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T í lu lo : A C au sa das A rm as, A n tro p o lo g ia da G u e rra C o n te m p o râ n e a em A u ío r : C h ris tian G cITray © 1991, C h ris tian G c ffray e E d içõ es A fro n tam en to E d iç ã o : E d içõ es A fro n tam en to / K. d e C o s ia C ab ra l, 8 59 / P orto N .“ d e e d iç ã o : 587 ISI1N: 972-36-0257-1 D e p ó s ito L e g a l: 4 5 6 5 0 / 91 Im p re s s ã o : L ito g ra fia A ch . H rilo A c a b a m e n to : R ain lio & N eves , L da. / S a n ta M aria d a F eira C h ristian G e f fr ay 0 p - p - & A CAUSA DAS ARMAS A N TROPO LO GIA DA (SUERRA CONTEM PORÂNEA EM M OÇAM HÍQUE Tradução de A delaide O dete Ferreira E d iç õ e s A f r o n ta m e n to .UNICAMP w o-ii „ I- 7T-/^rv u u i c M « * , , „ . , 1 - - i r e ® ( Ä t ' w .... ; .... . N* CHa m .-.D-4 £ ? ' ' 7c '3 V ... ......... t> & • -LCÜÜX1.E. t3£> 'JS 2 r r c ___ y J J /2 ,£ Í ̂ iiri r i’.r.1 *_v,) "CB i DATA IÍ N.» CfD Í' CM- 0CC8l 766- £ NOTA PRÉVIA A única motivação da investigação c a vontade de conhecer e compreender. Mas a apresentação dos resultados assume um carácter tanto mais subversivo quanto o seu objecto, a guerra, palco de sofrimentos c de riscos e desafios extremos, suscita as mais veementes e apaixonadas opiniões. Gostaria de expressar aqui o meu respeito e estima a todos quantos em Moçambique, pela sua maturidade-intelectual e coragem política, me perm itiram exercer a minha profissão com a independência que lhe é devida. Eles reconhecer-se-ão— e os outros também. A apresentação sem condescendência das responsabilidades que cabem ao actual poder moçambicano na guerra não deve ocultar a responsabilidade prim eira da Rodésia e da África do Sul no conflito, nem a grande responsabili dade da Renamo de hoje: uma instituição m ilita r sem projecto político, que encontra na guerra que fomenta as condições vitais da sua reprodução como corpo social armado. Gostaria, finalmente, de agradecer a Calisto Linha, cuja colaboração no terreno fo i decisiva para a realização deste trabalho. Muitas das entrevistas foram feitas po r Calisto, que tinha consciência de se expor mais ao perigo que eu, dados a sua nacionalidade, o seu estatuto — e a cor da sua pele. Mapa 1: A zona do inquérito INTRODUÇÃO H ájreze anos guçj.ini,b_ando,d(^sassino.s sanguinários sem fé nem lei semeia o terror, a destruição e a morte em Moçambique. lista é a imagem que as elites urbanas, os intelectuais nacionais e estrangeiros tem da guerra e da organização armada que a conduz na capital do país c nas grandes cidades das províncias. Como os jornalistas não podem trabalhar no terreno, os órgãos de informação internacionais reproduzem a informação e as análises que correm nesses meios. Os próprios investigadores têm contribuído para consolidar esta visão da guerra, e as raras «investigações» que foram feitas até agora revelam as mesmas deficiências de informação, agravadas com tuna certa, ingenuidade propagandista(". É verdade que tal imagem não é completamenie falsa e que ' tem o mérito de sensibilizar, òcasionalmentè, a opinião publica ocidental parai o drama de milhões de pessoas... Trata-se, no entanto, de uma visão insuficiente, e o seu carácter apaixonado esconde a complexidade e a profundidade dos processos sociais e políticos em curso nas zonas rurais de Moçambique, impedindo a compreensão da sua natureza e alcance. De onde vêm os homens da Resistência Nacional Moçam bicana (Renamo) que combatem as autoridades nas regiões rurais? Que pre tendem? A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que detém o poder em Maputo, chama-lhes «bandidos armados». Mas será possível conceber que um punhado de indivíduos movidos simplesmente pela sede de poder, ou fascinados pela miragem de uma vida aventurosa e fácil, possa aumentar em poucos anos os seus efectivos e alargar o seu campo de acção a ponto de pôr todo o território rural moçambicano em estado de guerra? A Renamo dificulta (1) Robert G ersoni, Summary of Mozambican. Refugee Accounts of Principally Conflict- Related Experience in Mozambique: Report submitted to Ambassador Jonathan Moore and Dr. Chester A. Crocker. W ashington, Department o f State Bureau for Refugee Programs, A bril de 1988; W illiam M inter, The Mozambican National Resistence (Renamo) as Described by Ex- participants: Research Report Submitted to Ford Foundation and Swedish International Devel opment Agency, W ashington, African Studies Program, G eorgetown University, 1989. ou paralisa as comunicações, a produção c a circulação dos bens, comprometendo gravemcntc as condições da vida material c social de todo o país. Quantas centenas de milhar de pessoas morreram durante os últimos treze anos por causa da guerra? Podcr-sc-á atribuir a um bando dc delinquentes um conflito de tal amplitude...? Rccordcm-se .aqui as tensões c conflitos regionais c internacionais que favo receram a criação da Rcnamo c o desencadeamento da guerra em Moçambique, pouco depois da independência. 1. A agressão estrangeira A Frelimo chegou ao poder cm 1975, depois dc uma longa luta armada, iniciada em 1964 no Norte do país, c da «revolução dos cravos» cm Lisboa, que cm 1974 marcou o fim da empresa colonial portuguesa. Os dirigentes nacionalistas assumiram então o controlo dc um território que se estende ao longo de dois mil quilómetros na cosia sul-oriental dc África, onde se tinham desenvolvido três grandes portos abertos ao tráfico internacional: Maputo (ex- -Lourenço Marques), no Sul, Beira, ao centro, c Nacala, no Norte. Destas cidades pártiam três linhas dc caminho-dc-fcrro que serviam o Transvaal, na África do Sul (cm particular as zonas mineiras), bem como todos os outros países vizinhos do interior, a Swazilândia, a Zâmbia, o Malawi c, sobretudo, a então ainda Rodésia, Dada a sua situação geográfica, Moçambique estava, pois, cm condições dc „controlar. o Jrfinsito dc uma grande parle das mercadorias exportadas c importadas pelos seus vizinhos (cf. mapa 1). Esta posição geo- -cstratégica permite compreender que a orientação política dos novos dirigentes;, moçambicanos tenha preocupado não só os seus parceiros da África Austral j como igualmente as potências ocidentais que tinham interesses comerciais ou; industriais na região. ^ Numa primeira fase, os dirigentes sul-africanos não se implicaram dircc- tamente na formação dc um movimento dc subversão armada que visasse enfraquecer Moçambique, ou mesmo derrubar o novo poder nacionalista. 1 Contrariamente aos outros países vizinhos, a África do Sul dispunha dc uma série dc outras saídas marítimas, dc recursos próprios c de uma indústria nacional desenvolvida, cuja prosperidade não se encontrava ameaçada pela descolonização dc Moçambique. Dc facto, era Moçambique que se encontrava numa situação de dependência vital em relação à África do Sul. Evidente mente, o Governo sul-africano preocupava-se com o facto dc ter junto da sua fronteira um país cujos dirigentes manifestavam uma vontade obstinada de independência política, proferiam discursos de conteúdo emancipador e mili tavam pelo fim do apartheid. O grande projecto sul-africano dc incorporar os países vizinhos numa cintura de Estados satélites, malcrialmcntc dependentes numa cintura de Estados satélites, matcrialmentc dependentes do seu poder económico c submetidos à sua autoridade política, ficava a curto prazo com prometido pelo acesso de Moçambique (c dc Angola) t) independência. No entanto, a existência e a prosperidade do regime não estavam ameaçadas: a burguesia sul-africana continuava a dominar e a constituir o pólo da vida eco nómica da África Austral, c o seu Governo dispunha dc um forte exército. Em 1975, a África do Sul estava ainda forte c tinha tempo para esperar c ver. Para os colonos brancos da Rodésia, cm rebelião contra a coroa britânica(2), a questão punha-se diferentemente, pois encontravam-se numa situação mais delicada, e a independência dc Moçambique constituíapara eles uma ameaça directa. Os rodesianos estavam no inde.v das nações do Mundo inteiro, cuja maioria nunca reconhecera o Estado racista nascido da Declaração Unilateral dc Independência. A ONU linha aprovado a aplicação dc sanções económicas, c a sua prosperidade dependia cm grande medida da saída para o mar pelo .território moçambicano (porto da Beira). Punha-sc então a questão dc saber se o jovem país independente aplicaria as sanções. Do ponto dc vista econômico, Moçambique teria toda a vantagem cm negociar com os rodesianos c assegurar- -lhes a continuidade do trânsito de mercadorias pela Beira e Lourenço Marques, fonte dc receitas cm divisas que lhe eram vitais. Mas os novos dirigentes de Maputo foram intransigentes e decidiram a aplicação rigorosa das sanções, ‘ contando que a comunidade intcrnacionalos ajudaria a compensar as pesadas consequências financeiras dc lai decisão. Entretanto, numerosos antigos grandes colonos portugueses chegavam a Salisbury (capital da Rodésia), fugindo do Moçambique efervescente c levando atrás dc si comerciantes, pequenos proprietários, assim como grupos dc soldados desmobilizados das unidades especiais do exército colonial e das milícias privadas dos grandes latifundiários. O conjunto desta população imigrada era muito heterogéneo, mas partilhava o mesmo ódio intenso contra o «comunismo». Por último, sublinhe-sc sobretudo que o Governo dos colonos devia fazer face ao aumento das incursões armadas dos combatentes nacionalistas da ZANU (actualmente no poder), que dispunham dc uma série dc bases no território do Moçambique independente... No imaginário dos meios dc extrema-direita internacionais, a Rodésia era considerada nessa altura como um dos postos avançados da «defesa do Ocidente» face ao «perigo comunista». Algumas agencias especializadas recrutavam mercenários cm Londres, através dc pequenos anúncios publicados na Imprensa, e os jovens