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85 - um palco brasileiro o arena de sao paulo - Sábato Magaldi


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g
Sábato Magaldi
e Impressões de Viagem CP.C, .Van.guarda e Desbunde 1960/
j970-He/ohaBuarquedeHolhnda . ,
e O Nacional e o Popular na .Cultura Brasileira - l eatro - dose
: gEÜgg13ãl=.s"J'K,z ç'z"'
Almeida {org. }
UM PALCO BRASILEIRO
O Arena de São Paulo
Coleção Primeiros Passos
+ O que é Cultura Popular - '4nton/o 4ugusfo 4ranfes
e O que é Ideologia - /b#a/dana Chata/
e O que são Intelectuais - Harac/o Gonzáüz
e O que é Política Cultural - /b4arzln rezar Fedó
e O que é Teatro - Ferr7ando Pêlxofa
Coleção Tudo é História
B Cultura e Participação nos anos 60 - He/o&a Buarque de
Hoflanda / Marcos A. Gonçalves
e O Governo Goulart e o Golpe de 64 - Ca/o /V. Toldo
e O Governo Jânio Quadros - A4a/fa V/'Gloria Benev/des
e O Governo Juscelino Kubitschek - R. /b#aranhãa
e Teatro Oficina - Ferrando Pelxofo
Coleção Encanto Radical
Fonseca
1984
(;inpyrfghf © Sábato Magaldi
Capa :
Ettore Bottini
Revisão :
rosé G. de Arruda Filho
Elisabete P. Meio
ÍNDICE
Um palco brasileiro
Os inícios
Afirmação do autor brasileiro
O clássico, nosso contemporâneo
Brecha assimilado
As últimas tentativa
Indicações para leitura
7
10
26
se
65
83
99
editora brasiliense s.a.
01223 -- r. general jardim, 160
são paulo -- brasil
UM PALCO BRASILEIRO
O Teatro de Arena de São Paulo evoca, de imediato,
o abrasileiramento do nosso palco, pela imposição do
autor nacional. Os Comediantes e o Teatro Brasileiro de
Comédia, responsáveis pela renovação estética dos proce-
dimentos cénicos, na década de quarenta, pautaram-se
basicamente por modelos europeus. Depois de adotar,
durante as primeiras temporadas, política semelhante à
do TBC, o Arena definiu a sua especificidade, em 1958,
a partir do lançamento de .E/es .Nâo Usam .B/ack-7}e, de
Gianfrancesco Guarnieri. A sede do Arena tornou-se, en-
tão, a casa do autor brasileiro.
O êxito da tomada de posição transformou o Arena
em reduto inovador, que aos poucos tirou do TBC, e das
empresas que Ihe herdaram os princípios, a hegemonia da
atividade dramática. De uma espécie de TBC pobre, ou
económico, o grupo evoluiu, para converter-se em porta-
voz das aspirações vanguardistas de fins dos anos cin-
qüenta. A tendência expressa pelo Arena tornou-se vito-
8 Sabe/o Mega/dz4
Um Palco Brasileiro 9
riosa, marcando a linha seguida pelo Grupo Opinião, no
Rio de Janeiro, e influindo no repertório escolhido pelo
TBC, desde 1960.
A imagem completa do Arena não se reduz, porém,
à nacionalização dos cartazes. Sua primeira insígnia diz
respeito à própria forma do teatro, que abandonou as
exigências do palco italiano, em troca de um local não
especializado, onde simples cadeiras à volta de um espaço
e iluminação precária podiam criar a atmosfera propícia
ao fenómeno cénico. Em princípio, dessacralização do
tradicional teatro, permitindo que salas comuns acolhes-
sem o espetâculo e, ainda, possibilidade de enriqueci-
mento do cotidiano artístico, pelo maior número de áreas
aproveitáveis. A aceitação normal da arena multiplicou as
salas, libertas de requisitos técnicos dispendiosos.
Muitas outras conquistas associam-se à trajetória do
Teatro de Arena. A dramaturgia brasileira reclamava um
estilo de encenação e desempenho nosso. O elenco pesqui-
sou uma possível maneira nacional de comunicar a fala do
autor, sobretudo no tocante à prosódia, sabidamente desca-
racterizada no TBC. Esgotada essa fase, passou'se à nacio-
nalização dosclássicos, potencializados em face de uma sin-
tonia apreensível com a realidade do momento. Vieram,
depois, os musicais, cuja expressão maior foi obtida por
,4rena Copzfa Zumbe, de Augusto Boal, Gianfrancesco
Guamieri e Edu Lobo. Subjacente ao espetâculo, já se insi-
nuava a teoria do Coringa, desenvolvida por Augusto Boas
na montagem de .Arena (lbmra 7}radelzfes, de sua autoria,
juntamente com Gianfrancesco Guarnieri e os composito-
res Théo Berros, Sidney Miller, Caetano Venoso e Gilberto
Gil. Da implantação inicial do realismo, o Arena passou ao
abrasileiramento do teatro épico de Bertolt Brecht.
Uma das virtudes do elenco foi a de se lançar em
nova experiência, quando a anterior parecia esgotada e
começava a repetir-se. Sensível ao que sugeriria a estag-
nação num modismo, o grupo procurava explorar lingua-
gens para ele inéditas. Na busca de caminhos não trilha-
dos entre nós, o Arena dedicou-se, por último, ao Teafro-
Jorna/, que dramatizava acontecimentos da véspera, resis-
tindo à ditadura que se apossara do País.
Se a expansão do conjunto correspondia ao espírito
desenvolvimentista que empolgava o Brasil, na década de
cinqüenta, o declínio e o desaparecimento do Arena estão
intimamente associados à repressão desencadeada pelo
Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968. Esse
foi, na verdade, o golpe de misericórdia nas manifestações
artísticas oposicionistas, de qualquer origem. O exílio vo-
luntário de Augusto Boal, em 1971, pâs fim a um admi-
rável percurso, iniciado por José Renato em 1953, ao fun-
dar o primeiro Teatro de Arena da América do Sul, jun-
tamente com Geraldo Matheus, Sérgio Sampaio e Emílio
Fontana. As tentativas posteriores tiveram o mérito fun-
damental de preservar um espaço incorporado à geografia
da cidade. Vencendo o temor de que o Teatro de Arena se
tornasse escritório da firma construtora ou supermercado,
o Ser'üço Nacional de Teatro adquiriu, em boa hora, o
imóvel, que prossegue hoje uma existência úül, sob a nova
denominação de Teatro Experimental Eugênio Kusnet.
O Teatro de Arena, na concepção em que se afir-
mou, está morto, e não creio que tenha sentido ressus-
cita-lo, nos mesmos termos. Ele constitui, de pleno di-
reito, capítulo decisivo na História do Teatro Brasileiro.
Um palco Brasileiro
11
cones publicado depois sob o título Z%Cafre-ín-fhe-Round,
em que se narram os pressupostos e a história do Thea-
íre50, criado pela encenadora em Dálias, no verão de
1947. Lâ se encontram os fundamentos teóricos do teatro
de arena, que dispensa o aparato das salas especializadas.
Sob a orientação de Décio, o aluno José Renato fez na
EAD a primeira montagem do gênero, entre nós, diri-
gindo O Demorado .Adeus, de Tennessee Williams.
O êxito da iniciativa levou José Renato, Geraldo
Matheus, Sérgio Sampaio e Emílio Fontana (os dois pri-
meiros formados) a organizar nossa primeira companhia
profissional de Teatro de Arena, que lançou .Esta M)ífe .E
]Voisa, de Stafford Dickens, no dia ll de abril de 1953, no
Museu de Arte Moderna de São Pauta (funcionando, na
ocasião, no prédio dos Diários Associados, na rua 7 de
Abril, 230). Décio de Almeida Prado discorreu sobre o que
é a arena, antes de começar a sessão. Achavam-se no
elenco Sérgio Bruto, Renata Blaustein, John Herbert, Mo-
nah Delacy e Henrique Becker. Publicou O Estado de .S.
Pau/o, a propósito: "A estrêla de hoje no Museu de Arte
Moderna reveste-se de especial importância, porque in-
troduz no nosso teatro profissional uma nova técnica de
apresentação, em que os atires são colocados no centro da
sala de exibição, como nos circos, ficando circundados
pelos espectadores". A crítica do jornal, de 19 de abril,
depois de observar que ''o teatro paulista, ultimamente,
talvez por influência do TBC e da EAD, tem timbrado em
só estrear uma peça em condições perfeitas de preparo",
ressaltou o cunho exemplar do lançamento: ''A qualidade
da encenação de José Renato avulta sobretudo ao encarar-
mos dois pontos: a segurança com que estrearam os atires
OS INÍCIOS
A nova forma
A aventura do Teatro de Arena começou na Escola
de Arte Dramática de São Paulo. O estabelecimento, fun-
dado por Alfredo Mesquita em 1948, destinava-se preci-
puamente a formar atires para a vida profissional que se
iniciava na cidade. Essa função confundia-o com um ce-
leiro de intérpretes para o Teatro Brasileiro de Comédia,
que polarizava os melhores amadores, ansiosos por dedi-
car-se apenas ao palco. Não fosse a EAD um laboratório
experimental, em que se encenaram no Brasil, pela pri-
meira vez, nomes da importância de Brecht, lonesco, Be-
ckett e muitos outros, dificilmente se entenderia ter ela
estimuladoa pesquisa que, mais tarde, pâs em xeque a
orientação do TBC.
O crítico Décio de Almeida Prado, professor da
Escola, leu na revista 7'beafre .4ns parte do livro de Margo
12 Sâbato Magaldi Um Palco Brasileiro 13
-- trabalho, trabalho, trabalho -- e a excelente escolha
que soube fazer desses mesmos atires"
sa, de Stafford Dickens''
No primeiro número da revista Teatro .Brasileiro,
publicado em novembro de 1955, tive oportunidade de
fazer um resumo dos trabalhos do elenco: ''A Companhia
de Teatro de Arena, ao fixar-se na casa de espetáculos da
rua Theodoro Bayma, aproveitou inicialmente o repertório
que havia formado nas apresentações esporádicas ante-
riores. Seu maior êxito de então foi t/ma À/u/àer e Três
Pa/baços, de Marcel Achard, em que José Renato se afir-
mava como um encenador imaginoso e cheio de possibiH-
dades. .E3fa M)ífe .E .Anossa, de Stafford Dickens, e .A Rosa
doi Venfoi, de Claude Spaak, demonstravam o esforço de
interpretar honestamente textos frágeis. Escrever sobre
]Wzz/Acres lançou José Renato como dramaturgo, numa
estrêla que passou meio despercebida mas que tinha o
mérito de revelar um dialogador vivo e teatral, num tema
cómico interessante, de inspiração pirandelliana. O espe-
tâculo, porém, não tinha atração suficiente para aliciar o
público e a companhia, sem tempo para preparar outro
texto, precisou reviver O Prazer da Hbnesfídade, do reper-
tório do Teatro das Segundas-feiras, para assegurar conti-
nuidade ao cartaz. Este primeiro Pirandello teve êxito
artístico e financeiro, e.Nâo se Sabe Como, que prosseguiu
o Festival dedicado ao dramaturgo de Seis Persozzagens à
Procura de zzm .4afor, afirmou o elenco em elevado nível''
Depois de analisar o espetáculo, julgando-o o melhor rea-
lizado pelo grupo, eu concluía que ".Não se .Sabe (bmo
atesta a maioridade do elenco do Teatro de Arena e o
situa, em definitivo, como um dos que percorrem o cami-
nho do nosso melhor teatro". A respeito de .À Margem da
yz'da, última produção de 1955, eu escrevia no segundo
Na linha do TBC
As encenações seguintes traíam o ecletismo do re-
pertório, em linha idêntica à consagrada pelo TBC. Na
temporada de 1954, o Arena montou Z:/ma .A/u/her e Três
Pa/baços (Vou/ez-votos Jotzer aves .A4oá7), de Marcel
Achard, em que despontava, com muito encanto, a atroz
Eva Wilma. O ano de 1955 apresentou .Escrever sobre
Mu/Acres, do próprio José Renato, .4 Roía dos Velzfos, de
Claude Spaak(oferecida simultaneamente com ZI/ma .A/u -
!her e Três Palhaços e Esta Noite E Nossas, O Prazer da
.llonesfldade e .Não se .Sabe Como, de Pirandello, e ..4 .A4ar-
gem da Vz'da, de Tennessee Williams.
