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Livro do professor Livro didático Arte 4 3 Arte que não se cala 2 Quando a boca cala, o corpo fala 15 9o. ano Volume 2 ©Shutterstock/Arthimedes 1. A Constituição brasileira proíbe a censura de toda atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Você acha que ela é respeitada? 2. Por que alguém poderia querer censurar um artista? 3. O que você faria se fosse um artista que sofresse censura? Arte que não se cala 3 Encaminhamentos da atividade.1 Aula 1 DK O E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. DK O E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. A censura no mundo das artes Em democracias como os EUA ou em ditaduras como Cuba, artistas são alvo de governos, grupos religiosos, organi- zações criminosas, empresas, radicais em redes sociais e todo o tipo de gente que tenta censurar a arte. [...] A cen- sura cultural ainda é presente e muitas vezes difícil de denunciar. Só em 2015, a Freemuse, organização internacional que presta consultoria à ONU, registrou 469 casos de censura e ataques contra artistas, sendo que três assassinatos. O número representa um crescimento de 98% em relação a 2014. MIRANDA, André. A censura no mundo das artes: violações sofridas por artistas são tema de série de reportagens do Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/a-censura-no- mundo-das-artes-18726532>. Acesso em: 15 jan. 2018. 2 Objetivos • Entender que a arte, além do seu viés estético, pode ter uma força política e por isso é muitas vezes reprimida por diversas pessoas e instituições. • Saber como artistas enfrentaram a censura imposta pela Ditadura da Era Vargas e pela Ditadu- ra Civil-Militar estabelecida no Brasil em 1964. • Criar uma música de protesto. • Conhecer e vivenciar formas de teatro que lidam diretamente com o embate entre opressores e oprimidos. • Testar a capacidade de percepção por meio de um jogo teatral. Artistas de diferentes épocas e lugares enfrentaram, em algum momento de suas carreiras, algum tipo de censura à sua liberdade de expressão. No Brasil, especialmente durante o governo de Getúlio Vargas (1882-1954), entre 1937 e 1945, e ao longo da Ditadura Militar, de 1964 a 1985, o Estado restringiu liberda- des, afetando diretamente a produção artística. Leitura complementar. 2 O político gaúcho Getúlio Vargas governou o Brasil em dois períodos: de 1930 a 1945 e de 1950 a 1954. Em 1939, ele criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão que, entre outras atividades, controlava a censura no país. Em 1964, os militares, com o apoio de muitos civis (políticos, jornalistas, intelectuais, etc.), tomaram o governo do Brasil e controlaram o país até 1985, por meio de uma ditadura. Muitas pessoas que se posicionaram contra esse regime foram presas, torturadas e assassinadas, como aconteceu com o jornalista Vladimir Herzog (1937-1975). Na década de 1970, após a morte de Herzog nas dependências do II Exército – o que gerou uma grande polêmica na época –, o artista visual Cildo Meireles realizou uma obra de protesto que circulou, de maneira sutil, nas mãos de muita gente. Ele carimbou, em diversas cédulas de dinheiro, a pergunta “Quem Matou Herzog?”. MEIRELES, Cildo. Inserções em circuitos ideológicos: Projeto cédula. [1970-1976]. Carimbo sobre cédulas de dinheiro, 6,5 cm × 15 cm. Inhotim, Brumadinho. An ge la G ise li. 20 18 . D ig ita l. © W ilt on M on te ne gr o © Pa t K ilg or e © Pa t K ilg or e © D .A P re ss /E M /A rq ui vo O C ru ze iro © Fo lh ap re ss 3 Em 1973, os cantores Gilberto Gil (1942-) e Chico Buarque (1944-) se uniram para compor uma canção intitulada Cálice. Segundo Gil, a canção inicialmente aproveitava uma frase atribuída a Jesus, na Bíblia: “Pai: afasta de mim esse cálice”. Nesse contexto, a expressão “afastar o cálice” pode ser entendida como um pedido de Jesus para que Deus o livre do sofrimento. Porém, os compositores perceberam que o som da palavra “cálice” era ambíguo e podia ser ouvido como “cale-se!” – alguém mandando uma pessoa se calar. Diante disso, a frase bíblica, transformada em verso musical, ganhou mais um sentido: tornou-se uma crítica à Ditadura Militar que calava os cidadãos na base da violência. Outros versos foram escri- tos e eles decidiram can- tar a canção em um show, em maio de 1973. Porém, durante a apresentação, o microfone de Chico Buarque foi desligado. Ele ainda tentou usar outros microfones, mas todos estavam mudos. Ironica- mente, o artista terminou calado pela organização do show. A canção foi impedida de ser gravada em disco e só foi liberada pela censura cinco anos depois. Do mesmo modo que fez o artista visual Cildo Meireles ao criar uma obra de protesto com cédulas de dinheiro carimbadas com a pergunta “Quem matou Herzog?”, pense em algo que o deixa indignado na sociedade. Como você faria uma obra que circulasse com uma pequena mensagem sua protestando contra esse fato social? Crie um protótipo e exponha-o para a turma. Lembre-se: você deve utilizar fun- damentos plausíveis para o seu protesto. Atividades Aula 2 Encaminhamento da atividade.3 No período de ditadura, a arte era fiscalizada por censores, que eram pessoas contratadas para avaliar o conteúdo das obras. Se os censores concluíssem que uma obra se posicionava, de algum modo, contra o go- verno, ou tinha o potencial de estimular o pensamento crítico em relação ao Estado, eles podiam proibir a veiculação de determinados trechos ou até da obra inteira. General Arthur da Costa e Silva (1899-1969), um dos presidentes mais rígidos da Ditadura Militar, decretou o AI-5 em dezembro de 1968, intensificando a censura. Leitura complementar.4 LeLeLeitititurururaaa cococompmpmpppplelelememementntntararar..44 © Ab ril C om un ic aç õe s S .A ./E gb er to N og ue ira • Gilberto Gil (à esquerda) e Chico Buarque (à direita) foram censurados em 1973 ao cantarem a música Cálice, em um show em São Paulo © W ik im ed ia C om m on s/ Go ve rn o do B ra sil 9o. ano – Volume 24 Após ouvir a canção que seu professor vai disponibilizar, analise os trechos a seguir. Além do uso ambíguo da palavra “cálice”, quais outros trechos poderiam ser entendidos como uma forma de denúncia contra a ditadura? Converse com os colegas e anote suas opiniões no seu diário de bordo. Troca de ideias Encaminhamentos da atividade.5 Toda vez que este ícone aparecer no material, saiba que é hora de sa- car seu diário de bordo . Nele, você vai registrar ideias e esboços para sua próxima obra-prima! GIL, Gilberto; BUARQUE, Chico. Cálice. Intérprete: Chico Buarque e Milton Nascimento. In: BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Polygram/Philips, p. 1978. 