neofascistas europeus sonhavam fazer o seu baptismo dc fogo indo «matar pretos» — vermelhos! — nas savanas selvagens da velha África... (2 ) Em 1965 tinham feito secessão da an tiga m etrópole colonial c proclam ado nnilalC' ralm cntc a independência com o apo io da Á frica d o Sul. Moçambique era uma base estratégica para a guerrilha dos nacionalistas da ZANU na Rodésia; pouco depois da independência começavam a chegar a Maputo os primeiros cooperantes dos países socialistas — médicos, engenheiros da indústria açucareira e do algodão, professores, lodos civis mas soviéticos, cubanos, alemães de Leste, romenos, búlgaros, coreanos.,.; e, por último, ós dirigentes moçambicanos impediam aos homens de negócios e industriais: rodesianos o acesso ao mar pela Beira, para eles uma saída marítima vital^Gm Salisbury, os colonos, encarnados e gordos, com os seus calções, meias altas e botas, estavam em contacto com uma fauna imigrada sobre-excitada e heterogénea, com a qual partilhavam a mesma exaltação racista c anticomunista, sob o olhar protector da potência sul-africana. Foi neste contexto que òs rodesianos criaram o MNR (Mozambique National Resistance), como o explica Ken Flower, chefe dos serviços secretos nessa altura, num livro publicado em Í978 (,). Como é evidente, para a formação do MNR os agentes rodesianos . i contaram com a colaboração dos grandes colonos portugueses imigrados, espo liados, ressentidos e frustradosw, com os quais procederam ao recrutamento, à ’ organização e ao treino de uma tropa mercenária, composta essencialmente por .antigos soldados moçambicanos desmobilizados do exército colonial também imigrados na Rodésia e que tinham apenas um savoir-faire, o da guerra.'As primeiras operações importantes em território moçambicano tiveram lugar em 1977. As acções de terror desencadeadas nessa altura, por vezes com o apoio directo dos helicópteros do exército rodesiano, foram sem dúvida alguma obra de um apêndice mercenário da burguesia racista de Salisbury em colaboração c o in ps elementos mais decididos e exaltados dos meios coloniais expulsos 4e_Moçambique, A guerra que nessa altura atingia a região do Centro de Moçambique era uma pura guerra tie agressão. Em Fevereiro de 1980, as eleições organizadas na Rodésia levaram a ZANU go poder de, forma pacíficajdepois de um processo de negociações conduzidas magislralmente pela antiga metrópole britânica, um processo em que a diplomacia ' moçambicana se mostrou particularmente brilhante. A Rodésia desaparece com a proclamação da independência, intérnacionalmenle reconhecida, do Zimba bwe, em 18 de Abril de 1980. O MNR abandona com armas e bagagens o território, que a partir de então se linha tornado perigosamente hostil, para encontrar refúgio, como seria de esperar, junto do grande vizinho sul-africano. É então que se constata, para grande espanto daqueles que o tinham criado, que o MNR tinha mudado de natureza. Já não era um simples fantoche das burguesias 3 4 (3) Ken Flowcr, Sming secretfo: Rhodesia itilo Zimbabwe 1964-1981, 1987. (4) M uitos rodesianos e antigos colonos vindos de M oçam bique conlieciam-se de longa data. Sem falar das relações de negócios, não passavam m uitos colonos de Salisbury uma boa parte do seu tem po de repouso nas praias, clubes e bordéis de luxo da Beira, cm M oçam bique, onde se vinham acanalhar? rodesiana e colonial, e, do mesmo modo, a guerra que desenvolvia tinha deixado de ser uma simples guerra de agressão... A maior parte dos observadores acreditava que com o fim do que origi nalmente tinha levado à sua criação o MNR iria desaparecer por si próprio. Tal não foi o caso, e Ken Flower reconhece que nessa altura os seus serviços tinham perdido o controlo da dinâmica c do destino do grupo militar, cuja formação tinham apoiado e orientado, e inlcrroga-sc se não teria criado um monstro: «I began to wonder whether we had created a monster that was now beyond con- trol» ^ (Flower, 1987: p. 262), É certo que o apoio da África do Sul a partir dessa altura foi decisivo do ponto de vista logístico (armas, treino, meios de comunicação por rádio), assim como foram importantes, embora de forma mais modesta, os apoios do Malawi, das Comores, de Bob Denard, de alguns países árabes e dos meios de direita ocidentais,6); mas isto não é suficiente para explicar que a Renamo m tènha conseguido reproduzir e aumentar consideravelmente os seus efectivos no terreno e alargar progressivamente o estado de guerra à totalidade do território rural moçambicano (é essa a situação em 1986). Os apoios internacionais permitiram que a Renamo dispusesse, num dado momento, dos meios técnicos para fomentar a guerra em todo o país, mas são insuficientes para explicar como ela o conseguiu e menos ainda para explicar a sua capacidade ()e manter indefinidamente o estado de guerra, depois de terem praticamcntc desaparecido as fontes logísticas estrangeiras (ou nas regiões onde esses for necimentos não chegavam). Na realidade, a guerra alimenta-se também das rupturas sociais c políticas internas das sociedades rurais moçambicanas, cuja importância os eslrategas- -terroristas rodesianos não tinham obviamcnlc previsto. Curiosamente, a «guerra dos serviços secretos» é perícilamenle conhecida pelos observadores, quer sejam jornalistas ou especialistas da região Sem subestimar a importância deste aspecto, considerado «oculto», do conflito nas suas diferentes fases (le desen volvimento, não o abordo na minha análise, que visa exclusivamcntejas condi ções sociais e políticas internas do enraizamento e do desenvolvimento das hostilidades, infelizmente desconhecidas por todos, mesmo pelas próprias auto ridades moçambicanas. Deixando de lado a dimensão internacional do conflito, 5 6 7 8 (5) Em inglês no texto (N.T.). (6) Certos m eios privados ligados aos serviços secretos da RFA e dos EUA estiveram directam ente im plicados, assim com o alguns sectores do CD U-CSU alemão. São por vezes referidas personalidades com o Franz-Joseph Slrauss, na Alem anha,ou Jcan-François Deniau da U DF francesa, um próxim o das guerrilhas anticom unistas do Terceiro Mundo. (7) A partir desta altura, o M NR passa a utilizar correntem ente a versão portuguesa da sua sigla: Resistência Nacional Moçambicana. (8) Ver em especial Paul Fauvet, «Roots o f Counler-Revolulion: The M ozam bique National Resistance», Review of African Political Economy, 29, 1984, pp. 108-121. cuja gravidade vai muito além dum complot montado por agentes secretos, é importante ver agora a história recente do próprio Moçambique. 2. A Frclim o: pensar a Nação Nos anos setenta, os dirigentes da Frclimo que conduziam a luta contra o exército colonial português eram ao mesmo tempo clicfcs políticos c responsáveis militares. Cabia-lhes a tarefa de elaborar e enunciar o significado colcctivo do combate que organizavam c dirigiam de armas na mão. Ora, no fogo c na paixão da lula armada tecia-sc já a traina de um profundo mal-entendido entre os dirigentes e as populações rurais que eles tinham conseguido mobilizar sob a sua bandeira: dando um carácter revolucionário a uma aspiração que era simplesmente anticolonial, os chefes da guerrilha cquivocaram-sc sobre a natu reza do moyimcnto que dirigiam. Este mal-entendido atingiu o seu paroxismo com a euforia da independência, quando a multidão aclamava os vencedores da opressão colonial e estes se maravilhavam com o fervor do seu povo, cuja essência revolucionária não punham cm dúvida... Com efeito, cm 1975, os diri gentes da Frclimo gozavam de um enorme prestígio, incarnavam a conquista da independência c da dignidade nacional. Ninguém duvidava então da legiti midade do poder destes homens, cuja integridade c força moral c política im pressionavam e seduziam os observadores. No auge da glória, eles representavam o conjunto da população colonizada enquanto tal, cuja unanimidade vitoriosa souberam representar. O Moçambique independente transmitia um sentimento de unidade entusiástica, rara c fascinante, Para um jovem militante revoltado com o «colonial-fascismo» português e decidido a combater o seu exército era certamente muito difícil não se enganar sobre a natureza do movimento de libertação nacional, se tivermos em conta que o treino militar era feito na Argélia com a FLN dos anos 60, que a imprensa mundial relatava na mesma altura a paixão internacionalista dos guardas ver melhos da revolução cultural chinesa, os actos heróicos dos b o -d ó i vietnamitas c o desenvolvimento dos movimentos radicais europeus... c não eram as armas para o combate fornecidas pela China e pela União Soviética? Não me compete expor aqui o sentido da referência ao «marxismo» do movimento de libertação nacional, nem analisar a que necessidades, de princípio ou conjunturais, essa referência correspondia durante a guerra de libertação(9). Interessa, no entanto, sublinhar o seu sentido na altura da independência, em (9) V er Luís dc B rito , «U ne rclcclurc nécessairc: la genèsc du parti-E la t F rclim o» , Politique africaine, n.5 29 , M arço de 1988, pp. 15-27. 