O Estado de .S. Paul/o de 27 de janeiro de 1955 noti-
ciava para o dia lo de fevereiro a inauguração do Teatro
de Arena na rua Theodoro Bayma, 94, em frente à Igreja
da Consolação: ''A Companhia de Teatro de Arena e a
Sociedade de Arena realizarão a abertura do primeiro
Teatro de Arena, em caráter permanente, da América do
Sul. Será encenada a peça de Claude Spaak, 4 Rosa dos
Ve/zroi, em tradução de Esther Mesquita e direção de José
Renato. A partir do dia 2 de fevereiro os sócios do Teatro
de Arena terão livre ingresso ao Teatro. O programa será o
seguinte: terças e quartas, .4 Rosa dos Velzfos, de Claude
Spaak; quintas e sextas, t/}na .A/a/her e Três Pa/baços, de
Marce[ Achard; e sábados e domingos, Esta .Nbííe E ]Vos-
14 Sâbato Magaldi Um Palco Brasileiro
15
número de Teatro .Brasa/eira(dezembro daquele ano), que
a companhia reafirmava o ótimo padrão mantido sobre-
tudo nos últimos espetáculos: ''Observa-se, ali, o que nos
parece ser a fórmula acertada para o novo teatro brasi-
leiro: boas peças e elementos jovens, ainda que muitas
vezes se tenha de cair nas perigosas caracterizações de
velhos. Nesse programa, José Renato lançou como diretor
José Marques da Costa, já experimentado na televisão.
E a prova foi feliz, porque o encenador revelou as quali-
dades básicas para se realizar no teatro: bom gosto, com-
preensão do texto, senso rítmico, imaginação''. O despo-
jamento excessivo provocou certa neutralidade do desem-
penho, embora fosse possível concluir que o caráter inti-
mista fez que o espetáculo chegasse à plateia com real e
sincera emoção.
Fevereiro de 1956 marcou-se pela estréia de Esmo/a
de .Aíarídos, de Moliêre -- um clássico do passado, pela
primeira vez em arena. Pretendeu José Renato, na monta-
gem, atingir a ''concepção moderna do teatro representa-
ção, sinónimo de jogo, brincadeira". O ponto de partida
tinha sólida sustentação teórica, desde as experiências de
Jacques Copeau, que restituíam ao criador de 4rfímaPz#as
de Escapíno a alegria inata, a vitalidade descomprometida
de excessos de raciocínio, a comicidade pura e dinâmica.
Entre outros nomes novos do elenco assinalavam-se Wal-
demar Wey (Sganarello), vindo do TBC, e Gianfrancesco
Guarnieri(Ergasto), do elenco do Teatro Paulista do Estu-
dante, que se fundia com o do Arena. O comentário que
fiz para o quarto número de Teatro .Brasa/eira(março de
1956) notava: ''Nas marcações José Renato realizou ver-
dadeiros malabarismos para reunir, em tão pequena área,
tantos atores. O aproveitamento das escadas que dão
acesso aos bancos da plateia como entradas para as casas
das personagens foi inte[igente e útil, convergindo a ação
para o centro do palco, onde um pentágono permitiu
amplos arranjos de cena. As vezes, apenas, dada a exi-
guidade do palco, os movimentos ficaram um pouco con-
fusos". As restrições apontadas não impediram, contudo,
que o balanço final fosse francamente favorável ao espe-
táculo comemorativo do primeiro ano de existência da
sala
Primeiro balanço
No número anterior da revista, de fevereiro de 1956,
sob o título "A experiência do Teatro de Arena", eu havia
entrevistado José Renato, para uma analise das varias
questões até aquela data registradas. A convite do presi-
dente Café Filho, o elenco jâ se apresentara no Palácio do
Catete e, em dezembro de 1955, inaugurou o Teatro de
Arena do Hotel Glória do Rio, de efémera duração. As
incursões cariocas, bem recebidas pela crítica especiali-
zada, começavam a consolidar o Arena como fenómeno
nacional e não apenas paulista.
José Renato justificava assim sua experiência: ''A
razão pela qual resolvi dedicar-me ao teatro de arena,
como forma permanente, é de ordem económica. Nele não
existe cenário e o palco é um simples espaço no centro do
círculo formado pelas cadeiras. Para um teatro de pouco
público, como o brasileiro, a única possibilidade de auto-
16 Sâbato Magaldi Um Palco Brasileiro 17
suficiência, parece-me, esta no teatro de arena, que des-
pende menos dinheiro. Numa montagem comum gasta-se
a décima parte do que exigiria um teatro normal. A adap-
tação da loja da rua Theodoro Bayma para teatro de 150
lugares importou na despesa de 250 mil cruzeiros, quando
outra casa de espetâculos de igual capacidade imporia
maiores recursos técnicos no palco e a utilização de pol-
tronas(ao invés da arquibancada estofada), com gastos
inevitavelmente maiores'
Prosseguia José Renato: ''No teatro de arena, preo'
cupamo-nos com um espetáculo mais puro. Sua verda-
deira vedeta é o texto. Com a ausência de cenários e a
proximidade do palco, toda a atenção se concentra sobre a
peça e o desempenho. Os autores deveriam, alias, entu-
siasmar-se com o teatro de arena, porque é o que mais os
valoriza. Nos teatros comuns, uma rica montagem pode
iludir o espectador"
O entrevistado admitiu que "a única limitação real
que sinto em nosso teatro é o pequeno palco, de 4,50 X
5,50m. Não podem caber, folgadamente, nessa área, mui-
tas pessoas. O problema, alias, persistiria num teatro
normal, com palco semelhante. Esse fato reduz o número
de peças possíveis de serem apresentadas por nós, àquelas
que não tiverem mais de 12 ou IS atires em cena, de uma
vez. No mais, acredito que todas as peças possam ser
encenadas na arena. Na primeira montagem -- E.sfa M)íle
É Anossa, de Stafford Dickens -- havia uma discussão
sobre quadros, que eram trocados na parede. Resolvemos
a dificuldade substituindo os quadrospor móveis, sem que
o texto sofresse por isso. Apesar das limitações do nosso
palco, vamos encenar JH/ío Casar, de Shakespeare"(pro-
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18 Sâbato Magala
Um palco Brasileiro 19
jeto não concretizado) .
Sobre o problema estético, afirmou José Renato:
''Hâ dois caminhos, na encenação em arena: ou se conven-
ciona a existência de uma quarta parede (representada nos
teatros normais pela platéia) ou se abolem todas as pare-
des. Qual a solução legítima? Acho que as duas são váli-
das e o que determina sua preferência é o texto. Para as
peças que se passam numa pequena sala, trata-se de fe-
char o recinto. Ê o caso de Esta .Nbífe .F.Nossa. Em peças
fantasiosas, de maior lirismo, em que as personagens não
se ligam demasiado ao ambiente, o espetâculo pode ser
centrífugo. Joga-se com as varias frentes. Exemplos dessas
encenações são ,4 Margem da Vz'da, de Tennessee Wil-
liams; Z./ma .A/u/#er e Três Pa/baços, de Marcel Achard;
.Não se.Sabe (bmo, de Pirandello; e,4 Esmo/ha de Maridos,
de Moliêre".
As condições técnicas de nosso teatro são precárias
-- disse José Renato. -- Não obstante a valorização do
texto, temos de compensar psicologicamente o espectador,
que não deve notar a ausência de cenários; essa compen-
sação é oferecida pelos efeitos de luz e som, que comple-
tam o espetâculo, dando-lhe um certo realce e plastici-
dade. Estamos, assim, tratando de melhorar a parte téc-
nica: começamos com 12 refletores e agora dispomos de
22, sendo dois de efeitos especiais. Iniciamos com um
aparelho de som deficiente e agora temos dez alto-falan-
tes, espalhados pela sala, e um amplificador bom, que
permite controla-los individualmente. Mas o nosso prin-
cipal limite é a área do palco. Precisaríamos de 6m de
diâmetro e maior distância da primeira fila. A iluminação
poderia ser mais precisa, tornando o espetáculo mais plás-
tico. A proximidade prejudica um pouco a beleza pictórica.
Não podemos abstrair, também, os espectadores, sujeitos
ao sono ou à inquietude, não integrados às vezes no espírito
da representação. Quanto ao atar, sua técnica deve ser dife-
rente, mais realista. Ele esta sempre em primeiro plano
para alguém, o que exige concentração absoluta."
José Renato explicou o abandono, que julgava pro-
visório, da alternância de peças: ''Pretendíamos inicial-
mente alternar no cartaz três peças, oferecendo cada uma
dois dias, durante a semana. Mas essa prática desnorteou
o público, que não sabia como escolher o espetâculo. De-
veremos, contudo, voltar a ela mais tarde, por permitir,
inclusive, maior descanso dos atires'' (o procedimento,
porém, não foi restabelecido) .
Concluiu José Renato: "0 sistema de sócios auxi-
liou-nos para o financiamento inicial da adaptação. Mas
sustentamo-nos sobretudo do espectador avulso. Como
não hâ qualquer amparo governamental o teatro tem que
ser auto-suficiente, sem o que fecharia as portas. Atual-
mente, o público que nos prestigia não permite um elenco
além de oito atires. A figuração de .4 Esmo/a de .A/árIdoS é
feita por amadores, com um pagamento mínimo. Pesam
muito os impostos e os direitos autorais(embora legíti-
mos), sendo difícil aceitar que se cobre, por um pequeno
teatro, a mesma taxa paga pelos grandes. Essas taxas
deveriam ser relativas à capacidade da sala. Por isso foi
um passo arT'iscado a montagem da comédia de Moliêre.