1 LP. Faixa 2 (4 min). Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque) Pai, afasta de mim esse cálice [...] De vinho tinto de sangue Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa [....] DKO Estúdio. 2018. Digital. Arte 5 Música também é protesto Muitas músicas de protesto foram feitas antes e depois da Ditadura Civil-Militar no Brasil. Uma delas, tam- bém intitulada Cálice, foi composta quase 40 anos após a criação da original pelo rapper paulistano Criolo (1975-). Ele apresentou uma nova versão para a canção em 2011, abordando situações observadas em seu cotidiano. Mas há outros numerosos exemplos, como podemos ver a seguir. Em cada esquina que eu passava um guarda me parava Pedia os meus documentos BELCHIOR. Fotografia 3x4. In:_____. Alucinação. Rio de Janeiro: Polygram, 1976. 1 LP. Faixa 4. Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição RUSSO, Renato. Que país é este? In: LEGIÃO URBANA. Que país é este?. Rio de Janeiro: EMI, 1987. 1 LP. Faixa 1. Ok, então vamos lá, diz Tu quer a paz, eu quero também, Mas o estado não tem direito de matar ninguém MARCELO D2. Desabafo. In:_____. A arte do barulho. Rio de Janeiro: EMI, 2008.Faixa 2. Pátria Amada, de quem você é afinal? Do povo nas ruas ou do Congresso Nacional? CLEMENTE. Pátria amada. In: INOCENTES. Adeus carne. São Paulo: Warner music, 1987. 1 LP. Faixa 1. • O cantor Criolo Criolo criou uma nova versão para a canção Cálice, abordando situações presentes em seu cotidiano e lembrando o período da ditadura. Você conhece alguma música de protesto que não esteja aqui? Qual? Quais questões ela aborda? E quais problemas sociais foram destacados pelos trechos das músicas em destaque? Converse com os colegas. Troca de ideias Encaminhamentos da atividade.6 Agora, é você quem vai criar uma nova versão para a letra de Cálice, abordando problemas do seu coti- diano. Aproveite a melodia, o ritmo e parte do vocabulário da canção original de Chico Buarque. Depois, apresente o resultado para os colegas. Registre seus versos no diário de bordo. Atividades Encaminhamentos da atividade.7 © Fl ic kr .co m /C irc ui to Fo ra d o Ei xo Aulas 3 e 4 9o. ano – Volume 26 Teatro como arte marcial Durante a Ditadura Militar, obras teatrais foram censuradas, artistas foram espancados, presos e torturados. Um dos casos mais emblemáticos de violência contra grupos teatrais aconteceu em 1968. Cerca de cem integrantes do grupo paramilitar Comando de Caça aos Comunistas, entre os quais havia civis e militares, invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, quebrando equipamentos e agredindo o elenco da peça Roda viva, escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Correa (Zé Celso). Essa ação gerou protestos da classe teatral às autoridades militares, mas mesmo assim o elenco voltou a ser agredido em uma apresentação em Porto Alegre e o espetáculo foi censurado. Leitura complementar.8 • Cena da peça Roda viva Com texto de Chico Buarque, a peça Roda viva foi uma comédia musical sobre um cantor popular chamado Benedito Silva. Divulgado pela televisão, ele vira ídolo nacional e adota o nome artístico Ben Silver. A montagem mostrou como certos artistas se transformavam em meros produtos, vendidos pela mídia a um público que aceitava tudo sem refletir. Por apresentar várias críticas sociais e provocações aos espectadores, o espetáculo foi proibido pela censura. Um grupo paramilitar de pessoas favoráveis à ditadura agrediu o elenco, gerando protestos da classe teatral. Diante desses atos de violência e repressão, o diretor, dramaturgo e teórico Augusto Boal afirmaria, mais tarde, que o teatro precisava ser como uma “arte marcial”. Isto é, para ele, essa arte era potente como uma “arma” e podia ser usada pelo povo para combater uma série de injustiças e opressões. Leia alguns trechos de textos escritos por Boal. Hoje, mais do que nunca, lutando pela nossa sobrevivência cultural, o teatro é arte que revela nossa identidade e arma que a preserva. [...] BOAL, Augusto. Teatro como arte marcial. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2912200010.htm>. Acesso em: 20 nov. 2018. Leitura complementar.9 © Fo lh ap re ss Arte 7 Atividades Teatro, se fala a verdade, propõe a busca de si mesmo, a de si nos outros e a dos outros em si. Propõe a humanização do ser humano! Isto não se faz sem luta. Hoje, teatro é uma Arte Marcial. BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 302. Augusto Boal (1931-2009) Nascido no Rio de Janeiro, Augusto Boal se gra- duou em Química no Brasil e estudou Teatro nos Estados Unidos. Nas décadas de 1950 e 1960, atuou no Teatro de Arena, em São Paulo. Com esse grupo, dirigiu montagens célebres, que le- vavam à reflexão sobre a condição do país e so- bre a sua história, tais como Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967). Foi eleito vereador, no Rio de Janeiro, em 1992. Em seu mandato, defendeu projetos de lei origi- nados em debates populares, realizados em ses- sões de teatro batizadas de Teatro Legislativo. Ao longo de sua carreira, ganhou diversos prêmios e foi nomeado, em 2009, embaixador mundial do teatro pela Unesco. © Fo lh ap re ss /D ad á Ca rd os o • Diretor carioca Augusto Boal, para quem o teatro era uma arma de libertação popular O ator dentro do espectador Por ter se posicionado criticamente em relação à situação política e social do Brasil, Augusto Boal foi preso e torturado por militares em 1971. Sem poder trabalhar livremente no Brasil e correndo risco de morte, Boal se exilou em países como Argentina e Portugal até 1984. No exílio, elaborou o sistema do Teatro do Oprimido (TO), hoje difundido em mais de 50 países. exílio: afastamento do país de origem, por motivo de expulsão ou desejo do “exilado”. DicionArte • Você já enfrentou situações em que teve de agir de forma improvisada? Quais? Como você se sentiu? Comente com os colegas. • Como você reagiria se estivesse assistindo a uma peça de teatro e, de repente, fosse convidado a interagir com os atores? • Você já esteve em algum espetáculo em que os atores convidaram o público a interagir na cena? Se sim, compartilhe sua experiência com os colegas. Troca de ideias Encaminhamento da atividade.10 Agora, você vai experimentar o sistema do Teatro do Oprimido, de Boal. Siga as orientações do professor. Encaminhamento da atividade.11 9o. ano – Volume 28 Ator e espectador: como humanos, todos