1975, quando os dirigentes da Frelimo — um pequeno grupo de intelectuais revolucionários — receberam nas mãos as chaves de um país de treze milhões de pessoas. Com efeito, foi com referência ao «marxismo» que o novo poder continuou a conceber o sentido c o alcance da sua intervenção na sociedade moçambicana e que foi levado durante muito tempo a ignorar as tensões c os efeitos dramáticos resultantes da sua acção, mantendo sempre uma boa fé desconcertante. Como 6 que os novos dirigentes do país tentaram preservar a recente unidade histórica, de que sc sabiam produtores c depositários, c como conce beram a edificação do novo Estado soberano? Veremos que eles foram inca pazes de pensar a construção da nação sem apagar ao mesmo tempo a diver sidade c a heterogeneidade concretas c históricas dos grupos sociais que pretendiam unir e integrar sob o signo de uma identidade única, a cidadania moçambicana. Na realidade, esta sociedade colonizada vitoriosa c unida não era homogénea: uma história sçcular c algumas décadas de lutas sociais em situação colonial dividiam-na.., jvlas as condições da luta c da vitória foram tais que os dirigentes da Frelimo herdaram o país sem nunca sc terem visto .confrontados com essa diversidade social, sem terem sido obrigados a assumi da c a conceber politicamente os seus efeitos. Eles não dispunham praticamcntc de nenhum mecanismo político ou social de ligação que lhes permitisse reconhecer a existência dos diferentes componentes, por vezes contraditórios, da sociedade colonizada que lhes era dado governar... Foi dc acordo com esta (falta dc) perspectiva que foram formulados os grandes eixos da «estratégia dc desenvolvimento» do jovem Estado para o mundo rural: a edificação das «aldeias comunais». Dc Norte a Sul do país (do Rovuma ao Maputo), inde- pcndcntcmcntc dos sistemas sociais, da sua história, quer sc tratasse dc agri cultores, de caçadores, de pescadores, de produtores de sorgo, de mandioca, de milho, de amendoim ou de algodão, de proprietários de coqueiros, de citrinos ou de cajueiros, de regiões de grande migração, dc forte produção mercantil, de zonas afastadas ou dc áreas próximas dc centros urbanos, todos os habitantes das regiões rurais, ou seja mais dc 80% dos treze milhões dc moçambicanos, deveriam acabar por deixar as suas casas para se juntarem nas aldeias. Deveriam depois abandonar progressivamente as suas antigas terras, propriedades c prerrogativas familiares ou individuais para se dedicarem aos trabalhos colectivos ( nos campos da cooperativa de produção, no quadro de uma organização do! trabalho mais eficaz e fraternal. Em princípio, a acumulação de riqueza daí resultante deveria, por sua vez, permitir o investimento em bens de produção mais modernos, relançando assim uma acumulação que permitiria o finan ciamento de serviços sociais como a saúde, a educação, a cultura e ocupação de tempos livres, indispensáveis para a elevação do nível de vida no campo — mais tarde viria a electricidade. As aldeias comunais deviam ser a força do «homem novo», surgido da imaginação política do poeta Sérgio Vieira, ponto ómega do sonho de desenvolvimento revolucionário moçambicano na altura da independência. I Assim, pouco importavam as diferenças históricas e sociais regionais, pouco j interessavam igualmente as motivações e aspirações reais das populações em i nome das quais — e para quem — o projecto fora concebido. Quando a i realidade dos factos e as práticas sociais faziam efeito de retomo e interferiam i na acção dos representantes do Estado-desenvolvimentista, eram rejeitadas i sob a capa sempre cómoda da fraseologia oficial como «obscurantismo», «superstição», «feudalismo». Estas formas permitiam reincorporar no discurso ' os efeitos inoportunos e insistentes das realidades sociais e históricas que este excluía da sua lógica.,Um discurso que não reconhecia às populações rurais uma existência social, a não ser em termos de sobrevivências arcaicas, incómodas e vergonhosas, efeito da inércia das «mentalidades», obstáculos votados ao desaparecimento com a criação do «homem novò». «E preciso organizar os camponeses», diziam os dirigentes... Dada a ausência de mecanismos políticos de ligação com as populações rurais e a ignorância,, inquieta e arrogante, da sua história e formas de existência social, o poder, não tentou promover a sua livre expressão — nem sequer para conhecer as forças e os interesses em jogo — preferindo negar tudo cm bloco. Os promotores das i aldeias comunais concebiam tudo como se as populações rurais Ibsscm uma enorme série de indivíduos, homens, mulheres, velhos e crianças sem qualquer ' vínculo social, que subsistiam Hidependentemente uns dos outros, como se, i caídos do céu, tivessem esperado a Frelimo para se organizarem, como se não estivessem já historicamente e de longa data «organizados». Era a ideologia da «página em branco». c? O «marxismo» foi, pois, para além do mais, a referência universalisla a partir da qual se operou a negação das realidades do país, uma cegueira paradoxal na medida em que permitia ao mesmo tempo que o exercício do poder governasse. Pouco ti,pouco.foraiii;se definindo no discurso do poder os contornos estranhos de um país fictício: dizia-se que a autoridade da Frelimo: ter-lhe-ia sido delegada por uma «aliança operário-camponesa», para que exercesse, em seu nome, a ditadura sobre os seus inimigos, os inimigos do povo. O «marxismo» constituía o corpiis conceptual que permitia a invenção do país imaginário e a garantia dogmática dfi ^oerência interna da ficção que alimentava o projecto nacionalista do poder^1"', i\( 10) Retomo aqui os pontos essenciais da análise deste dispositivo ideológico que apresentei em «Frngmcnls du discours du pouvoir ( 19 7 5 -1985)», Polhuiw Afriraine, n.“ 29, M arço de 1988, pp, 71-85. Alguns dos meus antigos colegas e am igos m oçam bicanos, que m erecem todo o meu respeito, licaram chocados pela publicação deste artigo. Lam ento que tal tenha acontecido, pois não era essa a minha intenção, Este discurso voluntarista e cego não parecia, no entanto, ser portador de violência em si próprio; era sobretudo marcado por uma certa forma de ingenuidade que caracterizava a intelectualidade urbana e cosmopolita da capital. Os princípios morais e políticos que animavam o projecto comuni tário no campo tinham um grande impacto: progresso, igualdade, solidarie dade, democracia, comunidade e fraternidade, autonomia e dignidade, educa ção, bem-estar e saúde... Todos estes ideais faziam parte da representação corrente dos objectivos do processo de «socialização do campo» e seduziam qualquer homem de boa vontade, desde os missionários progressistas das Igrejas aos militantes tercciro-mundislas ou aos marxistas intemacionalistas de diferentes tendências. Esta estratégia dava um sentido (com conotações humanistas, cristãs e revolucionárias) á intervenção do Estado e do Partido no campo. f ■ ,;í i:"'! í • Eu próprio partilhava este estado de espírito quando, em 1983, iniciei o meu trabalho de investigação sobre os efeitos da política de «desenvolvimento» rural no distrito do Eráti, em país nutkhuwa. Queria nessa altura fazer um traba lho de «antropologia aplicada» e identificar os «erros» que permitiriam com preender as razões do falhanço, já evidente nessa altura, do projecto de criação de aldeias, cujo princípio não punha ainda cm questão, 3. O Estado aldeão No entusiasmo do primeiro ano de independência, as populações rurais li responderam favoravelmente ao apelo dos representantes do novo poder para I fazerem «machambas do Povo». Este trabalho era concebido como tima espécie i de tributo devido á vitória e foram raros os casos em que foi continuado nos ’ anos seguintes. As primeiras aldeias comunais construídas no distrito do Eráti .respondiam a exigências locais particulares. Ás autoridades encorajaram, por exemplo, os antigos trabalhadores agrícolas das empresas coloniais abando nadas a continuarem a sua actividade no quadro de cooperativas, concebidas como o centro produtivo de futuras aldeias comunais(ll). No distrito do Eráti, que contava oitenta mil habitantes, existiam cm 1976 duas aldeias comunais, (II) ( I I ) As aldeias com unais existentes no pais na altura eram esseneialmcnle antigos aldea mentos construídos pelos portugueses nas zonas de expansão da guerrilha da Prelimo, no Norte do pais, cujo desm antelam ento foi im pedido pelas novas autoridades. Havia também, como no caso do Erãli, aldeias construídas no mom ento da apropriação e exploração tle propriedades coloniais abandonadas. I tavia, por fim, as que tinham sido instaladas de urgência para acolher as vítimas das inundações catastróficas do Vale do Limpopo em 1977. Depois das cheias, as populações foram relidas nas zonas alias e impedidas de voltar ao seu antigo Itiihílal, 17 nas quais vivia ccrca dc um milhar dc pessoas. A restante população conti nuava a viver «desorganizada», numa espécie dc vazio administrativo que o poder iria mais tarde esforçar-se por preencher. Em 1977, tiveram lugar em todo o país as eleições de deputados its Assem bleias do Povo. As duas aldeias comunais do distrito, que na altura represen tavam a vanguarda organizada do meio rural, foram dotadas desta instituição. Nos anos seguintes, estas eleições foram frequentemente referidas como testemunho e garantia da implantação do «poder popular» nas zonas rurais. Este processo político foi importante no Eráti, pois deu lugar a um súbito rccrudcscimcnto da luta dos representantes do novo poder contra as autoridades sociais c políticas linhagísticas locais. Os antigos régulos c cabos(IJ) não podiam candidatar-se a deputados das Assembleias do Povo. A proibição foi alargada a todos os chefes dc chcfatura (mpcwé, pl. mapcwé), indcpcndcntcmcntc dc terem ocupado um posto na hierarquia colonial. Não foi tomado cm consideração que a maior parle dos mapéwc representavam para as populações rurais qualquer coisa de muito diferente :dos agentes do poder colonial c que a sua autoridade não provinha : esscnciajmente das funções que os portugueses lhes teriam evcntualmente i atribuído. A reacçâo dos eleitores, idêntica nas duas aldeias, foi interessante. Os habitantes, face ao impedimento dos chefes de chcfatura, votaram mas- sivamcnlc noutros homens que consideravam como seus representantes legíti mos, detentores dc competência para falar cm seu nome c defender os seus interesses, os seus chefes dc linhagem, os malumiu (sing. hitnttt). Perante esta i situação imprevista c indesejável de regresso do «feudalismo», o adminis- ! trador do distrito anulou os resultados das eleições c estendeu a proibição dc jcandidatura a todos os chefes c notáveis dc linhagem. Então, sem qualquer concertação, os eleitores das duas aldeias (situadas a algumas dezenas de quilómetros dc distância uma da outra) voltaram a reagir da mesma maneira: votaram em massa por pessoas analfabetas, consideradas inofensivas, os idiotas da aldeia. Algumas semanas mais tarde, a maioria dos deputados tinha já '>• esquecido a tarefa que lhes tinha sido atribuída c a nova instituição democrática foi desta maneira democraticamente morta à nascença. Perante a falta de consideração da administração da Frelimo, os eleitores tinham devolvido a bofetada. 