a luta contra o 
exército colonial português eram ao mesmo tempo clicfcs políticos c responsáveis 
militares. Cabia-lhes a tarefa de elaborar e enunciar o significado colcctivo do 
combate que organizavam c dirigiam de armas na mão. Ora, no fogo c na 
paixão da lula armada tecia-sc já a traina de um profundo mal-entendido entre 
os dirigentes e as populações rurais que eles tinham conseguido mobilizar sob 
a sua bandeira: dando um carácter revolucionário a uma aspiração que era 
simplesmente anticolonial, os chefes da guerrilha cquivocaram-sc sobre a natu­
reza do moyimcnto que dirigiam. Este mal-entendido atingiu o seu paroxismo 
com a euforia da independência, quando a multidão aclamava os vencedores da 
opressão colonial e estes se maravilhavam com o fervor do seu povo, cuja 
essência revolucionária não punham cm dúvida... Com efeito, cm 1975, os diri­
gentes da Frclimo gozavam de um enorme prestígio, incarnavam a conquista 
da independência c da dignidade nacional. Ninguém duvidava então da legiti­
midade do poder destes homens, cuja integridade c força moral c política im­
pressionavam e seduziam os observadores. No auge da glória, eles representavam 
o conjunto da população colonizada enquanto tal, cuja unanimidade vitoriosa 
souberam representar. O Moçambique independente transmitia um sentimento 
de unidade entusiástica, rara c fascinante,
Para um jovem militante revoltado com o «colonial-fascismo» português e 
decidido a combater o seu exército era certamente muito difícil não se enganar 
sobre a natureza do movimento de libertação nacional, se tivermos em conta 
que o treino militar era feito na Argélia com a FLN dos anos 60, que a imprensa 
mundial relatava na mesma altura a paixão internacionalista dos guardas ver­
melhos da revolução cultural chinesa, os actos heróicos dos b o -d ó i vietnamitas 
c o desenvolvimento dos movimentos radicais europeus... c não eram as armas 
para o combate fornecidas pela China e pela União Soviética?
Não me compete expor aqui o sentido da referência ao «marxismo» do 
movimento de libertação nacional, nem analisar a que necessidades, de princípio 
ou conjunturais, essa referência correspondia durante a guerra de libertação(9). 
Interessa, no entanto, sublinhar o seu sentido na altura da independência, em
(9) V er Luís dc B rito , «U ne rclcclurc nécessairc: la genèsc du parti-E la t F rclim o» , Politique 
africaine, n.5 29 , M arço de 1988, pp. 15-27.
1975, quando os dirigentes da Frelimo — um pequeno grupo de intelectuais 
revolucionários — receberam nas mãos as chaves de um país de treze milhões 
de pessoas. Com efeito, foi com referência ao «marxismo» que o novo poder 
continuou a conceber o sentido c o alcance da sua intervenção na sociedade 
moçambicana e que foi levado durante muito tempo a ignorar as tensões c os 
efeitos dramáticos resultantes da sua acção, mantendo sempre uma boa fé 
desconcertante.
Como 6 que os novos dirigentes do país tentaram preservar a recente 
unidade histórica, de que sc sabiam produtores c depositários, c como conce­
beram a edificação do novo Estado soberano? Veremos que eles foram inca­
pazes de pensar a construção da nação sem apagar ao mesmo tempo a diver­
sidade c a heterogeneidade concretas c históricas dos grupos sociais que 
pretendiam unir e integrar sob o signo de uma identidade única, a cidadania 
moçambicana. Na realidade, esta sociedade colonizada vitoriosa c unida não 
era homogénea: uma história sçcular c algumas décadas de lutas sociais em 
situação colonial dividiam-na.., jvlas as condições da luta c da vitória foram tais 
que os dirigentes da Frelimo herdaram o país sem nunca sc terem visto 
.confrontados com essa diversidade social, sem terem sido obrigados a assumi­
da c a conceber politicamente os seus efeitos. Eles não dispunham praticamcntc 
de nenhum mecanismo político ou social de ligação que lhes permitisse 
reconhecer a existência dos diferentes componentes, por vezes contraditórios, 
da sociedade colonizada que lhes era dado governar... Foi dc acordo com esta 
(falta dc) perspectiva que foram formulados os grandes eixos da «estratégia dc 
desenvolvimento» do jovem Estado para o mundo rural: a edificação das 
«aldeias comunais». Dc Norte a Sul do país (do Rovuma ao Maputo), inde- 
pcndcntcmcntc dos sistemas sociais, da sua história, quer sc tratasse dc agri­
cultores, de caçadores, de pescadores, de produtores de sorgo, de mandioca, de 
milho, de amendoim ou de algodão, de proprietários de coqueiros, de citrinos 
ou de cajueiros, de regiões de grande migração, dc forte produção mercantil, de 
zonas afastadas ou dc áreas próximas dc centros urbanos, todos os habitantes 
das regiões rurais, ou seja mais dc 80% dos treze milhões dc moçambicanos, 
deveriam acabar por deixar as suas casas para se juntarem nas aldeias. Deveriam 
depois abandonar progressivamente as suas antigas terras, propriedades c 
prerrogativas familiares ou individuais para se dedicarem aos trabalhos colectivos ( 
nos campos da cooperativa de produção, no quadro de uma organização do! 
trabalho mais eficaz e fraternal. Em princípio, a acumulação de riqueza daí 
resultante deveria, por sua vez, permitir o investimento em bens de produção 
mais modernos, relançando assim uma acumulação que permitiria o finan­
ciamento de serviços sociais como a saúde, a educação, a cultura e ocupação de 
tempos livres, indispensáveis para a elevação do nível de vida no campo — 
mais tarde viria a electricidade. As aldeias comunais deviam ser a força do 
«homem novo», surgido da imaginação política do poeta Sérgio Vieira, ponto
ómega do sonho de desenvolvimento revolucionário moçambicano na altura da 
independência.
I Assim, pouco importavam as diferenças históricas e sociais regionais, pouco 
j interessavam igualmente as motivações e aspirações reais das populações em 
i nome das quais — e para quem — o projecto fora concebido. Quando a 
i realidade dos factos e as práticas sociais faziam efeito de retomo e interferiam 
i na acção dos representantes do Estado-desenvolvimentista, eram rejeitadas 
i sob a capa sempre cómoda da fraseologia oficial como «obscurantismo», 
«superstição», «feudalismo». Estas formas permitiam reincorporar no discurso 
' os efeitos inoportunos e insistentes das realidades sociais e históricas que este 
excluía da sua lógica.,Um discurso que não reconhecia às populações rurais 
uma existência social, a não ser em termos de sobrevivências arcaicas, incómodas 
e vergonhosas, efeito da inércia das «mentalidades», obstáculos votados ao 
desaparecimento com a criação do «homem novò».
«E preciso organizar os camponeses», diziam os dirigentes... Dada a ausência 
de mecanismos políticos de ligação com as populações rurais e a ignorância,, 
inquieta e arrogante, da sua história e formas de existência social, o poder, não 
tentou promover a sua livre expressão — nem sequer para conhecer as forças e 
os interesses em jogo — preferindo negar tudo cm bloco. Os promotores das i 
aldeias comunais concebiam tudo como se as populações rurais Ibsscm uma 
enorme série de indivíduos, homens, mulheres, velhos e crianças sem qualquer 
' vínculo social, que subsistiam Hidependentemente uns dos outros, como se, i 
caídos do céu, tivessem esperado a Frelimo para se organizarem, como se não 
estivessem já historicamente e de longa data «organizados». Era a ideologia da 
«página em branco». c?
