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Paranoia feminina

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A perda da razão pode levar o indivíduo à dita loucura, confirmação que, ao longo da história, fundamenta o surgimento da Psiquiatria como ramo da Medicina. As ideias de que a loucura pode ser curável por intermédio de seu “tratamento moral” e a reversibilidade da alienação da razão são instituídas a partir do século XIX, impulsionando a motivação de Freud frente à construção teórica e prática da clínica da conversão histérica, empreendimento que fomenta o nascimento da Psicanálise. Se por um lado, a Medicina primitiva elencava seu saber no universal, por outro, a Medicina moderna se volta para a singularidade, todavia, concomitante ao princípio de universalidade na busca da etiologia da doença e os aspectos particulares do sujeito existe uma intersecção, criando o paradoxo da Medicina moderna. A partir destas circunstâncias, a Psicanálise é percursora ao compreender e intervir na doença mental, na idiossincrasia do sujeito que sofre, oferecendo acolhimento e um espaço que é simultaneamente terapêutico e voltado para pesquisa científica, como é apontado ao longo da obra de Freud (Coutinho, 2005).
	A Medicina se viu desafiada a responder, no campo das patologias mentais, qual a fração desempenhada pelos elementos psíquicos e biológicos na gênese do homem. Dessa maneira, o audaz conceito de pulsão cunhado por Freud preenche esta lacuna teórica. Considerar a pulsão como elemento do funcionamento mental normal ou patológico é dar luz ao ponto de encontro dos âmbitos somático e psíquico, corroborando o princípio de que corpo e mente estão interligados e devem ser trabalhados quando se trata do sofrimento do paciente (Coutinho, 2005). É possível apreender que, segundo Freud (1915, p. 127):
A pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita a mente no sentido de trabalhar, em consequência de sua ligação com o corpo. 
	A investigação de Sigmund tem sua porta de entrada na neurose histérica, enquanto desenvolve a teoria da dimensão da divisão subjetiva e do funcionamento inconsciente, elementos decisivos na realidade psíquica do indivíduo. Destarte, o paradigma clínico é constituído pela histeria, oferecida como modelo para a sintomatologia fóbica e obsessiva e também da psicose, inerente a paranoia. A partir desses pressupostos é possível salientar que todos partilham de uma “atitude defensiva” de enfraquecimento da representação oposta aos interesses do eu. Acredita-se, em muitos momentos, que tenha sido o psicanalista Jacques Lacan quem delimitou o mecanismo distintivo da psicose, contudo, Freud levanta em seus escritos uma teoria sobre os psicóticos, contemplada desde seus documentos mais remotos. Esse saber é embasado pela ideia de que os sintomas psiconeuróticos apontam uma defesa inconsciente de recalque direcionado a representações incompatíveis com questões egóicas do sujeito, em razão de sua natureza traumática sexual (Santos & Oliveira, 2012).
	Para o campo de saber da Psicanálise, a alucinação e o delírio correspondem a uma significação do indivíduo psicótico, da mesma maneira que o ato falho, os sonhos, chistes e sintomas são inerentes aos neuróticos. O comportamento presente na psicose, composto por estereotipagens, são objetos de interpretação a fim de se encontrar a loucura. Ainda nesse contexto, o louco tem uma forma própria de razão, ocorrendo sua expressão em atos ou palavras, tornando possível compreender a psicose e seu tratamento (Coutinho, 2005). É a partir dessa dedução que Freud faz a interpretação psicanalítica das memórias de Schreber, um hipocondríaco que possuía construções delirantes da decomposição de seu corpo e configurava, paulatinamente, delírios com traços religiosos e místicos, sequentes como persecutórios. A partir dessa leitura, a paranoia é concebida da mesma maneira em que é vista a neurose, como um mecanismo de defesa, onde a projeção é o sintoma característico desta patologia (Breitenbach, Poloni, & Mendes, 2014). A projeção, nessa temática, é baseada na defesa contra o desejo homossexual nas frustrações da vida infantil (Santos & Oliveira, 2012). Seguindo-se o quadro de psicose é possível dizer que:
A isso Freud acrescentou um mecanismo de projeção segundo o qual o paranoico se defende de uma “representação inconciliável com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externo”, e uma definição das modalidades do delírio: os paranoicos “amam os seu delírio como amam a si mesmos, esse é o segredo”. Numa carta de dezembro de 1899, Freud distinguiu a histeria da paranoia, mostrando que a primeira é alo-erótica e se manifesta por uma identificação com uma pessoa amada, enquanto a segunda é auto erótica e cinde o eu em diversas pessoas estranhas (Roudinesco & Plon, 1944, p. 573).
	O caso clínico de Schreber é descrito por três crises que resultam em sua internação. O cerne do delírio era a convicção de que estava sendo manipulado e transformado em uma mulher. Inicialmente sua formação delirante passa por um período persecutório e progressivamente apresenta caráter místico e já no ponto máximo da situação, este acredita ser o redentor da humanidade. Por este ângulo, o postulado freudiano acerca do delírio desloca a relevância do aspecto patológico, sobressaindo seu caráter de tentativa espontânea de restabelecimento (Santos & Oliveira, 2005). A formação delirante no paranoico engendra um processo hostil de reconstrução da realidade, por existir um conflito entre o ego e o mundo externo, desse modo, o id prepondera no reestabelecimento da realidade, abrindo espaço para as manifestações delirantes (Breitenbach et. al., 2012). É importante apontar as manifestações inconscientes do psicótico como “uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta aos objetos” (Freud, 1914, p. 82). Corroborando: 
Por conseguinte, a diferença inicial assim se expressa no desfecho final: na neurose, o fragmento da realidade é enviado para uma espécie de fuga, ao passo que na psicose ele é remodelado. Ou poderíamos dizer: na psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não repudia a realidade, apenas ignora: a psicose a repudia (Verleugnung) e tenta substitui-la (Freud, 1924, p. 231). 
	Consequentemente, a partir da terminologia freudiana clássica, a paranoia assumiu o paradigma da organização das psicoses em geral. Sigmund Freud acrescentou aos delírios de grandeza, perseguição, interpretação e autoerotismo dois grandes elementos: a definição de paranoia como defesa contra a homossexualidade, bem como listado anteriormente, e o paranoico não foi mais encarado como um doente mental no sentido da nosografia psiquiátrica (Roudinesco & Plon, 1944). Para tanto, é interessante abordar a definição de transtorno psicótico no DSM V, onde a mesma é descrita sob duas ópticas: uma mais restrita e outra mais ampla. Na categorização mais restrita a psicose será qualificada a partir da existência de delírios e alucinações, sendo que estas últimas aconteceriam a partir do insight de sua natureza patológica. Já a definição mais ampla abarca os sintomas positivos da Esquizofrenia, tais como o discurso desorganizado e o comportamento catatônico. A presença das formações inconscientes do sujeito são caracterizadas como diagnóstico diferencial da patologia, todavia, é notório o posicionamento do manual quanto a ignorar as proposições teóricas a fim de contribuir para uma produção excessiva da fragmentação do quadro clínico, reduzindo a singularidade e participação do indivíduo no processo diagnóstico e terapêutico (Calazans & Bastos, 2013).

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