têm a capacidade de agir e de observar simultanea- mente. Como essa já é uma característica básica da linguagem teatral, Boal entende que todo ser humano pode ser ator, mesmo que não faça teatro profissionalmente. No Teatro do Oprimido, os es- pectadores (chamados por Boal de espect-atores, em referência à origem latina dessa palavra) são estimulados a atuar emitindo opiniões, substituin- do atores em cena e transformando o rumo de uma apresentação. Dramaturgia: o Teatro do Oprimido trabalha com situações envolvendo problemas sociais, basea- dos na realidade, e propostas de alternativas que possam ser posteriormente aplicadas na prática. Espaço: as peças do Teatro do Oprimido podem acontecer em qualquer lugar, nos mais diferentes contextos sociais. Para entender o sistema de prática teatral do Teatro do Oprimido, destinado especialmente a pessoas que sofrem algum tipo de opressão, é importante conhecer alguns de seus princípios e técnicas. Leitura complementar.12 Teatro-Imagem: nesta técnica, as formas de percepção da realidade são colocadas em cena por meio da interposição dos corpos para darem lugar a múltiplas perspectivas sobre uma situação. A encenação baseia-se em linguagens não verbais. Assim, a palavra é evitada ao máximo para que se possam estimular outras formas de comunicação. Teatro-Fórum: baseia-se na encenação de um problema real, concreto e objetivo, no qual um ou vários personagens oprimidos lutam para sair de uma situação de opressão. Assim como acontece na realidade, o oprimido, ou um grupo deles, fracassa quando tenta transformar o problema, de modo que o público é convidado a entrar em cena e substituir o personagem oprimido e/ou grupos de personagens oprimidos que estão tentando modificar a estrutura opressiva. DK O E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. Teatro-Invisível: nesse tipo de técnica do Teatro do Oprimido, os atores elaboram uma discussão polêmica sobre um problema do cotidiano (por exemplo, o aumento do desemprego no país) e criam personagens que debaterão esse tema, como se estivessem em conflito. A cena entre eles é representada em um espaço público, como em um ônibus ou um restaurante. O objetivo desse tipo de teatro é de que o público em volta escute e a discussão e participe dela sem suspeitar de que está diante de atores. Fo to s: © Di vu lg aç ão C en tro d e Te at ro d o O pr im id o – RJ Arte 9 Cineminha Augusto Boal e o Teatro do Oprimido Direção: Zelito Vianna Gênero: Documentário Ano de lançamento: 2010 Duração: 1 hora País: Brasil Sinopse: Vale a pena assistir a esse documentário para conhecer a tra- jetória de Augusto Boal e entender acriação do Teatro do Oprimido. O filme conta com depoimentos de Boal, imagens de seus trabalhos, além de entrevistas com artistas como Chico Buarque, Edu Lobo e Aderbal Freire-Filho. © M ap a Fil m es d o Br as il Im ag en s: © Ja na S an sk rit i Existem diversos grupos pelo mundo praticando o Teatro do Oprimido. Um dos maiores é o grupo indiano Jana Sanskriti, que apresenta peças de Teatro-Fórum abordando o problema da opressão às mulheres na sociedade. 9o. ano – Volume 210 Durante a Ditadura Militar, os censores produziam arquivos com relatórios sobre os artistas e seus po- sicionamentos políticos. Mesmo com o fim do regime, muitos desses documentos ainda permanecem desconhecidos do público. Agora você vai fazer uma experiência contrária a essa. Destaque, do material de apoio, as páginas para a produção de um Arquivo público (e não secreto!). Escolha um tema relacionado à arte – do contexto em que você vive ou histórico – que envolva opres- são, censura ou relações de poder e faça uma análise crítica sobre o assunto, procurando responder à pergunta: Como a opressão, a censura ou as relações de poder se apresentam em relação a esse tema? Quem são os personagens envolvidos? Quais são os principais aspectos envolvidos nesse tema? Siga as orientações presentes no material de apoio. A dúvida e a reflexão como protagonistas Aulas de 5 a 8 Organize as ideias Assim como Boal, o diretor, dramaturgo e teórico alemão Bertolt Brecht (1898-1956) tam- bém acreditava que o teatro po- deria transformar a sociedade. Brecht considerava necessário que o público fosse estimulado a refletir sobre as peças e a própria realidade. Apesar disso, ele obser- vava que muitos espetáculos da sua época estavam mais voltados a oferecer meras distrações ou apenas uma série de emoções fortes que não levavam a refle- xões. Assim, ao final dessas peças, o espectador não questionava a realidade social e, consequente- mente, não agiria para modificá-la. Bertolt Brecht (1898-1956) • Bertolt Brecht O teatro moderno foi bastante influenciado pelas ideias do diretor, dramaturgo, poeta e teórico Bertolt Brecht. Nascido na cidade de Augsburg, na Alemanha, em 1933, ele fugiu do país para escapar do governo nazista de Adolf Hitler, que prendeu e assassinou diversos artistas e intelectuais. Brecht se exilou em países como Dinamarca, Suécia, Finlândia e Estados Unidos e retornou à Alemanha em 1949, fundando em Berlim a companhia teatral Berliner Ensemble. Escreveu cerca de 40 peças que influenciam artistas e são encenadas até hoje, como A ópera dos três vinténs, A vida de Galileu e Mãe Coragem e seus filhos, no Brasil e em vários países.Leitura complementar.13 Leitura complementar.14 Troca de ideias Você já se divertiu ou se emocionou com algum espetáculo ou algum filme a ponto de esquecer com- pletamente o mundo real? No teatro de Brecht, ele combatia esse efeito da ilusão, isto é, essa identificação emocional do espectador com aquilo que estava vendo, o êxtase que deixava o público satisfeito e purificado no final. Isso porque ele queria um espectador lúcido, capaz de refletir criticamente sobre sua realidade e, portanto, preparado para questioná-la. Qual sua opinião sobre essas duas possibilidades da arte? Encaminhamento da atividade.15 © Ge tty Im ag es /M on da do ri Po rtf ol io Arte 11 Nada é natural Se de um lado existiam técnicas teatrais que serviam para criar ilusões, a ponto de o espectador até se esquecer de que estava em um teatro, Brecht criou técnicas que serviam para romper com a ilusão da cena e promover a reflexão. Ele desenvolveu o conceito de efeito de distanciamento, também chamado efeito de estranhamento, baseado na atitude de olhar para o mundo de maneira questionadora, percebendo que nada é natural e eterno. Tudo ao nosso redor é produzido por ações e interesses humanos, que podem ser alterados. Esse posicionamento