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Texto_02_A_ruptura_com_o_senso_comum_Silva_&_Pinto_1986[1]

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)1r.R/'ft, ft. 2q -<:3 
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CAPITULO I 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM 
NAS CI:ENCIAS SOCIAlS 
Augusto Santos Silva 
1. 0 PROBLEMA DA RUPTURA 
A' constitui((ao das ciencias socials esteve dlrectamente relacionada com a possibi­
lidade lUst6rica de afirma((iio da autonomi,! do social, quer dizer, com os desenvolvi­
mentos s6cio'economicos, politicos e te6ricos que, nos SeculbS XVII, XVIII e XIX, 
impuseram a ideia da existencia de uma ordem social laica e colecti va, nao directamen­
t,e determinada pela vontade divina, frredutfvel aac((ao individual e submetida a leis 
C'rela((oes necessiirias que derivam da natureza das coisas", na celebre frase de Mon­
tesquieu). Segundo ritmos desiguaispara as viirias disciplinas,'foi-se consolidando, 
no decurso da centUria passada, um saber especializado, assente na reflexao teorica e 
na observat;:ao empirica, que ia assim marcando as suas diferen9as para com a tra­
di((ao fiios6fica, as cosmovisoes reJigiosas e 0 conhecimento de senso comum. 
Coube, na viragem do secuio, ao'sociologo Emile Durkheim a principal teoriza­
t;:ao. nestes termos, sobre a Jegitimidade da aniilise dos factos socials. E toda essa teo­
riza((ao se polariza na tese de que a investiga9iio cientffica deve comet;:ar peia ruptura 
<;.om as pre-no90es tlpicas do conhecimento corrente. "0 homem explica bur­
khdm (1) - nilo pode viver no meio das coisas sem fazer delas ideias segundo as 
quais regula 0 seu comportamento". "Pradutos da experiencia vulgar", tais n090es 
"tem, antes de tudo, como objectivo por as nossas acc;:oes em harmonia com 0 rnundo 
que nos rodeia;sao forrnad[as] peJa pnitica e para ela. Ora uma representas:ao pode 
ser capaz de deseri:lpenhar'Utilmente este papeJ, s~ndo ao mesmo tempo teoricamente 
fa·lsa" Cumpre ao cientista. definindo rigorosamente os seus conceitos. subrnetendo 
(1) EMILE DURKHEIM, As Regras do Metodo Socio16gico, Iradugao portuguesa, Lisboa, PIeSen­
\ta. 1980, pp. 41-42. Ed, original: 1895. 
30 
) 
AUGUSTO SANTOS SILVA 
as suas hip6teses a comprovas:ao empfrica, coritrariar as interpretas:6es vulgares, e 
mormente, para 0 nosso autor, os elementos metaffsicos, psicologistas e individualis­
tas nelas implicado~: 
Posteriormente, a epistemologia de Gaston Bachelard, insistindo no canicter 
construfdo do conhecimento, na descontinuidade radical entre ciencia e saber corren­
te, e na imprescindibilidade cia ruptura com os "obstaculos epistemoI6gicos" - veio 
dar urn novo apoio as preven~6es durkheimianas. Tornou-se usual sublinha-Ias, 
actualizando-as normalmente do seguipte modo. As disciplinas sociais sao especial­
mente permeaveis as interpretai¥oes de'senso comum. Ao passo que a ffsica ou a astro­
nomia romperam jei ha alguns seculos, por vezes em circunstiineias dramaticas, com 
o sensO comum, construindo uma linguagem conceptual e processos de demonstra­
s:ao especificos que as imunizam, ern grande parte, a influencia daquele, as ciencias 
sociais, mais i:ecentes, nao possuem aincia, em geral, c6digos e instrumentos exclusi­
vos. Depois, a realidade social surge, aos olhos da maior parte das pessoas, como 
mais facilmente explicavel do que 0 universo ffsico. Alias, os homens necessitam de 
produzirideias determinadas e consistentes sobre as instituii¥6es e as situai¥6es colecti­
vas, que possam racionalizar e orientar a sua pratica. Por ultimo, todos e logo, 
tambem, os psicologos, os ecbnomistas. os soci610gos, etc. estamos integrados 
em estruturas sociais, pertencemos a certos grupos. E da! que, quando se trata de to­
mar porobjectos as pr6prias rela~oes sociais, seja para 0 investigador mais forte 0 ris­
co de, mesmo inconscientemente, conceber como guias ou resultados de pesquisa 
aquila que constitui, apenas, a interpretas:ao que, como actor social membro de urn da­
do grupo, com uma dada condii¥ao, em dadas circunstiincias'de tempo e de lugar, ele 
tende a assumir. 
A ilusao da transparencia, da familiaridade do social- que autoriza a produ~ao, 
a baixo pre~o, de sociologias ou economias "espontiinea~" e' os sistemas de atitu­
des e acs:6es ligados as condis:oes sociais objectivas - que obrigam 11 produ~ao a 
qualquer pres:o de sociologias ou economias "espontaneas" representam os 
poderosos obstaculos a analise cientffica. Eles estao por deWis dessa "resisrencia pro­
funda" que provem, nas palavras de Alain Touraine (2), "da nossa Iiga~ao acren~a de 
que os factos sociais sao comandados por uma ordem superior, metassocial" - seja 
esta a vontade divina, 0 espfrito humano,·a motivas:ao individual; a accao dos "gran­
des homens", ~ nossa natureza biologica"o sentido da hist6ria ... A regra metodol6gi­
ca de Durkheim - explicar 0 social pelo sociate s6 pelo social '- constitui ainda urn . 
principio-chave para a superas:ao de tais obstaculos, se a entendermos precisamente 
como afirmas:ao de que nao haelementos metassociais que possam dar cientificamen­
te conta dos factos' sociais. 
Faz-se. pocem, muitas vezes, uma interpreta~ao demasiado restritiva do trabalho 
de ruptura com 0 senso comum - ora perisando que uma simples afinai¥ao terminol6­
gica e a utilizas:ao de tecnicas de pesquisa especializada permitem realiza-Io; oraque 
atraves dela facUmente se demarcam dois continentes cognitivos -0vulgare 0 erudi­
(2) ALAIN TOURAINE, Pour.la Sociologie. Paris, SeuiI, 1974, pp. 13-14. 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CltNCIAS'SOCIAlS 31 
to tornados assim incomunicaveis. 0 certo e e varias correntes sociol6gicas, an­
tropol6gicas e hist6ricas 0 tern mostrado - que os factos humanos sao sempre factos 
interpretados, 0 que os distingue radicalmepte dos eventos f{sicos; a consciencia dos 
actores e 0 elemento constitutivo decisivo do mundo social. Importa, pois, dar conta 
das representas:oes co!ectivas, quotidianas, da sociedade, as imagens e as nos:6es 
construfdas no decurso da vida de todos os dillS e que configuram 0 patrim6nio cogni­
tivo partilhado pelos membros de um dado grupo, as maneiras de pensar e de selJtir, 
em suma, aquilo a que chamamos senso comum forma.um dos objectos centrais de 
qualquerciencia social. Vma atitudeque relegue o conhecimento pratico para 0 estatu­
to de conjunto de meras pre-noi¥6es, pre-c;:onceitos, que a ciencia deve ultrapassar e 
esquecer, bloqueia a analise dos process os sociais simb6licos. 
Poroutro la~o, subjaz a essa atitude restritiva face 11 ruptura uina arroglincia erudi­
ta, herdeira do cientismo positivista, que ja nao tern grande sentido no panorama 
actual do conhecimento, incida ele sobre a cultura ou a natureza. A oposis:ao entre 
ciencia e senso comum euma oposii¥iio relativa; quer dizer, nao se trata de uma c1iva­
gem, entre a concepi¥ao vulgar, enganosa, ilusoria, espontlinea, dos factas, e a cons­
trui¥ao especializada, demonstrativa, "verdadeira", produzida por profissionais, c1iva­
.gem que pudesse ser feita apartida, por urn qualquer exorcismo inicial e definitivo. 
Em rigor, a oposi~ao entre ciencia e senso comum e tambem uma oposi~ao intema ao 
trabalho e ao meio cientffico. Manifesta~ao simb6lico-ideoI6gica, 0 conhecimento pra­
tico desempenha fun~es'sociais precisas, e os cientistas compartilham com demais 
actores sociais pressupostos e operadores ideologicos que podem tomar-se eventual­
mente obstliculos epistemol6gicos. 
~ preciso, 'portanto, reagir atenta~ao unanimista, e ter em mente que, s6 se fazen­
do a ruptura por .via da construs:ao te6rica testavel, ha varias "rupturas" como ha 
varias constru~oes. Nao vamos falar de uma tarefa consensual entre os especialistas, 
pela qual todos se distinguiriam identicamente do vulgo, mas sim de uma opera~ao 
conflitual, na qual pensamosa nossa pr6priarelai¥ao com 0 saber pratico e aimitica 
ideol6gica. 
Por isso mesmo, 0 presente texto procurara analisar a questao considerando os tres 
nfveis a que podem emergir obstaculos ao conhecimento cientffico sobre 0 social: 0 
. nfvel das representa~6es mais "imediatas", mais "espontlineas", sobre a realidade, a 
que chamaremos sensa comum ou conhecimento pflitico; 0 das conceps:oes mai:; tra­
balhadas, enquadradas em forma~jjes ideologico-doutrinarias precisas; 0 das ramifi­
ca~oes de umas e outras no interior de disciplinas cientfficas coilsolidadas. Claro que 
os obstliculos surgem' como tais apenas,de urn ponto de vista te6rico especffico - 0 
qual se ira esc1arecendo pela propria crftica aqueles~ 
Para clareza da exposi~iio, ccinvira distinguir elementos axiais das interp!eta~es 
do social em termos nao sociais que, de facto, andam associados. Deixaremos de la­
do intei:preta~6es tradicionais contra as quais se ergueram as proprias disciplinas so­
ciais e que tern vindo a perder impacto - como a imputagiio dos fundamentos da or­
dem social avontade divina, Centrar-nos-emos em tres questoes face as ql,lais,e pe­
las razoes que iremos vendo, 0 conhecimento corrente, as representagoes id~016gicas 
• uUE5Eiiii :SiBil U"tMt ....' 
http:forma.um
____ 
33 
32 AUGUSTO SANTOS SILVA 
e mesmo as teorias cienrifieas eontinuam a revelar-se inseguras: as relat;oes entre natu­
fI!za e eultura; entre indivfduo e sociedade; entre 0 "eu" eo "outro". Simplifieando, di­
remos queo senso comum tende muitas vezes a produzir interpreta90es naturalistas, 
individualistas e etnoeentristas dos factos humanos, procurando explica-los porearac­
.terfsticas que pensa Jigadas 11 "natureza" dahumanidade ou de certos grupos dela, por 
faetores (disposi90es psfquicas e eomportamentos) individuais, e em fun9ao dos valo­
res dominantes na sociedade ou na c1asse a que perteneem os interpretadores. Tentare­
mos mostrar, sucessi vamente, a falsidade de tais eoncep96es, a permeabilidade a elas 
de algumas teorias cienrificas, e os principios necessarios para a ruptura. 