O «marxismo» foi, pois, para além do mais, a referência universalisla a 
partir da qual se operou a negação das realidades do país, uma cegueira 
paradoxal na medida em que permitia ao mesmo tempo que o exercício do 
poder governasse. Pouco ti,pouco.foraiii;se definindo no discurso do poder os 
contornos estranhos de um país fictício: dizia-se que a autoridade da Frelimo: 
ter-lhe-ia sido delegada por uma «aliança operário-camponesa», para que 
exercesse, em seu nome, a ditadura sobre os seus inimigos, os inimigos do 
povo. O «marxismo» constituía o corpiis conceptual que permitia a invenção 
do país imaginário e a garantia dogmática dfi ^oerência interna da ficção que 
alimentava o projecto nacionalista do poder^1"',
i\( 10) Retomo aqui os pontos essenciais da análise deste dispositivo ideológico que apresentei 
em «Frngmcnls du discours du pouvoir ( 19 7 5 -1985)», Polhuiw Afriraine, n.“ 29, M arço de 1988, 
pp, 71-85. Alguns dos meus antigos colegas e am igos m oçam bicanos, que m erecem todo o meu 
respeito, licaram chocados pela publicação deste artigo. Lam ento que tal tenha acontecido, pois 
não era essa a minha intenção,
Este discurso voluntarista e cego não parecia, no entanto, ser portador 
de violência em si próprio; era sobretudo marcado por uma certa forma de 
ingenuidade que caracterizava a intelectualidade urbana e cosmopolita da 
capital. Os princípios morais e políticos que animavam o projecto comuni­
tário no campo tinham um grande impacto: progresso, igualdade, solidarie­
dade, democracia, comunidade e fraternidade, autonomia e dignidade, educa­
ção, bem-estar e saúde... Todos estes ideais faziam parte da representação 
corrente dos objectivos do processo de «socialização do campo» e seduziam 
qualquer homem de boa vontade, desde os missionários progressistas das 
Igrejas aos militantes tercciro-mundislas ou aos marxistas intemacionalistas 
de diferentes tendências. Esta estratégia dava um sentido (com conotações 
humanistas, cristãs e revolucionárias) á intervenção do Estado e do Partido no 
campo. f ■ ,;í i:"'! í •
Eu próprio partilhava este estado de espírito quando, em 1983, iniciei o meu 
trabalho de investigação sobre os efeitos da política de «desenvolvimento» 
rural no distrito do Eráti, em país nutkhuwa. Queria nessa altura fazer um traba­
lho de «antropologia aplicada» e identificar os «erros» que permitiriam com­
preender as razões do falhanço, já evidente nessa altura, do projecto de criação 
de aldeias, cujo princípio não punha ainda cm questão,
3. O Estado aldeão
No entusiasmo do primeiro ano de independência, as populações rurais 
li responderam favoravelmente ao apelo dos representantes do novo poder para 
I fazerem «machambas do Povo». Este trabalho era concebido como tima espécie 
i de tributo devido á vitória e foram raros os casos em que foi continuado nos 
’ anos seguintes. As primeiras aldeias comunais construídas no distrito do Eráti 
.respondiam a exigências locais particulares. Ás autoridades encorajaram, por 
exemplo, os antigos trabalhadores agrícolas das empresas coloniais abando­
nadas a continuarem a sua actividade no quadro de cooperativas, concebidas 
como o centro produtivo de futuras aldeias comunais(ll). No distrito do Eráti, 
que contava oitenta mil habitantes, existiam cm 1976 duas aldeias comunais, (II)
( I I ) As aldeias com unais existentes no pais na altura eram esseneialmcnle antigos aldea­
mentos construídos pelos portugueses nas zonas de expansão da guerrilha da Prelimo, no Norte 
do pais, cujo desm antelam ento foi im pedido pelas novas autoridades. Havia também, como no 
caso do Erãli, aldeias construídas no mom ento da apropriação e exploração tle propriedades 
coloniais abandonadas. I tavia, por fim, as que tinham sido instaladas de urgência para acolher as 
vítimas das inundações catastróficas do Vale do Limpopo em 1977. Depois das cheias, as 
populações foram relidas nas zonas alias e impedidas de voltar ao seu antigo Itiihílal,
17
nas quais vivia ccrca dc um milhar dc pessoas. A restante população conti­
nuava a viver «desorganizada», numa espécie dc vazio administrativo que o 
poder iria mais tarde esforçar-se por preencher.
Em 1977, tiveram lugar em todo o país as eleições de deputados its Assem­
bleias do Povo. As duas aldeias comunais do distrito, que na altura represen­
tavam a vanguarda organizada do meio rural, foram dotadas desta instituição. 
Nos anos seguintes, estas eleições foram frequentemente referidas como 
testemunho e garantia da implantação do «poder popular» nas zonas rurais. 
Este processo político foi importante no Eráti, pois deu lugar a um súbito 
rccrudcscimcnto da luta dos representantes do novo poder contra as autoridades 
sociais c políticas linhagísticas locais.
Os antigos régulos c cabos(IJ) não podiam candidatar-se a deputados das 
Assembleias do Povo. A proibição foi alargada a todos os chefes dc chcfatura 
(mpcwé, pl. mapcwé), indcpcndcntcmcntc dc terem ocupado um posto na 
hierarquia colonial. Não foi tomado cm consideração que a maior parle dos 
mapéwc representavam para as populações rurais qualquer coisa de muito 
diferente :dos agentes do poder colonial c que a sua autoridade não provinha 
: esscnciajmente das funções que os portugueses lhes teriam evcntualmente 
i atribuído. A reacçâo dos eleitores, idêntica nas duas aldeias, foi interessante.
Os habitantes, face ao impedimento dos chefes de chcfatura, votaram mas- 
sivamcnlc noutros homens que consideravam como seus representantes legíti­
mos, detentores dc competência para falar cm seu nome c defender os seus 
interesses, os seus chefes dc linhagem, os malumiu (sing. hitnttt). Perante esta 
i situação imprevista c indesejável de regresso do «feudalismo», o adminis- 
! trador do distrito anulou os resultados das eleições c estendeu a proibição dc 
jcandidatura a todos os chefes c notáveis dc linhagem. Então, sem qualquer 
concertação, os eleitores das duas aldeias (situadas a algumas dezenas de 
quilómetros dc distância uma da outra) voltaram a reagir da mesma maneira: 
votaram em massa por pessoas analfabetas, consideradas inofensivas, os idiotas 
da aldeia. Algumas semanas mais tarde, a maioria dos deputados tinha já '>• 
esquecido a tarefa que lhes tinha sido atribuída c a nova instituição democrática 
foi desta maneira democraticamente morta à nascença. Perante a falta de 
consideração da administração da Frelimo, os eleitores tinham devolvido a 
bofetada. 12
(12) A partir do 2.5 Congresso da Frelim o, no qual se assistiu à vitória dos «político-m ilitares 
m arxistas», os chefes ditos «tradicionais» das ciiefaturas locais eram considerados com o sim ples 
«lacaios» ou «fantoches» do poder colonial. Os portugueses tinham -nos por vezes utilizado com o 
chefes dc unidades adm inistrativas com o título dc régulos ou cabos. Entre as suas tarefas 
contavam -se a cobrança do im posto, o enquadram ento da cultura do algodão c o recrutam ento dc 
m ão-de-obra. D ado o com prom etim ento e a servilidade em relação ao inim igo colonial que lhes 
eram atribuídos, não pod ian ícand idata r-sc a deputados, nem exercer qualquer responsabilidade 
política ou adm inistrativa,
Não insistirei aqui sobre a importância elos notáveis elas clicfaturas, que se 
viram atingidos na sua autoridade c dignidade. Os factos c testemunhos reportados 
ao longo deste livro mostrarão clariimenle a importância ela sua posição política 
e os eleitos desastrosos ela sua marginalizaçâo e humilhação. Todas as inter­
pretações locais sobre a origem e o sentido da guerra aclual referem esse 
aspecto.'Sublinhe-se simplesmente que, com o afastamento elos notáveis, a 
eliminação das suas prerrogativas políticas, sociais c religiosas c perante o 
discurso veemente que os ridicularizava, ameaçava e insultava, as populações 
compreenderam que era a sua própria existência social que a Erclimo negava. 
E por isso sentiam vergonha, um sentimento paradoxal de serem obrigadas a 
passar â clandestinidade, com toda a sua história c existência social, poraqueles 
m esmos que, cm seu nome, tinham posto fim â opressão colonial.
A medida que os anos passavam, a guerra começava a dar que falar nas 
regiões do centro do país. Em 1978 c 1979, ela era unanimemente atribuída a 
um bando de assassinos manipulados pelos rodesianos, pela África do Sul c 
pelo imperialismo. Entretanto, no distrito do Eráti, a oitocentos quilómetros de 
distância, existiam apenas duas aldeias. Nenhuma outra tinha sido construída e 
as populações rurais continuavam a viver dispersas nos territórios linhagísticos, 
onde desenvolviam as suas actividades num vazio administrativo que preocupava 
o poder. Ao mesmo tempo, os efeitos da crise c da destruição da rede comercial 
no campo faziam-se já sentir nas montras c prateleiras vazias das lojas que 
ainda se mantinham abertas. Alguns privilegiados podiam comprar a preço de 
ouro os raros produtos disponíveis nos armazéns.