12 (12) A partir do 2.5 Congresso da Frelim o, no qual se assistiu à vitória dos «político-m ilitares m arxistas», os chefes ditos «tradicionais» das ciiefaturas locais eram considerados com o sim ples «lacaios» ou «fantoches» do poder colonial. Os portugueses tinham -nos por vezes utilizado com o chefes dc unidades adm inistrativas com o título dc régulos ou cabos. Entre as suas tarefas contavam -se a cobrança do im posto, o enquadram ento da cultura do algodão c o recrutam ento dc m ão-de-obra. D ado o com prom etim ento e a servilidade em relação ao inim igo colonial que lhes eram atribuídos, não pod ian ícand idata r-sc a deputados, nem exercer qualquer responsabilidade política ou adm inistrativa, Não insistirei aqui sobre a importância elos notáveis elas clicfaturas, que se viram atingidos na sua autoridade c dignidade. Os factos c testemunhos reportados ao longo deste livro mostrarão clariimenle a importância ela sua posição política e os eleitos desastrosos ela sua marginalizaçâo e humilhação. Todas as inter pretações locais sobre a origem e o sentido da guerra aclual referem esse aspecto.'Sublinhe-se simplesmente que, com o afastamento elos notáveis, a eliminação das suas prerrogativas políticas, sociais c religiosas c perante o discurso veemente que os ridicularizava, ameaçava e insultava, as populações compreenderam que era a sua própria existência social que a Erclimo negava. E por isso sentiam vergonha, um sentimento paradoxal de serem obrigadas a passar â clandestinidade, com toda a sua história c existência social, poraqueles m esmos que, cm seu nome, tinham posto fim â opressão colonial. A medida que os anos passavam, a guerra começava a dar que falar nas regiões do centro do país. Em 1978 c 1979, ela era unanimemente atribuída a um bando de assassinos manipulados pelos rodesianos, pela África do Sul c pelo imperialismo. Entretanto, no distrito do Eráti, a oitocentos quilómetros de distância, existiam apenas duas aldeias. Nenhuma outra tinha sido construída e as populações rurais continuavam a viver dispersas nos territórios linhagísticos, onde desenvolviam as suas actividades num vazio administrativo que preocupava o poder. Ao mesmo tempo, os efeitos da crise c da destruição da rede comercial no campo faziam-se já sentir nas montras c prateleiras vazias das lojas que ainda se mantinham abertas. Alguns privilegiados podiam comprar a preço de ouro os raros produtos disponíveis nos armazéns. Embora o projecto aldeão continuasse a ser um sonho estranho âs preocu pações locais, havia no entanto um aspecto desse projecto que interessava as populações: a cooperativa de consumo. Com efeito, os membros das coopera tivas podiam adquirir certos bens manufacturados, que não era possível encon trar noutro lado a preços razoáveis: capulanas, roupas, petróleo, enxadas, catanas, machados e panelas... O desejo de ter acesso a estas mercadorias através da cooperativa iria favorecer a intervenção dos responsáveis distritais, decididos a fazer avançar a todo o custo o projecto aldeão. E então que o número de aldeias construídas cm cada distrito se torna um critério de avaliação do dinamismo da sua administração c que cada respon sável tenta apresentar um máximo de aldeias edificadas na região sob a sua jurisdição. Ao mesmo tempo, no seio das populações, cada grupo territorial tenta apresentar-se perante a administração como interlocutor credível, de forma a poder construir a inevitável aldeia nas suas terras e a beneficiar assim da tão desejada cooperativa de consumo. Começam então a aparecer um pouco por todo o lado «machambas do Povo» abertas por iniciativa dos habitantes, que desta forma tentam demonstrar a sua boa vontade modernista. Mas a administração devia escolher c decidir a localização definitiva das aldeias c as consequências dessas decisões foram sempre dolorosas. Como é evidente, as famílias que conseguiram que a aldeia fosse construída nas suas terrastl3) viram alguns dos seus membros promovidos a posições-chave de poder político e administrativo, enquanto a restante população ficava politicamente marginalizada e afastada do acesso aos bens do mercado, Dezenas de milhar de pessoas viram- -se assim obrigadas a construir as suas casas na aldeia (o que equivale a um mês de trabalho por cada palhota), por vezes a dez quilómetros de distância, nutri território estranho; e isto voluntariamente ou à força, pois o processo foi frequentemente violento. Simultaneamente, assistiu-se a uma escalada da. agressão contra os detentores da autoridade linhagística local e os mapéwé, chefes de chefatura. E certo que estes opunham uma inércia obstinada às'. \ decisões administrativas e que uma parte da população, encorajada pela manifesta má vontade dos chefes, recusava transferir-se. A ideia de que os dependentes seguiriam os seus chefes levou a administração a amarrar alguns nialnimii e chefes de linhagem e a arrastá-los até ao local do novo habitat. Humilhados, estes homens fugiriam, para depois voltarem à aldeia armados de catanas e dispostos a lavar a afronta de que tinham sido vítimas. Raramente as pessoas mais dinâmicas e empenhadas na construção das j aldeias eram simples camponeses. Na verdade, tratava-se de pessoas alfabeli- I zadas, reconhecidas pela administração do distrito, tais como alfaiates ou filhos / de alfaiates, pedreiros, carpinteiros, comerciantes ou filhos de comerciantes, |l professores, ou seja, indivíduos que constituíam um pequeno grupo em ruptura com a autoridade linhagística. Apoiando-se no discurso da Frelimo, com mais ou menos habilidade e boa fé, para realizarem o seu projecto local, ou sim- ( 1 3 ) 0 solo subdivide-se em territórios (milllielllie, sing. imilthetlhe), cada um dos quais é controlado pelos m em bros de uma linhagem , considerada a prim eira a ler chegado a esse território e cujo chefe é o «dono» da terra. Estes territórios constituem áreas matrim oniais: cada . um dos «donos» da terra acolhe no seu solo outras linhagens, às quais concede parcelas do seu território (igualmente designadas mmheuhe) e com as quais a sua linhagem estabelece relações matrim oniais. A rivalidade em lermos da construção da aldeia verifica-se ao nível das grandes áreas matrim oniais (entre duzentos e trezentos hectares) e não das pequenas concessões linhagísalicas. As vantagens para os que conseguiam que um a aldeia fosse edificada no seu território eram consi-deráveis: podiam criar e gerir uma cooperativa de consum o (através da criação de uma «cooperativa de produção» fictícia), evitavam ficar subm etidos à autoridade de uma aldeia dirigida por famílias estrangeiras dos territórios vizinhos, não eram obrigados a abandonar o seu . território, as suas macham bas, árvores de fruto, nem os cem itérios dos antepassados. Os mais am biciosos podiam m esm o alim entar sem escrúpulos o projecto de se aproveitarem social, política e materialm cnte da subordinação adm inistrativa em que se encontravam as populações , provenientes rios territórios vizinhos, Estas últimas estão na aldeia num a situação de hóspedes e dependentes ilf fm lo. fi preciso cortejar os «donos» da aldeia para ler acesso aos produtos, pois ■ são eles que detém a presidência da cooperativa, o mesm o se passando para a obtenção de docum entos e autorizações devidamente carim badas (guias de marcha, etc.), porque um deles é o secretário da aldeia, outro controla o tribunal popular c um terceiro as milícias... 20 plesmente a sua ambição pessoal, não faziam ideia do mal que provocavam nos espíritos cada vez que ridicularizavam publicamente a figura de um notável silencioso. Todavia, a pressão das autoridades permanecia razoável a partir do mo mento em que cada família tivesse construído a sua casa, devidamente regis tada, na aldeia. Ninguém destruiu a antiga habitação no território de origem e quando a administração do distrito virava costas as pessoas voltavam muito simplesmente para casa, para junto dos seus cemitérios, dos seus campos e árvores de fruto, onde eram donos da terra e não dependiam de ninguém para subsistir. Dezenas de casas vazias alinhavam-se assim ao longo das ruas deser tas, depressa invadidas pelo capim, nos «bairros» numerados da aglomeração ( «comunal», onde alguns iam por vezes passar o fim-de-semana ou assistir às : reuniões oficiais. Entre 1980 e 1984, o crescimento do número de aldeias e da percentagem da população agrupada foi considerável. Os «desenvolvimentistas» de Maputo ignoravam evidentemente que muitas das habitações conscienciosamente registadas nos seus quadros de planificação estavam vazias, mas sabiam por outro lado que as «cooperativas de produção» não produziam nada. Ora, as cooperativas eram concebidas como a base material e a condição do desen volvimento social da vida aldeã. Significava isto um falhanço? Na realidade, a estratégia das aldeias comunais tinha já nessa altura mostrado a sua verdadeira natureza por todo o país, revelando-se como um instrumento político extre mamente eficaz, não para o «desenvolvimento» das regiões rurais, mas para a' edificação no campo de um aparelho administrativo de Estado (nacional). , Existiam então vários milhares de aldeias em Moçambique, dispondo cada uma i delas de um secretário administrativo e de um responsável do partido, cuja : nomeação era controlada