foi expresso em suas peças de várias formas. Leia, a seguir, trechos da peça A exceção e a regra, escrita por Brecht em 1929. Nela, Brecht aborda uma situação de exploração do trabalho, mostrando o assassinato de um trabalhador inocente e a absolvição, em um tribunal, do patrão assassino. No início e no fim da montagem, os atores se dirigem ao público, destacando que eles estranhem esse tipo de “justiça”. […] Por favor, não achem natural O que acontece e torna a acontecer […] [...] A vocês nós pedimos: No que não é de estranhar Descubram o que há de estranho! No que parece normal Vejam o que há de anormal! No que parece explicado Vejam quanto não se explica! E o que parece comum Vejam como é de espantar! Na regra, vejam o abuso E, onde o abuso apontar, Procurem remediar BRECHT, Bertolt. Teatro completo, em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 132, 160. v. 4. Um dos objetivos principais de Brecht, portanto, é semear a dúvida no público, por meio do estranhamento. Em uma cena, esse efeito pode ser criado de vários modos. Por exemplo, quando: Leitura complementar.16 • os atores deixam, por um momento, de representar seus personagens e representam a si próprios ou então quando, claramente, representam mais de um personagem; • um ator fala diretamente ao público, quebrando a quarta parede (a parede imaginária que isola o mundo ficcional dos personagens do mundo real dos espectadores); • uma contradição – de um personagem ou de uma situação – é revelada, seja por um comentário irônico, seja por um gesto, uma música ou uma projeção de imagem e texto na cena; • usa objetos e elementos de cenário de modo simplificado, metafórico e inusitado, reduzindo os efeitos de ilusão. Por exemplo: um sino pendurado pode representar uma igreja, a depender das ações dos atores. Esse mesmo sino, usado depois de outro modo, pode representar outra coisa. O efeito de distanciamento foi absorvido por muitos artistas de teatro e passou a ser usado também em produções de televisão e cinema, a exemplo do que foi feito por Charles Chaplin em algumas cenas de seus filmes (Tempos modernos, O grande ditador, entre outros). 9o. ano – Volume 212 Agora, vamos experimentar algumas brincadeiras cênicas inspiradas na ideia de distanciamento. Atividades © Sh ut te rs to ck /F ot oa nd al uc ia Em uma peça de teatro, um simples bastão pode representar inúmeras coisas, a depender das ações elaboradas por um ator. 2. Distanciamento com interrupção da situação dramática Os participantes devem criar uma cena com a obrigatoriedade de, em algum momento, a ação dramática ser interrompida para que um ou mais atores façam um comentário ao público sobre a situação encenada. Depois, a cena é retomada como se essa pausa não tivesse existido. 1. Distanciamento no uso de objetos No palco, será colocado um objeto qualquer, como um bastão de madeira. Entra um ator (alu- no) em cena e começa uma ação utilizando o ob- jeto com outra função que não seja originalmente a sua (por exemplo, o bastão de madeira vira um bebê que o ator embala). Entra outro ator e con- tracena com o colega, assumindo como verdade a nova função do objeto (por exemplo, como se fosse o pai do bebê que está no colo do colega). Na próxima cena, improvisada por outra dupla, o mesmo objeto deve ganhar nova função/nova identidade. Encaminhamento da atividade.17 Arte 13 Hora de estudo 13 A vida de Galileu é uma das peças mais conhecidas de Brecht. Escrita em 1939, seu protagonista é o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). Auxiliado pela invenção do telescópio, ele escreveu um livro confirmando cientificamente que a Terra girava ao redor do Sol, e não o contrário, conforme se acreditava na época. Para a Igreja Católica, porém, essa descoberta abalava a fé dos fiéis e, por isso, Galileu foi censurado e ameaçado. Com medo de ser queimado na fogueira, como o astrônomo Giordano Bruno (1548-1600), Galileu aceitou negar publicamente suas descobertas. Leia, a seguir, uma de suas últimas falas na peça de Brechte, depois, o trecho de uma reportagem sobre a encenação da montagem, em 2016, com a atriz Denise Fraga no papel de Galileu. © Jo ão C al da s • Na imagem, a atriz Denise Fraga interpreta o astrônomo Galileu Galilei, em uma peça escrita por Bertolt Brecht e dirigida por Cibele Forjaz Galileu – [...] A prática da ciência me parece exigir notável coragem [...]. Ela negocia com o saber obtido através da dúvida. Arranjando saber, a respeito de tudo e para todos, ela procura fazer com que todos duvidem. Ora, a parte maior da população é conservada, pelos seus príncipes, donos de terra e padres, numa bruma luminosa de superstições e afirmações antigas, que encobre as maquinações dessa gente. [...] O nosso recurso novo, a dúvida, encantou o grande público, que arrancou o telescópio de nossas mãos, para apontá-lo para os seus carrascos. Esses homens egoístas e violentos, que se haviam aproveitado avidamente dos frutos da ciência, logo sentiram que o olho frio da ciência pousara numa miséria milenar, mas artificial, que obviamente poderia ser eliminada, através da eliminação deles. [...] BRECHT, Bertolt. Teatro completo, em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 164-165. v. 6. Desafios à norma: Denise Fraga vive Galileu em peça de Brecht RIO – Galileu Galilei (1564-1642) ousou dizer que a Terra não era o centro do Universo. E, por dizer que o Sol era o centro, ao menos, do sistema em que nosso planeta orbita, quase foi queimado pela Inquisição. Séculos adiante, Bertolt Brecht (1898-1956), inspirado pela coragem de Galileu, ousou desafiar a norma em forma de poesia: “não aceite o habitual como coisa natural/ [...] Nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”. O primeiro dizia que a ciência avançava ao duvidar do estabelecido. O segundo fez do seu teatro um laboratório de análise crítica do “real”. Ambos foram questionados e perseguidos por suas propostas e descobertas, e fizeram o possível para, entre fugas e manobras existenciais, avançar com suas investigações. Foi o fascínio por essa possível afinidade entre ambos que fisgou a atriz Denise Fraga e a levou a enfrentar certas forças – de ordem econômica e de produção – para viajar pelo país com a peça “A vida de Galileu”, de Brecht. [...] – Sinto muita identificação com Brecht, gosto da comédia de ideias, e ele escrevia para fazer pensar, mas com um timing cômico sem igual – diz [Denise]. – Sem dúvida, ele era um grande admirador do Galileu, cujo apelido era “o questionador”. Galileu duvidava das coisas, do estabelecido. Ao mesmo tempo que usufruiu de acesso ao poder, teve de fazer concessões, e foi perseguido por externar suas verdades. [...] – Galileu e Brecht se preocupavam com o coletivo – diz Denise. – Nessa peça, diversão e reflexão estão juntas. É uma obra festiva, que nos dá vontade de mudar coisas. Acreditar nisso é do que mais precisamos hoje. REIS, Luiz F. Desafios à norma: Denise Fraga vive Galileu em peça de Brecht. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/teatro/desafios-norma- denise-fraga-vive-galileu-em-peca-de-brecht-19611831>. Acesso em: 21 nov. 2018. © Agência O Globo/Luiz Felipe Reis Agora, com base no que você estudou neste capítulo, assinale com (V) as alternativas verdadeiras e com (F) as falsas. ( F ) De acordo com o pensamento de Brecht, sua peça sobre Galileu deve fazer o público se esquecer da realidade e apenas imaginar o sofrimento pelo qual passou o astrônomo italiano. ( V ) O personagem Galileu destaca o papel da dúvida como uma ferramenta científica poderosa. De forma semelhante, Brecht acreditava que os espectadores também deveriam duvidar de tudo o que veem, no teatro e na realidade. ( V ) É possível dizer que a Ditadura Militar no Brasil se comportou como a Igreja Católica do século XVI, censurando pessoas que promoviam o pensamento crítico. ( V ) Tanto Brecht quanto o brasileiro Augusto Boal desejavam que o público teatral fosse capaz de transformar a realidade. No caso das peças do Teatro do Oprimido, de Boal, os espectadores eram convidados a transformar a própria cena diante deles. ( F ) Para Augusto Boal, o teatro deveria ser destinado apenas a atores profissionais, visto que só eles são capazes de desenvolver um trabalho ousado e questionador. Falsa. Esse seria o princípio de muitas peças ilusionistas. A proposta de Brecht era contrária a isso e estimulava, sobretudo, a reflexão sobre a realidade. Falso. Boal afirmava que todo ser humano tinha vocação para ser ator e poderia fazer teatro. 14 Quando a boca cala, o corpo fala 4 © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im ag en s © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im aag en s Encaminhamento da atividade.1 • Décio Otero e Marika Gidali, em Quebradas do mundaréu (estreado em 1975), do Ballet Stagium. Apesar de não trocarem palavras, seus personagens são capazes de se expressar por meio do corpo 1. Observe a imagem. Como seria um possível diálogo entre as pessoas retratadas? 2. Compare o diálogo imaginado por você com o diálogo pensado pelos seus colegas. Podemos afirmar que existe um único diálogo possível? Aula 1 15 • Conhecer o Ballet Stagium, grupo artístico que se manifestou contra a Ditadura Militar no Bra- sil e aprender sobre a sua importância para a arte nacional. • Refletir sobre as situações nas quais você pode se sentir desconfortável em seu dia a dia e pen- sar em formas de transformá-las. • Criar uma coreografia de dança moderna. Objetivos O espetáculo Quebradas do mundaréu foi produzido pelo Ballet Stagium, em plena Ditadura Militar e, junto com outros espetáculos dessa companhia, era uma forma de resistência e luta contra o regime antidemocrático. • Marika Gidali e Décio Otero, que estão à frente do Ballet Stagium há mais de 45 anos Ballet Stagium Fundada em 1971 pela húngara radicada no Brasil Marika Gidali (1937-) e pelo mineiro Décio Otero (1933-) o Ballet Stagium é um dos primeiros grupos de dança moderna do país. Quando surgiu, em São Paulo, a maioria das companhias funcionava vinculada ao poder público, apresentando balés de repertório de tradição europeia, como Giselle e O lago dos cisnes. Praticamente sem nenhum apoio financeiro, o Ballet Stagium realizou turnês pelo Brasil e pelo exterior, levando dança a quem normalmente não tinha acesso a ela. Com coreografia de Décio Otero e direção de Ademar Guerra (1933-1993), Quebradas do mundaréu é uma obra baseada no texto teatral Navalha na carne, do dramaturgo paulista Plínio Marcos (1935-1999). Esse autor teve grande parte de seus textos censurados, mas a montagem do Ballet Stagium, ao apresentar a história com outro nome e em forma de balé, acabou driblando a fiscalização. Leitura complementar.2 “Plínio Marcos estava censurado na década de 70 e Ademar sugeriu que eu coreografasse a sua peça Navalha na carne. Fi- quei assustado. Seria capaz de transpor para a dança um uni- verso tão caótico e avassalador como o dele? Que música usar e qual linguagem abordar para conseguir transcrever um texto sobre os párias da vida? [...] A música continha ruídos, boleros, futebol, barulho de ruas, descargas de privada [...]. [...] Era amedrontador. Mas fazer o censurado, naquele tempo, era fascinante, em resposta à castração da livre expres- são artística.” OTERO, Décio. Stagium: as paixões da dança. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 137-139. párias: pessoas marginalizadas. DicionArte O dramaturgo Plínio Marcos chegou a afirmar que a interpretação da bailarina Marika Gidali, no papel da protagonista Neusa Sueli, foi a mais próxima do que ele tinha imaginado, mesmo em comparação com a atua- ção de atrizes consagradas, como Cacilda Becker e Tônia Carrero. Leitura complementar.3 © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im ag en s 9o. ano – Volume 216 No caso do Stagium, como não usavam a palavra, os censores tinham dificuldade em detectar seu potencial questionador, permitindo a eles que se apresentassem sem maiores contratempos. • Décio Otero,no papel de Vado, e Marika Gidali, como Neusa Sueli, em Quebradas do mundaréu O texto original retrata o cotidiano de uma mulher solitária e explorada por dois homens. Muito provavel- mente, foi proibido por abordar explicitamente a miséria e a violência, sem nenhum tipo de idealização, com linguagem crua e bem próxima da falada nas ruas. Naquela época, tudo que provocasse o pensamento crítico era alvo da censura. Leitura complementar.4 © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im ag en s Arte 17 Do mundo de fadas à vida real Remontar os balés de repertório europeus era basicamente o que se fazia no Brasil quando o Ballet Stagium foi criado. Organize as ideias Você já estudou as principais características dos balés clássico e romântico. Agora, com a ajuda dos colegas e do professor, tente se lembrar dessas características no que diz respeito: • à música; • ao figurino; • à temática; • à cenografia; • ao espaço de apresentação. No atual cenário brasileiro, de que forma você contestaria algo que o incomoda na nossa realidade? For- me um grupo com os colegas e, juntos, elejam um tema que vocês gostariam de questionar, conversem sobre como expressar a questão em movimentos corporais e elaborem um roteiro para ser executado por meio da dança. Definam quem ficará responsável pelos seguintes itens: música, figurino, cenografia, iluminação, som, espaço de apresentação (teatro, pátio, sala de aula, etc.). Aulas de 2 a 5 Atividades Entre as principais companhias em atividade durante a Ditadura Militar estão o Balé do IV Centenário e o Corpo de Baile do Theatro Municipal, ambos com sede em São Paulo, e o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Elas foram as primeiras formas de dança profissional em nosso país e eram mantidas pelo governo. Surgiram nos moldes do que havia nos teatros europeus: vinculadas às orquestras e às óperas. Encaminhamento da atividade.6 Leitura complementar. 