Embora o projecto aldeão continuasse a ser um sonho estranho âs preocu­
pações locais, havia no entanto um aspecto desse projecto que interessava as 
populações: a cooperativa de consumo. Com efeito, os membros das coopera­
tivas podiam adquirir certos bens manufacturados, que não era possível encon­
trar noutro lado a preços razoáveis: capulanas, roupas, petróleo, enxadas, catanas, 
machados e panelas... O desejo de ter acesso a estas mercadorias através da 
cooperativa iria favorecer a intervenção dos responsáveis distritais, decididos a 
fazer avançar a todo o custo o projecto aldeão.
E então que o número de aldeias construídas cm cada distrito se torna um 
critério de avaliação do dinamismo da sua administração c que cada respon­
sável tenta apresentar um máximo de aldeias edificadas na região sob a sua 
jurisdição. Ao mesmo tempo, no seio das populações, cada grupo territorial 
tenta apresentar-se perante a administração como interlocutor credível, de 
forma a poder construir a inevitável aldeia nas suas terras e a beneficiar assim 
da tão desejada cooperativa de consumo. Começam então a aparecer um pouco 
por todo o lado «machambas do Povo» abertas por iniciativa dos habitantes, 
que desta forma tentam demonstrar a sua boa vontade modernista. Mas a 
administração devia escolher c decidir a localização definitiva das aldeias c as 
consequências dessas decisões foram sempre dolorosas. Como é evidente, as
famílias que conseguiram que a aldeia fosse construída nas suas terrastl3) viram 
alguns dos seus membros promovidos a posições-chave de poder político e 
administrativo, enquanto a restante população ficava politicamente marginalizada 
e afastada do acesso aos bens do mercado, Dezenas de milhar de pessoas viram- 
-se assim obrigadas a construir as suas casas na aldeia (o que equivale a um mês 
de trabalho por cada palhota), por vezes a dez quilómetros de distância, nutri 
território estranho; e isto voluntariamente ou à força, pois o processo foi 
frequentemente violento. Simultaneamente, assistiu-se a uma escalada da. 
agressão contra os detentores da autoridade linhagística local e os mapéwé, 
chefes de chefatura. E certo que estes opunham uma inércia obstinada às'. 
\ decisões administrativas e que uma parte da população, encorajada pela manifesta 
má vontade dos chefes, recusava transferir-se. A ideia de que os dependentes 
seguiriam os seus chefes levou a administração a amarrar alguns nialnimii e chefes 
de linhagem e a arrastá-los até ao local do novo habitat. Humilhados, estes 
homens fugiriam, para depois voltarem à aldeia armados de catanas e dispostos 
a lavar a afronta de que tinham sido vítimas.
Raramente as pessoas mais dinâmicas e empenhadas na construção das 
j aldeias eram simples camponeses. Na verdade, tratava-se de pessoas alfabeli- 
I zadas, reconhecidas pela administração do distrito, tais como alfaiates ou filhos 
/ de alfaiates, pedreiros, carpinteiros, comerciantes ou filhos de comerciantes,
|l professores, ou seja, indivíduos que constituíam um pequeno grupo em ruptura 
com a autoridade linhagística. Apoiando-se no discurso da Frelimo, com mais 
ou menos habilidade e boa fé, para realizarem o seu projecto local, ou sim-
( 1 3 ) 0 solo subdivide-se em territórios (milllielllie, sing. imilthetlhe), cada um dos quais é 
controlado pelos m em bros de uma linhagem , considerada a prim eira a ler chegado a esse 
território e cujo chefe é o «dono» da terra. Estes territórios constituem áreas matrim oniais: cada . 
um dos «donos» da terra acolhe no seu solo outras linhagens, às quais concede parcelas do seu 
território (igualmente designadas mmheuhe) e com as quais a sua linhagem estabelece relações 
matrim oniais.
A rivalidade em lermos da construção da aldeia verifica-se ao nível das grandes áreas 
matrim oniais (entre duzentos e trezentos hectares) e não das pequenas concessões linhagísalicas. 
As vantagens para os que conseguiam que um a aldeia fosse edificada no seu território eram 
consi-deráveis: podiam criar e gerir uma cooperativa de consum o (através da criação de uma 
«cooperativa de produção» fictícia), evitavam ficar subm etidos à autoridade de uma aldeia 
dirigida por famílias estrangeiras dos territórios vizinhos, não eram obrigados a abandonar o seu . 
território, as suas macham bas, árvores de fruto, nem os cem itérios dos antepassados. Os mais 
am biciosos podiam m esm o alim entar sem escrúpulos o projecto de se aproveitarem social, 
política e materialm cnte da subordinação adm inistrativa em que se encontravam as populações , 
provenientes rios territórios vizinhos, Estas últimas estão na aldeia num a situação de hóspedes e 
dependentes ilf fm lo. fi preciso cortejar os «donos» da aldeia para ler acesso aos produtos, pois ■ 
são eles que detém a presidência da cooperativa, o mesm o se passando para a obtenção de 
docum entos e autorizações devidamente carim badas (guias de marcha, etc.), porque um deles é 
o secretário da aldeia, outro controla o tribunal popular c um terceiro as milícias...
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plesmente a sua ambição pessoal, não faziam ideia do mal que provocavam nos 
espíritos cada vez que ridicularizavam publicamente a figura de um notável 
silencioso.
Todavia, a pressão das autoridades permanecia razoável a partir do mo­
mento em que cada família tivesse construído a sua casa, devidamente regis­
tada, na aldeia. Ninguém destruiu a antiga habitação no território de origem e 
quando a administração do distrito virava costas as pessoas voltavam muito 
simplesmente para casa, para junto dos seus cemitérios, dos seus campos e 
árvores de fruto, onde eram donos da terra e não dependiam de ninguém para 
subsistir. Dezenas de casas vazias alinhavam-se assim ao longo das ruas deser­
tas, depressa invadidas pelo capim, nos «bairros» numerados da aglomeração 
( «comunal», onde alguns iam por vezes passar o fim-de-semana ou assistir às 
: reuniões oficiais.
Entre 1980 e 1984, o crescimento do número de aldeias e da percentagem 
da população agrupada foi considerável. Os «desenvolvimentistas» de Maputo 
ignoravam evidentemente que muitas das habitações conscienciosamente 
registadas nos seus quadros de planificação estavam vazias, mas sabiam por 
outro lado que as «cooperativas de produção» não produziam nada. Ora, as 
cooperativas eram concebidas como a base material e a condição do desen­
volvimento social da vida aldeã. Significava isto um falhanço? Na realidade, a 
estratégia das aldeias comunais tinha já nessa altura mostrado a sua verdadeira 
natureza por todo o país, revelando-se como um instrumento político extre­
mamente eficaz, não para o «desenvolvimento» das regiões rurais, mas para a' 
edificação no campo de um aparelho administrativo de Estado (nacional).
, Existiam então vários milhares de aldeias em Moçambique, dispondo cada uma 
i delas de um secretário administrativo e de um responsável do partido, cuja 
: nomeação era controlada pelas autoridades distritais. As aldeias mais importantes 
dispunham de um administrador de localidade, de uma célula do partido, de 
milícias, de tribunal e Assembleia do Povo e de secções daOrganização da 
Mulher Moçambicana (OMM) e da Organização da Juventude Moçambicana 
(OJM). O país ficou em poucos anos coberto por uma rede de administração 
hierarquizada, fundada sobre a entidade administrativa e política aldeã. As an­
tigas divisões administrativas coloniais, agora «localidades», «círculos» e «cé­
lulas», só se tomavam verdadeiramente operacionais no quadro do novo aparelho 
dc Estado através das estruturas administrativas c políticas das aldeias, Se con­
siderarmos os resultados do projecto aldeão^constata-se que o principal e único 
efeito foi o de servir para o controlo administrativo da população rural, ou seja 
80% da população do país, para o seu enquadramento e .recenseamento e para 
1 a sua submissão ao novo aparelho de Estado moçambicano. É de notar que esta 
construção do Estado nacional no campo foi inteiramente levada a cabo em 
ruptura e conflito aberto com os elementos política e socialmente respeitados a 
. nível local pelas populações e por elas investidos de uma autoridade reconhecida.