pelas autoridades distritais. As aldeias mais importantes dispunham de um administrador de localidade, de uma célula do partido, de milícias, de tribunal e Assembleia do Povo e de secções daOrganização da Mulher Moçambicana (OMM) e da Organização da Juventude Moçambicana (OJM). O país ficou em poucos anos coberto por uma rede de administração hierarquizada, fundada sobre a entidade administrativa e política aldeã. As an tigas divisões administrativas coloniais, agora «localidades», «círculos» e «cé lulas», só se tomavam verdadeiramente operacionais no quadro do novo aparelho dc Estado através das estruturas administrativas c políticas das aldeias, Se con siderarmos os resultados do projecto aldeão^constata-se que o principal e único efeito foi o de servir para o controlo administrativo da população rural, ou seja 80% da população do país, para o seu enquadramento e .recenseamento e para 1 a sua submissão ao novo aparelho de Estado moçambicano. É de notar que esta construção do Estado nacional no campo foi inteiramente levada a cabo em ruptura e conflito aberto com os elementos política e socialmente respeitados a . nível local pelas populações e por elas investidos de uma autoridade reconhecida. ü projecto aldeão cr», por um lado, portador dc grandes ideais humanistas c resultava das melhores intenções — não se põe em causa a boa fé da maioria dos seus promotores. Mas, por outro lado, acaba por se revelar como o sistema de significação, a armadura ideológica, através do qual foi possível no espírito dos políticos, dos burocratas c dos militantes, estender a todo o território uma organização administrativa hierarquizada, susceptível dc assegurar o controlo social quotidiano dc cerca de doze milhões dc habitantes rurais. Aliás, esles nimai o entenderam de outra forma. Esta organização administrativa era percorrida da base à cúpula por um fluxo contínuo dc papeis, relatórios c circulares, devidamente carimbados, c uma das funções essenciais deste sistema parece ter sido a dc dar um conteúdo material à existência da hierarquia através do envio escrupuloso, dos escalões inferiores para os seguintes, da informação c da imagem que estes desejavam por sua vez apresentar aos seus superiores c por aí adiante. O uso da langue de bois permitia todas as falsificações da realidade, ao mesmo tempo que não punha cm causa a boa fé dos funcionários, alguns dos quais acreditavam sinccramcnlc estarem a cumprir o seu dever transmitindo, do que sabiam, apenas o que era possível pensar c formular dentro das categorias da fraseologia oficial... 4. A chegada da Renamo e a investigação Em Março dc 1984, a Renamo ampliou o seu campo dc acção na província dc Nampula, chegando aos limites do distrito do Eráti, As Forças Armadas dc Moçambique (FAM) intervieram então no campo para obrigarem todos os habitantes que viviam dispersos a entrarem nas aldeias. Os oficiais pensavam evitar desta forma que a população fosse influenciada pela guerrilha, criando ao mesmo tempo as condições do seu controlo social óptimo. Todas as casas que ainda existiam nos territórios dc origem foram incendiadas. Esta operação foi cm certas localidades ocasião dc intimidações, roubos c outras violências praticadas pelas milícias encarregadas da sua execução. A maioria das populações ficou a partir dc então numa posição de subordi nação material c social, c já não somente política c administrativa, cm relação aos grupos de famílias que dirigiam as aldeias, numa situação que beneficiava estes últimos. As famílias detentoras do controlo da utilização das terras vizinhas submetiam as populações deslocadas á obrigação dc cuidarem das suas árvores dc fruto nas terras cansadas, ou no mato fechado, que lhes tinham emprestado para subsistirem. A produtividade do trabalho das populações sinistradas diminuiu ainda mais devido à grande distância a que ficavam as suas antigas machambas, por isso às vezes abandonadas, e também por causa da distância que separava as diferentes parcelas que podiam cultivar, obtidas ao acaso dos 22 empréstimos... A base produtiva, a capacidade dc reprodução física de unia grande parte das populações rurais, ficou a partir dessa altura verdadeiramente ameaçada. O agro-eeonoinisla Mugens Pedersen c cu próprio seguíamos de perlo estes acontecimentos. As nossas investigações (M) suscitaram o interesse dc Aquino de Bragança, na altura dircclor do Centro dc Estudos Africanos da Universidade de Mapulo, que nos convidou a formular uma análise da guerra a partir dos resultados do nosso trabalho. A questão era a seguinte: que se passaria quando a Renamo entrasse de facto no distrito? Apesar dc não termos investigado espe- cííicamcntc sobre a situação criada pela acção armada da guerrilha, a existência dc algumas categorias dc pessoas partieularmente afcctadas pela política da Erelimo levava-nos a pensar que a sua situação constituía um terreno favorável para o desenvolvimento da guerra. Três grupos sociais pareciam cspccialmcnlc sensíveis',; os notáveis políticos linhagísticos locais, cuja autoridade tinha sido ■ ■ negada c ridicularizada com a implantação do aparelho dc Estado aldeão; as ' | populações sinistradas pela deslocação forçada para os aglomerados comunais (uma parte das quais viria rapidamente a ser vítima da fome); c, finalmcntc, os jovens rurais, que tinham tentado subtrair-se ás exigências da vida doméstica rural c que não se tinham conseguido integrar cm meio urbano. Podia-se ima ginar que estes indivíduos eram não só susceptíveis dc manifestar uma neu tralidade favorável em relação à guerrilha, mas também que os mais radicais ou desesperados dentre eles — por diferentes razões, cvcntualmcnlc mesmo contraditórias — se teriam integrado na actividade armada conduzida pela Renamo contra o poder,l5). Estas hipóteses suscitaram o interesse de alguns responsáveis que ace deram ao meu pedido dc voltar ao Eráti, entretanto mergulhado na guerra, para compreender o que aí se tinha cfcctivamentc passado depois dc três anos de , presença da Renamo. Este livro é o resultado desta.última investigação, feita em 1 Setembro e Outubro de 1988, numa região em que vivi e trabalhei entre Julho j dc 1983 e Janeiro dc 1985. r ■ * Desde os primeiros dias de trabalho de campo que as nossas hipóteses se revelaram insuficientes. No entanto, não eram falsas, pois lodos os relatos, sem nenhuma excepção, referiam a questão das aldeias na explicação das motivações , (14) V er C. G cffray c M. Pedersen, Transformação da organização social c do sistema agrário do campesinato no distrito dc Eráti: processo dc socialização do campo e diferenciação social, Departamento dc Arqueologia c Antropologia da Universidade E. M ondlanc c M inistério dá Agricultura, M aputo, 1985, 101 p. dnclil. (15) Estas hipóteses foram publicadas em colaboração com M . Pedersen cm «Sobre a guerra rta província dc Nam pula», Revista Internacional de Estudos Africanos, n° 4/5, Janeiro-D ezem bro dc 1986, Lisboa, pp. 3 0 ^3 1 8 . V. i da entrada em guerra de populações civis ao lado da Renamo. Com efeito, as aldeias eram sentidas como a matriz do aparelho de Estado no campo e para muita gente as consequências políticas da sua construção eram consideradas insuportáveis. A situação actual das aldeias nas zonas fiéis à Frelimo revela de forma trágica e ao mesmo tempo burlesca a verdade da sua função política (cf. capítulo 7), que se manifesta, aliás, independentemente do número de palhotas efectivamente construídas. A simples referência ao projecto aldeão era suficiente para favorecer o aparecimento de uma nova hierarquia política local, em conflito com as autoridades sociais e políticas reconhecidas. Ou seja, o conflito que opunha as populações rurais à Frelimo e ao seu Estado aldeão está cerlamentc na origem da dissidência de uma parte dos habi tantes do distrito. A Renamo tinha compreendido bem os termos desta crise e organizado a sua acção militar tomando em conta essa situação.! Os seus ; combatentes tiveram o cuidado de destruir apenas as habitações dás aldeias e de encorajar os habitantes a voltar para os seus territórios de origem, onde os seus bense a sua integridade física seriam preservados JAo mesmo tempo, matavam de forma selectiva e sistemática os novos notáveis aldeãos do regime, esforçando-se por ganhar para a sua «causa» as autoridades linhagísticas e das j chefaturas locais, para depois as investirem de novas responsabilidades. Todavia, as nossas hipóteses revelaram-se insuficientes, na medida cm qué prevíamos alianças individuais e esporádicas. Segundo o nosso esboço de «modelo», os mais atingidos e desesperados pelas orientações do poder fugi riam clandestinamente das aldeias para chegarem a um acampamento provi sório da Renamo escondido no mato.Jsto aconteceu em alguns casos, mas a forma de adesão das populações à Renamo foi, no entanto, muito mais brutal e espectacular e constituiu um fenómeno grave e profundo: sociedades inteiras mobilizaram-se com os seus chefes locais, e várias dezenas de milhar de pessoas colocaram-se assim fora do alcance do Estado da Frelimo, no interior de espaços geográficos e sociais controlados militannente pela Renamo. Em vez das alianças individuais e mais ou menos tímidas que imaginávamos, houve uma dissidência colectiva que, segundo todos os testemunhos, foi vivida num ambiente de entusiasmo e de esperança. A entrada em guerra assumiu o carácter de uma recuperação da iniciativa política por parte das populações face a Frelimo e ao seu Estado. O simples facto de a Renamo ler dado ás populações, através da sua acção militar, a possibilidade de se subtrair à alçada do Estado, permitiu-lhe basear a sua intervenção na dinâmica dos conflitos locais, deles se alimentando, sem que lhe fosse necessário formular um programa político que a legitimasse'^ O simples reconhecimento da existência social das populações por