O guarda-roupa custou perto de 60 mil cruzeiros. Os
empréstimos bancários nos facultaram a realização do
espetáculo. Mas pensamos que é essa ousadia que dâ sen-
tido ao trabalho
20 Sábato Magaldi Um Palco Brasileiro 21
Um segundo encenador Arena e o do Teatro Paulista do Estudante, que jâ vinha,
com a Federação Paulista de Teatro Amador, organizando
cursos e difundindo a ideia de formação de grupos teatrais
em colégios, por exemplo. A presença de Gianfrancesco
Guarnieri e de Oduvaldo Vianna Filho, do Teatro Paulista
do Estudante, representava para o Arena ''esta juventude
que chegava ao teatro, marcada pelas lutas nacionalistas.
pela radicalização ideológica, pela percepção da política
como atividade que todos praticavam, conscíenfei(ou
não). E era isto que queriam trazer para o teatro", con-
forme declarou o próprio Vianninha, em entrevista publi-
cada em Opípzíão de 29 de julho de 1974 (o texto de Luas
Werneck Vianna está transcrito na íntegra, um pouco
diferente da versão reduzida do semanário, no livro Vz'a-
níPzÀa, pp. 161-73). Por outro lado, Boal acompanhou em
Nova lorque a experiência do .4cfors ' Srudfo, que pesqui-
sava um estilo norte-americano de interpretação, diferente
da tradicional maneira britânica. E essa confluência de
interesses e objetivos levou o Arena a modificar a sua
política, definindo a busca de um estilo brasileiro de re-
presentação, fundado num realismo cujo paradigma vinha
do Método de Stanislâvski.
A colaboração de José Marques da Costajá exprimia
a necessidade de outro nome que dividisse com José Re-
nato as montagens. Despontavam também, na ocasião,
dois diretores paulistas: Flávio Rangel e Antunes Filho.
Por motivo que não chegou a esclarecer-se, contudo, José
Renato quis que eu Ihe sugerisse um encenador carioca,
em condições de transferir-se para São Paulo. Prendia-se o
pedido à circunstância de que eu havia militado na im-
prensa do Rio, conhecendo a nova geração que se afir-
mava. Se não me falha a memória, indiquei cinco jovens
artistas, que principiavam promissoramente a carreira:
Geraldo Queiroz, Paulo Francis, João Bethencourt, Léo
Jusi e Augusto Boal. José Renato colocou-me o problema:
quem eu escolheria, se estivesse em seu lugar? Por acaso,
Augusto Boal, sobre cujas primeiras peças, encaminhadas
por Nelson Rodrigues, eu havia escrito no Z)lárfo (hríoca ,
me telefonou pouco antes, de volta de uma viagem de
estudos aos Estados Unidos. Em Nova lorque, ele cursara
Dramaturgia e Direção, durante dois anos, na Universi-
dade de Colúmbia, tendo como principal professor John
Gassner. A procura de emprego, Boal interessava-se por
trabalhar em São Paulo. Não me ocorreu dúvida, assim,
em apontar prontamente seu nome a José Renato. Mu-
dando-se para a cidade em julho de 1956, Boal apresentou
seu primeiro trabalho, no Arena, em outubro: Ralos e
Hbmelzx, de John Steinbeck, grande êxito artístico e de
público.
Ralos e .HbmeHS assenta em definitivo, também, a
colaboração entre os remanescentes do primitivo elenco do
O Teatro Paulista do Estudante
O elenco estudantil havia sensibilizado a crítica. Em
dezembro de 1955, ofereceu quatro récitas de O .lznpe-
rzzosa (l:bzpífão 7Yc, de Labiche, no Teatro de Arena. Re-
gistrei, no terceiro número de Zeafro .Braií/eira(janeiro de
1956), que o espetâculo revelou o mérito do grupo, quer
22 Sâbato Magaldi Um Palco Brasileiro 23
pela direção de Ítalo Rossi, quer pelo trabalho de alguns
atores. O breve comentário terminava: ''Gianfrancesco
Guarnieri(Desambrois) é realmente uma revelação de in-
térprete, sabendo valorizar a mascara e os efeitos cómicos,
notório sempre pela presença inteligente. Mariusa Vianna
(Mme. Guy) se impõe também no palco, embora a preo'
cupação excessiva de 'interpretar' a leve quase ao sestro.
José de Lama transmite a figura do noivo imerso em esta-
tísticas e Raul Cortez, se ainda não tem a autoridade que
deveria, para o Capitão Tic, aliar-se à posição de galã, se
mostra um atar de possibilidades''.
Era novamente muito positiva a crítica a Um Ins-
pefor rios Procura, de Priestley, com que o Teatro Paulista
do Estudante inaugurou, no dia lo de janeiro de 1956,
o Teatro Novos Comediantes, transformado depois em
Teatro Oficina. O quarto número da revista(fevereiro de
1956) estampou meu comentário, segundo o qual a mon-
tagem mostrava ''as virtudes e os defeitos das iniciativas
de amadores: sob a direção honesta e eficiente de Ray-
mundo Duprat, têm oportunidade de distinguir-se alguns
intérpretes, embora a produção estivesse tecnicamentecomprometida. Gianfrancesco Guarnieri é, entre os ele-
mentos novos do amadorismo, o que de fato parece ter
mais vocação para o palco: nele, adquire extraordinária
presença, fazendo-a sentir de imediato à plateia. Mariusa
Vianna é outra atroz inegável, que precisa ainda melhorar
a dicção sibilante e uma exteriorização excessiva, típica de
nosso antigo teatro. Raul Cortez, apesar de poucos en-
saios, compôs com sobriedade a figura do noivo. Verá
Gertel. satisfatória nos momentos mais profundos e, nas
outras cenas, deixando-se levar pela facilidade de trejeitos
fisionómicos. Oduvaldo Vianna Filho revela talento, ainda
pouco flexível. (.. .) Percebia-se, na estréia, que não houve
tempo para adaptar as marcações à deficiente instalação
elétrica(os atires faziam sombras nos outros, enquanto
falavam) e os cenários foram mal concebidos e execu-
tados". AÍ estão vários artistas que ajudariam a esculpir a
imagem futura do Arena.
Elenco estável
O acordo firmado entre José Renato e o Teatro
Paulista do Estudante redundou na formação do Elenco
Estável do Teatro de Arena, com um grupo incumbido de
apresentar-se na sala da rua Theodoro Bayma e outro,
'volante", que estreou em Macaca a peça Z)fai /b/ízes, de
Claude-André Puget. Em São Pau]o, à .Esmo/a de ]t/arados
seguiram-se Ju/gaze você, peça policial de Jean-Pierre
Conty, e .Z)z'as /'e/ízes, em boa adaptação para o ambiente
brasileiro. O desempenho, de valor, reunia Verá Gertel,
Alzira Mattar, Méa Marquês, Gianfrancesco Guarnieri,
Oduvaldo Vianna Filho e Raul Cortez. O conjunto apre-
sentou, em continuação, Estai .A/u/deres, de Max Regnier
e André Gillois, com Floramy Pinheiro, Marina Freira.
Luiz Eugênio Barcellos, Nelo Pinheiro e Fausto Fuser.
Ao encenar Raros e .Homens, de Steinbeck, Augusto
Boal escreveu um artigo para o nono e último número de
Teatro .Brasa/eira(agosto-setembro de 1956), em que afir-
mava utilizar na montagem o realismo seletivo: ''Os deta-
lhes essenciais dão a ideia do todo. A encenação, toda ela,
24 Sâbato Magaldi
Palco Brasileiro 25
caracteriza-se por um despojamento absoluto, intencional
e necessário. Não existem, por exemplo, marcações arbi-
trariamente bonitas, pois estão todas psicologicamente
justificadas. Em teatro de arena, mais talvez do que nos de
proscênio, o que tem mais importância são as enter-rela-
ções humanas. O que importa mais é a essência de cada
cena, o sentido das coisas que são ditas e não tanto a
maneira de dize-las. E isso implica em despojamento, em
simplicidade, desde que se compreenda que simplicidade
não é sinónimo de pobreza'
]l/árido Magro, .4/tz/#er C#afa, comédia de Augusto
Boal, não trilha o caminho de Raros e .IZomens. Boal ainda
esta mais próximo do ideal de p/aywriff/zg norte-ameri-
cano do que de uma analise profunda da realidade brasi-
leira. Segundo ele, ''a peça visa a captar a psicologia da
juventude coca-cola de Copacabana. A proximidade da
praia e o diverso sistema de educação criam para eles
valores morais diferentes, em que têm menos lugar os
preconceitos. Seria uma espécie de 'juventude transviada'
da praia carioca. . . ( . . .) Na direção procurei guardar o tom
coloquial, sem qualquer teatralidade. O ritmo, para apre-
ender o estilo próprio dos jovens, é acelerado'' (O Estado
de .S. /'aa/o de 5 dejaneiro de 1957).
Depois de .A/árido ]Wagro, José Renato volta aos mol-
des anteriores do Arena, encenando .EPzqtzanfo .E/es Forem
Fe/lzes, de Vernon Sylvaine. Ju/zo e o Pavão, a grande
peça de Sean O'Casey, que Boal monta a seguir, na linha
realista, não alcança sucesso de público. O grupo sobre-
vive com excursões, aluguel do teatro a outros conjuntos e
dispersão do elenco, que tendia a desenvolver um trabalho
baseado numa certa continuidade. O Teatro Paulista do
Estudante apresentou a]i, sob a direção de Beatriz Sega]],
,4 .4/manyarra, de Artur Azevedo, e .A/a/azarfe, adaptação
de Zulmira Ribeiro Tavares, revelando a atroz Arãcy Bala-
banian, que decidiu cursar depois a Escola de Arte Dra-
mática.
m Palco Brasüetro z'/
AFIRMAÇÃO
DO AUTOR BRASILEIRO
A guinada de .B/ack-fie
A situação financeira do Arena era tão difícil, em
1957, que por pouco José Renato não encerrava suas ati-
vidades. Para não faze-lo melancolicamente, ele preferiu
montar uma peça de um dos atores do grupo: .E/es nâo
Usam B/ack-ffe, de Gianfrancesco Guarnieri, estreada em
22 de fevereiro de 1958. Permito-me, neste ponto, recorrer
a uma reminiscência pessoal. Dêcio de Almeida Prado
encontrava-se nos Estados Unidos e eu, além de responsá-
vel pela seção de Teatro do Suplemento Literário de O Es-
tado de S. Pau/o e pela coluna de notícias especializadas
do jornal, fiquei incumbido de substituí-lo na crítica dos
espetâculos. Cerca de uma semana antes da estrêla, tele-
fonei a José Renato pedindo uma cópia do texto, para
melhor comenta-lo. Meu entusiasmo foi tão grande que
não hesitei em comunicar a José Renato, antes do lança-
À/iriam .A/e#/er e Gía/Napa/zcesco Guarníerí em Eles Não
Usam Black-tie.
28 Sábato Magaldi lm Palco Brasileiro 29
mento, a certeza de que a peça iria revolucionar a drama-
turgia brasileira.