2. NATUREZA E.CULTURA 
Uma das formas mais correntes de tehtar expliear faetos sociais invocando "eau­
sas" de ordem metassoeial e a interpreta9iio de tipo naturalista - quer dizer, e nas pa­
lavras de A. Sedas Nunes, a deseri9aolinterpreta~0 do social "a partir de factores di­
tos 'naturais' (real ou supostamente ffsicos, biol6gicos ou psico16gicos), isto e, de 
factores que se consideram 'inerentes 11 natureza humana' ou inerentes 11 'natureza' de 
urn povo, de urna area geografiea, de uma ra9a, de eada urn dos sexos, etc". "Este 
genero de descri90es/interpreta90es - continua 0 autor - implica a afirma9iio do 
'caracter natural' (~absoluto) dos fenomenos euja explica9ao assim se apresenta [ ... J. 
Simultaneamente. tende a erigi-los em faetos 'indiscutfveis', irieontroversos, que, 
por exprimirem 'a pr6pria natureza das eoisas', devem permanecer ao abrigo de toda 
a'relativiza9ao' 0 que e formalmente contraditorio com qualquer tentativa de 'ex­
pUcar 0 social pelo social" (3). 
Quando se diz que frequentam os museus as pessoas que possuem eertos "dons", 
"dotes" artfsticos, urn certo gosto estetico, e que, portanto, as diferen9as na frequen­
cia dos museus se devem a diferentes aptidoes, II natura is" , que estao para 18. de condi­
cionalismos economicos, educacionais ou familiares; e quando se diz que as diferen­
9118 biol6gicas entre homens e mulheres conduzem a diferenteseomportamentos, uns 
"naturalmente" masculinos e outi-os femininos - exprimem-se duas interpre~90es, 
bastante correntes em termos de senso comum, de fen6menos sQciais. Elas ilustram 
as duas variantes discernfveis no "naturalismo". A ultima sugere que factores naturais 
-;- biol6gicos:- sao eausas eficientes de factos cuI turais; a primeira nao invoca dec1a­
radamente caraeterfsticas ffsieas ou bio16gicas, mas vivede urn efeito de naturaliza9ao 
dos faetos sociais, quer dizer, da sua imputa9ao a propriedades, mormente psicol6gi­
(3) A. SEDAS NUNES, Sobre 0 Problema do. Conhecimento nas CiblCias Socials: MaJeriais de 
uma Experieneia Pet!agogica, 51 ed., Lisbo3, G.I.S., 1981, p. 9. 
) 
I.. FE- '4 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CltNCIAS SOCIAlS 
cas, tidas por absolutas, inerentes a eondi9ao geral ou a condi90es partieulares da nos­
sa especie inerentes, em surna, achamada "natureza humana". 
Apresentadas assim, na formula9ao tfpica do saberpratico, estas interpreta90es pa­
recem facilmente superaveis. Trata-se, pocem, de uma ilusao. Por detras del as, esta 
uma questao central do conhecimento ada rela9ao entre a natureza e a diversidade 
dos eontextos sociais criados pelo homem. A tendencia para escamotear estes recor­
rendo aquela ~ssurge a cada passo - no senso comum como na investiga9ao cien­
rifica. 
Tomemos 0 exemplo do biologismo - reservando a palavra para designar os re­
ducionismos analfticos que pretendein dar eonta da realidade social a partir de deter- . 
minismos tidos por biol6gicos. Ele constitui a via mais seguida e ideologicamente 
mais produtiva das interpreta96es de tipo naturalista. 
Ora bern: uma extensa !ista de pesquisas antrop616gieas, sociologicas e hist6ricas 
tern demonstrado a falsi dade das "expliea90es" biologistas das rela90es entre os sex~s 
ou entre as ra9as, evidenciando precisamente quanto essas rela90es variam segundo 
os diferentes eontextos socio-hist6ricos e sao determinadas por eles. Mas 0 certo e. 
que nas ultimas tres dtkadas pOde intensificar-se, no meio cientffico, urn movimento 
biologista, que atingiu 0 eume com a forma9ao da sociobiologia e que percorre per­
sistentemente os mais diversos dominios. 
Assim, a etologia humana pretende ser 0 alargamento a nossa especie da pro, 
blematica e do metoda que, a partir dos anos trinta, foram aplicados com exito ao 
estudo das bases bio16gieas do comportamento animal. Ora, a tenta9ao de extrapolar 
directamente teorias construfdas em pesquisas sobre animais para 0 dominio do ho­
mem e da cultura, vai atravessando a disciplina e causando ambiguidades analfticas 
que nao raras vezes desembocam em pur~ biologismo. Por seu lado, a sociobiologia 
afirmou-~e desde logo como uma "nova sfntese" capaz degarantir as ciencias huma­
nas urn sujxme biol6gico tido por indispensavel, na medida em que pressupoe ter to­
do 0 comportamento social uma base biologica e - de acordo com os cilnones darwi­
nistas - urn valor adaptativo, estando pois sujeito aselee9ao natural. No entanto, as 
teorias biologicas actuais estao muito longe de autorizar a aplicabilidade universal do 
esquema de evolu9ao por selec9ao natural, 0 inatismo absoluto e, novamente, a extra· 
pola9ao do animal para 0 homem que prevaleeem na abordagem sociobiologista. 
Do ponto de vista das ciencias sociais, as condicionantes biol6gicas representam 
urn dado continuamente utilizado e transfonnado pela sociedade. 0 reconhecimento 
dessas condicionantes (a vida e a morte, a existenciacorporal individualizada num cer­
to lugar e num certo tempo, 0 patrim6nio geneticamente herdado, as consequencias 
das desregula90es fisio16gicas, e assim por diante) vai de par com 0 reconhecimento 
de que, em tais limites, os conteudos e asformas de conduta sao tipicamente culturais 
- e, no easo, edeles que se trata. Mais: a aC9ao do homem esta em permanente ten­
sao com as suas bases e limites biol6gicos. Por exemplo, a sexualidade constitui urn 
imperativo biol6gico; as formas de comportamento sexual sao, pocem, culturalmente 
determinadas, e podem ir contra as aparentes "indica90es" flsicas; 0 mesmo se passa 
) 
_ 
_________---------------- ~__~____--.~~-------------------I 
35 
') 
34 AUGUSTO SANTOS SILVA 
com a alimentac;:ao, a divisiio sexual do trabalho, a intervelllriio nos ecossistemas, etc. 
E a acc;:ao humana depress a transforma atributos biol6gicos em factos sociais: no nos­
so contexto, 0 sexo, a morte, a idade, a reproduc;:ao, a doenc;:a mental... sao sobretu­
do propriedades, instituic;:oes ou processos sociais, quer dizer,0 que sao eem muito 
determinado pelas estruturas e pniticas colectivas. Em geral, deve dizer-se que ,0 ho­
mem esta sujeito a constrangimentos bio-ffsicos decisivos - mas nenhum deles, nem 
mesmo a vida e a morte, eabsoluto, e independente do modo como 0 homem 0 apro­
pria e transfigura. 
Nesta base, a recusa de qualquer formade reducionismo naturalista -:- biologista 
ou fisicalista - permite precisamente a troca produtiva de informac;:ao entre as disci­
plinas sociais e as naturais, permitindo explorar as influencias recfprocas de carac­
terfsticas e fen6menos naturalS e culturais. E, no que toca ainvestigac;:iio social, toma 
possivel integrar, nos model os explicativos, dados de ordem biol6gica ou fisica, des­
de que convenientemente inclufdos em con juntos de factores sociais, porque s6 a1 ga­
nham sentido. 
Para ilustra-Io, basta pensar em areas de charneira como a demografia e a geogra­
fia humana. Quando lidamos com conceitos como os de fecundidade e de natalidade, 
lidamos com compfexos de facto res sociais e biol6gicos, que mantem entre si impor­
tantes relac;:oes de implicac;:ao: se as caracterfsticas naturais dos homens e das mulhe­
res imp6em urn certo numero de constrangimentos e acarretam urn certo numero de 
motivac;:oes e atitudes, nao e menos verdade que os actores criam, segundo os contex­
tos, maneiras especificas de "cumprir" necessidades biol6gicas e estrategias dirigidas 
a sua aiterac;:ao (lembre-se as varias formas de controlo da natalidade, como a subida 
da idade media ao casamento, 0 prolongamento da amamentac;:ao, 0 usa de meios an­
ticoncepcionais, etc.). Por isso mesmo, s,6 faz senti do falar da demografia como cien­
cia social. 
A evoluc;:ao recente da geografia constitui outra clara ilustrac;:ao do que argumenta­
mos. Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, ela afirma-se decididamente co­
mo disciplina social. Abandonando as concepc;:oes, que a lirnitavam ao estudo da dife­
renciac;:ao regional da superffcie terrestre, das relac;:oes entre 0 homem e 0 meio, ou da 
paisagem - a nova geografia propae-se anaIisar as dimensoes espaciais da vida so.: 
cial, a func;:iio do espac;:o na dinfunica das sociedades. Insiste-se em que 0 meio natu­
ral s6 se toma ,meio geognifico na medida em que as colectividades, no decurso da ­
histOria, 0 modelam. 0 espac;:o constitui urn sistema que relaciona elementos do meio 
fisico (relevo, agua, clima. vegetac;:ao ... ) edo meio social (estruturas demograiicas e 
sociais das populac;:oes ... ).0 meio fisico representa urn dado para a conduta humana 
- e implica condicionamentos ecologicos que a geografia tern em conta. Mas, no 
essencial, a paisagem e uma criac;:ao colectiva. Nao ha uma relac;:ao directa entre meio 
f{sico e homem: intervem nela crucialmente facto res econ6micos, soCiais e culturais, 
que constituem 0 sistema de relac;:oes no contexte do qual - e apenas nele epos­
sfvel invocar determinac;:oes ffsicas e ecol6gieas. 
Como explicar, entao, a persistencia das interpretac;:oes de tipo natunilista, como 
." -e, ..0'. "151. I ..... ? 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CltNCIAS SOCIAlS 
expIicar, sobretudo, que correntes cientfficas (quer dizer, produzidas nos meios pro­
fissionais especializados) as adoptem e procurem fundamentar? Sera pouco mais que 
indtil atribuir, por exemplo, 0 reducionismo biologista a qualquer "atraso" na evo­
luc;:ao te6rica. As razoes sao de outra ordem. 
A emergencia da sociobiologia e do que ela representa 0 retorno ao inatismo, a 
busca de comportamentos universais, comuns a varias especies, a biologizac;:ao da in­
vestigac;:ao social percebe-se melhor se pensarmos nas orientac;:oes cientfficas e 
ideol6gicas que a ela conduziram. Em primeiro lugar, constitui ate certo ponto uma 
previsfvel tentativa de.capitalizac;:ao do desenvolvimento convergente de disciplinas 
como a genetica, a ecoJogia e a etologia, com a aplicac;:iio anossa especie de modelos 
testados por exemplo na analise das "sociedades" de insectos. Em segundo lugar, os 
biologismos tern muito a ver com 0 paradigma positivista ainda forte nas ciencias so­
ciais, e a sua sugestao de que a cientifizac;:ao dos estudos sobre os agrupamentos hu­
manos se fara peJa importac;:ao de modelos das disciplinas naturais. Depois. a forma 
como toda uma tradic;:ao da antropologia e da sociologia estabelecia uma dualidade 
absoluta entre natureza e cultura, recusando-se a admitir qualquer influencia daquela 
sobre esta, acabou por reforc;:ar as pr6prias redu¢es biologistas. Alias, convem ter 
em conta que, em varios aspectos, a questao da relac;:ao entre natureza e cultura esta 
em aberto. 