parte duma força militar, qualquer que ela fosse, era suficiente aos olhos destas para dar um sentido político â sua intervenção.! Por outro lado, as nossas hipóteses revelaram-se igualmente insuficientes na medida em que não imaginávamos que outros factores alheios à política conduzida no campo a partir da independência pudessem motivar a entrada em guerra das populações. Ora, o engajamento das populações na guerra não resulta mecanicamente da sua oposição ao Estado. Nem todos os que entraram em dissidência são chefes, membros de famílias deslocadas para as aldeias ou jovens frustrados, e, inversamente, nem todos os membros destes grupos so ciais são dissidentes... A motivação da dissidência está sempre ligada ao conflito com o Estado, mas, como se verá, a polarização das populações na guerra resulta de oposições históricas, por vezes muito antigas, que as dividiam muito antes da intervenção da Frelimo e da edificação do seu Estado no campo. Concretamente, nos actuais distritos de Namapa e Eráti, onde o trabalho de investigação foi feito, e nos distritos vizinhos de Memba, Muecate, Nacala-a- -Velha e Monapo, foram as populações ditas «Macuane»<l6) que seguiram os seus chefes na dissidência, enquanto as populações que povoam a zona norte da região e que se reconhecem historicamente de origem diferente, Eráti, Chaka, Marave e Mineto, continuaram massivamente fiéis ã Frelimo (pelo menos a sul do rio Lúrio). Todas estas populações, Eráti, Chaka, Macuane..., sofreram os efeitos da mesma estratégia de aldeamento, com a construção das aldeias comunais, todas viram surgir no seu seio os mesmos graves conflitos políticos e territoriais. Mas nem todas tinham tido outrora as mesmas ligações com o Estado português, nem todas tinham sofrido da mesma forma a situação colonial e.nem todas tinham sabido, ou podido, dela tirar as mesmas vantagens. Veremos que as populações legitimistas da Frelimo foram também as privilegiadas da situação colonial e que as marginais e rebeldes dessa altura continuaram a ser marginais no Estado independente, antes de se tornarem dissidentes da Frelimo. c de se confiarem à autoridade militar da Renamo. Assim, as populações dissidentes caíram numa armadilha da qual hoje em dia têm dificuldade de sair. Como veremos, elas enganaram-se sobre a natureza da Renamo, que as utilizou em seu proveito. Contrariamente ao que a propa ganda da Frelimo pretende fazer crer, bem como a dos países ocidentais ou de «Leste» que a apoiam na guerra, a Renamo não é evidentemente uma associação de bandidos. Mas também é certo que ela não é uma organização política e que 16 (16) 0 antigo distrito do Eráti foi, cm 1987, subdividido cm dois distritos: Namapa e Eráti. É de salientar que por uma inépcia burocrática particularmente infeliz a designação «Eráti» foi atribuiria il parte sul do anterior distrito (ex-poslo Nacaroa), onde vive a população Macuane. No passado, os M acuane foram os mais ferozes inimigos do povo Eráti que, por sua vez, ocupa o norte do distrito, actualm ente designado «Namapa». A designação «M acuane» é utilizada pela maioria dos nossos interlocutores do país Eráti para designar as populações situadas a std do seu próprio território histórico, massivamenle entradas em dissidência com a chegada da Renamo. O termo é utilizado por comodidade, sabendo que uma parte das populações assim designadas não se reconhece no entanto como pertencendo á M acuane. não tem projecto algum para as populações que parasita há quase quinze anos. Veremos como c por que razão a guerra, que é a condição de reprodução da Renamo como instituição armada, constitui cm si própria o seu verdadeiro projecto, c como a guerra pode constituir um projecto de vida para alguns, de tal forma que todas as populações civis se tomam directa ou indircctamcnlc reféns, submetidos, explorados, assassinados, nas mãos dos homens armados. Mapa 2: Antigos regulados; áreas de povoamento macuanc, eráti, chaka, mmeto c marave; áreas controladas pela Renamo (1988) 26 1 A TEORIA DOS CHEFES SOBRE AS ORIGENS DA GUERRA Entre os primeiros a tentar interpretar a origem c atribuir um sentido à guerra estão provavelmente os seus adores c vítimas directas. Parccc-mc, pois, conveniente apresentar aqui o conteúdo dessa interpretação para de certa forma sjluar o espírito local da guerra. Yamaruzum, a decana duma linhagem nobre da região, dá-nos uma inter pretação dos acontecimentos que desde há quatro anos fazem sofrer e dizimam o seu povo; ela enuncia o ponto de vista, a teoria, dos chefes sobre a origem e a dinâmica local da guerra, dando-nos aó mesmo tempo preciosas informações sobre as motivações dos que entraram em dissidência: Eram os mapéwé [chefes] que faziam existir a comunidade (z) através do epepa m (...). Graças ao epepa a desgraça nunca atingia a comunidade. Esta guerra que nos aflige hoje foi provocada pelo «abaixo» Não podíamos fazer nada: não podíamos depositar o epepa nem podíamos ir a nenhum local sagrado porque tínhamos medo. Quando nos surpreendiam a depositar o epepa, éramos presos, Foi por isso que deixámos de depositar o epepa: para deixar os donos [a Frelimo] ■ ■ (1) Yamaruzu è a apwyamwcnc da linhagem nobre do chefe (mpéwé) M azua. Em português local utiliza-se o term o rainha para designar as mulheres que tem este estatuto. (2) O term o clapii, que traduzo de forma aproxim ativa por «com unidade», designa ao titcsino tempo o território da chcfatura c a sua população. (3) O epepa 6 a farinha de sorgo que cada chefe de linhagem (Imnm) tem e que lhe permite com unicar com os antepassados do seu grupo. No mom ento da consagração do mpéwé, chefe de chcfatura, este recebe um a porção do epepa de cada um dos chefes de linhagem que pertencem à sua chefatura. O epepa do mpéwé é, pois, especial e perm ite-lhe com unicar com o espírito dos antepassados de todos os membros da sua chefatura, independentem ente da sua origem linha- gística. A protecção destes espíritos é frequentem ente invocada cm caso de doença, de seca, para conjurar um m alefício ou, com o no caso presente, o flagelo da guerra. (4) Yamuruso refere-se aos slogans ritualm ente proferidos pelas novas autoridades locais, que marcam o início e ofim das suas intervenções públicas. «Abaixo» designa aqui a Frelimo e a veem ência do seu discurso. 27 fazerem o que queriam, para deixar os ukunha<5) fazerem o que queriam. Deixámos de pôr o epepa e por causa disso a guerra, quando chegou, não pediu autorização para entrar. A comunidade era regularmente protegida pelo epepa, Então, quando ■ a guerra veio..., esta guerra, na nossa comunidade, já ninguém a podia impedir. j Chegou de surpresa, porque nós tínhamos medo de ir aos locais sagrados rezar para impedir a guerra. Mas, se tivéssemos ido rezar nesses sítios e se as autoridades tivessem encontrado aí o epepa, ler-nos-iam prendido. Foi por isso que a guerra veio e entrou violentamente na nossa terra, atingiu o nosso povo. Dispersámo-nos, A guerra destruiu-nos. Aqueles que tinham o epepa em casa, alguém veio queimar. Os ekhavete foram partidos... Foram os soldados da Frelimo que fizeram isso. Quando o epepa estava numa garrafa, eles partiam a garrafa e o pouco que restava obrigavam-nos a diluir para beber. Foram acontecimentos muito maus, e por isso a terra está queimada. Ficámos muito tristes, esperávamos a nossa última hora. Porque eles destruíram ’ todas as nossas coisas, partiram tudo, queimaram tudo, então a guerra chegou violentamente... Quando lhe foi perguntado de onde tinha vindo a guerra, Yamaruzu res pondeu contando uma história onde ela própria se põe em cena ao lado do mpéwé Mazua, seu «irmão», lace a um cão também nobre, mpéwé: (...) Um dia apareceu um cão. Todos diziam que era nobre [mpéwé] e que era preciso respeitá-lo. Ele visitava sempre os mapéwé. Passaram-se três dias, antes de vir aqui a casa ( ...) . Nesse dia, eu tinha acendido o fogo e estava sentada em companhia do meu irmão, o mpéwé Mazua, que tinha vindo visitar o seu sobrinho: — meu filho — , a beber aguardente de caju. Quando vimos entrar o cão, levantámo- -nos para o cumprimentar. Balemos as m ãosl1) e ele passou devagar; os seus passos faziam o barulho do galope dum cavalo. Ele entrou na casa, passou junto do meu filho que dormia c eu tive medo que ele o matasse mas ele continuou até ao meu quarto e deitou-se junto da minha cama. Então o meu irmão Kulué, que também lá estava, saiu (aquele que é tratado da tuberculose na missão), pegou no cabo duma enxada e começou a bater no cão. Mas este não se mexia, não gania, e Kulué cansou-se. Saiu de novo e deitou-se para descansar. Então o cão saiu a ladrar e queria morder — tivemos que lhe pedir desculpa pelo meu irmão, que não sabia que o cão era mpéwé. Então o cão parou de ladrar e foi-se embora sem morder Kulué. ' (ó) Akkmha (sing. lékimha) significa lileralmcnie «brancos» (a cor) e designava oulrora os europeus. O termo designa hoje por extensão Iodas as pessoas bem vestidas, ricas ou que dispõem duma autoridade exterior á sociedade local, qualquer que seja a cor da sua pele. No caso presente, trata-se das novas autoridades políticas da Frelimo. (6) O ekhavete é o tam bor do mpéwé, cuja exibição é indispensável á consagração dum cltefe de linhagem , F.sle objcclo faz parle iln panóplia tios símbolos de poder do mpéwé. 0 seu uso cerimonial dem onstra, entre outras coisas, que nenhum chefe de linhagem pode ser nomeado num a chefulura sem o consentimento do seu mpéwé. (7) Bater as mãos inclinando ao mesmo tempo a cabeça é prova de respeito. 