ü projecto aldeão cr», por um lado, portador dc grandes ideais humanistas 
c resultava das melhores intenções — não se põe em causa a boa fé da maioria 
dos seus promotores. Mas, por outro lado, acaba por se revelar como o sistema 
de significação, a armadura ideológica, através do qual foi possível no espírito 
dos políticos, dos burocratas c dos militantes, estender a todo o território uma 
organização administrativa hierarquizada, susceptível dc assegurar o controlo 
social quotidiano dc cerca de doze milhões dc habitantes rurais. Aliás, esles nimai 
o entenderam de outra forma. Esta organização administrativa era percorrida 
da base à cúpula por um fluxo contínuo dc papeis, relatórios c circulares, 
devidamente carimbados, c uma das funções essenciais deste sistema parece ter 
sido a dc dar um conteúdo material à existência da hierarquia através do envio 
escrupuloso, dos escalões inferiores para os seguintes, da informação c da 
imagem que estes desejavam por sua vez apresentar aos seus superiores c por 
aí adiante. O uso da langue de bois permitia todas as falsificações da realidade, 
ao mesmo tempo que não punha cm causa a boa fé dos funcionários, alguns dos 
quais acreditavam sinccramcnlc estarem a cumprir o seu dever transmitindo, do 
que sabiam, apenas o que era possível pensar c formular dentro das categorias 
da fraseologia oficial...
4. A chegada da Renamo e a investigação
Em Março dc 1984, a Renamo ampliou o seu campo dc acção na província 
dc Nampula, chegando aos limites do distrito do Eráti, As Forças Armadas dc 
Moçambique (FAM) intervieram então no campo para obrigarem todos os 
habitantes que viviam dispersos a entrarem nas aldeias. Os oficiais pensavam 
evitar desta forma que a população fosse influenciada pela guerrilha, criando ao 
mesmo tempo as condições do seu controlo social óptimo. Todas as casas que 
ainda existiam nos territórios dc origem foram incendiadas. Esta operação foi 
cm certas localidades ocasião dc intimidações, roubos c outras violências 
praticadas pelas milícias encarregadas da sua execução.
A maioria das populações ficou a partir dc então numa posição de subordi­
nação material c social, c já não somente política c administrativa, cm relação 
aos grupos de famílias que dirigiam as aldeias, numa situação que beneficiava 
estes últimos. As famílias detentoras do controlo da utilização das terras vizinhas 
submetiam as populações deslocadas á obrigação dc cuidarem das suas árvores 
dc fruto nas terras cansadas, ou no mato fechado, que lhes tinham emprestado 
para subsistirem. A produtividade do trabalho das populações sinistradas 
diminuiu ainda mais devido à grande distância a que ficavam as suas antigas 
machambas, por isso às vezes abandonadas, e também por causa da distância 
que separava as diferentes parcelas que podiam cultivar, obtidas ao acaso dos
22
empréstimos... A base produtiva, a capacidade dc reprodução física de unia 
grande parte das populações rurais, ficou a partir dessa altura verdadeiramente 
ameaçada.
O agro-eeonoinisla Mugens Pedersen c cu próprio seguíamos de perlo estes 
acontecimentos. As nossas investigações (M) suscitaram o interesse dc Aquino 
de Bragança, na altura dircclor do Centro dc Estudos Africanos da Universidade 
de Mapulo, que nos convidou a formular uma análise da guerra a partir dos 
resultados do nosso trabalho. A questão era a seguinte: que se passaria quando 
a Renamo entrasse de facto no distrito? Apesar dc não termos investigado espe- 
cííicamcntc sobre a situação criada pela acção armada da guerrilha, a existência 
dc algumas categorias dc pessoas partieularmente afcctadas pela política da 
Erelimo levava-nos a pensar que a sua situação constituía um terreno favorável 
para o desenvolvimento da guerra. Três grupos sociais pareciam cspccialmcnlc 
sensíveis',; os notáveis políticos linhagísticos locais, cuja autoridade tinha sido 
■ ■ negada c ridicularizada com a implantação do aparelho dc Estado aldeão; as 
' | populações sinistradas pela deslocação forçada para os aglomerados comunais
(uma parte das quais viria rapidamente a ser vítima da fome); c, finalmcntc, os 
jovens rurais, que tinham tentado subtrair-se ás exigências da vida doméstica 
rural c que não se tinham conseguido integrar cm meio urbano. Podia-se ima­
ginar que estes indivíduos eram não só susceptíveis dc manifestar uma neu­
tralidade favorável em relação à guerrilha, mas também que os mais radicais ou 
desesperados dentre eles — por diferentes razões, cvcntualmcnlc mesmo 
contraditórias — se teriam integrado na actividade armada conduzida pela 
Renamo contra o poder,l5).
Estas hipóteses suscitaram o interesse de alguns responsáveis que ace­
deram ao meu pedido dc voltar ao Eráti, entretanto mergulhado na guerra, para 
compreender o que aí se tinha cfcctivamentc passado depois dc três anos de 
, presença da Renamo. Este livro é o resultado desta.última investigação, feita em 
1 Setembro e Outubro de 1988, numa região em que vivi e trabalhei entre Julho
j dc 1983 e Janeiro dc 1985.
r ■
*
Desde os primeiros dias de trabalho de campo que as nossas hipóteses se 
revelaram insuficientes. No entanto, não eram falsas, pois lodos os relatos, sem 
nenhuma excepção, referiam a questão das aldeias na explicação das motivações
, (14) V er C. G cffray c M. Pedersen, Transformação da organização social c do sistema 
agrário do campesinato no distrito dc Eráti: processo dc socialização do campo e diferenciação 
social, Departamento dc Arqueologia c Antropologia da Universidade E. M ondlanc c M inistério 
dá Agricultura, M aputo, 1985, 101 p. dnclil.
(15) Estas hipóteses foram publicadas em colaboração com M . Pedersen cm «Sobre a guerra 
rta província dc Nam pula», Revista Internacional de Estudos Africanos, n° 4/5, Janeiro-D ezem ­
bro dc 1986, Lisboa, pp. 3 0 ^3 1 8 .
V.
i
da entrada em guerra de populações civis ao lado da Renamo. Com efeito, as 
aldeias eram sentidas como a matriz do aparelho de Estado no campo e para 
muita gente as consequências políticas da sua construção eram consideradas 
insuportáveis. A situação actual das aldeias nas zonas fiéis à Frelimo revela de 
forma trágica e ao mesmo tempo burlesca a verdade da sua função política (cf. 
capítulo 7), que se manifesta, aliás, independentemente do número de palhotas 
efectivamente construídas. A simples referência ao projecto aldeão era suficiente 
para favorecer o aparecimento de uma nova hierarquia política local, em conflito 
com as autoridades sociais e políticas reconhecidas.
Ou seja, o conflito que opunha as populações rurais à Frelimo e ao seu 
Estado aldeão está cerlamentc na origem da dissidência de uma parte dos habi­
tantes do distrito. A Renamo tinha compreendido bem os termos desta crise e 
organizado a sua acção militar tomando em conta essa situação.! Os seus 
; combatentes tiveram o cuidado de destruir apenas as habitações dás aldeias 
e de encorajar os habitantes a voltar para os seus territórios de origem, onde 
os seus bense a sua integridade física seriam preservados JAo mesmo tempo, 
matavam de forma selectiva e sistemática os novos notáveis aldeãos do regime, 
esforçando-se por ganhar para a sua «causa» as autoridades linhagísticas e das j 
chefaturas locais, para depois as investirem de novas responsabilidades.
Todavia, as nossas hipóteses revelaram-se insuficientes, na medida cm qué 
prevíamos alianças individuais e esporádicas. Segundo o nosso esboço de 
«modelo», os mais atingidos e desesperados pelas orientações do poder fugi­
riam clandestinamente das aldeias para chegarem a um acampamento provi­
sório da Renamo escondido no mato.Jsto aconteceu em alguns casos, mas a 
forma de adesão das populações à Renamo foi, no entanto, muito mais brutal e 
espectacular e constituiu um fenómeno grave e profundo: sociedades inteiras 
mobilizaram-se com os seus chefes locais, e várias dezenas de milhar de 
pessoas colocaram-se assim fora do alcance do Estado da Frelimo, no interior 
de espaços geográficos e sociais controlados militannente pela Renamo. Em 
vez das alianças individuais e mais ou menos tímidas que imaginávamos, houve 
uma dissidência colectiva que, segundo todos os testemunhos, foi vivida num 
ambiente de entusiasmo e de esperança. A entrada em guerra assumiu o carácter 
de uma recuperação da iniciativa política por parte das populações face a 
Frelimo e ao seu Estado. O simples facto de a Renamo ler dado ás populações, 
através da sua acção militar, a possibilidade de se subtrair à alçada do Estado, 
permitiu-lhe basear a sua intervenção na dinâmica dos conflitos locais, deles se 
alimentando, sem que lhe fosse necessário formular um programa político que 
a legitimasse'^ O simples reconhecimento da existência social das populações 
por parte duma força militar, qualquer que ela fosse, era suficiente aos olhos 
destas para dar um sentido político â sua intervenção.!