Alterando os procedimentos habituais do jornal, o
crítico Delmiro Gonçalves, que dirigia então a página de
Arte, publicou com grande relevo meus dois comentários,
ilustrados por fotos do elenco. Eu tinha em mente uma
cadeia de estreias, trazendo contribuições diversas ao nos-
so teatro: a de Vestido de .Arolva, de Nelson Rodrigues, em
1943, enriquecida pelos desvãos do subconsciente; a de
,4 À4orafóría, de Jorre Andrade, em 1955, incorporando
nossas fontes rurais; a do .4ufo da Go/npadecída, de Aria-
no Suassuna, em 1957, com a feliz fusão do folclore nor-
destino e do milagre medieval; e finalmente a de .Eles .AUo
Usam .B/ack-fie, em 1958, introduzindo os conflitos ur-
banos, expressivos sobretudo pela luta de classes. É pre-
ciso lembrar que O Peida Ve/a, obra-prima de Oswald de
Andrade, escrita a partir de 1933 e publicada em 1937, só
em 1967 conheceu a prova do palco, na histórica ence-
nação de José Celso Martinez Corrêa para o Teatro Ofi-
E/es .Não Usam .B/ack-fle trata dos problemas sociais
provocados pela industrialização, em lutas reivindicatórias
de melhores salários. O título, de claro intento panfletá-
rio, pareceria ingénuo ou de mau gosto, não fosse também
o nome da letra de samba que serve de fundo aos três atos.
Embora o ambiente seja a favela carioca, o cenário existe
apenas como romantização de possível vida comunitária,
jâ que a cidade simboliza o bracejar do indivíduo solitário.
Nem. por isso o tema deixa de ser profundamente urbano,
se for considerado o produto da formação dos grandes
centros, e nesse sentido a peça se definia como a mais
fina
atual do repertório brasileiro, aquela que penetrava a
realidade do tempo com maior agudeza.
Que a tese implícita do texto seja marxista, não se
pode duvidar. Mas o autor não deformou os caracteres,
em função de um objetivo político, desenvolvendo antes as
situações, para que a plateia concluísse a seu gosto. A
dignidade artística do trabalho isenta-o de sectarismo, e a
peça se beneficia de uma convicção sincera, que enfomla o
entrecho com evidente consciência.
Guamieri opõe duas mentalidades, que a rigor se
sintetizarão numa só, porque acredita fundamentalmente
no homem, e ele, depois de descaminhos, encontra o rumo
certo. O tradicional conflito de gerações se coloca de ma-
neira diversa: o pai, sempre fiel ao meio de origem, não
titubeia quando deve enfrentar um problema; e o filho,
entregue aos padrinhos e tendo servido como pajem, isto
é, sendo um alienado da vida autêntica do morro, toma a
decisão que a comunidade condena. Sugere o dramaturgo
que as circunstâncias moldam o indivíduo, e o próprio pai
se responsabiliza pela detecção do filho, por não querer
considera-lo congenitamente mau. Depois da prova defini-
tiva, o filho poderá integrar-se de novo no meio. A peça
patenteia outra tese, segundo a qual o indivíduo que pro-
cura salvar-se sozinho, desconhecendo o interesse coletivo,
se vota à solidão irremediável e ao desprezodos demais. À
vida difícil e sem comunicação da cidade, o texto opõe o
trabalho árduo mas com apoio nos semelhantes, simboli-
zado na solidariedade vigente no morro.
O esquema de duas mentalidades antagónicas que
buscam a síntese se repete no binómio que rege a vida
humana: o amor e o trabalho. Os dois se acham intima-
30 Sábato Magal. Palco Brasileiro 31
mente entrelaçados na figura de Tião, fixando-se no de-
correr da peça em intrigas paralelas. O amor por Mana
leva o jovem a querer melhorar de nível financeiro, a fim
de usufruir a existência perfeita. Quando, pelo desprezo
dos colegas, é obrigado a procurar outro emprego, e, pela
reprovação paterna, sente-se coagido a deixar a casa, o
amor também não tem possibilidade de completar-se, ao
menos momentaneamente. Mana o recebera de volta, se
ele se reintegrar na favela. Mas não o acompanha na pere-
grinação à cidade, e se encarregará de cuidar sozinha da
criança que vai nascer, e que, na linha de fidelidade ao
ambiente. recebera o nome do avâ.
Tudo isso poderia parecer um pouco simplificado,
até romântico ou primário, se o texto não se incumbisse de
filtrar a ideologia em afirmação de vida. Na contextura da
peça, a simplicidade é elemento obrigatório, sem o qual as
personagens não teriam razão de ser. Todas foram toma-
das ao vivo, em flagrantes sucessivos do quotidiano, nada
elaborado para que não se perdesse a espontaneidade.
Romana, sob esse aspecto, é a criação mais feliz,
uma autêntica mãe, como as generosas figuras do teatro
de Brecht. A aspereza do trabalho não Ihe tira o encanto
essencial de viver, que se estende à função de companheira
do marido e à de protetora da prole. A cena em que a
noiva do filho vai confiar-lhe a gravidez demonstra, na
naturalidade e no contentamento com que aceita a revela-
ção, sua íntegra natureza humana. E assim existem as
outras personagens, cujas reações são sempre verídicas,
nada elaboradas. Sucedem-se no painel a poesia e a fir-
meza da noiva, o universo ainda infantil de Chiquinho e
Tezinha, e o tipo contrastante de Jesuíno, o malandro
venal. Nesse mundo, não hâ também lugar para precon-
ceitos raciais. E o compositor que passa todo o tempo ao
violão e, no fim, se entristece porque ouviu seu samba, no
rádio, com a suposta autoria de outrem, marca o espírito
de criação do morro, roubado pela cidade.
A linguagem acompanha fielmente a descrição na-
Hral da favela. As cenas de maior gravidade alternam-se
com os diálogos de saboroso coloquialismo, que mantém a
peça em permanente vibração. Registre-se, como pintura
admirável de costumes, o pedido de casamento, em que
falam o noivo e o irmão da noiva. A excessiva liberdade em
conduzir as réplicas talvez tenha dispersado, às vezes, o
dialogo, que se insinua em certos momentos por inúteis
temas laterais.
O texto, embora trabalhado num sentido de dramati-
zação dos efeitos, conserva fluência na estrutura, A cir-
cunstância de não se perceber nunca o processo de ela-
boração aumenta-lhe o interesse. A matéria não está,
entretanto, bem distribuída, para que a tensão cresça de
ato para ato. Depois da apresentação bem-feita do pri-
meiro, que acaba em festa, o segundo tem feitio intimista,
em que as personagens procuram definir-se para si mes-
mas antes do desfecho. Se se justifica psicologicamente
essa tomada de consciência, do ponto de vista dramático o
segundo ato perde em intensidade e em vigor, para só no
terceiro verificar-se de novo a inteira adesão da platéia.
Ainda assim, a estrutura tem a virtude de não filiar-se a
fórmulas estabelecidas por escolas antigas ou contempo-
râneas, parecendo ditada pelas necessidades interiores do
entrecho. Não cabe investigar influências ou semelhanças
em seu processo literário.
32 Sábado Magal. Um Palco Brasileiro 33
A encenação de José Renato foi, até aquele mo-
mento, a mais homogénea e de rendimento uniforme e
satisfatório. E a empresa supunha muitas dificuldades
para transmitir a veracidade do texto, porque formavam o
elenco atores inexperientes ou estrangeiros. Valorizou a
montagem a maturidade, orientada no sentido do despo-
jamento. José Renato se formara, na proãssão, numa fase
em que o teatro se embriagava na orgia do diretor, detzs-
er-macAína do espetâculo. Em poucos trabalhos ele não
revelava a preocupação de inventar algo, para que sua
presença ficasse marcada. AÍ, o encenador.se libertou da
sedução de impor os próprios achados e atingiu a auten-
ticidade, por despir o conjunto de efeitos. Não seguiu,
também, a pista falsa do pitoresco do morro, despreocu-
pando-se da tarefa quase impossível, na arena, de mostrar
a cor local. . . . .
As ihadequações dos atires foram sem dúvida supe'
radas pela sinceridade do texto, que os envolveu no seu
leste Limo(Tezinhaj, além de outros. O excelente resul-
tado se explica pela identificação que o elenco sentiu com
o texto, animando todo o mundo a fazer uma adequada
escolha de peças brasileiras.
Usam .B/ack-fle apressou a criação do Seminário de Dra-
maturgia, idéia que Augusto Boal e alguns amigos vinham
amadurecendo. Julgava-se importante estimular o apare-
cimento de novas obras, que alicerçariam um teatro fun-
damentalmente nosso e alimentariam, também, o cartaz
do Arena e de outros grupos que se irmanassem nos mes-
mos ideais. Aberto em abril de 1958, dois meses após a
estreia da peça de Guamied, o Seminário abrangia os
seguintes itens: 1) parte prática -- a técnica de drama-
turgia; b) análise e debate de peças; 2) parte teórica -- a)
problemas estéticos do teatro; b) características e tendên-
cias do teatro moderno brasileiro; c) estudo da realidade
artística e social brasileira; d) entrevistas, debates e confe-
rênciascom personalidades do teatro brasileiro. A seleção
e o encaminhamento de peças e a divulgação das teses e do
resumo dos debates competiriam à Secretaria do Semi-
nário.
Foram membros fundadores, iniciando suas ativi-
dades permanentes: Augusto Boal, Barbosa Lassa, Beatriz
de Toledo Segal], Flávio Migliaccio, Francisco de Assis,
Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Mana Thereza
Vargas, Manoel Cardos, Miguel Fabregas, Milton Gonçal-
ves, Nelson Xavier, Oduvaldo Vianna Filho, Roberto
Freira, Raymundo Vector Duprat, Roberto Santos, Sábato
Magaldi e Zulmira Ribeiro Tavares.
Como o Arena visava a uma renovação completa do
teatro, que não se esgotava na dramaturgia, surgirá mais
tarde o Laboratório de Interpretação, para estudo dos
livros de Stanislávski e dos métodos por ele inspirados ao
.4cfors ' Sfudío, examinando-se seu eventual aproveita-
mento no teatro brasileiro. O prometo era o da leitura, por
Seminário de Dramaturgia
O clima de euforia trazido pelo êxito de .E/es ]Vão
34
Sábado Magaldi
hesitou diante dos golpes de teatro, como a cena de Durval
no segundo ato. Não hesitou diante da necessidade de uma
elaboração literária do dialogo. O seu texto ditou o estilo
da encenação: o realismo teatral. De todos os estilos 'ilu-
sionísticos', este é o que pode mais energicamente atingir o
espectador. E transmitir o conteúdo de (11%apeftzba ao
espectador foi o princípio básico da nossa direção". Boal
afirma que se valeu da experiência de Stanislávski e de
Ena Kazan: ''Porém, tenha os defeitos que tiver, o nosso
trabalho não será nunca uma reprodução, uma cópia
Em (üapetuóa, Vianninha teve a sensibilidade de
fixar pela primeira vez no teatro um tema eminentemente
nacional. O futebol é um dos assuntos mais vivos do País.
Lota os estádios e faz que a nação se paralise, quando da
disputa de um troféu mundial. Liga os torcedores de ori-
gens mais diversas a uma única emoção, diante de um
lance decisivo. Sob certo aspecto, preenche um papel de
união da coletividade (apesar da disputa de adversários) ,
que era antes atribuído ao próprio teatro. A dramaturgia
não poderia desconhecê-lo mais tempo.