28 N o d ia seg u in te , s o u b em o s q u e o S r. Ja k o m é 0,1 tin h a m o rto o cã o co m a sua e sp in g a rd a . Já o tinham en te rrad o . M as p assad o s do is d ia s, e le j á lin h a d esap are c id o d o b u raco e o u v im o s d iz e r q u e an d a v a na re g iã o de um la d o p a ra o o u lro . E n tão h o u v e v á r ia s te n ta tiv a s p a ra m a ta r o cã o , m a s fa lh a ra m to d a s ( ...) . P o r f im , o u v im o s d iz e r q u e e le tin h a co m e ç a d o a a ta c a r as p e sso a s q u e en c o n tra v a : to d as as pessoas m o rd id as m o rriam p o u co te m p o dep o is, F o i ass im q u e se p a sso u a h is tó ria d o cã o q u e v e io d o s lad o s d o r io M u eta g e . Com eleito, foi das margens do Muetage que, em 1985, vieram as primeiras incursões dos homens da Renamo. A história do assassinato dum cão mpéwé como motivo da guerra exprime uma interpretação colectiva local da sua origem. Se alguma ambiguidade havia sobre o sentido das suas afirmações, Yamaruzu encarregou-se de a eliminar ao responder à seguinte pergunta: — Porque é que a terra se queimou? — A te rra q u e im o u -se p o rq u e o s mapéwé e ra m tra ta d o s c o m o c ã e s . A s apawyamwene tam bém e ram tra tad as co m o cad e las . A n tig a m en te , a s pesso as qu an d o n o s v iam le v an tav a m -se e cu m p rim e n ta v a m -n o s c d ep o is nós m a n d á v a m o -la s sen tar. U ltim am en te , q u an d o nos v iam p assa r, g ritav am : «Abaixo comer agalinliam\... A b a ix o p ô r o e p e p a l» . E n tão , n ó s an d á v a m o s tr is tes , p o rq u e a f in a l e ram o s no sso s filhos q u e nos faz iam isso ,.. L o u v a d o se ja D eus! ( . . . ) N ós e sp e ráv a m o s que o s d o n o s (a F re lim o | fo ssem e le s p ró p rio s d e p o s ita r o epepa... M as , p o r e x e m p lo , v o cê q u e conduz, e s se ca rro : é v o c ê q u e c o n h e c e os p a ra fu so s que ap e rta ,,., en tão se a lg u ém vem m e x e r e faz.er q u a lq u e r co isa ... o ca rro v a i a rran c ar? Yamaruzu, assim como o seu «irmão» Mazua, refugiaram-se na zona governamental, abandonando as suas terras e uma parte do seu povo, aclual- mente sob o controlo da Renamo. Yamuruz.u vive em Alua (distrito de Namapa), onde a encontrámos, e Maz.ua rcfugiou-sc no posto administrativo que tem o seu nome (no distrito de Memba), locais que estão sob o controlo da Frelimo. Apesar das queixas importantes que têm da Frelimo<l0), ambos colaboram com (8) Um com erciante da região. (9) Refeição habitualmente oferecida aos notáveis da chefatura em testemunho de respeito. (10) Alguns anos após a independência, Maz.ua foi preso pelas autoridades por causa de um com entário — provavelmente provocatório — feito sob o efeito do álcool durante uma reuniáo pública do Partido. O marido de Yamaruzu, presente durante a entrevista, relata assim o que M azua disse quando voltou da prisão: «Q uando M azua foi libertado, reuniu todos os chefes de linhagem (mtihimm) da sua chefatura e disse-lhes que já não via razão para pôr o epepa, pois líiilunu-llic tirado a sua terra, A pesar disso, o secretário da aldeia de vez, cm quando pedia a Maz.ua que depositasse o epepa, u que ele fazia contrariado. Durante essas cerimónias, ele dírigia- -se aos espíritos dizendo: “Tiraram-m e a minha terra, já não tenho nada”» — anulava assim para si próprio a autenticidade do rito que se via obrigado a executar. as autoridades, liles mmca sc enganaram sobre a natureza da guerra promovida pela Rcnaino c sobre o seu resultado; contrariamente a muitos dos membros da sua chcfalura c da sua própria linhagem, nunca alimentaram a ilusão dc que esta guerra fosse uma «boa guerra». 30 2 A DISSIDÊNCIA DOS CHEFES E DAS SUAS POPULAÇÕES História da implantação local da Kcnamp A história da «conquista» destas regiões pela Renamo c antes de mais a história, por vezes patética, de algumas dezenas de milhar de camponeses que ho período de 1984 a 1986 se.subtraíram ao controlo do Estado da Freliino. A conquista estendeu-se pelos anos de. 1984 e 1985. No ano seguinte, o processo de polarização das populações na guerra estava no essencial realizado. No , momento do inquérito (em Novembro de 1988), a redistribuiçâo espacial do povoamento da região e a relação de forças militares local que lhe serve de base ! permaneciam idênticas. Apresento em seguida as etapas e o carácter dessa conquista através de uma série de testemunhos. Estas descriçõese relatos locais referem-se a factos de natureza diversa, mas que são, não obstante, suficientcmcnte significativos para que se possam formular algumas considerações gerais importantes sobre a dinâmica local da guerra. 1 1. A leste da estrada 360, ao Sul do rio M ecubúri Até Março de 1984, a Renamo não tinha ainda feito nenhum ataque no distrito do Eráti, mas os rumores da guerra chegavam já à região, produzindo de forma indirecta os seus primeiros efeitos. Foi nessa altura que o exercito encarregou as milícias de reunirem rapidamente em aldeias as populações dispersas. Com esse objectivo, as milícias queimaram todas as habitações ainda existentes nos territórios linhagísticos fora das aldeias.! Para a Frelimo, o seu Estado c exército, a preocupação é controlar os movimentos e as actividades das populações rurais, impedindo o seu contacto com a Renamo, cujos primeiros destacamentos ameaçam as zonas fronteiriças do sul do distrito: «eles» estão em Muecate e no Monapo... Paralclamcntc a esta intervenção violenta c cspcctacular decidida pelo exér cito, os antigos régulos e cabos são chamados a participar na organização da 31 segurança das aldeias(,) e são encarregados de fazer patrulhas para informarem a administração de qualquer movimento suspeito. Recusar esta tarefa seria interpretado como uma manifestação de hostilidade em relação ao Partido e, portanto, de uma virtual simpatia para com a Renamo. Mas, ao mesmo tempo, eles são todos suspeitos a p rio ri e é-lhes dado a entender que serão presos caso a Renamo entre nas suas antigas áreas de jurisdição. M ahia: chefe da dissidência Nessa altura, todos os mahumu (chefes de linhagem) e todos os mapéwé' (chefes de chefaturas) do distrito vêem os membros das suas linhagens e chefaturas ser deslocados em massa, obrigados a abandonar as suas antigas habitações e currais (queimados), as suas terras, as culturas e uma boa parte das suas colheitas, as suas árvores e cemitérios, para se instalar nas aldeias comunais. Mahia, um antigo régu\o-tnpéwé da Macuane, é um desses chefes e será o primeiro a oferecer hospitalidade aos soldados da Renamo, vindo depois a tomar-se o principal chefe da dissidência na região. Mahia, que em 1984.vivia a leste do posto administrativo de Nacaroa (actual distrito do Eráti — ver mapas 2 e 3) sempre se tinha declarado abertamente contra a construção das aldeias, que dizia serem «lugares de preguiça»'21. Ninguém até então o tinha conseguido convencer, e às populações da sua chefatura, das vantagens da política aldeã do Partido. Mas desta vez lodos são obrigados a submeter-se, as habitações dispersas são destruídas e as populações de Mahia instaladas pela força na aldeia. Um homem, Martins, é nomeado secretário da aldeia, o que agrava ainda mais a tensão, porque se trata de um membro pertencente a uma linhagem 1 (1) Com o já foi dito atrás, muitos dos chefes locais foram investidos no tem po colonial de responsabilidades políticas e de gestão pela adm inistração portuguesa. Nesses casos, para além do estatuto de mapéwé com as respectivas funções sociais, políticas e sim bólicas concernentes à sociedade dom éstica e ím ltagíslica, assumiam as tarefas de régulos (responsáveis perante o adrni-, nislrador colonial dum a subdivisão da circunscrição, o regulado) ou de cabos (responsáveis dum a subdivisão do regulado, o gabado). Em com pensação, beneficiavam de vantagens ligadas ao exercício dessas funções, mas tam bém suportavam as suas obrigações, por vezes bem pesadas. A hierarquia adm inistrativa colonial não procurava harm onizar-sc com a prevalecente no disposi tivo político linhagístico: alguns régulos não eram mapéwé e vice-versa. A ssociando os chefes às tarefas de segurança, a Frelimo punha-se em situação de m elhor os controlar, ao m esm o tempo que os com prometia. i(2) D eve-se entender por esta fórmula um lugar onde os homens, arrancados das suas terras e obrigados a cultivar uma terra em prestada ou a terra da cooperativa, leriam tendência para ficar à espera do trabalho dos outros, para se dem itirem da sua responsabilidade produtiva, adoptàndo um a atitude de im potência e de assistidos face ao Estado que im põe tais condições de vida e de trabalho. 32 M a p a 3 N om e e localizaçao das populações i[ue entraram em dissidência (nom e do ch efe) wmmm MAHIA MUTA 1 : Zona sob controlo da Renamo : Posto-avançado da Renamo : Hase militar da Renamo sob a autoridade de um chefe : Chefe dissidente : Chefe de cuja lealdade as autoridades suspeitam dissidente 33 outroni submclida por um antepassado de Mahia, Ou seja, o único responsável c representante da população de Mahia reconhecido pelo Estado é um epotha J' do velho chefe, um dos seus próprios «escravos», como se diz cm português local,n. Tirarem o seu povo das suas terras para o instalar na aldeia sob a autoridade dum homem que ele considera um impostor é uma humilhação para Mahia. Do seu ponto de vista, c segundo a expressão comum, estão a «roubar-lhe o seu povo e a sua terra» (elapu). Decide então entrar cm dissidência e ir para o mato: abandona o seu território, passa os limites do distrito do Eráti, penetrando no mato do distrito vizinho do Monapo. Seguem-no alguns milhares de pessoas, a grande maioria da sua chefatura, que continuam a reconhecê-lo como seu chefe, o seu mpéwé. Pede hospitalidade para si c para os seus na área dum outro chefe da Macuane, Mezope, também ele um antigo régulo da administração colonial (ver.mapa 2). Mezope recebe-o e propõe-lhe que se instale com a sua gente junto ao rio Mariri, que atravessa uma parte do mato despovoado situado na área da sua chefatura. A nova residência do velho chefe situa-se a cerca de 80 quilómetros dos centros urbanos importantes mais próximos (Nacala, Memba e