Mas niio sao apenas nem fundamentalmente razoes de ordem te6rica que explicam 
o relativo sucesso dos biologismos: ate porque estes carecem de fundamentac;:ao bio­
16gica e os bi6logos foram dos primeiros a denuncia-Ios. As determinantes ideol6gi­
cas jogam aqui urn papel crucial. Sobretudo em termos de opiniao publica, a for!(a de 
propostas como a da sociobiologia deriva directamente de que ressuscitam, em lingua­
gem especializada, 0 darwinismo social- ou seja, a doutrina que pretende deduzir 
da diversidade dos seres vivos a inevitabilidade das desigualdades de aptidoes e opor­
tunidades e a inutilidade das estrategias sociais iguaJi tarias. As tres formas de domina­
c;:ao mais necessarias a, e rnais caracteristicas da, ordem social contemporiinea - as 
dominac;:oes de classe, de sexo e de "rac;:a" -encontram justificac;:iio na sociobiolo­
gia. 0 significado poiftico de tal tentativa de legitirnac;:iio e claro. 
Se agora retomarmos as formulac;:oes de senso comum, importani reteruma outra 
dimensao do problema. Os argumentos de tipo naturalista sao maioritariamente usa" 
dos em contextos de conhecimento corrente que nao se organiza em representa~iio 
ideol6gico-poHtica precisa. E essa produc;:iio cognitiva e simbOlica desempenha uma 
func;:iio decisiva, na racionaliza~ao do comportamento dos actores sociais e no que os 
soci610gos designam por conversao das probabilidades objectivas em expectativas 
subjectivas dos actores. 
Consideremos urn exemplo. Na nossa sociedade, econcepc;:iio corrente que as di­
ferenc;:as biologicas entre homens 'e mulheres implicam neces'sariamente diferentes 
"naturezas" psfquicas, de tal modo que caberia falar de voca!(oes tipicamente masculi­
nasede vocac;:oes tipicamentefemininas. Vma prova particularmente elucidativa pode­
ria ser encontrada na estrutura da procura de cursos universitlirios segundo 0 sexo. 
Em Portugal, hii uma forte clivagem entre os sexos: 'a esmagadora maioria das rapari­
wew·¥*SiNS2P.. 
37 36 AUGUSTO SANTOS SILVA 
gas escolhe as cursos de Letras, Medicina e Ciencias Exactas e Naturais; os rapazes 
preferem as Tecnologias, e depois Economia e Gestao, Medicina e Direito. Ora bern: 
tratar-se-ia de opgoes congruentes Com as diversas motivagoes e aptidoes atribufveis 
em ultima instAncia a constituigoes biol6gicas divers as - os homens, mais activos, 
empreendedores, recnicos, optavam naturalmente par cursos preparadores de carrei­
ras s6lidas, bern remuneradas, na maior.parte dos cas os liberais; as mulheres, mais 
afectivas, menos preparadaspara as posigoes decisivas da actividade econ6mlco-so­
cial, mas mais dotadas para as profissoes que exigem qualidades afectivas intensas, 
naturalmente preferiam os cursos de forma~ao de professores e certas especiaJidades 
de Medlcina. 
Efacil mostrar, quer 16gica quer empiricamente, que as causas da sub-represen­
ta~o das raparigas na populagao universitaria portuguesa e da imposiiSiio a elas de cer­
tos cursos, normalmente os menos valorizados na hierarquia dos tftulos escolares e 
dos empregos possfveis, tern a ver com divers as condic,:oes sociais e niio com diver­
sas naturezas biol6gicas e psico16gicas. Desde logo porque se se tratasse de pura de­
terminagao ffsica seria de esperar comportamentos universais - e basta pensar que a 
taxa de feminizagao dos cursos tradicionalmente masculinos tern aumentado nos lilti­
mos anos, facto que esta seguramenteassoci ado as transformagoes da condic,:ao da 
mulher entre nos. E, depois, porque a questao central nao se poe em termos de pura 
discriminagao sexual nem os rapazes nem as raparigas apre~entarn condic,:oes so­
ciais homogeneas; pelo contrario, cada urn destes subconjuntos e atravessado por 
fracturas econ6micas, sociais e culturais importantissimas - que se repercutem em 
procuras heterogeneas. 
Uma explicagao socio16gica partiria da analise das diferentes condigoes socials, 
segundo 0 sexo, a origem e a traject6ria social, e dos diferentes processos de sociali­
zac,:ao dominantes na estrutura s6cio-hist6rica considerada; e tambem da analise da 
estrutura da oferta de cursos universitarios. Este conjunto de factores define para ca­
da gropo urn certo numero de probabilidades objectivas de ingresso na Universidade 
enos seus cursos. Ora, as interpretag6es correntes de dpo naturalista, que tendem pre­
cisamente a tomaropaco aquele conjunto. desempenham uma fungao decisiva dentro 
dele - a imagem da vocac,:ao feminina para certas tarefas tidaspor menores constitui 
urn vectorideol6gico decisivo dosesquemas de socializac,:ao preferencialmente dirigi­
dos ao sexo feminino; e a persistencia das justificac,:aes da frequencia de cursos esco­
lares em teimos de escolha e de vocaiSiio eSta intimamente relacionada com a conver­
sao pelos acta res socials das suas probabiUdades objectivas em expectativas subjecti­
vas - sujeitos, aos modelos inculcados pelas mais variadas instlincias e formas de so­
cializac,:ao e tamMm anecessidade de racionalizarem 0 seu comportamento, os actores 
tendem a viver como decisiies pessoais naturais as condig6es impostas, tendem a 
transfonnar em vocac,:ao 0 que e destine (4), 
(4) Usci aideia e a informac;:ao empirica contidas em MARIA EDUARDA CRUZEIRO, "A papu­
lac;:ao universitaria portuguesa: uma nota estatfstica", Analise Social, vol. VIII, n9 32; 1970 e actuali­
zei-areccrrendo as Estatfsticas da Educac;:~o referentes a 1977nS (cfr. AUGUSTO SANTOS SILVA, A 
....-..., ~:"- .. ~? r~:- -_.w '-6 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CIP'NCIAS SOCIAlS 
A persistencia e a eficacia das interpretac,:6es de senso comum nao podem, pois, 
ser imputadas 11 "ignorlincia" popular dos conhecimentos cientificos, superavel atra­
yeS da educac,:ao. A raiz emais profunda e tern a ver com a imagem coerente que as 
acto res tendem a produzir acerca do mundo social em que vivern, com as represen­
tas:6es simb6lico-ideologicas que constantemente criam e a que constantemente estiio 
sujeitos, e que constituem 0 principal cimento da ordem social. As ciencias socials 
estao, assim, numa situac,:ao peculiar: ou evitam a ruptura, decerto inc6moda, e ficarn 
condenadas a reprodu~ao mais ou menos sofisticada e esoterica dos operadores 
ideol6gicos e de senso comum; ou a assumem ate ao fim, e tern entao de assumir inte­
gralmente a postura crftica em que se colocam. 
Tfnhamos vista que as interpretago~s de tipo naturalista nao se limltavarn apenas a 
biologismos au fisicalismos. Nao se invoca, para explicar os factos sociais, somente 
a natureza fisica; invoca-se muitas vezes tambem a natureza psfquica, moral, polftica, 
etc., da humanidade - quer dizer, invoca-se comportamentos supostamente univer­
sais, independentes de tempo, espac,:o e contexto, porque devidos a quaUdades absolu­
tas e perenes da nossa especie au de fracc,:oes dela. Surgem normalmente argumentos 
de duas fndoles: ou se sustenta que certos fen6menos sao regulados por leis naturals 
- sobretudo. de ordem psicol6gica . e, portanto, nao ha lugar para a relativizac,:ao 
imprescindfvel as expJicac,:oes cientffico-sociais, ou seja, nao ha lugar para pO-los em 
causa, presumi-Ios variiiveis, pelo contnirio ha que toma-Ios como dados estabeleci­
dos de uma vez para sempre; ou se sustenta que certos atributos nao sao redutfveis a 
abordagem em termos de estruturas e pn'iticas sociais, porque estao para Iii das deter­
minac,:oes sociais, nao se pOdendo, pois, constitui-los em objecto de analise cientffico­
-social. 
o trabalho de historiadores, ge6grafos, antrop610gos e sociologos tem-se des en­
volvido, em Jarga medida, na permanente "conquista" de novos dominios de estudo 
- isto e, na analise de propriedades e factos ate entao considerados como nao-ana­
lisaveis, porque universais ou naturais, Sao conhecidos dois celebres estudos hist6ri­
cos que mostram, precisamente, como, de urn lado, as normas de civilizagao, au se­
ja, de gestao do corpo, e, do outro, as regras da vida familiar e as atitudes face as 
crianc,:as, que tendemos a assumir como naturais e, portanto, absolutas. independen­
tes de qualquer contexto que nao seja 0 do "atraso" cultural- como elas sao tao re­
centes, e como 0 seu desenvolvimento se deveu a transformagoes s6cio-hist6ricas de­
terminantes (5), Mas uma tal abordagem, como a abordagem cientffica das tecnicas do 
ruptura com as interprelOfoes de tipo nalura/isla em ciencias sociais - relalOrio de uma au/a prtUica, 
Porto, Faculdade de Economia, 1984). Como 0 nwnerus clausus comec;:ou a ser implementado nesse 
ano lectivo, 0 peso da sua influtncia na estrutura da procura ainda ~ reduzido. Para 0 desenvcilvimento 
destas questiies cfr. tambem A. SEDAS NUNES, A Siluayiio Unlversilaria Porluguesa. Elementos pa­
ra 0 seu Estudo, Lisboa, Horizon!e, sid. e sobretudo JOSE MADUREIRA PINTO, "Epistemologia e 
didactica da sociologia", Revista Crflica de Ciencias Socials, n~ 14, 1984. 
(5) NORBERT ELIAS, Uber den Prozess der Zivilisation (Sobre 0 Processo da CivilizafiW), 
vol. I, l' ed., 1939 (com tradu~Oes francesa e ingJesa); PHILIPPE ARIes, L'Enfant ella Vie Familia­
Ie sous [,Ancien Regime, Paris. Pion, 1960 . 
FZW=? • 
39 38 AUGUSTO SANTOS SILVA 
corpo, da sexualidade, da religiao, da produ~ao artistica, etc. - tern sempre depara­
do com fortissimas resistt'!ncias, com base exactamente no argumento de que se trata 
de factos ou qualidades que estii.o para Ja das determina~es sociais. 