7 • Na foto, o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro encena O lago dos cisnes. Essa companhia de dança, fundada oficialmente em 1936, foi pioneira no Brasil e atua até hoje com o reper- tório clássico da dança Encaminhamento da atividade.5 © Jú lia R ón ai 9o. ano – Volume 218 A música que acompanhava tradicionalmente as companhias era, até então, sinfônica do começo ao fim. A partir desse novo cenário de resistência e luta do final dos anos 1960 e da década de 1970, ocorreu uma abertura para compositores brasileiros eruditos, como Heitor Villa-Lobos, e populares, como Chico Buarque e Geraldo Vandré. Além disso, foram utilizados também sons gravados, como os da natureza. Essas mudanças foram incorporadas pelo Sta- gium em seus espetáculos. Você já aprendeu que, mesmo correndo o risco de serem censurados, muitos artistas usaram seu traba- lho para se manifestar contra a Ditadura Militar que vigorou em nosso país de 1964 a 1985. Agora, reflita com a turma sobre as questões a seguir. • Em um contexto de opressão ditatorial como o que, no passado, vivemos em nosso país, que função cumpria a remontagem de balés europeus, dos séculos XIX e XX, com suas histórias de amor? Esses espetáculos poderiam ser usados também com um propósito questionador? Justifique sua resposta. • Uma companhia de dança estatal também deve ter liberdade para se posicionar contra o governo? Por quê? Troca de ideias Encaminhamento da atividade.8 • Ballet Stagium dançando no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso Por outro lado, devido ao baixo orçamento da companhia, os integrantes do Stagium trabalhavam somente com o essencial em cena. Os cenários elaborados não eram necessários e os tutus das bailarinas foram substi- tuídos por malhas coladas ao corpo – semelhantes às que usavam nos ensaios. Além disso, tinham o hábito de permanecer se aquecendo no palco, mesmo quando o público já estava entrando no local de apresentação. Só depois saíam para se trocar e retornar para iniciar o espetáculo. Era como se dissessem: “somos de carne e osso como vocês, aqui não há seres sobrenaturais!”. Eles estavam também influenciados pelo distanciamento brechtiano, que você estudou no capítulo anterior. Dança em qualquer lugar Se antes do Stagium, para assistir a uma dança, era preciso ir ao teatro e pagar ingressos (muitas vezes ina- cessíveis para parte da população), um dos compromissos do grupo era chegar aos mais diversos públicos. Para isso, eles percorreram todo o Brasil praticamente sem nenhum apoio. Apresentaram-se em hospitais, igrejas, praças e até em uma aldeia no Parque indígena do Xingu. © Ba lle t S ta gi um - Al to X in gu - 19 77 A ce rv o pe ss oa l Arte 19 Após a apresentação no Xingu, veio a inspiração para a criação da peça Kuarup ou a questão do índio, que trata do genocídio indígena em nosso país. Ao final da apresentação, os bailarinos, representando os indígenas, estavam deitados no chão e assim permaneceram, mesmo após os aplausos. Era uma forma de dizer que os indígenas estavam mortos e não levantariam mais, o que causou grande impacto no público. A movimentação do espetáculo é fruto da pesquisa do gestual, das danças e cerimônias desse povo. O coreógrafo Décio Otero optou por representá-los, em boa parte do espetáculo, como operários, de forma a se aproximar da realidade do público e provocar reflexões mais amplas. ApreciArte Leitura complementar.9 Em que o Ballet Stagium se diferenciou das companhias de dança já existentes no Brasil? Um dos primeiros grupos de dança moderna do Brasil, o Stagium ousou criar espetáculos que dialogavam diretamente com questões do seu tempo e do país, enquanto a maioria dos outros grupos de dança da época continuava apresentando balés de repertório de tradição europeia. • Stagium dança Kuarup, espetáculo criado em 1977 Organize as ideias © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im ag en s © Em id io L ui si/ Fo to gr am a Im ag en s 9o. ano – Volume 220 Cada espectador do círculo ex- perimenta descrever a imagem que está vendo. É interessante perceber como, dependendo da perspectiva de cada um, a interpretação sobre a relação das estátuas pode variar. 2 Agora, inspirados pelo Stagium, que discute importantes questões por meio do corpo, e aproveitando prin- cípios do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, você e sua turma vão apresentar cenas sem palavras e que provoquem reflexões. Aquecimento Atividades Encaminhamento da atividade.10 Em pé, formem um círculo na sala. Um voluntário vai até o cen- tro da roda e, sem falar nada, cria um determinado gesto e uma expressão (por exemplo, aponta o dedo indicador em uma dire- ção, com cara de bravo). Então, congela seu corpo como uma estátua, nessa posição. Um se- gundo voluntário vai ao centro e faz outro gesto congelado, que se relaciona com o primeiro (por exemplo: a pessoa se coloca à frente do outro, triste, como se o primeiro ator estivesse lhe pe- dindo explicações em tom de confronto). 1 Os espectadores podem comentar sobre o sentido dessa nova imagem. Outro espectador vai até o centro e substitui o ator que ainda não tinha saído de cena. O grupo comenta sobre o sentido da relação dessas novas estátuas. E assim a atividade se desenrola, até que todos os alunos tenham ido ao centro da roda. 4 5 6 Prosseguindo com o exercício, um espectador vai até o centro e substitui um dos atores, pro- pondo uma nova estátua. 