Por outro lado, as nossas hipóteses revelaram-se igualmente insuficientes 
na medida em que não imaginávamos que outros factores alheios à política
conduzida no campo a partir da independência pudessem motivar a entrada em 
guerra das populações. Ora, o engajamento das populações na guerra não 
resulta mecanicamente da sua oposição ao Estado. Nem todos os que entraram 
em dissidência são chefes, membros de famílias deslocadas para as aldeias ou 
jovens frustrados, e, inversamente, nem todos os membros destes grupos so­
ciais são dissidentes... A motivação da dissidência está sempre ligada ao conflito 
com o Estado, mas, como se verá, a polarização das populações na guerra 
resulta de oposições históricas, por vezes muito antigas, que as dividiam muito 
antes da intervenção da Frelimo e da edificação do seu Estado no campo. 
Concretamente, nos actuais distritos de Namapa e Eráti, onde o trabalho de 
investigação foi feito, e nos distritos vizinhos de Memba, Muecate, Nacala-a- 
-Velha e Monapo, foram as populações ditas «Macuane»<l6) que seguiram os 
seus chefes na dissidência, enquanto as populações que povoam a zona norte da 
região e que se reconhecem historicamente de origem diferente, Eráti, Chaka, 
Marave e Mineto, continuaram massivamente fiéis ã Frelimo (pelo menos a sul 
do rio Lúrio).
Todas estas populações, Eráti, Chaka, Macuane..., sofreram os efeitos da 
mesma estratégia de aldeamento, com a construção das aldeias comunais, todas 
viram surgir no seu seio os mesmos graves conflitos políticos e territoriais. Mas 
nem todas tinham tido outrora as mesmas ligações com o Estado português, 
nem todas tinham sofrido da mesma forma a situação colonial e.nem todas 
tinham sabido, ou podido, dela tirar as mesmas vantagens. Veremos que as 
populações legitimistas da Frelimo foram também as privilegiadas da situação 
colonial e que as marginais e rebeldes dessa altura continuaram a ser marginais 
no Estado independente, antes de se tornarem dissidentes da Frelimo. c de se 
confiarem à autoridade militar da Renamo.
Assim, as populações dissidentes caíram numa armadilha da qual hoje em 
dia têm dificuldade de sair. Como veremos, elas enganaram-se sobre a natureza 
da Renamo, que as utilizou em seu proveito. Contrariamente ao que a propa­
ganda da Frelimo pretende fazer crer, bem como a dos países ocidentais ou de 
«Leste» que a apoiam na guerra, a Renamo não é evidentemente uma associação 
de bandidos. Mas também é certo que ela não é uma organização política e que 16
(16) 0 antigo distrito do Eráti foi, cm 1987, subdividido cm dois distritos: Namapa e Eráti. 
É de salientar que por uma inépcia burocrática particularmente infeliz a designação «Eráti» foi 
atribuiria il parte sul do anterior distrito (ex-poslo Nacaroa), onde vive a população Macuane. No 
passado, os M acuane foram os mais ferozes inimigos do povo Eráti que, por sua vez, ocupa o 
norte do distrito, actualm ente designado «Namapa».
A designação «M acuane» é utilizada pela maioria dos nossos interlocutores do país Eráti 
para designar as populações situadas a std do seu próprio território histórico, massivamenle 
entradas em dissidência com a chegada da Renamo. O termo é utilizado por comodidade, 
sabendo que uma parte das populações assim designadas não se reconhece no entanto como 
pertencendo á M acuane.
não tem projecto algum para as populações que parasita há quase quinze anos. 
Veremos como c por que razão a guerra, que é a condição de reprodução da 
Renamo como instituição armada, constitui cm si própria o seu verdadeiro 
projecto, c como a guerra pode constituir um projecto de vida para alguns, de 
tal forma que todas as populações civis se tomam directa ou indircctamcnlc 
reféns, submetidos, explorados, assassinados, nas mãos dos homens armados.
Mapa 2: Antigos regulados; áreas de povoamento macuanc, eráti, chaka, mmeto c marave; 
áreas controladas pela Renamo (1988)
26
1
A TEORIA DOS CHEFES 
SOBRE AS ORIGENS DA GUERRA
Entre os primeiros a tentar interpretar a origem c atribuir um sentido à 
guerra estão provavelmente os seus adores c vítimas directas. Parccc-mc, pois, 
conveniente apresentar aqui o conteúdo dessa interpretação para de certa forma 
sjluar o espírito local da guerra.
Yamaruzum, a decana duma linhagem nobre da região, dá-nos uma inter­
pretação dos acontecimentos que desde há quatro anos fazem sofrer e dizimam 
o seu povo; ela enuncia o ponto de vista, a teoria, dos chefes sobre a origem e 
a dinâmica local da guerra, dando-nos aó mesmo tempo preciosas informações 
sobre as motivações dos que entraram em dissidência:
Eram os mapéwé [chefes] que faziam existir a comunidade (z) através do 
epepa m (...). Graças ao epepa a desgraça nunca atingia a comunidade. Esta guerra 
que nos aflige hoje foi provocada pelo «abaixo» Não podíamos fazer nada: não 
podíamos depositar o epepa nem podíamos ir a nenhum local sagrado porque 
tínhamos medo. Quando nos surpreendiam a depositar o epepa, éramos presos, 
Foi por isso que deixámos de depositar o epepa: para deixar os donos [a Frelimo]
■ ■ (1) Yamaruzu è a apwyamwcnc da linhagem nobre do chefe (mpéwé) M azua. Em português 
local utiliza-se o term o rainha para designar as mulheres que tem este estatuto.
(2) O term o clapii, que traduzo de forma aproxim ativa por «com unidade», designa ao 
titcsino tempo o território da chcfatura c a sua população.
(3) O epepa 6 a farinha de sorgo que cada chefe de linhagem (Imnm) tem e que lhe permite 
com unicar com os antepassados do seu grupo. No mom ento da consagração do mpéwé, chefe de 
chcfatura, este recebe um a porção do epepa de cada um dos chefes de linhagem que pertencem 
à sua chefatura. O epepa do mpéwé é, pois, especial e perm ite-lhe com unicar com o espírito dos 
antepassados de todos os membros da sua chefatura, independentem ente da sua origem linha- 
gística. A protecção destes espíritos é frequentem ente invocada cm caso de doença, de seca, para 
conjurar um m alefício ou, com o no caso presente, o flagelo da guerra.
(4) Yamuruso refere-se aos slogans ritualm ente proferidos pelas novas autoridades locais, 
que marcam o início e ofim das suas intervenções públicas. «Abaixo» designa aqui a Frelimo e 
a veem ência do seu discurso.
27
fazerem o que queriam, para deixar os ukunha<5) fazerem o que queriam. Deixámos 
de pôr o epepa e por causa disso a guerra, quando chegou, não pediu autorização 
para entrar. A comunidade era regularmente protegida pelo epepa, Então, quando 
■ a guerra veio..., esta guerra, na nossa comunidade, já ninguém a podia impedir. 
j Chegou de surpresa, porque nós tínhamos medo de ir aos locais sagrados rezar 
para impedir a guerra. Mas, se tivéssemos ido rezar nesses sítios e se as autoridades 
tivessem encontrado aí o epepa, ler-nos-iam prendido. Foi por isso que a guerra 
veio e entrou violentamente na nossa terra, atingiu o nosso povo. Dispersámo-nos, 
A guerra destruiu-nos.
Aqueles que tinham o epepa em casa, alguém veio queimar. Os ekhavete 
foram partidos... Foram os soldados da Frelimo que fizeram isso. Quando o epepa 
estava numa garrafa, eles partiam a garrafa e o pouco que restava obrigavam-nos a 
diluir para beber. Foram acontecimentos muito maus, e por isso a terra está queimada.
Ficámos muito tristes, esperávamos a nossa última hora. Porque eles destruíram ’ 
todas as nossas coisas, partiram tudo, queimaram tudo, então a guerra chegou 
violentamente...