Assim, 0 discurso dominante, quer ao nivel do senso comum, quer mesmo ao ni­
vel de certa critica estabelecida, tende a pensar a competencia artistica como materia 
de "voca~ao", em que as praticas e as preferencias se devem ao puro prazer, ao "amor 
da arte", as incIina~oes individuais e "naturais" (no sentido de irredutiveis a qualquer 
determina~ao) das pessoas. Contudo, varios estudos sociol6gicos tern mostrado, por 
exemplo, a rela~ao entre 0 nivel de instru~ao, a categoria profissional eo nivel de ren­
dimento, por um lado, e a frequencia dos museus, por outro, e ainda a rela~ao entre 0 
gosto estetico e a posi~ao social (6). Evidentemente, a imagem da arte como puro pra­
zer ou amor irredutfvel forma urn vector axial da ideologia e da valoriza~ao profissio­
nal dos meios intelectuais e artfsticos - e eis af uma das mais fortes razoes da re­
sistencia as analises sociol6gicas, sempre tendencialmente desmistificadoras. 
Mas nao se trata, ainda aqui, de obswculos exteriores acomunidade cientffica. 0 
postulado da existt'!ncia de leis naturais e, portanto, de pressupostos absolutos e indis­
cutfveis e um postulado central de varias teorias. A melhor prova pode ser encontrada 
no campo de uma das primeiras disciplinas sociais a aceder ao estatuto de ciencia: a 
econornia. Os economistas, como se sabe, estao ha muito tempo bastante divididos 
quanto ao corpo de princfpios e pressupostos sobre 0 qual se deve constroir a teoria 
econ6mica. Ora, aqueles Jigados ainda ao paradigrna classico e neo-classico que 
em muitos contextos institucionais ocupam a posi~ao dominante nao se libertam 
de uma concep~ao a que keynesianos, marxistas e "heterodoxos" chamam de born 
grado naturalista. E, de facto, aqueles partem de postulados que supoem inerentes a 
condi~ao humana e universais (independentes decircunstancias de tempo, lugar e 
meio): todo 0 indivfduo seria urn ente racional, capaz de efectuar escolhas em fun~iio 
da maximiza~ao do seu proveito ou do seu prazer, em fun~ao, portanto, de calculos 
sobre a maiorou menor utilidade de talbem ou actividade. Em consequencia, grande 
parte dos economistas neo-chlssicos sustenta a universalidade das leis elaboradas na 
suposi9ao dessa racionalidade II natural" , e separa persistentemente 0 " econ6mico" eo 
social: assumindo que 0 "economico" e sempre autonomo ou autonomizavel e que as 
caracteristicas sociais (pol{ticas, culturais, etc.) constituem dados ex6genos, que 0 
economista aceita mas com que nao trabalha, os neo-classicos mais fervorosos fazem 
da clausula coeteris paribus 0 alfa e 0 6mega das suas constru~es conceptuais. Dar, 
por exemplo, 0 facto bern estranho de a ciencia economica dominante abandonar por 
completo aelucida9ao das condi~oes econ6rnicas de produ~ao das disposi~oes (como 
as "necessidades") que ela pr6pria postula. 
AIilis, a for~a com que hoje se subscreve ainda a teoria de Pareto que sugere a 
invariiincia da desigualdade de reparti~ao do rendimento, independentemente do esta­
(6) Cfr. PIERRE BOURDIEU e ALAIN DARBEL, L'AI1WIV de rArt. Les Musees Europiens et 
leur Public, 21 ed. rev., Paris, Minuit, 1968; PIERRE BOURDIEU, La Distinction., Paris, Minuit, 
1979 . 
..-..... ~----~~ 
) 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CIiJ:NCIAS SOCIAlS 
do de desenvolvimento da economia e do respectiv~ sistema politico - e bern urn in­
dicio seguro da permeabilidade a argumentos de tipo naturalista, ela mesma s6 expli­
cavel pela fun~ao ideologica que estes desempenham no corpo da doutrina, indi vidua­
lista e liberal, a que anda normalmente associado 0 paradigma neo-classico. 
3. INDIViDUOS E SOCIEDADE 
A critica dos mecanismos de naturaliza~ao dos factos sociais mostrou bern como 
as conce~6es de senso comum - 0 modo como se formam e se reproduzem, os 
seus conteUdos axiais - so podem ser cabalmente analisadas por referencia ~s prati­
cas, interesses e representa~6es ideologicas dos gropos sociais. Por isso mesmo, jus­
tificar a permeabHidade das ciencias sociais aos obstaculos epistemo16gicos contidos 
em muito conhecimento corrente invocando apenas a "juventude" daquelas; a qual 
nao teria ainda permitido a com pieta especializa~ao e elabora~ao "cientffica",eignorar 
o essencial. Aconsistencia e a eficacia desses obsraculos sao socialmente deterrnina­
das, quer dizer, estao relacionadas com a for~a dos contextos e dos gropos que os 
produzem. 
As interpreta~oes do saber pratico tendem a ser unitarias. Distinguir uma compo­
nente "naturalista" e Dutra "individualista" constitui uma op~ra~ao um pouco arbitra­
ria, porque distingue 0 que de facto anda bastante combinado: A justifica~iio de dadas 
condutas por razoes, leis, naturais implica quase senipre - salvo nos casos extremos 
de cren!;!a em determina90es metassociais absolutas, comqp6rexemplo iP1posi~oesdi­
vinas - apresenra-Ias como frotos de vontades e decisoes individuais. ~ 
Trata-se, porem, de uma distin~ao muito util, em termos logicos e de exposi~ao. 
Sobretudo porque, ao contrario do "naturalismo", que surge mais como concep~ao di­
fusa do que propriamente representa~ao ideol6gica precisa (ate porque as ideologias 
em que ele ocupava lugar-chave, domfnantes nos regimes pre-liberais, foram ultrapas­
sadas pelas sociedades modemas - embora ressutjam com subtileza e alguma ironia 
nos pa{ses do Leste europeu, em que 0 Estado e mesmo "leis" hist6ricas aparecem co­
mo entidades supra-historicas), 0 individualismo constitui uma matriz ideologica de­
cisiva do mundo contemporaneo. 
No seculo XIX, a burguesia liberal usou 0 utilitarismo e 0 individualismo como 
bandeiras e armas doutrimirias para a implanta~ao do sistema politico e economico li­
beral. Nesse contexto, a ideia de que a sociedade e um agregado de indivfduos singu­
lares e de que a prossecu~ao dos seus interesses por parte de cada urn deles serve de 
melhor garantia para a harmonia coiectiva, funcionou como postulado central. Nao s6 
do senso comum e da filosofia politica - mas tambem, e coerentemente, de teorias 
cientfficas. 
De novo, 0 recurso aeconomia dar-nos-a uma ilustra~ao exemplar. Ea liga9ao es­
41 40 AUGUSTO SANTOS SILVA 
treita entre as teorias chissicas e neo-chissicas e 0 liberalismo politico que explica a 
assun~ao pelas primeiras, como axiomas indiscutlveis, dos pressupostos indivi­
dualistas. 0 homo axonomicus e 0 agente racional, que calcula os seus actos em 
fun~ao do prazer e da utilidade que deles pode retirar; a analise global do circuito ma­
cro-econ6mico deveria panir das escolhas individuais e estas seriam intermutaveis­
quer dizer, para la da distin~iio empresario/consumidor, nenhuma rela~iio assimetrica 
entre pessoas, de estatuto, de etnia, de sexo, de cultura, etc., interessaria ao econo­
mista. 
Ha ainda outra dimensao que importa reter. 0 que esta em causa e, enfim, nao s6 
'3. nossa resistencia (de "senso comum", se quiserem) a perceber em toda a amplitude 
a rela~ao entre indivlduos e sociedades mas tambem as nossas dificuldades (de 
"especialistas") em esclarece-la. Nao se trata, pois, como ja nao se tratava com 0 "na­
turalismo", de uma maleita de leigos que nao ouvem as expJicaqoes dos sabios, mas 
de algo bern mais fundo, que atravessa uns e outros. A melhor prova pode ser encon­
trada, a contrario, no modo como, em sociologia, da tradiqao durkheimiana ao estrutu­
ralismo, se tern procurado resolver 0 problema pela evacuaqao do actor do objecto da 
analise, actor quase reduzido a mera consequencia de determinismos sociais que esca­
pam asua consciencia. 
Tudo aconselha, assim, a que desdobremos a nossa an~mse em dois pontos. Pri­
meiro, tentaremos perceber como, do ponto de vista das ciencias sociais, epossivel 
encarar a dialectica entre acqao individual e determinismos sociais, e ultrapassar os 
preconceitos ideol6gicos a esse proposito. Depois, situar-nos-emos no ambito das 
pr6prias disciplinas sociais, e tomando como ilustraqao 0 triangulo psicologia - so­
ciologia - pSicologia social, mostraremos a persistencia da questao e algumas ramifi­
caqoes ideologicas nas teorias ciennficas. 
Formas de individualismo extremo conduzem, como e logico, acontesta~iio da 
propria existencia de ciencias sociais. Se so os indivfduos sao "reais" - enta~, e nas 
palavras de A. Sedas Nunes, a sociedade sera "apenas wn conjunto de pessoas, todas 
individualizadas, singulares, diferentes umas das outras, agindo e inter-agindo de 
acordo com ideias, interesses, sentimentos, aspira~oes, motiva~oes que se considera 
serem-lhes 'imanentes' e tomando a cada passo 'decisoes' que se sUpOe resultarem 
unicamente do seu proprio livre-arbftrio" (1). A analise em termos de regularidades e 
determinismos sociais estaria assim prejudicada,quer Iogicamente - os sujeitos se­
riam de todo em todo diferentes uns dos outros -- quer eticamente - visto que Ie­
varia adeprecia~ao da liberdade humana. 
Trata-se, claro; de urn caso-limite, embora periodicamente ressUlja com alguma 
for~a em atitudf;s de senso comum face as expIicaqOeS cientfficas. A forma mais cor­
rente nao nega a necessidade e a validade generica destas - mas procura restringir a 
todo 0 custo 0 seu aIcance. Quatro argumentos centrais sao invocados, no contexto 
de uma tal concepqao. Primeiro: ha certamente regularidades observaveis aescala 
supra-individual - mas elas sao hom610gas as observaveis aescala individual; a 
.(7) A. SEDAS NUNES, Sobre 0 Problema do Conhecimento... , ob. cit., p. 9. 
) 
I'. 
;
{'I 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CIENG1AS SOCIAlS 
~l 
11 
expIicaqao sociol6gica ou economica deve ser, pois, obtida atraves da extrapolaqao de 
" 
atributos "individuais" ou, pelo menos, tomando-os por base de fundamenta~ao. Em 
"j')f segundo lugar, e porconsequencia, as regularidades que caracterizam a colectividade 
\', (e a que cada agente esta, na verdade, de algum modo sujeito) representam 0 produto 
'I combinado das ac~6es individuais e das interac¢es (inter-indivi(.luais) - (jnicos vec­
I 
!f tores dimlmicos admitidos. Ora, tais ac~6es sao, ao nivel pessoal, livres e orientadas 
1 pelas motivaqoes, interesses e aspiraqoes, pelas "ideias" dos actores.Terceiro: de en­
tre essas a~oes, import a salientar as dos Hderes (dos sujeitos que, por natureza psi­
1 
cologica ou por posi~ao no grupo, conduzem os movimentos colectivos) - e, corre­
lativamente, importa tambem centrar a aten~iio nos sistemas de ideias, elaboradas por 
pensadores ou ideologos, que desempenham uma identica fUll!(iio motora ao nfvel das 
aspira¢es e expectativas dos individuos. Por(jltimo, tudo isto implicaria que as expli­
caq6es cientffico-sociais, seguramente validas, teriam contudo urn aIcance limitado: 
porque deveriam conformar-se as leis psicologicas; porque nao seriam deterministas; 
porque urn certo mlmero de caracterfsticas relevantes da condi~ao humana, indepen­
dentes do contexto social, lhes escapariam. 
