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ob jet ivo s Meta da aula Mapear a produção crítica de Roberto Schwarz, destacando-lhe os principais feitos, a fim de explicitar a linha conjuntiva que congrega sua produção ensaística. Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. reconhecer o processo de formação intelectual de Roberto Schwarz e o papel desempenhado pelos pensadores com os quais o ensaísta mantém diálogo; 2. reconhecer a importância e a inovação da abordagem crítica de Roberto Schwarz no que concerne ao conceito das “Ideias fora do lugar” para os estudos da literatura brasileira. Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar André Dias Ilma Rebello Marcos Pasche 18AULA Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J8 INTRODUÇÃO Muitos estudiosos ao longo dos anos de sua produção acabam por trabalhar com determinados temas que os acompanham, direta ou indiretamente, durante a vida inteira. Outros, apesar de se ocuparem de uma longa lista de assuntos dentro de determinada área, conquistam notoriedade a partir de contribuições específicas, que favorecem a compreensão mais ampla e aprofundada sobre determinada questão. Tanto o primeiro quanto o segundo tipo de estudioso são imprescindíveis em qualquer campo do conhecimento, cada um com suas particularidades deixará para as áreas em que atuam um legado importante. No campo dos estudos literários, conforme observamos até aqui, são muitos os nomes que ajudaram a fundar, estabelecer e, em diversos momentos, questionar a formação do cânone da literatura brasileira. Cada um ao seu modo ofereceu o melhor que tinha em seus respectivos tempos e condições de produção. Vejamos: Nelson Werneck Sodré com sua mirada marxista foi buscar nos fundamentos econômicos as bases para a construção de sua História da literatura brasileira (Aula 7). Já Afrânio Coutinho sustentou seu trabalho historiográfico a partir de postulados estéticos e estilísticos (Aulas 8 e 9). Antonio Candido, por sua vez, além de criar a concepção de “literatura como sistema” ajudou a efetuar uma revisão dos parâmetros da crítica literária brasileira (Aulas 10, 11 e 16) e Alfredo Bosi (como vimos nas Aulas 12 e 17) construiu sua trajetória profissional a partir do legado do historicismo dialético. Na aula de hoje, vamos conhecer um pouco do pensamento de Roberto Schwarz, ensaísta e crítico literário, uma das mais potentes vozes dos estudos literários brasileiros, autor de obra vasta e fundamental para a compreensão de determinados aspectos da literatura e da cultura brasileira. Roberto Schwarz (Viena, Áustria, 1938) Crítico de literatura e cultura, poeta e dra- maturgo. Filho de Käthe e Johann Schwarz, Roberto Schwarz muda-se para o Brasil com a família, de origem judaica, no início de 1939, quando ocorre a anexação de seu país natal pela Alemanha. No Brasil, nos anos 1950, trava contato com o também emigrado Ana- tol Rosenfeld (1912-1973), que desempenha, em sua formação, o papel de mentor literá- rio e filosófico. Entre 1957 e 1960, Schwarz estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Nessa instituição, participa, C E D E R J 9 A U LA 1 8 Anatol Herbert Rosenfeld (Alemanha, 1912 – São Paulo, SP, 1973) Filósofo, crítico de arte, jornalista e professor. Estuda Filosofia e Teoria da Literatura na Universidade de Berlim. Intelectual de origem judaica, interrompe o doutorado devido à perseguição nazista. Refugia-se no Brasil, instalando-se em São Paulo, em 1937. Trabalha como lavrador em uma fazenda no interior de São Paulo. Em seguida, torna-se caixeiro-viajante, ofício que faz pelo Brasil e propicia o aprendizado da língua portuguesa. Durante esse período, não abandona as atividades intelectuais, escre- vendo poemas e crônicas em alemão e em português. A partir de 1945, passa a trabalhar como jornalista, escreve em periódicos de língua alemã e em jornais brasileiros. Em 1956, a convite do crítico Antonio Candido (1918), assina a seção de Letras Germânicas no "Suplemento Literário" de 1958 a 1964, de um seminário de leitura da obra de Karl Marx que reúne intelectuais como o filósofo José Arthur Giannotti, o historiador Fernando Novais e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Schwarz cursa mestrado em Teoria Literária na Universidade de Yale, Estados Unidos, de 1961 a 1963. De volta ao Brasil, em 1963, torna-se assistente de Antonio Candido (1918) no Departamento de Teoria Literária da USP. Com a ditadura militar, parte, em 1968, para o exílio em Paris, onde, anos depois, obtém o doutorado em Estudos Latino-Americanos na Sorbonne (Universidade de Paris III) com a tese Ao vencedor as batatas, sobre a obra de Machado de Assis (1839-1908). Quando retorna ao Brasil, em 1978, começa a lecionar Literatura e Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pela qual se aposenta em 1992. Alguns de seus mais significativos ensaios são publicados em língua inglesa em forma de livro e em importantes periódicos, como a New Left Review. Um dos últimos ensaios do crítico se ocupa, aliás, da repercussão internacional mais recente de Machado de Assis. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural Literatura Brasileira, http://www.itaucultural. org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_ verbete=5817&cd_item=35&cd_idioma=28555. DAS CIÊNCIAS SOCIAIS À CRÍTICA LITERÁRIA OU O ENSAÍSTA EM CONSTRUÇÃO Roberto Schwarz inicia sua trajetória acadêmica na área das Ciências Sociais, na Universidade de São Paulo (USP). Porém, suas pri- meiras influências intelectuais vêm do campo da filosofia e da literatura, através da amizade travada com Anatol Rosenfeld, crítico e filósofo, que desempenhou o papel de uma espécie de preceptor do jovem Schwarz. Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J1 0 de O Estado de S. Paulo, colaboração que mantém até 1967, quando o caderno para de ser editado. Ainda no Estadão, contribui também com crônicas, textos de ficção e artigos nas áreas de história, teoria da litera- tura e teatro. De 1962 a 1967, leciona estética teatral na Escola de Arte Dramática do Estado de São Paulo (EaD). No mesmo período, envolve- se ativamente com a cena teatral paulista, estabelecendo diálogos, por meio de seus artigos, com importantes diretores do período. A convite do crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000), em 1954, publica o clássico livro O teatro épico. Durante sua trajetória intelectual, não se vincula a nenhuma instituição de ensino, embora receba inúmeros convites para lecionar em universidades. Prefere sustentar-se, ministrando cursos particulares de filosofia e escrevendo como freelancer para jornais e revistas. Preserva, dessa maneira, sua independência intelectual, além de dispor de tempo para dedicar-se a seus projetos. Participa, no fim de sua vida, da comissão editorial da revista Argumento. Postumamente, a editora Perspectiva publica uma série de livros com escritos, deixados por Rosenfeld, editados pelo professor Jacó Guinsburg (1921), entre os quais estão Texto/Contexto II e Prismas do Teatro. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural Literatura Brasileira, http://www.itaucultural. org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_ verbete=8893&cd_item=35&cd_idioma=28555 O encontro de Schwarz com Rosenfeld marcou tão profundamente o primeiro que, anos mais tarde, já um intelectual respeitado, no livro Que horas são? (1987), ele publica um breve e afetuoso ensaio chamado “Os primeiros anos de Anatol Rosenfeld no Brasil” em que rememora o itinerário do amigo no país. Após abandonar a Alemanha e um doutorado quase finalizado sobre o Romantismo alemão, em 1936, para fugir do nazismo, Rosenfeld chega ao Brasil, em 1937, onde exerceu inicialmente os ofícios de traba- lhador do campo, lustrador de portas e caixeiro viajante (representava as gravatas Back). Com a última atividade, pôde guardar algum dinheiropara assim dedicar-se à sua verdadeira vocação, os estudos filosóficos e críticos. Sobre o período de transição vivido pelo intelectual alemão no país, Roberto Schwarz afirma: Quando julgou que as economias eram suficientes, Rosenfeld deixou as gravatas, organizou-se para viver com o mínimo, e dedicou alguns anos integrais à leitura. Instalou-se no porão da casa de um amigo, na rua Artur Azevedo, onde pagava um aluguel pequeno. [...] Aí Rosenfeld vivia enfurnado, entre a escrivaninha, a cama e os livros empilhados. Havia também algumas cadeiras de pau para os amigos e visitas, que ele recebia com inesquecível civilidade. Nesse tempo eu teria uns doze anos, e o visitava em manhãs de domingo, acompanhado de meu pai. Este, que tinha C E D E R J 1 1 A U LA 1 8dificuldade para conciliar as funções de chefe de família e as ambi- ções de escritor, admirava muito a resolução com que Rosenfeld pusera em prática seu plano de vida radical. Conforme acreditei mais tarde, foi um período em que ele, Rosenfeld, alimentou um projeto filosófico de mais fôlego, que depois foi deixando de lado, premido pelas solicitações do cotidiano da vida intelectual pau- lista. Mas, a disposição para o fundamental estava sempre com ele, e fazia parte do “efeito filosófico” que realmente emanava de sua pessoa (SCHWARZ, 1987, p. 80). A trajetória intelectual de Rosenfeld já tinha sido examinada por Schwarz no livro O pai de família e outros estudos (1978). O ensaio “Anatol Rosenfeld, um intelectual estrangeiro” destaca, entre outras questões, a disponibilidade do filósofo para o diálogo e as mediações que ele mantinha com o pensamento de Marx e Freud. Nas palavras de Roberto Schwarz: [...] Nos cursos de Rosenfeld, que não tinham finalidade de diplo- ma, a matéria de ensino cruzava-se facilmente com o acaso das intervenções, e