Quando lhe foi perguntado de onde tinha vindo a guerra, Yamaruzu res­
pondeu contando uma história onde ela própria se põe em cena ao lado do 
mpéwé Mazua, seu «irmão», lace a um cão também nobre, mpéwé:
(...) Um dia apareceu um cão. Todos diziam que era nobre [mpéwé] e que era 
preciso respeitá-lo. Ele visitava sempre os mapéwé. Passaram-se três dias, antes de 
vir aqui a casa ( ...) . Nesse dia, eu tinha acendido o fogo e estava sentada em 
companhia do meu irmão, o mpéwé Mazua, que tinha vindo visitar o seu sobrinho: 
— meu filho — , a beber aguardente de caju. Quando vimos entrar o cão, levantámo- 
-nos para o cumprimentar. Balemos as m ãosl1) e ele passou devagar; os seus passos 
faziam o barulho do galope dum cavalo. Ele entrou na casa, passou junto do meu 
filho que dormia c eu tive medo que ele o matasse mas ele continuou até ao meu 
quarto e deitou-se junto da minha cama.
Então o meu irmão Kulué, que também lá estava, saiu (aquele que é tratado da 
tuberculose na missão), pegou no cabo duma enxada e começou a bater no cão. Mas 
este não se mexia, não gania, e Kulué cansou-se. Saiu de novo e deitou-se para 
descansar. Então o cão saiu a ladrar e queria morder — tivemos que lhe pedir 
desculpa pelo meu irmão, que não sabia que o cão era mpéwé. Então o cão parou de 
ladrar e foi-se embora sem morder Kulué.
' (ó) Akkmha (sing. lékimha) significa lileralmcnie «brancos» (a cor) e designava oulrora os 
europeus. O termo designa hoje por extensão Iodas as pessoas bem vestidas, ricas ou que dispõem 
duma autoridade exterior á sociedade local, qualquer que seja a cor da sua pele. No caso presente, 
trata-se das novas autoridades políticas da Frelimo.
(6) O ekhavete é o tam bor do mpéwé, cuja exibição é indispensável á consagração dum cltefe 
de linhagem , F.sle objcclo faz parle iln panóplia tios símbolos de poder do mpéwé. 0 seu uso 
cerimonial dem onstra, entre outras coisas, que nenhum chefe de linhagem pode ser nomeado 
num a chefulura sem o consentimento do seu mpéwé.
(7) Bater as mãos inclinando ao mesmo tempo a cabeça é prova de respeito.
28
N o d ia seg u in te , s o u b em o s q u e o S r. Ja k o m é 0,1 tin h a m o rto o cã o co m a sua 
e sp in g a rd a . Já o tinham en te rrad o . M as p assad o s do is d ia s, e le j á lin h a d esap are c id o 
d o b u raco e o u v im o s d iz e r q u e an d a v a na re g iã o de um la d o p a ra o o u lro . E n tão 
h o u v e v á r ia s te n ta tiv a s p a ra m a ta r o cã o , m a s fa lh a ra m to d a s ( ...) . P o r f im , o u v im o s 
d iz e r q u e e le tin h a co m e ç a d o a a ta c a r as p e sso a s q u e en c o n tra v a : to d as as pessoas 
m o rd id as m o rriam p o u co te m p o dep o is,
F o i ass im q u e se p a sso u a h is tó ria d o cã o q u e v e io d o s lad o s d o r io M u eta g e .
Com eleito, foi das margens do Muetage que, em 1985, vieram as primeiras 
incursões dos homens da Renamo. A história do assassinato dum cão mpéwé 
como motivo da guerra exprime uma interpretação colectiva local da sua 
origem. Se alguma ambiguidade havia sobre o sentido das suas afirmações, 
Yamaruzu encarregou-se de a eliminar ao responder à seguinte pergunta: 
— Porque é que a terra se queimou?
— A te rra q u e im o u -se p o rq u e o s mapéwé e ra m tra ta d o s c o m o c ã e s . A s 
apawyamwene tam bém e ram tra tad as co m o cad e las . A n tig a m en te , a s pesso as qu an d o 
n o s v iam le v an tav a m -se e cu m p rim e n ta v a m -n o s c d ep o is nós m a n d á v a m o -la s sen ­
tar. U ltim am en te , q u an d o nos v iam p assa r, g ritav am : «Abaixo comer agalinliam\... 
A b a ix o p ô r o e p e p a l» . E n tão , n ó s an d á v a m o s tr is tes , p o rq u e a f in a l e ram o s no sso s 
filhos q u e nos faz iam isso ,.. L o u v a d o se ja D eus! ( . . . )
N ós e sp e ráv a m o s que o s d o n o s (a F re lim o | fo ssem e le s p ró p rio s d e p o s ita r o 
epepa... M as , p o r e x e m p lo , v o cê q u e conduz, e s se ca rro : é v o c ê q u e c o n h e c e os 
p a ra fu so s que ap e rta ,,., en tão se a lg u ém vem m e x e r e faz.er q u a lq u e r co isa ... o ca rro 
v a i a rran c ar?
Yamaruzu, assim como o seu «irmão» Mazua, refugiaram-se na zona 
governamental, abandonando as suas terras e uma parte do seu povo, aclual- 
mente sob o controlo da Renamo. Yamuruz.u vive em Alua (distrito de Namapa), 
onde a encontrámos, e Maz.ua rcfugiou-sc no posto administrativo que tem o 
seu nome (no distrito de Memba), locais que estão sob o controlo da Frelimo. 
Apesar das queixas importantes que têm da Frelimo<l0), ambos colaboram com
(8) Um com erciante da região.
(9) Refeição habitualmente oferecida aos notáveis da chefatura em testemunho de respeito.
(10) Alguns anos após a independência, Maz.ua foi preso pelas autoridades por causa de um 
com entário — provavelmente provocatório — feito sob o efeito do álcool durante uma reuniáo 
pública do Partido. O marido de Yamaruzu, presente durante a entrevista, relata assim o que 
M azua disse quando voltou da prisão: «Q uando M azua foi libertado, reuniu todos os chefes de 
linhagem (mtihimm) da sua chefatura e disse-lhes que já não via razão para pôr o epepa, pois 
líiilunu-llic tirado a sua terra, A pesar disso, o secretário da aldeia de vez, cm quando pedia a 
Maz.ua que depositasse o epepa, u que ele fazia contrariado. Durante essas cerimónias, ele dírigia- 
-se aos espíritos dizendo: “Tiraram-m e a minha terra, já não tenho nada”» — anulava assim para 
si próprio a autenticidade do rito que se via obrigado a executar.
as autoridades, liles mmca sc enganaram sobre a natureza da guerra promovida 
pela Rcnaino c sobre o seu resultado; contrariamente a muitos dos membros da 
sua chcfalura c da sua própria linhagem, nunca alimentaram a ilusão dc que esta 
guerra fosse uma «boa guerra».
30
2
A DISSIDÊNCIA DOS CHEFES 
E DAS SUAS POPULAÇÕES
História da implantação local da Kcnamp
A história da «conquista» destas regiões pela Renamo c antes de mais a 
história, por vezes patética, de algumas dezenas de milhar de camponeses que 
ho período de 1984 a 1986 se.subtraíram ao controlo do Estado da Freliino. A 
conquista estendeu-se pelos anos de. 1984 e 1985. No ano seguinte, o processo 
de polarização das populações na guerra estava no essencial realizado. No 
, momento do inquérito (em Novembro de 1988), a redistribuiçâo espacial do 
povoamento da região e a relação de forças militares local que lhe serve de base 
! permaneciam idênticas.
Apresento em seguida as etapas e o carácter dessa conquista através de uma 
série de testemunhos. Estas descriçõese relatos locais referem-se a factos de 
natureza diversa, mas que são, não obstante, suficientcmcnte significativos 
para que se possam formular algumas considerações gerais importantes sobre 
a dinâmica local da guerra. 1
1. A leste da estrada 360, ao Sul do rio M ecubúri
Até Março de 1984, a Renamo não tinha ainda feito nenhum ataque no 
distrito do Eráti, mas os rumores da guerra chegavam já à região, produzindo 
de forma indirecta os seus primeiros efeitos. Foi nessa altura que o exercito 
encarregou as milícias de reunirem rapidamente em aldeias as populações 
dispersas. Com esse objectivo, as milícias queimaram todas as habitações ainda 
existentes nos territórios linhagísticos fora das aldeias.! Para a Frelimo, o seu 
Estado c exército, a preocupação é controlar os movimentos e as actividades 
das populações rurais, impedindo o seu contacto com a Renamo, cujos primeiros 
destacamentos ameaçam as zonas fronteiriças do sul do distrito: «eles» estão 
em Muecate e no Monapo...