Como se ve, em jogo continua a estar 0 velho e talvez etemo problema da rela~iio 
) entre indivfduos e colectividade. As ciencias sociais nao pretendem resolve-1o, nas 
i\ suas dimensoes filos6ficas, eticas ou religiosas. Mas nao podem aceitar, do ponto de 
·1':1 vista dos seus postulados te6ricos (quer dizer, ao fim e ao cabo, daquilo que lhes per­
mite construir os seus objectos de amHise), submeter-se a 16gicas de registo diverso, 
nao-cientffico, a imposiqoes directamente ideologicas ou doutrinarias. Por isso mes­
mo, nenhum daqueles quatro argumentos-que constituem 0 esqueleto das interpreta­
¢es individualistas e psicologistas do social-e admissfveL 
E desde logo porque a questao de fundo esta mal posta. A analise social seja 
historica, antropologica, geografica, psicol6gica, economica, lingufstica, sociol6gica, 
estetica, etc., etc. - nao epura nem automaticamente a analise dos "factos colecti­
vos". Individuos e sociedade nao sao realidades separaveis (a nao ser, decerto,logica­
mente) de tal modo que se pudesse estudarum dos termos evacuando °outro - abor­
dar 0 indivfdu9 independentemente do supra-individual (tenta~ao do psicologismo) 
ou a sociedade omitindo a ac<;ao intencional dos sujeitos (risco do sociologismo). 
Mais: nem sequere muito rigoroso sugerir-se, como 0 fazem as crfticas "doces" do in­
dividualismo que acabam por nao romper com ele, que 0 actor deve ser integrado no 
"meio social ambiente" - os indivfduos biologicos sao actores precisamente porque 
siio ja indivfduos (corpos) socializados. Nas palavras de Pierre Bourdieu: "A socieda­
de existe sob duas formas inseparaveis: de urn lado as instituiq6es que podem revestir 
a forma de coisas fisicas, monumentOS,livros, instrumentos, etc.; do outro, as dispo­
siqoes adquiridas, as maneiras duradouras de ser ou de fazer que encarnam nos cor­
pos [ ... J. 0 corpo socializado (0 que se chama indivfduo ou pessoa) nao se opOe aso­
ciedade: e uma das suas formas de existencia" (8). 
(8) PIERRE BOURDIEU, Questions de Sociologie, Paris, Minuit, 1980, p. 29. 0 autor designa 
esses sistemas de disposi~6es por habitus. Para ele, 0 habitus e 0 elemento conceptual que articula 
estruturas e prAticas, condi~6es e condutas. 
"ZP 
I 
42 43 
) 
AUGUSTO SANTOS SILVA 
A dualidade actor/sistema e pois ultrapassavel, por analises que possam dar con­
ta combinadamente dos dois pol os. Os soci610gos tern desenvolvido bastante esta li­
nha te6rica. Vejamos, por exemplo, como Anthony Giddens se propoe resolver a 
questao. A sociologia, diz ele, estuda as formas de produ9ao e reprodu9ao da socieda­
de. Ora, isso esta longe de ser urn processo meciinico: e outrossim 0 resultado com­
plexo da acr;iio acriva dos seus membros. Mas, por sua vez, esta aC9ao nao e indeter­
minada, nao e realizada em condi90es escolhidas pelos sujeitos. A reprodu9ao de uma 
serie de praticas e que garante a estrutura9ao das estruturas; s6 que, se as estruturas 
se constituem, assim, atraves da aC9ao, esta, por seu turno, s6 se constitui nas con­
di90eS fixadas por aquelas. Quer dizer, "as estruturas surgem como consequencia e 
condi9ao da Produ9aO da interac9ao" (9). 
Estamos ja longe da interpreta9ao em termos de simples comportamentos inqivi­
duais ou inter-individuais. E longe, tambem, da tenta9ao sociologista de evacuar 0 su­
jeito e a aC9ao intencional do objecto de analise. Na nova hist6ria poderemos encon­
trar exemplos bern ilustrativos desta dupla supera9ao. Tendo abandonado os velhos 
esquemas oitocentistas que conferiam aos her6is e aos Ifderes a dinamica hist6rica e 
aos factos uma singularidade irredutfvel a qualquer explica9ao cientifica; mas pondo 
ainda em causa 0 paradigma que imediatamente Ihe sucedeu e que induzia a atender 
exclusivamente as estruturas, aos movimentos de longa dura9ao, a "hist6lia imovel" 
- os mais recentes especialistas tern procurado uma analise capaz de integrar factos 
umcos e regularidades, acontecimentos e estruturas, condutas intencionais, determi­
na90es estruturais e os efeitos do acaso. 
Assim, 0 velho argumento de que a explica9ao cientffica nega 0 livre-arbftrio e a 
autonomia da aC9ao individual s6 faz sentido para os que concebem a ciencia segundo 
os parametros de determinismo absoluto ha muito ultrapassados - nas disciplinas so­
ciais como nas ffsicas. Numas como nas outras, as leis sao da ordem da probabilida­
de, 0 determinismo que invocam e urn determinismo estocastico, cabe falar do acaso 
para todas. 
Por outro lado, a considera9ao das condutas nao equivale, longe disso, a aceitar 
a racionalidade del as. 0 pressuposto central da teoria neo-chissica em economia, so­
bre a racionalidade das escolhas individuais, e a teoria do valor-utilidade sao anterio­
res as descobertas da psicologia e da psicanalise no nosso seculo - que sublinham a 
importiincia·decisiva dos elementos subjectivos, afectivos, "irracionais", de conduta. 
Hoje, estas descobertas representam dados adquiridos - e face a eles as concep90es 
de senso comum, herdeiras no caso do Iluminismo, sobre a soberania do indivfduo 
esboroam-se rias pr6prias bases em que se apoiavam, isto e, na analise das aC90es in­
dividuais. . 
Nao faz, portanto, qualquer sentido adoptar uma ultima sugestiio corrente para a 
divisao de "territ6rios" entre ciencias sociais e pretensas disciplinas "individuais". Do 
mesmo modo que seria absurdo distinguir as condutas ou mesmo as caracterfsticas su­
(9) ANTHONY GIDDENS, New Rules ofSociological Method. A Positive Critique of InJerpreta­
tive Sociologies, reed., Londres, Hutchinson, 1977, p. 157 (I' ed.; 1976). 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CIBNCIAS SOCIAlS 
roam-se nas pr6prias bases em que se apoiavam, isto e, na analise das aC90es indivi­
duais. 
Nao faz, portanto, qualquer sentido adoptar uma ultima sugestiio corrente para a 
divisao de "tenit6rios" entre ciencias sociais e pretensas disciplinas "individuais". Do 
mesmo modo que seria absurdo distinguir as condutas ou mesmo as caracterfsticas su­
postamente devidas apenas a determinantes biol6gicas das devidas a determinantes 
culturais, tambem 0 seria reservar atributos ou factos exclusivamente aos processos 
intra-individuais. 
Abordemos, como ilustra9ao, urn problema em rela9ao ao qual sao claras a 
eficacia e a necessidade - em termos de racionaliza9ao dos comportamentos e da con­
versao das probabilidades objectivas de sucesso em esperan9as subjectivas - das in­
terpreta90es de senso comum: 0 problema da genese e desenvolvimento diferencial da 
inteligenda e, nomeadamente, a sua rela9ao com 0 sucesso escolar. As concep90es 
correntes combinam, decerto, argumentos de tipo naturalist a e individualista: a carrei­
ra escolar teria a ver com a inteligencia e as "capacidades" de cada aluno, e a inte­
ligencia seria urn "dote", urn "dom natural" (muitas vezes imputado apenas aheredita­
riedade). Ora, a for9a de tais interpreta90es - que tendem, portanto, a considerar 
que a inteligencia esm para la do objecto possfvel da analise social- deve-se as suas 
fun90es simb6lico-ideol6gicas, visto que carecem de qualquerfundamenta9ao cientffi­
ca. Desde logo, em psicologia, 0 principal estudioso do desenvolvimento intelectual, 
Jean Piaget, considerava que este se devia a quatro ordens de factores: a matura9ao 
do sistema nervoso;a experiencia adquirida pela aC9ao sobre os objectos; os factores 
sociais - a linguagem, a interac9ao e a coopera9ao grupal, a educa9ao familiar e esco­
lar; os mecanismos de "equilibra9ao", "auto-regula9ao", postos em prlitica pelas crian­
9as (Piaget fala, como se sabe, em termos de psicologia genetica). No quadro de uma 
tal conceP9ao construtivista e interaccionista, psic610gos sociais tern desenvolvido 
pesquisas sobre 0 papel causal desempenhado pela interac9ao social, sustentando, evi­
dentemente, que se trata de uma causalidade nao unidireccional, mas" circular e Pro­
gredindo em espiral" (10). 
A iSlo se acrescenta a investiga9ao em sociologia da educa9ao que mostra a evi­
dencia as regularidades que pautam 0 insucesso escolar (fen6meno massivo, constan­
te, precoce, cumulativo ... ) e as fortes correla90es entre insucesso e origem social; par­
tindo para uma analise que 0 considera como resultado de uma rela9ao negativa entre 
alunos, portadores de divers as condi96es s6cio-culturais, e a institui9ao escolar. Ne­
ste quadro, 0 estudo aprofundado e relacional dos estudantes, das suas personalida­
des e hist6rias pessoais, das famflias e meios respectivos, da escola e do sistema de 
ensino em geral, das prliticas educativas, constitui uma abordagem central - inco­
mensuravelmente distante porqlle qualitativamente distinta das interpreta90es corren­
(10) "A interac~ao permiteao indivfduo dominar certas coordena~1ies que Ihe permitem entao par­
ticipar em interac~oes mais elaboradas que por seu tumo se tomam fonte de desenvolvimento cognitivo 
para 0 indiv!duo" - WILLEM DOISE, L'Explication en Psychologie Sociale, Paris, P.U.F., 1982, 
pp.63-64. 
aR!iiIii & *MjMM en r=n 
44 45 AUGUSTO SANTOS SILVA 
tes de senso cornum, e que psic6logos. psic6logos sociais e soci610gos (e tambem 
historiadores ou economistas) enriquecem, a partir das perspectivas, diferentes, que 
Car'dcterizam as suas disciplinas. 