Chapetuba .F:. C. examina, por dentro, o mecanismo
do esporte, engastando-o no quadro amplo da realidade
social, que o condiciona e sem dúvida Ihe determina as
características. O texto transcende, nesse caminho, as
fronteiras da tipificação de um grupo humano,para si-
tuar-se como estudo de indivíduos de uma classe desfavo-
recida, em face da ordem social injusta. Os vários joga-
dores, sem serem abstrações, simbolizam as diversas fases
de uma evolução, em que lutam desesperadamente por
sobreviver. E sabe-se, com certeza, que o tempo os esma-
gara
Assumindo o autor brasileiro
efeito a fala vazia' sto Boal alterava suas premissas
36 Sâbato Magatdi í?tt Palco Brastlelro 37
Escreve-se sobre o País teóricas e liga-se ao desenvolvimento do nacionalismo polí-
tico. Já fizemos enormes progressos no teatro de imitação,
no teatro de importação; já montamos belíssimos espetâ-
culos alienados de nossa realidade humana e social. Agora
precisamos errar nos nossos erros. Sabemos pobre a nossa
oferta, dedicando este espetáculo -- todos os nossos espe-
tâculos -- a esse movimento de autenticidade que cada vez
mais se concretiza
O malogro financeiro de Gente como a Gezzfe impôs
a volta de .E/es .Nâo [/sam .B/ack-fíe e viagens ao interior e
ao Rio de Janeiro, tendo a sala da rua Theodoro Bayma
acolhido o elenco do Teatro Oficina, para levar .4 1ncu-
badeíra, de José Celso Martinez Corrêa. Ao retornar à sua
sede, o grupo do Arena mostra, a partir de 23 de outubro,
outra faceta do País, em .4 Farsa da .Elçposa .Pel#efla, de
Edy Limo. O diretor Augusto Boal chegou a visitar Bago,
onde se passa a ação, o que o decidiu a não ressaltar a
influência espanhola no vocabulário e sim o motivo dra-
mático dos diálogos.
A peça se aproxima das outras obras discutidas no
Seminário apenas num território amplo, em que impor-
tam as afirmações de uma vitalidade legítima. Fincada
numa região fronteiriça do Rio Grande do Sul com o Uru-
guai, a farsa apreende as peculiaridades das personagens
populares e o linguajar local, que Ihe dão seiva autêntica. A
intriga nasce do conluio de duas mulheres, destinado a
poupar o sofrimento de um homem. Sirvano tem um galo
de briga, que deve competir com o de Zela. Significativa
aposta está em causa. O galo de Sirvano adoece e a benze-
deira não consegue cura-lo. Morto o galo, a situação de
Sirvano seria desesperadora, se. .. sua bonita mulher não
A expansão do Arena e a necessidade de experimen-
tar os textos de membros do Seminário determinam o lan-
çamento de um Teatro das Segundas-feiras, com peças
dirigidas por Fausto Fuser. A 25 de maio de 19S9 estréiam
Qua o de .Empregada, de Roberto Freira, e .BÍ/bao, Vz'a
Copacabana, de Oduvaldo Vianna Filho. QtzaNO de .Em-
pregada tornou-se a peça mais representada de Roberto
Freire e .Bílbao é qualificada pelo autor apenas como
exercício, embora Fausto Fuser reconheça que ''esse ras-
cunho encerra misteriosamente todos os sinais que seriam
acionados e cumpridos ao longo de sua obra''. Depois de
varias apresentações às segundas-feiras, o espetâculo cum-
pre curta temporada diária, até que se inicie, a 7 de julho,
a carreira de Ge/zíe como a Gente, também de Roberto
Boal apresenta, no programa, o texto que dirigiu:
Nunca esteve a dramaturgia brasileira tão exuberante e
vária como agora. Estreiam Chapefuba e Gamba, volta .A
Compadecida. Vem para São Paulo Pedra Jbílco e O Santo
e a Porca. Anunciam Jorge Andrade, Nelson Rodrigues,
Calçado, Catalano, talvez Alencar. E nós apresentamos
Gente como a Gente. E no Seminário de Dramaturgia
continuamos dando duro e dando tudo. Escreve-se sobre a
Central do Brasi], sobre futebol, o morro carioca, o luga-
rejo mineiro, um bairro do Rio, gente do Norte. Escreve-se
sobre o Brasil. O caminho esta se impondo: escrever bra-
sileiro, sobre temas nossos. Interpretar brasileiro, peças
nossas. Não se trata de um caminho alvitrado, mas do
único necessário à evolução do nosso teatro. Tem bases
Freire
38 &) (zi:/ul u Jr] u.g«t(Z
Um Palco Brasileiro 39
se apressasse em salvar-lhe a honra. Como? Comprando a
condescendência do adversário, através da concessão de
algumas horas noturnas, na ausência do marido. Por
muito amar a Sirvano, a mulher o trai, a fim de que ele
não sofra, jâ que da traição ele não saberia. O particular
sabor de amoralismo e a liberdade de Edy Lama em face
dos mandamentos éticos rotineiros filiam a peça à admi-
rável tradição universal da farsa.
A 19 de abril de 1960 estrêla Fogo Frio, de Benedito
Ruy Barbosa, de novo sob a direção de Augusto Boal,
Trata-se de produção conjunta do Arena e do Oficina,
grupos que, nessa fase, tiveram diversos pontos de con-
tato. Augusto Boal orientou curso de interpretação do
elenco do Oficina e dirigiu .4 Ezzgrenagem, adaptada por
ele e por José Censo da obra de Sartre, além de t/m .Bonde
Chamado Z)ese#o, de Tennessee WilliáHS. E o Oficina
montou de Boal, sob a direção de Antânio Abujamra, a
peça rosé, do Parto à Sepu/fura. Aproximados pelo inte-
resse comum em torno das teorias de Stanislávski e das
experiências do .4cfors ' Sttzdío, estreitando-se as relações
quando da visita de Sartre ao Brasil, em 1960, Boal e José
Celso receberiam a influência posterior de Brecht, mas
deglutida de formas diferentes e levando a caminhos que
mantiveram entre si completa independência.
Sátira à América do Sul Cartaz de Revolução na América do Sul, de .4zigusfo .Boa/.
rosé Renato volta a dirigir e precisamente Neva/uçâo
rza .4mérfca do Stz/, de Augusto Boal, estreada em São
Paulo a 15 de setembro de 1960, depois de iniciar carreira
40 Sâbato Magatdi Um Palco Brasileiro 41
no Rio de Janeiro. Boas, que havia consolidado nome
como encenador e ideólogo, exercendo justa liderança no
teatro paulista, não escrevera ainda uma peça que o colo-
casse entre os nossos melhores dramaturgos. Rapo/ração
conquistou para ele esse posto.
Abrindo campo novo, o texto mostrou também que
a diversidade da nossa literatura dramática só tendia a
enriquecer-se. A princípio, os diálogos deixam perplexo o
espectador. Certas cenas parecem em vias de desfazer-se
no caos, tal a forma indisciplinada e anárquica. Fosse o
dramaturgo um pouco mais longe e não conseguiria conter
a verve desagregadora da ação e das réplicas. A quase
falta de estrutura, porém, é apenas aparente. O flagrante
episodismo nasce de uma necessidade íntima da trama. O
arcabouço define-se em função da personagem José da
Silvo, que estabelece a unidade do texto. A técnica incide
no procedimento épico. Recorda-se Mãe Coragem, an-
dando sem parar em busca da sobrevivência. E esse o
itinerário do protagonista: vai sucessivamente aos mais
diversos lugares, à procura do almoço. Outra proximidade
do texto com a teoria brechtiana esta no didatismo das
canções finais das várias cenas, embora ele se mostre mais
um ''suplemento" do espetáculo do que propriamente
uma exigência orgânica do original.
As raízes de Ret,o/ração encontram-se, por certo, no
espírito da comédia aristofanesca. Não só pelo feitio polí-
tico do autor ateniense, que passava em revista toda a
atualidade grega(sua origem aristocrática situava-o, de
qualquer forma, na oposição). Mesmo partindo de pre-
missa doutrinaria diversa, Boas tomou o partido da total
rebeldia, da recusa de todas as tâticas acomodatícias, jus-
tificadoras ou de conveniência. A peça é contra tudo e
contra todos, e, realmente, só a favor do operário José da
Silvo, que esta morrendo de fome. A lembrança aristo-
fanesca é, porém, mais profunda, e surge do próprio es-
quema da fatura teatral, que procede por hipérbole e por
abstração. O gênero atribuído ao texto é o ''documentá-
rio''. Não estaria o autor reivindicando a verdade absoluta
do que exprimiu? O exagero ilusório da realidade tem por
fim captar a essência profunda dessa realidade. Em ter-
mos realistas, puramente, não se acreditaria que o ope-
rário não sabe o que é sobremesa, que tem um filho toda
semana, que morre porque almoçou, depois de tanta
fome. O sistema eleitoral(com a contagem de votos seme-
lhante à dos tentos marcados numa partida de futebol),
a presença do Anjo da Guarda(falando inglês e exigindo
rapa/fias de todas as utilidades de José da Sirva), além de
numerosos outros exemplos, explicam-se pela deliberada e
lide abstração. Quem não enxerga, contudo, atrás desse
disfarce, uma visãoconcreta da vida nacional? Se o Nar-
rador, no epílogo, proíbe à platéia qualquer dúvida sobre
a seriedade das intenções do texto(''se o teatro é brinca-
deira, lâ fora é pra valer"), e se pode considerar política
sua mensagem final, o instrumento foi sempre o da comé-
dia. Muitas vezes grosseira, mal-educada, sem sutileza,
Neva/uçâo guarda, no entanto, toda a vitalidade alegre e
contagiante da farsa prÍinitiva. Sente-se nela o sopro cria-
dor do teatro. Pelo trabalho consciente do dramaturgo, ela
significa mais ainda: assimila, pelos seus vários aprovei-
tamentos, as lições tradicionais do teatro, e mistura-as
com os estímulos imediatos da experiência nacional -- a
revista e o circo. Toma-se um amálgama feliz de nossa
42 Sâbato Magatdi
Um Palco Brasileiro 43
aventura artística. Exprime, por esse lado, o que hâ de
mais autêntico em nossa cultura: a aliança do aprendizado
europeu e norte-americano com as forças espontâneas da
nacionalidade.
Pode-se acreditar, apressadamente, que Neva/tição
sela uma peça pessimista. No grito franco e irreverente
contra as mistificações, ela sublinha, por certo, o descon-
tentamento coletivo. O título é satírico, pois visa a brincar
com as revoluções permanentes das repúblicas sul-ameri-
canas, cujo objetivo se concentra em substituir uma oli-
garquia por outra. No programa do espetâculo, em abono
de seu processo literário, Boal escreveu: ''Se o Serviço de
Trânsito exibe fotografia de desastre, precisara também
exibir trevos elegantemente retorcidos sobre os quais des-
lizam maciamente veículos recém-importados, em veloci-
dade moderada? O desastre basta como advertência. Eu
quis apenas fotografar o desastre". Não era necessário
maior didatismo. José da Silvo, segundo informa o pró'
logo, é ''um homem que lutou sem conhecer o inimigo". O
espectador, porém, ao deixar o teatro, é capaz de iden-
tifica-lo, sem equívoco.