Namialo), e no mesmo momento, apenas a cerca de 30 quilómetros a sul, os homens da Rcnaino multiplicam os seus ataques na estrada Nampula-Nacala. Passadas algumas semanas, os primeiros emissários da Renamo apresen- tam-se a Mahia, nas margens dó rio Mariri. Terá sido boa vonladc das populações e dos seus chefes cm relação à organização militar subversiva? A localização do lugar, rclativamente distante das vilas e cidades c quase no limite de três distritos* (4)? A cobertura florestal (cajueiros) partieularmente densa nesse local que toma uma eventual base praticamente invisível aos aviões? Terá sido a proximidade de água potável? Ou de uma grande montanha (Inselberg) crivada de grandes esconderijos e grutas inexpugnáveis e inacessíveis aos ataques aéreos? Provavelmente por todas estas razões ao mesmo tempo, os homens da Renamo negoceiam e obtêm de Mahia que acolha um destacamento da organização militar subversiva nas suas ^(3) Sobre a condição social dos epnlha na região, ver C. Gcffray, «La condition scrvillc cn pays makhuwa», Cahiers d'Eludes Africaines, n.5 100, XXV (4) 1985, pp. 505-535. (4) Os actuais distritos dc Eráti, M emba c N acala-a-Vclha. As autoridades do distrito de Natnapa pensam que os estrategas da Renamo escolhem dclibcradam cntc os locais das suas bases militares nas regiões que fazem fronteira entre vários distritos. Assim , as bases ficam cm geral distantes das Sedes adm inistrativas, onde estão concentradas as forças arm adas locais. M as, sobretudo, segundo os nossos interlocutores, a guerrilha utiliza conscientem ente os conflitos burocráticos que esta localização geográfica provoca. Efcctivam cnte, a adm inistração dc cada distrito lem tendência para tentar passar a responsabilidade decorrente da presença dc um a base inimiga na sua jurisdição para as autoridades do distrito vizinho. Este tipo dc situação provoca uma paralisia adm inistrativa c m ilitar que não é dc subestimar. 34 iiovas lerias. Os soldados.— como eles próprios se chamam entre si — da Renamo constroem êhtão cm Mariri o principal acampamento de guerra de que a organização dispõe ainda hoje na região, «a base». lisles acontecimentossão exemplares. Nada poderia ilustrar melhor como o conflito entre as populações rurais c o Partido se alimenta, por um lado, da Vestratégia de construção do Estado no campo através das aldeias, c, por outro, j da recusa de reconhecer a legitimidade da autoridade dos notáveis locais v linhagísticos e de chefatura. A aplicação conjunta, brutal e humilhante, destas duas directivas levou o velho chefe Mahia a procurar afastar-se e colocar-se fora do controlo do Estado, para em seguida consumar a ruptura entrando em dissidência armada graças à Renamo. Embora os motivos da rebelião de Mahia sejam os mesmos que levaram os outros chefes locais a fazer o mesmo, pouco tempo depois, no entanto, as condições em que ele tomou a sua decisão de ruptura revestem um carácter excepcional. A sua atitude radical, tomada antes de poder contar com a protecção armada da Renamo, e a sua coragem01, explicam talvez o interesse que esta terá por ele e prefiguram o papel que terá o seu sucessor no dispositivo político e militar local estabelecido pela Renamo. Com efeito, Mahia morre pouco tempo depois destes acontecimentos (em j. 1985?), sucedendo-lhe um sobrinho uterino, que assume a sua identidade, o ' seu nome, as suas esposas, o seu epepa e todos os atributos do seu cargo. Assume igualmente todas as consequências da iniciativa de revolta tomada pelo seu predecessor e, por sua vez, organiza a participação da sua gente na guerra0,’. Diz-sc que o «novo» Mahia conservou do serviço militar no tempo colonial algumas noções de utilização das armas... É a ele que se vêm juntar as populações das outras chcfaturas dissidentes do actual distrito do Eráti, de Rocha, Morria, Rihia, Cobre, Penhavatc, assim como os chefes Tamela, Mczope e ainda outros do distrito de Monapo — seguidos mais tarde por outros que virão dos distritos de Memba, Nacala e Namapa. Todos pertencem à mesma . região, a «Macuane». O novo Mahia, hóspede da Renamo, toma-se o chefe de guerra de todos os chefes locais que o seguiram na dissidência. Ele é o único que pode entrar na zona interdita do campo da Renamo em Mariri, onde se avista de vez em quando com os comandantes, que lhe transmitem as suas directivas... Inlcrmc- 5 6 (5) O velho chcfc linha já ccrtam cntc ouvido faiar da Renamo quando partiu para o m ato dc M onapo e muito provavelm ente depositara sérias esperanças neta, mas não tinha nessa altura ainda tido qualquer contacto com os seus representantes c, por conseguinte, nenhum a garantia quanto às consequências da sua fuga. (6) A filiação, cm pats makhuwa, é m alrilincar.ou seja: as crianças nascidas do casam ento pertencem ao grupo da mãe e ficam sob a autoridade do irmão desta, seu tio materno. Quando um homem morre, é um filho da irmã, um sobrinho uterino, que lhe sucede (G cffray, Ni pèrc, ni iitère, Paris, de Seuil, 1990). 35 diário entre os oficiais<7) e os chefes dissidentes, é ele quem lhes dá a conhecer quais são as condições do seu novo estatuto, os privilégios ligados ao exercício do seu novo poder, e que os encoraja a respeitar e fazer respeitar as obrigações da legitimidade recuperada... Veremos mais adiante quais são essas obrigações e, de forma mais geral, o conteúdo do «contrato» que vincula as chefaturas dissidentes à Renamo, a partir do momento em que estas se começam a reorganizar fora do controlo do Estado (portanto, sob a protecção indispensável das armas da guerrilha). Sublinhe-se apenas de momento que é sob a autoridade Ide Mahia que se organiza a federação das chefaturas rebeldes de Ioda a região (cf. capítulo 5). 2. A norte do rio Mccubúri A norte do Mecubúri, vivem populações historicamente próximas das de Mahia, Penhavate, Morria, Rocha, Tamela, Mezope, que acabámos de referir... Trata-se dos membros das chefaturas de Ualala, M ’pakala, M ’zéle, Caleia e Meliva, no actual distrito de Namapa, e ainda as de Caboul, Namicolo, Maticò, Nivale e Mazua, no distrito de Memba. Tanto a norte como a sul do rio, estas populações pertencem todas à Macuane, ou são dela originárias. Ualala, cujo território histórico se situa na margem norte do rio Mecubúri, tem actualmente um papel importante na guerra. Em 1986, abandonou os seus domínios para estabelecer residência a sul do rio, no posto-avançado de Namijaco, de que se tornou chefetS)/inácio M.!, secretário da aldeia comunal de Murripa, construída no território da chefatura de Ualala, conta assim a chegada da Renamo7 8 (9): Inácio M. — Q u a n d o os b an d id o s ch e g a ram a M u rrip a , fu g i e e sc o n d i-m e no m a to d u ra n te três m e se s . P ro cu rav am -m e p a ra m e m a ta r, p o rq u e tin h a s id o o se c re tá r io d a reg ião . F iq u e i e sc o n d id o d u ra n te três m e se s e d ep o is a lg u ém m e ve io av isa r um d ia q u e tin h am d esco b e rto o m eu e sc o n d e rijo e q u e se p rep a ra v am p ara m e m a ta r no d ia seg u in te . D ec id i en tão d e ix a r a re g iã o e re fu g ia r-m e no p o s to . (7) Os comandantes Filipe, Peixe, Almoço é Macaco, como são conhecidos pelos seus nomes de guerra em Mariri. (8) Foi no monte Namijaco que, no princípio do século, os portugueses construíram o primeiro posto militar no momento da conquista colonial do interior do país makhuwa. Em 1988, quando o inquérito foi feito na região, ninguém vivia nas proximidades do monte. (9) Inácio M. encontra-se actualmente refugiado com a sua esposa no posto administrativo de Alua, onde o encontrámos em Outubro de 1988.''André, secretário da aldeia vizinha de Murera, onde trabalhei em 83, não teve a mesma sorte que Inácio e foi morto pelos habitantes da aldeia alguns meses depois da minha visita. 36 ad m in is tra tiv o d e A lu a ( ...) Q u an d o to m ei e s ta d ec isão , a m in h a zo n a es tava to ta lm en te a fe c ta d a p e la g u erra . N u n ca m a is v o lte i. L á , a in d a m e p ro cu ram p ara m e m a ta r, m as eu ac h o que n ão fiz m al a n in g u é m . A té ag o ra , as co isa s e s tã o m ás em M u rrip a . F o i isso q u e se p asso u q u a n d o o s b an d id o s ch e g a ra m . N ão sei o q u e vai a c o n te c e r ag o ra , p en so q u e e s tá tu d o e s tra g ad o . — D e o n d e v ie ram os b an d id o s? In á c io M . — V ieram d o S u l; a tra v e ssa ra m o rio M ecu b ú ri a té M u rr ip a , o n d e eu v iv ia . C o m os b an d id o s p ro p ria m en te d ito s v in h a m a lg u n s m'jiham ( . . . ) . Q u an d o c h e g a ram , os b an d id o s fo ram sem p re g u ia d o s p o r p e sso as q u e c o n h e c iam a reg ião . A q u e le s q u e q u e riam m a ta r-m e e ram c o n d u z id o s p o r p e sso as q u e sab ia m o n d e eu h ab itav a . O p ró p rio U ala la q u e ria m a ta r-m e , p o rq u e p en sa v a q u e eu lh e tin h a tirado a te rra . — V o cê te v e p ro b le m as co m U ala la q u an d o foi n o m e a d o se c re tá rio ? In á c io M . — N ão posso d iz e r que «s im » ca teg o ricam en te . M as qu an d o co n v o cav a um a reu n ião , an te s d e tra n sm itir as d ire c tiv a s aos h ab itan te s d a a ld e ia , c o n ta c ta v a sem p re o mpéwé (U a la la ) pa ra o in fo rm a r d o q u e iria d iz e r n a reu n ião . — E q u e d iz ia e le? In á c io M . — U ala la d iz ia « o u v i» , m as cu n u n ca so u b e o q u e e le rea lm en te p en sav a . — C o m o é q u e as p e sso as reag iram q u a n d o v o c ê lh e s d is se p a ra co n s tru írem a a ld e ia? In á c io M . — H á m u ita g en te q u e n ão g o s ta d a a ld e ia ... — E a a ld e ia f ic av a lo n g e d a c a sa d e U ala la? In á c io M . — N ão . U a la la v iv ia d o seu la d o e o c e n tro d a a ld e ia en c o n tra v a -se o n d e eu p ró p rio v iv ia . — E n tão v o cê teve q u e p e d ir a