Falamos de psic610gos, psic610gos sociais e soci610gos. E vamos aproveitar 0 
triangulo algo conflituoso que eles formam para, na linha de exposic;ao te6rica que 
adoptamos, mostrar rna is uma vez que seria uma Huslio nefasta pensar que as ciencias 
sociais ultrapassaram j a cabal mente os pressupostos e preconcei tos mais caracteristica­
mente ideol6gicos e de senso comum - porque estes tendem. por razoes sociais, 
institucionais e te6ricas precisas, a ressurgir com frequencia e por varias vias na prati­
ca cientifica. Ou seja, a ruptura 000 e urn processo feito de uma vez portodas, euma 
atitude e urn trabalho de vigilancia crftica e construC;iio conceptual permanente. 
Quando a sociologia se constituiu como disciplina universitaria, nos finais do 5e­
culo XIX, a divisao consagrada do saber atribuia ap5icologia 0 estudo das dispo­
sic;oes - motivac;oes. atitudes, intenc;oes, emoc;6es ... - caracterfsticas do homem, 
e dos actos que elas comandavam. Parecia, pois, que competia a psicologia estabele­
cer as regularidades comportamentais em que se baseariam as amilises das escolhas ra­
cionais de bens e servic;os a economia -, dos factos e das ideias passadas - a 
hist6Iia das tradic;oes e costumes populares -;- a etnografia. 0 principal promotor 
do acesso da sociologia a dignidade academica, Emile Durkheim, teve de colocar-se 
numa postura radicalmente anti-psicologista. ate porque ambicionava, para asua espe­
cialidade, 0 mesmo tipo de totalitarismo anal{tico que invocavam os psic610gos. 
A polemica que estalou niio conheceu ainda fim. De urn lado, os que sustentam 
que as di~ncias sociais devem partir das regularidades verificaveis pelo estudo dos 
processos intra e inter-individuais, e se estribam assim nUma pretensa soberania do in­
divfduo; do outro, os que defendem que tais regularidades s6 podem ser apercebidas 
pela analise dos factos e instituic;oes sociais, porque nestes se concentram as causas 
determinantes das condutas pessoais. Quer dizer que nos meios especiaJizados encon­
tramos urn debate em tudo identico as querelas filos6ficas, ideol6gicas ou de senso 
comum em tome do individuo e da colectividade. Vimos ja como esta dualidade tinha 
de e podia ser ultrapassada. So que, do ponto de vista institucional em virtude dos 
interesses e compromissos que se perfilam pordetras da divislio academica da investi­
gac;lio social em varias disciplinas - as resisrencias sao enormes. 
Assim, muitas vezes se define a sociologia como 0 estudo das sociedades huma­
nas e se constroi sobre a definic;ao urn imperio ao qual se submetem a hist6ria, a an­
tropologia, a demografia e ate a economia e a propria psicologia. A tradic;iio durkhei­
miana vai neste sentido, e ja vimos 0 prec;o que ela paga por isso: a evacuac;iio dos 
actores sociais do objecto de analise. Por sua banda, os psic6logos costumam definir 
a sua disciplina como a deseric;ao e a explica9ao (de forma verificavel) das condutas 
dos organismos - 0 que permite posturas analogamente hegemonistas. 0 que parece 
caracterizar a psicologia, entre tanto, e que ela situa a sua abordagem te6rica ao nivel 
individual e privilegia os metodos experimental e cUnico. Contudo, 0 que entender 
por "nivel individual"? Desde logo, individual aqui niio e 0 "unico" trata-se de 
) 
A RUPTURA COM 0 SENSa COMUM NAS ClliNCIAS SOCIAlS 
uma pratica cientifica e 0 que em cada individuo e estritamente linieo eai fora do 
domfnio da ciencia. Depois, trata-se da analise de eond1.!tas, ou seja, de acc;oes dota­
das de sentido, que integram elementos de varia sorte, racionais e "irracionais", inte­
lectuais e emotivos, pessoais e relativos a grupos e eulturas. E ainda: qualquer in­
dividuo e, por definiglio, actor social. . 
Por isso mesmo, os psic610gos mais consequentes (na perspectiva te6rica deste 
texto) sublinham 0 Iugar de charneira da sua ciencia, insistindo em que ela constante­
mente se cruza com a biologia - e dai a psicofisiologia e com a sociologia;- daf 
a psicologia social. S6 que a ambiguidade e os equfvoeos nao acabam aqui. A co­
mec;ar pel a propria designac;ao: psicologia social ou sociologia dos actores, psicosso­
ciologia ou sociopsicologia? Na obra de sfntese ja citada, Willem Doise prop6e que 
se distinga, face a uma realidade complexa e liniea, quatro mveis te6ricos: 0 mvel in­
tra-individual (quer dizer. 0 estudo do modo como 0 indivfduo estrutura a sua expe­
riencia do meio social): 0 mvel inter-individual e situacional (estudo dos processos 
que se desenrolam entre individuos considerados como intermutaveis); 0 nfvel posi­
cional (que tern em conta as diferenc;as de estatutos e de posic;oes sociais); 0 nivel 
"ideoI6gico" (que integra na analise as representac;oes, crenc;as, valores e normas co­
lectivos). Nao se contestando. claro, a pertinencia de cada um destes mveis, 0 objee­
to proprio da psicologia social seria a sua articulac;iio. 
S6 que as correntes domtnantes na psieologia social, sobretudo nos Estados Uni­
dos (palS em que mais se desenvolveu a disciplina), tem-se limitado aamllise dos 
dois primeiros niveis e tern pretendido explicar as dinamicas sociais a partir deles: 0 
que e, ao fim e ao cabo, incorrer em interpretac;oes de tipo individualista. E, de facto, 
procuram substituir a investigac;ao sociol6gica pelo que design am de "estudo psi­
col6gico dos factos sociais" 0 que no limite significaria regressarmos asitua9ao 
academica anterior a institucionalizac;ao da sociologia. 
4. N6s E OS OUTROS 
A palavra "etnocentrismo" foi introduzida nos prindpios do nosso seeulo e tem 
servido para designar duas atitudes intimamente relacionadas: a sobrevaloriza9ao do 
grupo e da cultura, local, regional, nacional ou transnacional, a que pertencem os su­
jei:tos -ea correlativa depreciac;iio das culturas e das organizac;oes sociais diferentes; 
a universalizac;ao dos val ores proprios do grupo e da cultura de pertenc;a, assumindo 
que esses valores consti tuem as normas de referencia para a 'avaliac;ao de estruturas e 
prnticas sociais diversas. 
No fundo, trata-se de uma maneira de entender a rela9ao, decisiva atodos os 
nfveis de aC9ao e interacc;ao, entre 0 "eu", ou rnais precisamente, 0 "n6s" definidor da 
46 47 
) 
AUGUSTO SANTOS SILVA 
identidade de urn certo grupo, classe, etnia, na9Ao puarea civilizacional, e os "ou­
tros" os outros gropos, classes, etnias, na!roes, civiliza!roes. De entende-la como 
rela!riio de poder. A acti vidade etnocentrista e a afirma!rao legitimadora, muitas vezes 
inconsciente, do dominio afirma!rao no plano do conhecimento e da representa!rao 
simb6lica.O seu mlcleo nao esta, alias, em rigor, na ostenta!rao imediata da superiori­
dade social ou nkica mas, mais subtilmente, na opera!rao de fechamento do que e 
cognoscfvel, no pressuposto de que 0 que vale a pena conhecer e, portallto, 0 que ser­
ve de padrao tinico para 0 conhecimento. dos outros, sao os factos e as ideias interio­
res anossa propria area cultural, ao I n6g" que e0 nosso. 
Dai a ambiguidade da rela!riio corrente com 0 etnocentrismo - talvez se possa ate 
dizerque este constitui 0 obsticulo cuja supera!rao,mais vezes se tern anunciado e cuja 
ressurrei!rao, em variados registos e ocasioes, emais regular. De entrada, dos tres ti­
pos de interpreta!roes que temos vindo a analisar. ele e 0 que, quanto a declara!roes 
formais, mals consenso desperta. Se os defensores de posturas naturalistas e/ou indi­
vidualistas sao numerosos e a si pr6prios se reconhecem como tals, a atitude etnocen­
trista epor norma estigmatizada, pela invoca!rao de valores humanistas. 
Por outro lado, a hist6ria surge como urn reposit6rio de exemplos da crueza 
inadmissfvel das formas mais extremas de etnocentrismo 0 racismo, 0 fanatismo 
religloso, 0 genocfdio colonial. A independencia polftica da generalidade dos pafses 
do Terceiro Mundo, 0 fim do colonialismo, em sentido restrito, a crescente afirma!rao 
geoestrategica do hemisferio SuI crescente em termos de longa dura!rao, claro 
tudo parece indicar que 0 domfnio das na!r6es industrializadas sobre 0 mundo em vias 
de desenvolvimento, que havia constitufdo 0 principal cadinho do etnocentrismo mo­
demo, esta em transforma!rao. 
Os mais avisados sustentam, contudo, que nao se deve restringi-lo as suas for­
mas hist6ricas particularmente extremas ou evidentes - e sobretudo, que nao se de­
ve restringi-Io aos aspectos politicos. Porque a domina!rao poHtica, econ6mica, cultu­
ral, e a imposi9iio de valores alheios a popula!roes dominadas prosseguem para hi da 
independencia formal. Porque mesmo as expressoes mais violentas de etnocentris­
mo, longe de constituirem exclusivo das rela!roes inter-civilizacionais, persistem nas 
rela!;oes intra-civilizacionais-porexemplo, nas rela!r6es entre as na!r6es desenvolvi­
das da Europa do Norte e as da periferia sulista. Porque cabe falar tambem de "etno­
centrismo" par~ as rela!;oes entre grupos diferentes da mesma sociedade os so­
ci610gos falam de etnocentrismo de c1asse para caracterizar as expressoes simb6licas 
e cognitivas da domina!;ao da c1asse: e qualquerinvestigador em trabalho de campo 
sente bem os seus,efeitos. 
Mas faz-se ainda necessario avan!;ar um pouco mais. Do ponto de vista da pro­
du!;ao de conhecimentos cientfficos sobre a realidade social- que e0 que aqui nos 
interessa - cumpre sublinhar que as obstaculos mais pertinazes se encontram com 
frequencianas formas nao elaboradas e inconscientes de etnocentrismo. Erelanva­
mente jticil contrariar e superar 0 racismo, 0 fanatismo, 0 colonialismo, 0 c1assismo 
que se apresentarn explicitamente, como atitudes ideol6gicas e teses doutrinarias. 