3 Ilu st ra çõ es : D KO E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. Arte 21 DK O E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. Preparação da cena Em grupos, pensem sobre uma situação do dia a dia de uma escola qualquer que possa gerar algum tipo de desconforto (desrespeito, discriminação, etc.): seja a um aluno, seja a um professor ou a demais funcionários da escola. Sintetize a situação em uma frase e repasse-a ao professor. 1 2 O grupo vai ilustrar essa frase por meio da criação de uma cena muda, como “estátuas”. Para isso, cada um deve criar uma pose, com gestos e expressõesfaciais, que se relacione com a dos outros membros do grupo, de forma que a imagem geral do conjunto expresse a situação de opressão. Assim que todas as estátuas forem definidas, o grupo deve permanecer imóvel por um tempo para que todos memorizem as posturas e os posicionamentos no espaço. 3 Apresentação da situação inicial Na segunda etapa do exercício, cada grupo apresentará sua cena ao restante da turma. O grupo deve per- manecer imóvel, como em uma fotografia, enquanto os espectadores estiverem se manifestando sobre a cena. Cada espectador diz o que vê e como interpreta a cena. É possível que surjam leituras que o grupo de atores em cena não havia imaginado. Depois que todos os espectadores se manifestarem, o professor revela a situação de desconforto descrita na frase do grupo. Nesse momento, os espectadores podem opinar se a imagem do grupo condiz com o sentido da frase. Se não, cada espectador tem a chance de ir até a cena e indicar/sugerir possíveis mudanças nos corpos dos atores, para que a imagem se torne mais definida. Quando todos concordarem que a imagem das estátuas condiz com a frase, o exercício passa a uma nova etapa. 1 2 3 9o. ano – Volume 222 Libertação Agora, os espectadores devem, gradativamente, transformar a imagem de desconforto em uma cena de transformação e de libertação. Um por vez, cada espectador experimenta assumir o lugar de um dos atores, propondo uma nova estátua. Os espectadores vão alterando a cena desse modo, até que a composição geral expresse uma situação renovada, de transformação da realidade. 1 2 3 Na década de 1970, o Stagium, de forma bem brasileira, introduziu a dança moderna em nosso país. Entre- tanto, desde o início do século XX, esse movimento já se desenrolava em outras partes do mundo. Assim como ocorreu nas artes visuais, o modo moderno de fazer dança contestou os valores vigentes, em especial a forma de dançar do balé clássico. Se o Stagium inovou principalmente na temática de seus espetáculos e na forma de articular música, litera- tura e movimento, manteve-se fiel à técnica do balé para o condicionamento físico de seus bailarinos e para a criação de boa parte de suas coreografias. Isso já não aconteceu com outros grupos e artistas ocidentais que, além de atualizar a temática, criaram seus próprios códigos para a dança. Os Estados Unidos e a Alemanha foram celeiros nesse sentido. A estrutura narrativa continuava a ser usada, mas menos no sentido de história e mais como episódios. 11 Leitura complementar. Aulas de 6 a 8 DK O E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. Arte 23 Novos jeitos de mover o corpo © Ge tty Im ag es /D e Ag os tin i • Ruth St. Denis Doris Humphrey (1895-1958), também dos Estados Unidos, fez parte dessa escola, mas a deixou por conta da necessidade de falar sobre homens e mulheres de sua própria cultura, e não mais sobre os povos orientais. Desenvolveu uma técnica de dança com base em experiências rotineiras e ações naturais do ser huma- no, com grande respeito à individualidade de cada bailarino. Ela partia de movimentos básicos como respirar, ficar em pé, cair, correr, saltar, girar e transferir o peso de um lado ao outro para compor suas dan- ças. Além de treinamento corporal, Humphrey tinha como objetivo oferecer possibilidades criativas a seus dançarinos. A estadunidense Ruth St. Denis (1877-1968) foi uma das pioneiras a criar uma técnica de dança diferente da do balé. Seu principal interesse estava nas danças ligadas a rituais orientais, como os indianos, os egípcios, os japoneses e os babilônicos. Ela era bastante ligada à espiritualidade e tinha a intenção de provocar experiências místicas no público. Sua técnica baseava-se no ritmo respiratório e no plexo solar (centro do corpo) como fonte de todo o movimento. Com o marido, Ted Shawn, fundou a Denishawn School, que enfocava o trabalho de dança para homens. © Ge tty Im ag es /T he L IF E Pi ct ur e Co lle ct io n/ Gj on M ili • Doris Humphrey 9o. ano – Volume 224 A estadunidense Martha Graham (1894-1991) é um ícone da dança mo- derna. Sua obra tem forte caráter teatral, retratando inicialmente a história das imigrantes pioneiras em seu país e de- pois se debruçando sobre a mitologia grega e até mesmo sobre danças mais abstratas. Contração e relaxamento são os princípios básicos de sua técnica, cuja movimentação frequentemente apare- ce cortada, forte, percussiva e cheia de ângulos. Mary Wigman (1886-1973) foi uma das principais responsáveis por desenvolver a corrente de dança moderna alemã, conhe- cida como expressionista. A artista presen- ciou duas grandes guerras mundiais e isso marcou profundamente sua obra. Interessa- va a ela o poder da expressão da personali- dade de cada indivíduo por meio do corpo. Era contra qualquer tipo de sistematização de movimento e defendia a liberdade de criação. Trabalhou em íntimo contato com o chão. Seus movimentos partiam do tron- co e da bacia para somente depois chegar a pernas e braços. Por vezes, usava os pés para marcar o ritmo de suas danças. • Martha Graham • Mary Wigman © Ge tty Im ag es /u lls te in b ild © Ge tty Im ag es /U CL A Li br ar y/ Ba rb ar a M or ga n Arte 25 Com a orientação do professor, separem a turma em quatro grupos e imaginem como seria fazer parte da escola de uma das pioneiras da dança moderna: Ruth St. Denis, Doris Humphrey, Marta Graham ou Mary Wigman. 1. Releiam o texto do livro, observando o que foi sublinhado na descrição da artista escolhida para seu grupo. 2. No tempo definido, experimentem livremente esse tipo de movimentação. 3. Depois, escolha o movimento de que mais gostou para compartilhar com o grupo. 4. Juntos, organizem esses movimentos em uma sequência, compondo uma coreografia. Ensaiem-na algumas vezes, até todos estarem bem entrosados. 