Paralclamcntc a esta intervenção violenta c cspcctacular decidida pelo exér­
cito, os antigos régulos e cabos são chamados a participar na organização da
31
segurança das aldeias(,) e são encarregados de fazer patrulhas para informarem 
a administração de qualquer movimento suspeito. Recusar esta tarefa seria 
interpretado como uma manifestação de hostilidade em relação ao Partido e, 
portanto, de uma virtual simpatia para com a Renamo. Mas, ao mesmo tempo, 
eles são todos suspeitos a p rio ri e é-lhes dado a entender que serão presos caso 
a Renamo entre nas suas antigas áreas de jurisdição.
M ahia: chefe da dissidência
Nessa altura, todos os mahumu (chefes de linhagem) e todos os mapéwé' 
(chefes de chefaturas) do distrito vêem os membros das suas linhagens e 
chefaturas ser deslocados em massa, obrigados a abandonar as suas antigas 
habitações e currais (queimados), as suas terras, as culturas e uma boa parte 
das suas colheitas, as suas árvores e cemitérios, para se instalar nas aldeias 
comunais.
Mahia, um antigo régu\o-tnpéwé da Macuane, é um desses chefes e será o 
primeiro a oferecer hospitalidade aos soldados da Renamo, vindo depois a 
tomar-se o principal chefe da dissidência na região. Mahia, que em 1984.vivia 
a leste do posto administrativo de Nacaroa (actual distrito do Eráti — ver mapas 
2 e 3) sempre se tinha declarado abertamente contra a construção das aldeias, 
que dizia serem «lugares de preguiça»'21. Ninguém até então o tinha conseguido 
convencer, e às populações da sua chefatura, das vantagens da política aldeã 
do Partido. Mas desta vez lodos são obrigados a submeter-se, as habitações 
dispersas são destruídas e as populações de Mahia instaladas pela força na 
aldeia. Um homem, Martins, é nomeado secretário da aldeia, o que agrava ainda 
mais a tensão, porque se trata de um membro pertencente a uma linhagem 1
(1) Com o já foi dito atrás, muitos dos chefes locais foram investidos no tem po colonial de 
responsabilidades políticas e de gestão pela adm inistração portuguesa. Nesses casos, para além 
do estatuto de mapéwé com as respectivas funções sociais, políticas e sim bólicas concernentes à 
sociedade dom éstica e ím ltagíslica, assumiam as tarefas de régulos (responsáveis perante o adrni-, 
nislrador colonial dum a subdivisão da circunscrição, o regulado) ou de cabos (responsáveis dum a 
subdivisão do regulado, o gabado). Em com pensação, beneficiavam de vantagens ligadas ao 
exercício dessas funções, mas tam bém suportavam as suas obrigações, por vezes bem pesadas. A 
hierarquia adm inistrativa colonial não procurava harm onizar-sc com a prevalecente no disposi­
tivo político linhagístico: alguns régulos não eram mapéwé e vice-versa. A ssociando os chefes às 
tarefas de segurança, a Frelimo punha-se em situação de m elhor os controlar, ao m esm o tempo 
que os com prometia.
i(2) D eve-se entender por esta fórmula um lugar onde os homens, arrancados das suas terras 
e obrigados a cultivar uma terra em prestada ou a terra da cooperativa, leriam tendência para ficar 
à espera do trabalho dos outros, para se dem itirem da sua responsabilidade produtiva, adoptàndo 
um a atitude de im potência e de assistidos face ao Estado que im põe tais condições de vida e de 
trabalho.
32
M a p a 3
N om e e localizaçao das populações i[ue entraram em dissidência 
(nom e do ch efe)
wmmm
MAHIA 
MUTA 1
: Zona sob controlo da Renamo 
: Posto-avançado da Renamo 
: Hase militar da Renamo sob a autoridade de um chefe 
: Chefe dissidente
: Chefe de cuja lealdade as autoridades suspeitam
dissidente
33
outroni submclida por um antepassado de Mahia, Ou seja, o único responsável 
c representante da população de Mahia reconhecido pelo Estado é um epotha 
J' do velho chefe, um dos seus próprios «escravos», como se diz cm português 
local,n.
Tirarem o seu povo das suas terras para o instalar na aldeia sob a autoridade 
dum homem que ele considera um impostor é uma humilhação para Mahia. Do 
seu ponto de vista, c segundo a expressão comum, estão a «roubar-lhe o seu 
povo e a sua terra» (elapu). Decide então entrar cm dissidência e ir para o mato: 
abandona o seu território, passa os limites do distrito do Eráti, penetrando no 
mato do distrito vizinho do Monapo. Seguem-no alguns milhares de pessoas, a 
grande maioria da sua chefatura, que continuam a reconhecê-lo como seu chefe, 
o seu mpéwé. Pede hospitalidade para si c para os seus na área dum outro chefe 
da Macuane, Mezope, também ele um antigo régulo da administração colonial 
(ver.mapa 2).
Mezope recebe-o e propõe-lhe que se instale com a sua gente junto ao rio 
Mariri, que atravessa uma parte do mato despovoado situado na área da sua 
chefatura. A nova residência do velho chefe situa-se a cerca de 80 quilómetros 
dos centros urbanos importantes mais próximos (Nacala, Memba e Namialo), e 
no mesmo momento, apenas a cerca de 30 quilómetros a sul, os homens da 
Rcnaino multiplicam os seus ataques na estrada Nampula-Nacala.
Passadas algumas semanas, os primeiros emissários da Renamo apresen- 
tam-se a Mahia, nas margens dó rio Mariri.
Terá sido boa vonladc das populações e dos seus chefes cm relação à 
organização militar subversiva? A localização do lugar, rclativamente distante 
das vilas e cidades c quase no limite de três distritos* (4)? A cobertura florestal 
(cajueiros) partieularmente densa nesse local que toma uma eventual base 
praticamente invisível aos aviões? Terá sido a proximidade de água potável? 
Ou de uma grande montanha (Inselberg) crivada de grandes esconderijos e grutas 
inexpugnáveis e inacessíveis aos ataques aéreos? Provavelmente por todas 
estas razões ao mesmo tempo, os homens da Renamo negoceiam e obtêm de 
Mahia que acolha um destacamento da organização militar subversiva nas suas
^(3) Sobre a condição social dos epnlha na região, ver C. Gcffray, «La condition scrvillc cn 
pays makhuwa», Cahiers d'Eludes Africaines, n.5 100, XXV (4) 1985, pp. 505-535.
(4) Os actuais distritos dc Eráti, M emba c N acala-a-Vclha. As autoridades do distrito de 
Natnapa pensam que os estrategas da Renamo escolhem dclibcradam cntc os locais das suas bases 
militares nas regiões que fazem fronteira entre vários distritos. Assim , as bases ficam cm geral 
distantes das Sedes adm inistrativas, onde estão concentradas as forças arm adas locais. M as, 
sobretudo, segundo os nossos interlocutores, a guerrilha utiliza conscientem ente os conflitos 
burocráticos que esta localização geográfica provoca. Efcctivam cnte, a adm inistração dc cada 
distrito lem tendência para tentar passar a responsabilidade decorrente da presença dc um a base 
inimiga na sua jurisdição para as autoridades do distrito vizinho. Este tipo dc situação provoca 
uma paralisia adm inistrativa c m ilitar que não é dc subestimar.
34
iiovas lerias. Os soldados.— como eles próprios se chamam entre si — da 
Renamo constroem êhtão cm Mariri o principal acampamento de guerra de 
que a organização dispõe ainda hoje na região, «a base».
lisles acontecimentossão exemplares. Nada poderia ilustrar melhor como 
o conflito entre as populações rurais c o Partido se alimenta, por um lado, da 
Vestratégia de construção do Estado no campo através das aldeias, c, por outro, 
j da recusa de reconhecer a legitimidade da autoridade dos notáveis locais 
v linhagísticos e de chefatura. A aplicação conjunta, brutal e humilhante, destas 
duas directivas levou o velho chefe Mahia a procurar afastar-se e colocar-se 
fora do controlo do Estado, para em seguida consumar a ruptura entrando em 
dissidência armada graças à Renamo. Embora os motivos da rebelião de Mahia 
sejam os mesmos que levaram os outros chefes locais a fazer o mesmo, pouco 
tempo depois, no entanto, as condições em que ele tomou a sua decisão de 
ruptura revestem um carácter excepcional. A sua atitude radical, tomada antes 
de poder contar com a protecção armada da Renamo, e a sua coragem01, explicam 
talvez o interesse que esta terá por ele e prefiguram o papel que terá o seu 
sucessor no dispositivo político e militar local estabelecido pela Renamo.