Mase mais diffciI contraria-Ios quando surgem de forma impHcita, quer dizer, nao 
1 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CltNCIAS SOCIAlS 
sao assumidos nem elaborados, mas representam disposi!r6es duraveis a fechar 0 
campo do cognoscfvel. A propensiio para 0 etnocentrismo constitui, ao myel do sen­
so comum, um factor de ictentifica!;iio do grupo, do "nos", urn vector de legitima!;ao 
da domina!;iio, um instrumento decisivo da luta simb61ica entre os gropos. Ora, a for­
ma tipicarnente etnocentrista de pensar por preconceitos - por ideias-feitas, que se to­
rna por absolutas, indiscutfveis, inavaliaveis pela analise cientffica -, preconceitos 
de totia a especie, de ra!;a, de sexo, de dasse, de profissao, de religiao, de civiliza­
!;ao, representa um obstaculo no qual constantemente trope!;am os cientistas sociais: 
ate porque tem por si a ilusao da transparencia do que nos e familiar, do que e "nos­
so", constitutivo da nossa identidade de grupo. Finalmente, podera sugerir-se que 0 
etnocentrismo - essa resistencia a assumir que a rela!;ao entre "n6s" e os "outros" 
contem dois p610s igualmente dinamicos, esse fechamento do "n6s" sobre si pr6prio 
- para la de estarintimamente articulado com os postulados de indole naturalista e in­
dividualista (0 que e claro), estara na sua base. 0 que e 0 "naturalismo" corrente se­
nao a tentativa de absolutizar os valores constitutivos da identidade de certos grupos, 
de os impor como a "natureza humana" e correlativamente postular a fatalidade 
dos valores "negativos" dos grupos que dominamos? E 0 que e 0 "individualismo" se­
nao a imposi!;ao, como tinieo quadro posslvel de referenda, da ideologia que 0 Oci­
dente industrializado consagrou? 
Quando se fala da permeabilidade das ciencias sociais ao etnocentrismo ocorrem 
sempre os exemplos conhecidos da hist6ria e da antropologia. Estlldando culturas di­
ferentes da nossa (ocidental contemporanea), diferentes porque situadas noutras coor­
denadas de tempo (caso da historia) ou de lugare "estadio de evolu!;ao" (para a antro­
pologia), as duas disciplinas eram constantemente presas do etnocentrismo. 
Os historiadores preocupam-se especifi,camente com 0 anacronismo - 0 seu "pe­
cado capital", como dizia Lucien Febvre. Caimos no anacronismo quando analisamos 
uma epoca projectando nela os quadros mentais da nossa, quando aplicamos os nos­
sos conceitos sem curar de testar a sua adequa9ao it especificidade da sociedade que 
estudamos - quando, portanto, postulamos uma natureza humana universal cujas 
propriedades seriam as normas e os usos da civiliza!;ao em que vivemos, e postula­
mos um,a grade conceptual, um con junto de instrumentos heunstieos e interpretativos 
de aplicabilidade igualmente universal. 
Aten9ao, porem: confunde-se bastantes vezes a compara!;ao, 0 confronto inter­
-epocal com 0 anacronismo; ou diz-se que, como a hist6ria parte sempre do presente, 
das duas uma - ou nao se faz qualquer compara!;iio e teoriza!;ao, ou 0 anacronismo 
toma-se inevitaveL 0 argumento e, alias, estendido a todas as formas de etnocentris­
mo - a tinica supera9ao poss{vel seria a ausencil!: de compara!;ao e teo ria. Nada mals 
falso. A analise hist6rica implica, por defini!;ao, 0 dialogo do presente e dos seus va­
lores, por via do historiador, com 0 passado - mio hli outro ponto de vista. Ela par­
te, portanto, de valores que nao sao, geralmente, os das sociedades que indaga, e usa 
instrumentos conceptuais de produ!;ao sempre recente. Se isto faz perfilar, de imedia­
to, 0 anacronismo como obstaculo, nao obriga a calr nele - porque calr nele signifi­
48 49 AUGUSTO SANTOS SILVA 
ca (e apenas) ignorar a relatividade dos contextos sodais e querer explicar uns pela 
proje~ao de conceitos s6 validados para outros (II). 
Da antropologia sabe-se (e 0 leitor recorrenl ao capItulo VI do volume para mais 
desenvolvimentos) como, ate bem entrado 0 nosso seculo (e, porventura, em alguns 
casos ainda agora), ela balangou entre 0 olhar romiintico sobreo "selvagem" ex6tico 
e os servigos prestados 1Is administrac;:oes coloniais. Durante longas decadas, foi, as­
sim, 0 estudo dos "primitivos", daqueles que 0 evolucionismo colocava flO esr.adio 
mais elementar - e barbaro - do processo civilizacional que teria culminado na cul­
tura europeia e norte-americana; desses "selvagens" que, numa exemplarpostura etno­
centrista (que, alias l viria a abandonar), Levi-Bruhl dizia possuirem uma mentalidade 
"pre-Iogica" (porque, assumindo apenas uma relac;:iio de "participac;:iiomfstica" com 
os objectos, ignoravam os princfpios de causalidade e de contradic;:ao constitutivos 
do nosso raciodnio 16gico). Tese cuja falsidade variadfssimas pesquisas se encarrega­
riam, evidentemente, de demonstrar. 
Se, historicamente, antropologia e hist6ria foram das disciplinas sociais mais per­
meaveis ao etnocentrismo........:. contudo, elas representam tambem instrumentos decisi­
vos para a ruptura com ele. Nao ha, aqui, contradic;:ao. Estudando, por definic;:ao, cul­
turas alienfgenas, os riscos de perrneabilidade aumentam - mas cresce ainda a possi­
bilirlade de mostrar analiticamente a relatividade dos contextos sociais e contrariar, 
assim, a universalizac;:iio de val ores eo fechamento do campo de conhecimento carac­
tensticos da atitude etnocentrista. 
Para mostra-Io, recordemos um debate ja chlssico da ciencia econ6mica em que a 
contribuic;:ao da hist6ri!\ e da antropologia econ6micas se revelou exemplar. A questiio 
de fundo era esta: a "teoria econ6mica" -querdizer, 0 corpo de conceitos, substanti­
vos e processuais, construfdo na Europa moderna pela analise das econornias Jiberais 
e industriais 11 maneira inglesa -sera de aplicabilidade universal? A resposta tradicio­
nal dos neo-cllissicos era positiva: ou, melhor dizendo, para eles esta questiio nao fa­
zia senti do. Sendo a economia. de acordo com a celebre definic;:ao de Lionel Robbins, 
Ita ciencia que estuda 0 comportamento humano como uma relac;:iio entre fins e meios 
escassos com usos alternativos" 0 modelo te6rieo que construia partia de postula­
dos universais, a respeito das motivac;:6es basicas e das consequencias da acc;:ii.o huma­
na em situagao de escassez, e princfpios deri vados desse modelo poderiam ser aplica­
dos a qualquer regime econ6mico. Embora os ke)mesianos abandonassem ja a ideia 
de uma teoria econ6mica, global e coerente, foram os antrop6logos, historiadores e 
economistas do desenvolvimento quer dizer, especialistas de forrnac;:Oes econ6mi­
cas nao-industriais (pelo menos 11 nossa maneira) - que colocaram a questao, respon­
dendo-lhe pela' negativa, em ruptura clara com a economia classica e evidenciando 0 
etnocentrismo nesta implicado. 
(11) Para dar 0 exemplo mais celebre: no seu Le Probteme de /'Incroyance au 16eme Siecie.LaRe­
tigion de Rabelais (Paris, Albin Michel, 1942), Lucien Febvre parte em crozada contra a imagem feita 
de que Rabelais teria sido urn ateu, urn precursor dos livres-pensadores - mostrando, justamente, co-' 
,\1100 conccito de atefsmo carc:ce de sentido para 0seculo XVI, que a descren~a nele evidenciavel Dada Ii­
nha de anal9go com a do racionalismo contemporaneo. 
) 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS CIitNCIAS SOCIAlS 
A "teoria,econ6mica", argumentam, consolidou-se na analise de casos em que. 
em virtude da acc;:ao do mercado, a economia se encontrava desvinculada da estrutura 
social, em que, portanto, se tornava legitimo. ate certo ponto, separar 0 econ6rnico 
do nlio-econ6mico. Ora, essas economias constituern uma excepc;:lio. urn caso espf:'­
cial: regra geral, "a economia do homem encontra-se submergida nas suas rela¢es so­
ciais", nas palavras de Karl Polanyi. Por isso mesmo, seria impossivel estudar as eco­
norriias pre-industriais por mera transposic;:ao dos conceitos e proposic;:oes validados 
na analise da industrializac;:iio. A niio sec que queiramos, como dizia ironicamente 0 
antrop610go Melville Herskovits em 1940, acreditarem leis que constituem "uma me­
dia estatfstica baseada,num upico caso" (12). • 
Niio se pense, contudo, que a propensiio a universalizar os nossos quadros men­
tais e a avaliar outras forrnas de conduta tomando-os por padr6es de referenda e forte 
apenas na analise das economias hist6ricas ou "primitivas". No estudo das econo­
mias camponesas e sobretudo nas questoes ligadas ao desenvolvirnento, economistas 
e soci610gos correin constantemente 0 risco de assumir consciente ou inconsciente­
mente preconceitos etnocentristas. 0 debate sobre a aplicabilidade dos modelose das 
polfticas ensaiadas no Norte industrializado as (diversas) situac;:6esdo hemisferio 
Sui, constitui um dos grandes debates cientfficos da actualidade (13). 
(12) Para mo~trar como as aC'i6es especificamente ccon6micas estao, nas sociedades pre-liberais, 
combinadas com condutas de parada, relaltiies sociais, redes de alian~as poifticas, motivalt0es e normas 
reIigiosas, etc. - e, assim, nao se pode falar em rigor de "aclt6es especificamente econ6micas" j e co­
mo os prlncfpios e as regras de comportamento econ6mico a que estamos habituadQs nao sio univer­
sals, os ,antrup610gos e histonadores invocam varios exernplos, entre' os quais 0 kula e 0 pot(ach sao 
dos mals'famosos. 0 primeiro eurn sistema de'trocas, caracteristico de certas ilhas da Melanesia, que 
consiste em transac~oes que nao sao propriamente comerciais, porque circulam apenas objectos de ador­
no desprov,idos de utilidade, e porque, ~Qb penadeexclusiio, cada interveniente deve ter no tim de cada 
,ciclo os objectos 'que 'tinha no seu infcio. A mnltio de urn tal sistema eassegur;u- as condi"Oes para que 
as trucas comerciais efectivas tenham lugar - embora estejamsempre estritamente separad,as, estas 
OCOll'em ao lado das Irocas "nobres". 0 potlach e caracteristiw dos Indios do Noroeste americana" mas 
pniticas semelhantcs foram reconhecidas em muitas outras culturas; No contexto c:\e competic;Oes por 
posi!riies de prestfgio e autorid~de, urn dado chefe ou notAvel oferecia solenemente certas riquezas a urn 
rival ou destruia-as 11 suafrente para desafia-lo, humilh!lAo QU,marcar la"os de dependl!ncia. Nio,poden­
do recusar 0 dom, 0 rival ou nao retribui;l e eonfessava assim a sua inferioridade social, ou retribuia 0 
dom oferecendo ou destruindomaisbens do que os que recebia. 0 potlach envolve, assim, Cannas de 
consumo e investimento que escapam it l6gica que ea nossa ~ dar que, no passado, ecooomistas e po­
liticos canadianos, argumentando que se tratava de puro desperdfcio de riqueza, tenham tentado elimina­
-10. . 