Roberto Rocha Coelho. As montagens estiveram a cargo
do Grupo Equipe Paulista de Teatro e de Os Farsantes.
Lauro se incorporada, também, ao grupo dos nossos au-
tores mais atuantes. Somando-se aos lançamentos do
Arena os de outros elencos, que encenaram, por exemplo,
O Pagador de Promessas, de Dias Gomos (TBC), .4 Xa/e-
cfda e .Boca de Ozzro, de Nelson Rodrigues(respectiva-
mente Teatro do Rio e Ziembinski), e Vz'rfzzde e Círczzns-
fá/zela, de Clâ Prado, ... Em Moeda Corrente do /'ah, de
Abí[io Pereira de A[meida, e ]Wode e Vz'da Severína, de
Jogo Cabral de Meio Neto (Teatro Cacilda Becker), foi
possível ao cHtico Décio de Almeida Prado afirmar, em O
Estado de .S. jazz/o de 8 de janeiro de 1961, que ''desde
que se iniciou a renovação do teatro paulista, 1960 foi o
primeiro ano em que os originais brasileiros despertaram
maior interesse que os estrangeiros, tanto junto à crítica
como ao grande público''. Estava plenamente vitoriosa a
política empreendida pelo Arena.
Munição escassa
Uma política vitoriosa Mas, ao mesmo tempo em que era possível constatar
essa verdade, principiava-se a lamentar a ausência de bons
textos brasileiros no repertório do Arena. Sobre Plnfado
de .4/abre, de Flávio Migliaccio, dirigido por Augusto Boal
e lançado em 23 de janeiro de 1961, Décio de Almeida
Prado escreveu em O .Enfado de S. Pau/o de 2 de fevereiro:
''É preciso chamar a atenção sobre os problemas brasi-
leiros. Mas é preciso também que as nossas peças não se
O ano de 1960 marcou ainda a estreia, às segundas-
feiras, no Arena, de um novo autor: Lauro Casar Muniz.
Apresentaram-se dele Os 4zl/os Censurados, sob a direção
de Antõnio Ghigonetto; J}6nAa .Esposa, o Otzíro e .Eu, sob
a direção do autor; e O Santo ]b41Zagroso, sob a direção de
44 Sâbato Magaldi Um Palco Brasileiro
45
envergonham de serem somente peças e as nossas farsas de
serem somente farsas, quando por acaso isso ocorrer. Nin-
guém contesta que salvar o Brasil é tarefa de alta magni-
tude. Mas se alguém permanece no teatro, se não aban-
dona o palco e vai para a praça pública fazer comício, não
será porque sente confusamente que o teatro, sem ser a
cogitação mais alta ou premente da humanidade, é a
única forma de expressão que ele reconhece legitimamente
como sua?
Pouco mais de um mês depois, em 18 de março,
comentando a realidade teatral paulista, sob o título ''En-
cruzilhada", eu escrevia um artigo, no Suplemento Lite-
rário de O Estado de S. /'azz/o, de onde transcrevo o se-
guinte trecho: ''Descobriu-se, num momento, que as peças
brasileiras, pela linguagem e pela problemática próxima
do público, tinham ensejo de obter maior êxito, além de
serem mais significativas num programa cultural. O Tea-
tro de Arena tomou-se bandeira dessa plataforma esté-
tica, e sua posição converteu-se em paradigma de um
teatro melhor. A realização objetiva desse programa, con-
tudo, depois de vários êxitos expressivos, incidiu num
triste beco sem saída. .E/es ]Vão Usam .BZack-fíe e Revo-
/ração lza 4méríca do Su/ deram a alta medida dos propó'
fitos do Arena. Outras peças, como .A Farsa da Esposa
Pel#eífa e C/zapeftzba .F'. C. , eram tentativas promissoras.
Fogo Frio já tingia de subliteratura os simpáticos anseios
nacionais. Pínfado de .4/erre, a última produção, esfriou
de seu calor o empenhado programa de incentivo à drama-
turgia brasileira. Texto, direção e desempenho eram fra-
quíssimos, e o Teatro de Arena só sairia do impasse com
uma proposição nova. O elenco, à falta de um espetâcula
quejustificasse daqui por diante a sua subsistência, optou
por uma excursão. Que novas platéias Ihe sejam favorá-
veis. Seus dirigentes têm plena consciência de que a mon-
tagem de peças brasileiras, a qualquer custo, não significa
mais nada. Não hâ público que se deixe embair pela pro-
paganda do prestígio ao que é nosso. Píizfado de .4/gere
caberia muito bem num programa experimental, para
estímulo aos dramaturgos estreantes, numa série de se-
gundas-feiras. A temporada regular da peça foi um erro
tâtico imperdoável, que por pouco não trouxe a falência
do grupo. Esperamos que o malogro inspire um pouco de
juízo ao elenco, para que ele retome a São Pauta em bases
diversas. Basta de insensatez. Façamos teatro brasileiro
com boas peças brasileiras. E deixemos de imaginar reper-
tório com textos que nem foram escritos". Com essas
observações, eu criticava também a política fechada do
Arena, de apego exclusivo aos elementos do grupo, quan-
do seria possível levar ao cartaz boas peças de outros au-
tores, cuja formação se fizera em bases diferentes.
A 7 de julho subiu ao cartaz O TesfameBfo do Can-
gaceíro, de Francisco de Assis, outro membro do Semi-
nário de Dramaturgia e ator do elenco. Ao escrever sobre o
texto, sob o título ''Folclore politizado", no Suplemento
Literário de O Estado de 12 de agosto de 1961, lamentei
inicialmente que o es2etâculo tivesse sido proibido em
Santos e Bauru, o que levantou explicável celeuma. Augu-
rando que as reservas não favorecessem os reacionários e
os obscurantistas, afirmei ter apreciado muito pouco a
obra, que acompanha uma regra dos dramaturgos brasi-
leiros de fazer um bom primeiro ato e se atrapalhar no
desfecho.
46 Sábado Mlagatdi
Um Palco Brasileiro 47
O Tesfamenfo do Cangaceíro, no início, não clau-
dica muito. Logo aparecem as influências sofridas pelo
autor. mas os méritos que Ihe são próprios introduzem
simpaticamente o público na narrativa. Certas constru-
ções sintéticas e mesmo o emprego de palavras traem a
leitura de Guimarães Rosa, e não poderia haver melhor
apadrinhamento literário. Os dramaturgos sob cuja égide
se constrói a peça são Ariano Suassuna e Bertolt Brecht, e
esse conúbio, à primeira vista tão estranho, se explica
também, e não deixa de suscitar o interesse da platéia.
Francisco de Assis mostra aptidão para o dialogo e talento
cómico, estribado na réplica imprevista e divertida, esti-
mulante para o intérprete. Essas qualidades seriam bas-
tantes para saudar com muito calor o lançamento do dra-
maturgo, se os defeitos não produzissem mais sérias in-
quietações.
Francisco de Assis aproveitou a estrutura funda-
mental do auto e do milagre da Idade Média,que tão bem
se casa ao populârio nordestino, para insuflar-lhe a ''li-
ção" brechtiana. A dicotomia do Bem e do Ma], personi-
ficadas pelo dialogo com Nossa Senhora e o Demónio,
serve de moldura aos episódios, não para estreitar os laços
do herói com a divindade, mas para concluir que se en-
contra nas mãos do homem, e só dele, o destino humano.
Clarim desdobra-se em homem mau, à semelhança da
passagem de Chen-Tê a Chui-Tâ, em .4 .4Zma .Boa de
Sefstzã, correspondendo à simbolização medieval-nordes-
tina da entrada do Demónio no palco. A síntese brechtiana
é feita pela apresentação de desculpas, por terem os três
deuses fugido para os céus, incapazes de responder ao
apelo da protagonista, concitando-se o público a encon-
trar a solução. Francisco de Assis, antes de confiar men-
sagem idêntica aos espectadores, promove o encontro de
Nossa Senhora e do Cão, chamados simultaneamente por
Cearim, que fala: ''Quem me tirar desta enrascada eu sigo
no respeito, com o outro eu corto relações". Natural-
mente, é o próprio herói quem tem de achar uma saída do
embaraço, e da impotência sobrenatural para dirimir os
problemas humanos se conclui que é o homem que precisa
resolver a sua vida.
Enquanto o autor brinca, dentro de um contexto
mais plausível, tudo caminha bem. É muito divertida, por
exemplo, a cena da morte do cangaceiro: antes de entregar
a alma aojuízo divino, ele envia um saco de dinheiro para
a moça que infelicitou e outro para o padre, a fim de rezar
missa pela sua salvação eterna. Além da ironia do dialogo,
vê-se no episódio um real conhecimento da psicologia bra-
sileira, feita de resquícios de religiosidade e de supers-
tições. A graça vem espontânea da exata fixação do fla-
grante. O dramaturgo, porém, não soube encontrar mate-
rial para alimentar com a mesma felicidade a continuação
da história. Apela, por isso, para expedientes fáceis, to-
mados desde a comédia popular à farsa molieresca, mas
sem aceitável autenticidade. Nesse caso esta a troca de
Cearim pelo sacristão, no saco em que se encontrava preso
o primeiro (o argumento usado é de inverossímil ingenui-
dade). A perseguição de Cearim ao irmão do cangaceiro e
ao cego, como alma do outro mundo, descamba também
para a mais rudimentar anedota. A chanchada torna-se
absoluta quando o irmão do cangaceiro e o cego, para
iludir o vigário(que poderia escutar a voz de Cearim
dentro do saco), cantam e dançam com estrépito, e aca-
48 Sábato Magaldi IJm Palco Brasileiro 49
bam sendo acompanhados nos passos pelo ministro de
Fiel à influência brechtiana, a peça tem um narra-
dor(que tira as ilações da história), e leva o protagonista a
reagir a circunstâncias diversas e sempre renovadas, em
mais de uma dezena de quadros. As canções, de letras
didâticas, ligam as diferentes cenas, e o itinerário de Cea-
rim, desde o mais completo abandono no mundo (pela
morte dos pais) até a consciência da luta política(nascida
ao cantata dos camponeses), traça a parábola épica de O
Tesfamezzfo do Cangacefro. Foi pena que o barateamento
primário das intenções reduzisse tanto o alcance do texto.
Seu espírito deveria aproximar a montagem do estilo
cénico dado a levo/tiçâó na 4mérfca do Su/. O espetá-
culo, entretanto, pecou pela ausência de invenção e, ao
invés de fazer a síntese dos géneros populares, esülizando-
os, permanecia na chanchada. Parecia um recuo de vinte
anos, antes que Os Comediantes e o TBC tivessem imposto
um novo padrão ao nosso palco(a crítica dirige-se ao
conjunto do espetâculo e ressalva, entre outros, o admirá-
vel desempenho de Lama Duarte) .