Com efeito, Mahia morre pouco tempo depois destes acontecimentos (em 
j. 1985?), sucedendo-lhe um sobrinho uterino, que assume a sua identidade, o 
' seu nome, as suas esposas, o seu epepa e todos os atributos do seu cargo. 
Assume igualmente todas as consequências da iniciativa de revolta tomada 
pelo seu predecessor e, por sua vez, organiza a participação da sua gente na 
guerra0,’. Diz-sc que o «novo» Mahia conservou do serviço militar no tempo 
colonial algumas noções de utilização das armas... É a ele que se vêm juntar as 
populações das outras chcfaturas dissidentes do actual distrito do Eráti, de 
Rocha, Morria, Rihia, Cobre, Penhavatc, assim como os chefes Tamela, Mczope 
e ainda outros do distrito de Monapo — seguidos mais tarde por outros que 
virão dos distritos de Memba, Nacala e Namapa. Todos pertencem à mesma 
. região, a «Macuane».
O novo Mahia, hóspede da Renamo, toma-se o chefe de guerra de todos os 
chefes locais que o seguiram na dissidência. Ele é o único que pode entrar na 
zona interdita do campo da Renamo em Mariri, onde se avista de vez em 
quando com os comandantes, que lhe transmitem as suas directivas... Inlcrmc- 5 6
(5) O velho chcfc linha já ccrtam cntc ouvido faiar da Renamo quando partiu para o m ato dc 
M onapo e muito provavelm ente depositara sérias esperanças neta, mas não tinha nessa altura 
ainda tido qualquer contacto com os seus representantes c, por conseguinte, nenhum a garantia 
quanto às consequências da sua fuga.
(6) A filiação, cm pats makhuwa, é m alrilincar.ou seja: as crianças nascidas do casam ento 
pertencem ao grupo da mãe e ficam sob a autoridade do irmão desta, seu tio materno. Quando um 
homem morre, é um filho da irmã, um sobrinho uterino, que lhe sucede (G cffray, Ni pèrc, ni 
iitère, Paris, de Seuil, 1990).
35
diário entre os oficiais<7) e os chefes dissidentes, é ele quem lhes dá a conhecer 
quais são as condições do seu novo estatuto, os privilégios ligados ao exercício 
do seu novo poder, e que os encoraja a respeitar e fazer respeitar as obrigações 
da legitimidade recuperada... Veremos mais adiante quais são essas obrigações 
e, de forma mais geral, o conteúdo do «contrato» que vincula as chefaturas 
dissidentes à Renamo, a partir do momento em que estas se começam a 
reorganizar fora do controlo do Estado (portanto, sob a protecção indispensável 
das armas da guerrilha). Sublinhe-se apenas de momento que é sob a autoridade 
Ide Mahia que se organiza a federação das chefaturas rebeldes de Ioda a região 
(cf. capítulo 5).
2. A norte do rio Mccubúri
A norte do Mecubúri, vivem populações historicamente próximas das de 
Mahia, Penhavate, Morria, Rocha, Tamela, Mezope, que acabámos de referir... 
Trata-se dos membros das chefaturas de Ualala, M ’pakala, M ’zéle, Caleia e 
Meliva, no actual distrito de Namapa, e ainda as de Caboul, Namicolo, Maticò, 
Nivale e Mazua, no distrito de Memba. Tanto a norte como a sul do rio, estas 
populações pertencem todas à Macuane, ou são dela originárias.
Ualala, cujo território histórico se situa na margem norte do rio Mecubúri, 
tem actualmente um papel importante na guerra. Em 1986, abandonou os 
seus domínios para estabelecer residência a sul do rio, no posto-avançado de 
Namijaco, de que se tornou chefetS)/inácio M.!, secretário da aldeia comunal de 
Murripa, construída no território da chefatura de Ualala, conta assim a chegada 
da Renamo7 8 (9):
Inácio M. — Q u a n d o os b an d id o s ch e g a ram a M u rrip a , fu g i e e sc o n d i-m e no 
m a to d u ra n te três m e se s . P ro cu rav am -m e p a ra m e m a ta r, p o rq u e tin h a s id o o 
se c re tá r io d a reg ião . F iq u e i e sc o n d id o d u ra n te três m e se s e d ep o is a lg u ém m e ve io 
av isa r um d ia q u e tin h am d esco b e rto o m eu e sc o n d e rijo e q u e se p rep a ra v am p ara 
m e m a ta r no d ia seg u in te . D ec id i en tão d e ix a r a re g iã o e re fu g ia r-m e no p o s to .
(7) Os comandantes Filipe, Peixe, Almoço é Macaco, como são conhecidos pelos seus 
nomes de guerra em Mariri.
(8) Foi no monte Namijaco que, no princípio do século, os portugueses construíram o 
primeiro posto militar no momento da conquista colonial do interior do país makhuwa. Em 1988, 
quando o inquérito foi feito na região, ninguém vivia nas proximidades do monte.
(9) Inácio M. encontra-se actualmente refugiado com a sua esposa no posto administrativo 
de Alua, onde o encontrámos em Outubro de 1988.''André, secretário da aldeia vizinha de Murera, 
onde trabalhei em 83, não teve a mesma sorte que Inácio e foi morto pelos habitantes da aldeia 
alguns meses depois da minha visita.
36
ad m in is tra tiv o d e A lu a ( ...) Q u an d o to m ei e s ta d ec isão , a m in h a zo n a es tava 
to ta lm en te a fe c ta d a p e la g u erra . N u n ca m a is v o lte i. L á , a in d a m e p ro cu ram p ara m e 
m a ta r, m as eu ac h o que n ão fiz m al a n in g u é m . A té ag o ra , as co isa s e s tã o m ás em 
M u rrip a . F o i isso q u e se p asso u q u a n d o o s b an d id o s ch e g a ra m . N ão sei o q u e vai 
a c o n te c e r ag o ra , p en so q u e e s tá tu d o e s tra g ad o .
— D e o n d e v ie ram os b an d id o s?
In á c io M . — V ieram d o S u l; a tra v e ssa ra m o rio M ecu b ú ri a té M u rr ip a , o n d e eu 
v iv ia . C o m os b an d id o s p ro p ria m en te d ito s v in h a m a lg u n s m'jiham ( . . . ) . Q u an d o 
c h e g a ram , os b an d id o s fo ram sem p re g u ia d o s p o r p e sso as q u e c o n h e c iam a reg ião . 
A q u e le s q u e q u e riam m a ta r-m e e ram c o n d u z id o s p o r p e sso as q u e sab ia m o n d e eu 
h ab itav a . O p ró p rio U ala la q u e ria m a ta r-m e , p o rq u e p en sa v a q u e eu lh e tin h a tirado 
a te rra .
— V o cê te v e p ro b le m as co m U ala la q u an d o foi n o m e a d o se c re tá rio ?
In á c io M . — N ão posso d iz e r que «s im » ca teg o ricam en te . M as qu an d o co n v o cav a
um a reu n ião , an te s d e tra n sm itir as d ire c tiv a s aos h ab itan te s d a a ld e ia , c o n ta c ta v a 
sem p re o mpéwé (U a la la ) pa ra o in fo rm a r d o q u e iria d iz e r n a reu n ião .
— E q u e d iz ia e le?
In á c io M . — U ala la d iz ia « o u v i» , m as cu n u n ca so u b e o q u e e le rea lm en te
p en sav a .
— C o m o é q u e as p e sso as reag iram q u a n d o v o c ê lh e s d is se p a ra co n s tru írem 
a a ld e ia?
In á c io M . — H á m u ita g en te q u e n ão g o s ta d a a ld e ia ...
— E a a ld e ia f ic av a lo n g e d a c a sa d e U ala la?
In á c io M . — N ão . U a la la v iv ia d o seu la d o e o c e n tro d a a ld e ia en c o n tra v a -se 
o n d e eu p ró p rio v iv ia .
— E n tão v o cê teve q u e p e d ir a

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