5. Por fim, apresentem a coreografia para o restante da turma. Atividades Encaminhamento da atividade.12 © Bi bl io te ca N ac io na l d a Fr an ça , P ar is RABEL, Daniel. Entrada dos esperlucates. Desenho em bico de pena, guache e aquarela sobre papel vergê, 23,6 cm × 38,8 cm. Biblioteca Nacional da França, Paris. Trajes para a terceira parte do balé As fadas da floresta de Saint-Germain, intitulada Ballet de la Folie (Balé da Loucura, em português). Os quatro personagens mascarados executam a entrada sob o olhar de outros personagens e do público. As saias desses quatro parecem ter sido levantadas descobrindo o farthingale e deixando as pernas livres para permitir a dança e os saltos virtuosos. A característica apropriada do esperlucate é enganar: esses personagens permitiam um duplo jogo de farsa porque os dançarinos, sendo exclusivamente homens, tinham que se vestir de mulher, e o esperlucate tinha que dançar como um homem para realizar esses saltos virtuosos. Os personagens do desenho parecem dançar uma dança típica da época, a galharda. Os papéis técnicos dos esperlucate provavelmente eram confiados a dançarinos profissionais. dança ocidental cênica: é uma dança criada para ser apresentada ao público, diferentemente de uma dança de salão com finalidade recreativa, por exemplo, em que seus participantes não necessariamente precisam se preocupar com os espectadores. farthingale: uma das várias estruturas usadas sob roupas femininas da Europa Ocidental nos séculos XVI e XVII para apoiar as saias na forma desejada. Originou-se na Espanha. esperlucate: é um termo francês popular que significa algo como travesso e irresponsável, que é mais propenso a enganar do que a ser enganado. DicionArte Quando a dança ocidental cênica nasceu na corte francesa, era um privilégio dos reis e dos homens nobres executá-la. Não havia mulheres em cena e os papéis femininos eram dançados por eles. Dançar era algo de muito prestígio nesse contexto. 9o. ano – Volume 226 Esse contexto só mudaria depois de quase 200 anos. Mademoiselle De Lafontaine, também conhecida como LaFontaine (1655-1738), é uma bailarina francesa considerada a primeira bailarina profissional (trabalhadora) do sexo feminino. Em 1681, ela dançou na primeira apresentação que incluiu mulheres em um balé público, em sua estreia como primeira dançarina no balé Le triomphe de l’amour (O triunfo do amor). Depois dela, outra bailarina que se tornou uma profissional famosa foi Marie Anne de Cupis de Camargo (1710-1770), às vezes conhecida simplesmente como La Camargo, uma dançarina franco-belga que fez diversas inovações na arte da dança, como usar sapatilhas em vez sapatos de salto alto e saias mais curtas. Troca de ideias Reflita com os colegas sobre a questão proposta no texto a seguir. Por que são desproporcionalmente homens os coreógrafos mais reconhecidos e os empresários, e mulheres as bailarinas (trabalhadoras) [...]? HANNA, Judith. Dança, sexo e gênero. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 179. © Ga le ria N ac io na l d e Ar te , W as hi ng to n LANCRET, Nicolas. La Camargo dançando. ca. 1730. 1 óleo sobre tela, 76,2 cm × 106,7 cm. National Gallery of Art, Washington DC. Nessa obra de Lancret – que foi um dos mais talentosos seguidores do pintor francês Antoine Watteau e ajudou a disseminar o gosto por temas “festas galantes” no século XVIII –, é possível observar, na extrema esquerda, músicos escondidos entre as árvores, enquanto, ao longo da tela, da esquerda para a direita, organizados em uma curva “S” exagerada, os espectadores elegantemente vestidos se reúnem em grupos íntimos para assistir a um casal executar um pas de deux. Lancret, como Watteau, costumava se inspirar no palco, e a dançarina representada aqui é Marie-Anne de Cupis de Camargo, uma estrela de balé da Ópera de Paris. La Camargo está com um vestido branco bordado com flores, sugerindo uma ópera pastoral. Ela está elegantemente equilibrada e os gestos de seu parceiro sutilmente refletem seus movimentos. Camargo, que era imensamente talentosa, ampliou o repertório do balé do século XVIII com novos passos que incentivavam o trabalho ativo dos pés. Para facilitar seus movimentos, ela encurtou as saias e pode ter sido uma das primeiras dançarinas a usar sapatilhas de balé. Arte 27 Com a Revolução Francesa de 1789, os reis perderam o seu poder e a burguesia triunfou nos anos posterio- res, consolidando definitivamente seu domínio durante a Revolução Industrial. A dança cênica teve seu status diminuído e passou a ser algo mais ligado ao entretenimento, normalmente executado por mulheres. Na maio- ria das vezes, havia um homem responsável, um coreógrafo ou um diretor que as coordenava. Esse cenário começou a mudar com o surgimento da dança moderna. No início do século XX (e ainda hoje!), as mulheres lutavam contra a dominação masculina e pela igualdade de direitos. Uma de suas armas foi a dança. Elas começaram a criar suas próprias companhias, técnicas e coreografias, como você acabou de estudar. Recusaram o vocabulário pronto do balé clássico e buscaram liberdade para se expressar por meio do movimento. Festival das Artes Neste livro, vocês criaram uma versão atualizada para a canção Cálice, de Chico Buarque, realizaram jogos com objetos e imagens corporais e criaram uma coreografia de dança moderna. Escolham algum desses traba- lhos para apresentar no Festival das Artes. Se optarem pelo jogo, vocês podem abrir para a participação do público, lembrando que, para Augusto Boal, os espectadores também devem ser estimulados a atuar. 9o. ano – Volume 228 Hora de estudo 28 Com base no que você estudou neste capítulo, marque com V as afirmações verdadeiras e com F as falsas. Quando marcar uma alternativa como falsa, justifique sua resposta. a) ( F ) A censura vetava apenas obras artísticas que tivessem conteúdo explicitamente contra a Dita- dura Militar. Incorreta. A censura proibia obras que provocassem reflexão crítica e que atentassem à moral e aos costumes da época. b) ( V ) O Ballet Stagium modernizou a dança em nosso país, mesmo adotando, na maioria de suas obras, a técnica do balé clássico. c) ( F ) Existe uma única técnica de dança moderna, a qual foi criada nos Estados Unidos por Martha Graham. Incorreta. Existem várias técnicas de dança moderna. d) ( F ) É impossível contar uma história por meio do corpo, sem usar as palavras. Incorreta. É possível. Como exemplo, tem-se o trabalho do Ballet Stagium. e) ( V ) A dança moderna foi também uma forma de externar a luta das mulheres por igualdade de direitos. Capítulo 3 – Página 11 – Arquivo público 9o. ano – Volume 2 Material de apoio Arte 1 D KO E st úd io . 2 01 8. D ig ita l. Capítulo 3 – Página 11 – Arquivo público 9o. ano – Volume 2 Material de apoio Arte 3 D KO E st úd io . 2 01 8. D ig ita l.
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