O comentário concluía afirmando que, desde a es-
trêla de .E/es .Não Usam .B/ack-fíe, o Arena havia apre-
sentado algumas das melhores e algumas das piores ence-
nações das últimas temporadas. O elenco jâ estava demo-
rando a rever sua linha e seus propósitos. Os autores bra-
sileiros venceram, sem mais dúvida, a batalha junto ao
público e aos empresários. O Teatro de Arena conseguiu
que nenhuma companhia se assustasse com a perspectiva
de levar um texto nacional. Todos os queriam. Mas exi-
gíamos também boas peças brasileiras -- a nacionalidade
Deus
do dramaturgo interessava menos, naquela fase, como
cartão de visita. Ansiávamos por textos de mérito -- de
qualquer procedência e idade. Que o Arena começasse ao
menos a ensaiar uma peça uma semana depois que ela
estivesse inteiramente escrita. Do contrário, ao invés de
continuar a importante tarefa de construir a dramaturgia
brasileira, ele estaria compondo o seu epitáfio.
IJm Palco Brasileiro
51
companhia.
'Entre os clássicos, estuda-se a possibilidade de en-
cenar .4s Famosas .Asfurfanas, de Lope de Voga. (...) Se
vingar essa nova linha, o Arena passara a uma política
semelhante à de um Teatro Nacional Popular francês e de
um 'Piccolo' de Melão, por exemplo." A estrêla de O Tes-
famenfo do Cangaceíro, assim, não correspondia aos an-
seios do próprio elenco, ocorrendo em virtude de uma
oportunidade que é muito mais importante, no teatro, do
que os programas rígidos, raramente cumpridos
Não surpreende, com esses antecedentes, que o
Arena lançasse, abrindo a 7 de fevereiro a temporada de
1962, Os Fuzis da Sra. Cerrar, de Brecht. José Renato
havia dirigido o texto, no Rio, com o elenco do Teatro da
Praça, e a montagem paulista era protagonizada por.Dina
Lisboa, como atroz convidada. Não obstante a qualidade
do elenco, em que figuravam Lama Duarte, Paulo José e
Ary Toledo(cenários e figurinos de Flâvio Império), o es-
petâculo não entusiasmou, retornando ao cartaz, mais
uma vez, Eles Não Usam Btack- tie.
A 12 dejulho, oEkrado divulga que o grupo inlciana,
naquela data, os ensaios de 4 Jb/andrágora, de Maquiavel,
com diversa estrutura administrativa. A organização so-
cietária tinha José Renato apenas como presidente de
honra, figurando nela Augusto Boas, Juba de Oliveira,
Paulo José, Gianfrancesco Guamieri e Flâvio Império.
rosé Renato passava à categoria de .Pee-/ancer, aceitando
os convites que eventualmente Ihe fossem formulados por
quaisquer elencos.
Desejava o Arena prestigiar o repertório popular
internacional, de qualquer época. Por isso, anunciava,
O CLÁSSICO,
NOSSO CONTEMPORÂNEO
Necessidade de alterar a linha
A verdade é que o problema jâ sensibilizara os res-
ponsáveis pela casa de espetâculos. Em 17 de fevereiro de
1961, a coluna de informações teatrais do Estado, que eu
redigir, publicou: ''Em reunião da diretoria do Arena,
decidiu-se em definitivo modificar a linha de repertório
aditada nos últimos anos. Acreditam os dirigentes do
conjunto que jâ está consolidada a posição do autor bra-
sileiro nas companhias teatrais, não sendo necessário, as-
sim, prosseguir um programa estrito de montagem de suas
'A nova linha de repertório não esta ainda inteira-
mente definida, mas compreende a montagem de clássicos
e modernos que soam capazes de interessar a um público
popular. Uma peça de Brecht estava nas cogitações do
Arena, mas os direitos de encena-la pertenciam a outra
peças
52 Sábado Magaldi \lm Palco Brasileiro S3
para depois de 4 .A/andrágora, uma peça de Brecht, ainda
em estudos (que não foi montada, naquela temporada), e
finalmente, encerrando o programa do ano, O Mê/Àor
Juiz, o Reí, para comemorar o quarto centenário do nas-
cimento de Lope de Vega, numa adaptação de três nomes
da nova geração -- Gianfrancesco Guarnieri, Augusto
Boal e Paulo José.
Lucrécia, numa farsa bem engendrada, tem o apoio do
próprio marido, o velho Messer Nícia, da mãe dela, Sós-
trata, e do confessor, Frei Timóteo. Se o marido aceita o
arranjo por ingenuidade, a mãe e o frade agem por prin-
cípios nada ortodoxos, o que resulta em crítica virulenta à
sociedade seiscentista. Prevalecem as conveniências finan-
ceiras e de esperança na perpetuação da espécie, frustrada
pelo idoso consorte. A mandrágora do título é a poção
receitada para propiciar a gravidez. . .
Boal ponderou que ''Maquiavel foi o primeiro ideó-
logo da burguesia então nascente; nossa produção inseria-
se no século da sua decadência. (...) O se#=made-ma/z
(Dale Camegie) decadenteé o mesmo homem de ví#z2 do
florentino.
'.4 .A/amdrágora, em nossa versão, foi feita não como
peça académica, mas como esquema político ainda hoje
utilizado para a tomada do poder. O poder, na fábula, era
simbolizado por Lucrécia, a jovem esposa guardada a sete
chaves, mas mesmo assim acessível a quem a queira e por
ela lute -- sempre que se lute tendo em vista o fim que se
deseja e não a moral dos meios que se usam". Tenho
minhas dúvidas se a platéia decodificava a simbologia vis-
lumbrado por Boal. Sem pretender minimizar a intenção
política do espetáculo, creio que ele foi apreciado pelos
valores estéticos -- o engenho da peça e o frescor da inter-
pretação, maliciosa, irónica, positiva na sua mensagem.
A imposição do autor brasileiro, que parecia fato
consumado, não teve continuidade feliz, em 1962. Ao rea-
lizar o balanço da temporada, no Estado de lo de janeiro
de 1963, Décio de Almeida Prado observou o mau plane-
jamento do trabalho das empresas, sobretudo das jovens,
O clá.ssico nacionalizado
.4 Ma/zdrágora estreou a 12 de setembro, sob a
direção de Boas, constituindo-se num merecido êxito. E
evidente que não havia tempo, em 1962, para fazer outro
Brecht e festejar o quarto centenário de Lope, que ficou
para o ano seguinte. A fase de montagem dos clássicos,
nascida da busca de um repertório popular, acabou aos
poucos se consolidando e adquiijndo feição diferente: ur-
gia nacionaliza-los, em termos de linguagem e consonân-
cia com a sensibilidade do público. Importava menos re-
produzir o estilo europeu(tarefa, alias, quase impossível
de ser concretizada) do que encontrar a força de pere-
nidade que tornasse a obra contemporânea.
.4 Mandrágora prestava-se extraordinariamente ao
primeiro impulso do Arena, pela vitalidade e pela crítica
demolidora, de que Neva/ração na .Améríca do Szz/ poderia
considerar-se até um eco longínquo. Maquiavel (1469-
1527) introduziu, na estrutura da Comédia Nova greco-
latina, a corrosão aristofanesca, tratando o tema do adul-
tério feminino, inexplorado pelos autores antigos. A vito-
riosa investida do jovem Calímaco à cidadela da bonita
Palco Brasileiro 55
54 Sábato Magaldi
média de costumes, cujo alvo, em muitos aspectos, se
assemelhava ao mesmo por ele perseguido. A crítica brin-
calhona nem precisava atualizar-se: aplicava-se, por in-
teiro, ao país daquele momento. Apenas o estilo do espe-
táculo não poderia remontar às fórmulas do romantismo e
à ingénua trama amorosa.
O monólogo de Ambrósio, abrindo o espetáculo,
propiciava a imediata identificação do espectador com o
universo que Ihe era familiar: ''Se em algum tempo tiver
de responder pelos meus fitos, o ouro justificar-me-â e
serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os
pobres...". Logo adiante, o ''noviço" Carlos mostra um
revelador retrato do país: ''Este tem jeito para sapateiro:
pois vâ estudar medicina.. . Excelente médicos Aquele tem
inclinação para cómico: pois não senhor, será político. ..
Ora, ainda, isso vá. Estoutro tem jeito para caçador ou
borrador: nada, é ofício que não presta. . . Seja diplomata,
que borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a
propensão para a ladroeira; manda o bom senso que se
colHIa o sujeitinho, mas isso não se faz: seja tesoureiro de
repartição fiscal, e lâ se vão os cofres da nação à garra...
Essoutro tem uma grande carga de preguiça e indolência e
só serviria para leigo de convento, no entanto vemos o bom
do mandrião empregado público, comendo com as mãos
encruzadas sobre a pança o pingue ordenado da nação''
Continua Carlos: ''Este nasceu para poeta ou escritor,
com uma imaginação fogosa e independente, capaz de
grandes coisas, mas não pode seguir a sua inclinação,
porque poetas e escritores morrem de miséria, no Bra-
sil..." Adiante, ao saber que Rosa acaba de chegar do
Cearâ ao Rio, Carlos pergunta se ela deixou aquilo por lâ
entre as quais o Arena, esticando indefinidamente a car-
reira de peças ou o intervalo entre duas montagens. E
comentou: ''A vaga de autores nacionais, que subira tão
alto em 1960 e 1961, recuou nitidamente. Não mais de três
peças brasileiras foram estriadas em São Paulo em 1962:
,4 Neva/ração dos .Beatos(Dias Games), .4ntegone-.4méríca
(de Carlos Henrique Escobar) e O Sorriso de Pedra(de
Pedra Bloch) -- e nenhuma conseguiu destacar-se. Parece
que o nosso público se cansou com determinadas cons-
tantes da dramaturgia nacional dos últimos anos -- popu'
lismo, esquematismo político -- e que a consciência desse
fato refletiu-se inclusive sobre os empresários''
Na temporada de 1963, o elenco do Arena excur-
siona muito e estrêla em São Pauta, a 30 de março, O .Nb-
vfço, de Martins Pena, e a 26 de agosto, O .BÍe/#or Juiz,
o Reí. Um anúncio do programa dâ conta das outras ati-
vidades: o grupo carioca leva ,4 Ã/andrágora e o conjunto
infantil paulista(dirigido por Silnei Siqueira, Ana Mana
Cerqueira Leite, Gerson Knispel, Tiche e Mana Anélia
Cozzella, e formado por elementos do Colégio de Aplica-
ção, que se vinculara ao Centro de Pesquisas Educacio-
nais) encena .4 .Bmxln#a qtze .Era -Boa, de Mana Clara
Machado.
Martins Pena atual
Não cabe, evidentemente, a propósito de O ]qovíço,
mencionar nacionalização de um clássico, por se tratar do
nacionalíssimo Marfins Pena (1815-1848). Para o Arena,
era simpático encenar um texto do fundador da nossa co-
56 Sâbato Magaldi Palco Brasileiro 57
tranqüilo, ouvindo, em resposta: ''Muito tranquilo, Reve-
rendíssimo. Houve apenas no mês passado vinte e cinco
mortes". A plateia se divertia com a sátira bem-humorada
do Brasil.
recado. Os ecos do Estado Novo ainda não estavam total-
mente amortecidos, para se aceitar semelhante exegese.