Entre as peyas mais celebres das polemic!s aqui recordadas, leia-se: KARL POLANYl, "A 
nossa ObsQleta mentalidademercantil" (1947), trad. portliguesa in Revista Trimestral de Historias e 
Irkias, nO I, 1978; DUDLEY SEERS,,"Os limites,do caso especial" (1963), Irad. no nO 2, 1978, da 
mesma revista, Segui'de perro a apresenta~iio critica de ROBERT ROWLAND, "0 conceito de capital 
e a antropologia econ6mica: eontribui"lIo,~ critica do etnocentrismo econ6mico" .. publicada no nO 1 da 
revista citada - que me parece colocar bern 0 problema no que respeita b i'ela~iies entre 'antrupologia 
econ6mica e economia: "e imposslvel anajisar uma economia primitiva sem formular questiies eco~6-
micas, e [ ... ], em primeira instancia, e11 economia que compete fornecer estas questOes. Mas isro nao 
51 
) 
50 AUGUSTO SANTOS SILVA 
5. AS CONDICOES DA RUPTURA 
Urn dos mais importantes prlncfpios de explica~ao em ciencias sociais estipula 
que a razao de ser dos factos sociais deve ser procurada em outros factos' sociais ~ 
e, consequentemente, implica a permanente relativiza~ao das propriedades desses 
factos e a afirmas:ao, de metodo, de que sao sempre explicaveis atraves de sistemas 
(16gicos) de rela~6es entre elas. Esta postura determlnista -:nao no velho sentido do 
determinismo absoluto, mas no sentido em que toda a ciencia, porque ciencia, <> e -:­
desperta fortfssimas resistencias, a varios niveis, quer ao mvel do. conhecimento 
pnitico dos acto res sobre as situa~6es eJ;I1 que estao envolvidos,quer ao das formas 
mais elaboradas de representa~ao ideo16gica. Seria, evidentemente, abusivo pensar 
que as vis6es do mundo de senso comum e as ideologias, por serem interpreta~6es 
niio-cientfJitas da realidade, sao necessariamente anti-cientificas. Mas 0 certo e que os 
princfpios cruciais da pesquisa social poem ~m causa alguns dos mais arreigados pre­
conceitos e alguns dos vectores mais decisivos de ideologias correntes: nomeadamen­
te,' a ideia de transparencia de certos factos,que seriam imediatamente compreen­
sfveis, e da opacidade de outros, por natureza ininterpretllveis (os "dons", por exem­
pIo); e a ideia de que certos ambutos e situa90es estiio para hi dos determinismos SQ­
ciais, porque se devem a causas metassociais - sejam elas a vontade de Deus ou os 
intetesses do Estado, 0 genio de certos homens oua natureza biol6gica; a civilizas:ao 
ou 0 Iivre-affifmo. 
D choque entre a argumenta9ao·tfpica de senso comum e as exigencias anaHticas 
do trabalho de investiga9iio e, assim, muito frequente - e assume tantamaior intensi­
dade quao centrals para a coerencia e a reprodUl;ao dos saberes pniticos ou das mam­
zes ideol6gieas sao as questoesem debate. Fociimos aqui as que pens amos ser, no 
actual contexte socio-cultural e tearico das sociedades ocidentais, as mais importan­
tes~ as rela96es entre natureza e cultura, entre indivfduos e sodedade, entre grupos e 
culturas diferentes. Mas poderiam ser invocadas mais - interessa sim perceber a logi­
ca da argumenta~iio nao-cientffica para poder supera-Ia. 
1.a que ede uma ruptura frontal e global que se trata. A pesquisa cientffica, sob 
pena dese negar a si propria, deve partir de princfpios e problematieas e deve utilizar 
conceitos e proposi~oes c1aramente distintos dos que estruturam 0 conhecimento co­
significa que conccitos econ6micos possam ser transpostos de maneira acrltica. de urn tiP<> de socie­
dade para outro. porque I! preciso desconfiar dos pressupostos invislveis que estao subjacentes a,esses 
conceitos" (pp. 37-38). Escrevi acima que nas econdnp.as de mercado se: toma legftimo ali certo pO"fo 
separar 0 econ6mico do n~o-econ6mico. Nilo possa entrar aqui n3 discussiio dessa Iestric;ao mas lemb~ 
que ela conslitul um problema pcranl.e 0 qual econo,mistas esoci61ogos se encontram profundamente di: 
vididos - e lIO contexto do qual,como jlivimos a prop6sito do "naturalismo", 0 usa excessivo da 
clliusula cateris paribus I! uma falsa soluC;~o. Vet, ainda, DUDLEY SEERS, "Os indicadores de desen­
volvimento: 0 que estarnos a tehtar medir'1" (1972). trad. in An&.is.e Social, vol. XV,. n9 60, 1979. 
A RUPTURA COM 0 SENSO COMUM NAS Cli!:NCIAS SOCIAlS 
mum. E, portanto, deve par sempre este em duvida (pelo menos met6dica). Ruptura 
nao signifiea superas:ii.o "absoluta": cremos bern que tal nao'e possive!. As ciencias 
contem sempre elementos ideologicos mais ou men<;>s explfcitos, repousam sobre cer­
tas pressuposi90es de valor. Ideologias e saberes pratieos nao sao teorias pre-cientffi­
cas, que 0 progresso cientfficq se encarregaria de eliminar e em relas:ao as quais os 
especialistas pudessem estabelecer fronteiras intransponfveis - sao, antes, formas 
de racionaliza9ao do mundo, formas de c1assificar os factos, as pessoas e os objec­
tos, instrumentos de coesao e de tensao social, e af radica precisamente a sua eficacia. 
E pao se pense que estes sao problemas ex(:lusivos dos estudos sobre grupos huma­
nos. Basta pensar na biologia (mas demonstra90es amilogas foram feitas para·a fisi­
ca, ppr exejJ1plo) para no tar que em geml, com maior ou menor intensidade, por es­
tas ou aquelas vias, todas as disciplinas cientfficas esr,ao sujeitas a influenca de ele­
mentos simb6lico-ideo16gicos. 
Contudo, a posis:ao que conc1uiria pela impossibilidade oupela inutilidadeda rup­
tura e tambem falsa. Se epermeavel aos obstiiculos epistemologiCQs de seriso co­
mum, a pesquisa cient;fica dispoe, por outro lado, de meios para analisa"los, critid.­
-los e supera-los. Alias, ena exacta medida em que toma consciencia da.ilegitimidade 
do sonho oitocentista de uma futura era cientifica, sem ideologias nem religi6esi em 
que toma consciencia de que c9nstitui apenas uma (particularmente elaborada, decer­
to, e contiilUamente validada) forma de apropria9iio de urn real inesgotavel: eness a 
medida que a ciencia pode reivindicat com mals sentido que, no seu domlnio, sao ina­
ceitaveis principios e modelos que nao obedC9am as regras de construs:ao e valida9i!o 
que ela propria vai definindo. Se e porque reconhecemos que asteorias cientfficas im­
plicam elementos ideol6gicos e axiologicos, afirmamos que: a) epossivel desigm1­
-los; b) epossivel po-los aprova da analise cientffica e, portanto, exercer sobre eles 
uma permanente vigilancia crftica; c) tais elementos sao,assim, eles mesmos transfor­
mados pela pratica cientffica que condicionam. Nesta base, sao inadmissfveis em 
ciencia preconceitos (proposi96es indemonstraveis por dedu9iio 16gica ou por teste 
te6rico-empfrico, e sustentadas apenas em nome de convens:6es ou imperativos), co­
mo sao inadmissfveis, como axiomas, hip6teses quleis, afirma90es puramfmte ideolo­
gicas (isto e, que nao possam ser trabalhadas pela propria pesquisa). 
A ruptura com 0 senso comum nao constitui, por tudo isto, urn trabalho realiza­
do, de uma vez por todf\s, na fase inicial de investiga9ao; nem uma operas:ao termino­
16gica, que contraporia avulgaridade epolissemia das no~6es correntes 0 esoterismo 
cia linguagem especializada, de sentido s1.ipostamente univoco; nem consiste, muito 
menos, em evacuar as "evidencias" do senso comum do objecto de analise, postulan­
do que as vivencias dos actores nao interessam a ciencia. Representa, outrossim, urn 
processo continuado e sempre incompleto. E urn processo em que a ciencia se questio­
na a si propria, porque questionada porvalores,doumnas, saberes pratieos. Mesmo 
quando estes implicarn obstaculos aprodu9iio de conhecimentos sobre 0 social, 0 fa­
cto de interrogarem ou contestarem a pesquisae, ainda assim. positivo-e imprescin" 
divel para 0 des~nvolvimento desta. 
http:econdnp.as
52 53 AUGUSTO SANTOS SILVA 
Temos ~sado 0 si~gular para falar r;Ie ciencia mas por rawes de comodidade 
de exposi9ao. Iii vimos com abundancia quao ilusorio seria querer contrapor ao sen­
socomum, tornado por cQrpo homogeneo de preconceitos, uma "Ciencla" dotada de 
unidade analogamente mftica. As interpreta¢es mais caracteristicamente ideol6gicas 
da realidade ramificam-se no interiordas pniticas cientlficas. Romper com aquelas im­
plica, portanto, tambern romper com as problematicas e as teorias que,nas diversas 
disciplinas,as prolong am. 0 que, evidentemente, s6 se faz em nome de outras pro­
blematicas e outras teorias. . 
. Chegamos, assim, a,o n6 da questao: Na linhade Gaston Bachelard, distingui­
mos no processo de Produ9ao de c6nhecimentos cientificos tres "actos epistemol6gi­
cos" a ruptura, com as "evidencias" de senso comum que possam constituir obsta-' 
culos aquele processo; a construqiio, do bbjecto de analise, d~. teorias explicativas; a 
"verifica~iio", da validade dessas teorias pelo seu teste, quer dizer, pelo confronto 
com infoQIla9aO emp{rica~ Os tees sao indissociaveis. E- a constru9io te6rica desempe­
nha, nesta rela9ao, urn papel central. Do inesm<l modo que os processos de verlfica-. 
9io dependem das teorias que verificam, a ruptuta vale 0 que valer a constru9ao 
. quer dizer, aproblematiza9ao e a teoriza9ao-que a suporta: au entiio, s~ quisermos 
falllr em paradigmas - articulando os t~s termos numa s6 unidade de princfpios, 
perspectivas, conceitOs, modelos te6ricos e resultados empfricos cruciais - diremos 
que cada paradigma te6riCQ rompe (ou nae> rompe) a seu modo com aspre-n090es de 
, senso comum e·os operadores ideol6gicos que obstem, do ponto de vista dessepara­
digma, aprodu9iio de conhecimentos cientificos sobre 0 social. . 
. Palamos,em certa extensao, de paradigmas transdisciplinares, ou' de formas de fa­
zer a l1,Iptura,.a constru9ao e a verlfica9ao comuns a paradigmAs estabelecidos na his­
't6ria, 'na antropologia, na geografia, na economia,' na sociologia, etc. E, neste senti­
do,a atitude problematizadora propria da ciencia e os princfpios de que parte a pes­
quisa SOCial constituem os irisirumentos fundamentais da ruptura. . 
Emprimeiro lugar, urna opera9aoaxial consiste na relativizafiio dos fen6menos 
.humanos. Ao rtJ.ostrar que estes nao j,odemser imputados a qualquer absoluto, nao' 
podemser explicadospor propriedades

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