Ademais, na conjuntura política, exacerbadas as reivindi-
cações trabalhistas, não tinha sentido reconhecer uma dá-
diva generosa, mas conclamar o público a exigir seus di-
reitos. E, se possível, leva-lo a realizar a justiça pelas
próprias mãos.
A adaptação consistiu em engenhosa mudança, que
subverte radicalmente o significado do original. O campo-
nês, de fato, apela para o rei. Diante da surdez real,
porém, ele não se intimida: coloca as vestes do monarca e,
em lugar dele, pune com justiça o aristocrata. O artifício
permite que se mantenha a forma exterior do ato -- o
melhor juiz é o rei. O conteúdo adquiriu força revolucio-
nária. O homem do povo, mesmo disfarçado em poderoso,
exerce o direito, vencendo o arbítrio de uma casta que se
acreditava superior.
O debate sobre o problema implica diversos aspec-
tos, desde a validade do procedimento dos adaptadores.
Pode-se, evidentemente, perguntar por que eles não escre-
veram outra peça, em que dispensassem o disfarce, afinal
um recurso do velho teatro. Não se argüiria a inverossi-
milhança da audácia do camponês, pensando que o verda-
deiro monarca logo tomaria conhecimento da sentença
proferida em seu nome? Acredito, contudo, justificar-se
tão grande adaptação, em face da exemplaridade da trama
urdida por Lope, no tocante ao abuso cometido contra o
camponês. E desde que se afirme, como foi feito, que não
se está oferecendo o original. Outra questão, delicada, é
que o estilo do texto refeito não tem a mesma altitude dos
diálogos clássicos. A restrição, sem dúvida, se atenua,
O camponês na veste do monarca
Os adaptadores de O ,Aíe/ãor Juiz, o Reí modifi-
caram profundamente o terceiro ato. Boas justificou assim
a alteração: ''Lope escreveu quando a evolução da História
exigia a unificação das nações, sob o domínio de um Rei.
A obra exalta o indivíduo justo, que em suas mãos reúne
todos os poderes: caridoso, bom, impoluto. Exalta o ca-
risma. Se, para sua época, sua fábula se adequava, para a
nossa e para o Brasil corria o grave risco de se transformar
em texto reacionârio. Por isso, tomou-se necessário alterar
a própria estrutura, para devolver ao texto, séculos depois,
sua ideia original''
Como se processou a adaptação? Em Lope, o cam-
ponês apela para o rei, contra os abusos do aristocrata, e
obtém a punição dele. Supremo juiz, o monarca faz jus-
tiça, sem considerar o alegado privilégiode classe. Era o
momento de enaltecer a unificação do Estado, afastando
os resquícios do feudalismo. O poder unitário do rei se
exercia no conjunto da nação, vencendo as resistências dos
nobres e apoiando os clamores populares. O texto consa-
gra a superioridade do monarca absoluto.
O ponto de vista de Lope, progressista em seu tem-
po, poderia ser confundido, em 1963, com a justificação
de pensamento ditatorial, por meio de um disposta escla-
58 Sábado Magaldi
da exploração do homem pelo homem, o combate aos
fantasmas e a explicação dos fenómenos de um ângulo
sempre terreno e real, a narrativa direta e o dialogo espon-
tâneo. Esses elementos bastariam para assegurar a boa
acolhida ao texto, quando a consciência nacional repu-
diava as injustiças contidas no latifúndio. Sob esse prisma,
O .l;T//zo do CDo parecia uma réplica brasileira de O .A/e-
!horJuiz, o Rei.
Por que o espetâculo não funcionou? Lembre-se que
a matéria dos textos anteriores de Guarnieri se ligava à
vida urbana, nas lutas de classes, o que definiu a sua
contribuição específica à nossa dramaturgia. A passagem
ao mundo rural padecia da ausência de familiaridade com
o tema tratado. O autor emaranhou-se em clichês, sucum-
biu ao cartão postal nordestino da miséria.
A escolha de personagens obedece ao receituário da
região. Os donos da vida distribuem-se entre o filho es-
troina do fazendeiro (Côro), o factótum realista (Afrânio) e
seu ajudante de ordens (Zé Toledo). Bem maior é a legião
de desapossados: Osmar e sua mulher Aurélia, que serão
expulsos até da mísera palhoça, os filhos Rosa e Pedro,
outros camponeses espoliados, o indefectível Santo Ho-
mem, misto de fanático religioso, profeta e mantenedor do
atraso supersticioso, e sua acompanhante, a maltrapilha
Cordeirinho, induzida a ver a presença do demónio no
olhar de inocentes. É quase o folclore do Nordeste, como
ele sobrevive para a observação superficial da cidade.
A trama se alimenta de um recurso ingénuo -- Rosa
e Gertrudes são seduzidas não por homem de carne e osso,
mas pelo demónio, mestre em infiltrar-se nos ambientes
pacatos. A religiosidade tacanha faz que os rebentos, re-
dentro da unidade alcançada pelo espetáculo, cuja garra
atingia em cheio o público.
Pela reforma agrária
Aquilo que, mais tarde, parece um programa tra-
çado de maneira rígida, esgarça os contornos, quando se
examina a sucessão de estrêlas. As fases do Arena não se
substituem com inflexibilidade, até interpenetrando-se,
como é natural, segundo as circunstâncias. Em meio ao
período de nacionalização ou atualização dos clássicos,
insere-se O /}ZÀo do Câó, peça de Gianfrancesco Guar-
nieri, estreada em 21 dejaneiro de 1964. A curiosidade em
torno do texto era enorme, porque marcava a volta do
autor à sala que o lançara, hâ seis anos. No intervalo, além
da co-autoria na adaptação de O .Aíe/#or Juiz, o Reí e de
desempenhos de alto nível, Guamieri obteve dois expres-
sivos êxitos fora do Arena: Gamba, no Teatro Mana Della
Costa, levado em excursão pela Europa; e '4 Semente, no
Teatro Brasileiro de Comédia. Gamba padece de condená-
vel romantismo, no embelezamento heróico do malandro
do morro. Mas .4 .Semente retoma e aprofunda a melhor
diretriz de Eles .Nâo Usam .B/ack-fíe, consolidando a dra-
maturgia de Gianfrancesco Guamieri coma uma das mais
consequentes do nosso repertório. Daí a expectativa que
cercou O .FY/#o do Cão.
Mesmo para os mais empenhados na afirmação do
autor brasileiro, a estrêla decepcionou. Muitas das carac-
terísticas de Guarnieri estão presentes: a ética favorável
aos oprimidos de toda sorte, a denúncia dos desmandos e
ouo«zo nwagaJ Palco Brasileiro ÓI
sultado natural dos encontros amorosos, sejam tidos como
filhos do Cão. E, para exorcizar-se o mal, o intuito é o de
sacrifica-los. Enquanto o filho de Gertrudes é morto, o de
Rosa ganha a estrada, com o auxílio do tio Pedra, que se
revoltou contra a exploração pela discutível saída do
roubo, forma rudimentar do cangaço.
Nenhuma personagem recebe tratamento profundo.
O autor preocupou-se mais em pintar um painel social, em
que as particularidades dão lugar às pinceladas genéricas.
A denúncia seria legítima, se não se socorresse do lugar-
comum. O propósito de realismo, pela efabulação mecâ-
nica, acaba quase incidindo em inverossimUhança. Até o
assassínio do ''filho do Cão" serve de pretexto para os
camponeses serem expulsos da terra, transformada a
crueldade em compreensiva complacência.
Não se pode negar que o dramaturgo, extraordina-
riamente dotado para o palco, saiba escamotear as insu-
ficiências da peça. Santo Homem, por exemplo, símbolo
da fé para os outros, tem comportamento mesquinho com
Cordeirinho e os que não Ihe dão esmola. Esse acréscimo o
humaniza e, implicitamente, serve de crítica ao misti-
cismo, estranho às convicções do autor. Pedra, o único dos
camponeses a ter relativa consciência das questões sociais,
não se converte em herói: a revolta o conduz para a única
ação possível naquele estádio civilizatório -- a retomada,
pela violência, de alguns bens subtraídos das populações
rurais.
A multiplicidade de quadros, utilizada para compor
meticulosamente as informações, não permite o desenvol-
vimento dinâmico da história. A ação, às vezes, por pouco
não se arrasta, não segurando o interesse do espectador.
Falta energia na condução dos episódios, prejudicando
um dos efeitos de que sempre se valeram os textos de
Guarnieri: o impacto emocional sobre o público.
Escrita a pedido de Augusto Boal, embora Paulo
José a tenha dirigido, a peça padece do vício de certas
obras de encomenda, nascidas de esforço de inteligência e
não de irreprimível impulso interior. Ela não compromete
o dramaturgo, mas não faz nenhuma falta ao perfil de sua
personalidade artística. Exterioriza, apenas, uma faceta
do temperamento de Guarnieri, a do político empenhado,
atento aos estímulos da realidade imediata. E, naquele
instante, uma das teclas, alias de reconhecida justiça, era
a necessidade da reforma agrária. O -FI/Ào do (IZo alistou o
autor nessa campanha nacional.
Uma encenação mais inventiva de Paulo José teria
minimizado as falhas do texto. Talvez porque ele figurasse
no elenco, não teve a visão de conjunto, que reclamada
um ritmo vivo para o espetâculo, mesmo apelando para o
corte de cenas ou de diálogos. E não foi poupado trabalho
para um bom resultado, a partir da engenhosa cenografia
de Flávio Império, que ampliou a arena para uma espécie
de palco semi-elisabetano.
Golpe militar e resposta
Nem houve tempo para a montagem se firmar e foi
obrigada a sair de cartaz no dia lo de abril, por causa do
golpe militar. Os principais responsáveis pelo Arena au-
mentaram-e da cidade, esperando que a situação política se
aclarasse. Um carro de polícia vigiava a entrada do Tea-
62 m Palco Brasileiro 63
tro, que permaneceu fechado diversos dias. Temia-se que
alguns elementos do elenco se tornassem bodes expiató-
rios, para o regime ditatorial instaurado deixar em paz a
atividade cénica. 0 Oficina, que também suspendeu no
dia lo de abril a carreira de Pequenos .Burgueses, de
Górki, seu grande êxito, fez um recuo estratégico, ence-
nando a comédia Toda Do/zze/a Tem um Paí que .E ama
.Pêra. de Gláucio Gill. Boal desprezava qualquer saída de
compromisso honroso com a nossa situação, mas não sabia
como supera-la. As dívidas, que até poucos meses antes
eram de ll milhões de cruzeiros, haviam baixado para
dois milhões. Sem ajuda tanto do Serviço Nacional de
Teatro, como da Comissão Estadua] de Teatro, era difícil
obter crédito para uma outra estrêla. Boal chegou a pen-
sar no fechamento do Arena e na ida para o Child ou os
Estados Unidos, onde lecionaria Português.
Finalmente a 2 de setembro deu-se a pré-estreia de
O Tadi€4o, de Moliêre, texto muito adequado ao Brasil
daqueles dias. Apelando para um clássico, o Arena verbe-
rava a hipocrisia dos vencedores políticos, mancomunados
com a religião para ludibriar os incautos. A comédia exa-
mina brilhantemente a manipulação dos valores sobrena-
turais, em proveito apenas de bens terrenos.

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