logo entrava pela atmosfera mais viva do interesse real, que não se acomoda na compartimentação acadêmica das disciplinas. Havia uma admirável capacidade de se deixar inter- romper e de acompanhar confusões e digressões, sem perder de vista o rumo geral do seminário. Menos pela matéria, que afinal era a de todas as introduções, e mais pela variedade e paciência deste movimento, suas aulas davam uma ideia verdadeiramente apreciável da Filosofia, aberta e tão livre de embromação quanto possível. [...] Em termos de visão, Rosenfeld obviamente devia muito a Marx e Freud. Mas discordava da ênfase que o discurso deles havia tomado nos seguidores. Não se convencia da cientificidade exclusiva reivindicada pelas análises psicanalíticas e marxistas. Quando adaptadas ao campo literário ou filosófico, lhes pareciam reducionistas (SCHWARZ, 1978, p. 104 e 106). Nas breves passagens apresentadas, podemos perceber, além da disponibilidade para o diálogo aberto com o outro, a capacidade de examinar criticamente as formulações, até mesmo dos pensadores com os quais Rosenfeld mantinha intenso diálogo. Ao destacar tais caracte- rísticas do filósofo alemão que se radicou no Brasil, Schwarz acaba por explicitar um dos aspectos mais importantes do seu próprio pensamen- to, a saber, a capacidade de manter os olhos livres e o espírito aberto. Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J1 2 Estes dois atributos ajudaram a consolidar no ensaísta o entendimento de que nenhum pensamento, por mais refinado e relevante que seja, é uma verdade acabada ou configura-se como um monumento intocável. Municiado com as primeiras lições do mestre Rosenfeld, Roberto Schwarz seguiu seu caminho pavimentado pelas mais variadas postula- ções de orientação marxista, que vão desde as obras de Lukács, passando por Adorno e Walter Benjamin até chegar a Brecht. Soma-se, ainda, à rede dialógica de Schwarz as contribuições de Antonio Candido, de quem recebeu indicações imprescindíveis para um melhor emprego da teoria literária à realidade nacional. Em 1977, o ensaísta lança o livro Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, fruto de sua tese de doutorado apresentada na Sorbonne (Universidade de Paris III). Estudo seminal sobre os primeiros romances de Machado de Assis, o trabalho inaugura um novo momento da fortuna crítica dedicada ao legado literário do maior romancista brasileiro e, ao mesmo tempo, alça Roberto Schwarz à condição de um dos mais importantes ensaístas brasileiros. Além disso, na obra em questão, o estudioso faz também um exame minucioso do romance Senhora, de José de Alencar, apresentando as contradições existentes na ficção do escritor. Ao vencedor as batatas teve ainda o mérito de apresentar uma das formulações mais instigantes sobre pensamento social brasileiro, que ainda hoje, 35 anos após sua publicação, gera excelentes debates. No capítulo I da obra, intitulado “As ideias fora do lugar” o ensaísta, através da análise do discurso literário de Machado de Assis, chama atenção para o fato da infância da modernidade brasileira ter se dado sob bases absolutamente arcaicas. Na segunda parte da nossa aula, exploraremos mais detidamente essa questão. Por enquanto, dedique algum tempo para pensar sobre tudo o que vimos até aqui. C E D E R J 1 3 A U LA 1 8 Theodor W. Adorno (1903–1969) Filósofo, sociólogo e musicólogo alemão. É um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas. Judeu exilado durante o nazismo em Oxford, depois nos Estados Unidos (de 1934 a 1949). Nos anos 1930, Adorno elabora com Hork- heimer o projeto de “teoria crítica”, aplicação da crítica marxista aos novos mecanismos de dominação e alienação (“sociedade admi- nistrada”, padronização da cultura), sem esquecer aqueles gerados pelo marxismo ortodoxo (totalitarismo) e levando em conta os desdobramentos não previstos por Marx: em vez de uma pauperização crescente, a integração da classe operária na classe média. Na obra Dialética do esclarecimento (1947), publicada após a guerra em coautoria com Horkheimer, é rejeitada a ideia de que a vitória do pro- letariado bastaria para abolir a dominação do homem pelo homem. É a própria razão que, instrumentalizando-se, tornou-se responsável pela alienação e pelas novas formas de barbárie. (BARAQUIN; LAFFITTE, 2007, Dicionário universitário dos filósofos, p. 1). Georg Lukács (1885–1971) Filósofo húngaro, pensador do marxismo político, Lukács foi também um dos mais influentes críticos literários no século XX. Sua importante obra de crítica literária começou bem cedo em sua carreira, com A teoria do romance (1917), um trabalho seminal de teo- ria literária. O livro é uma história do romance enquanto forma literária, e uma investigação de suas distintas características, e demonstra forte inspiração hegeliana. Fonte: http://pt.wikipedia. org/wiki/Theodor_W._ Adorno Fonte: http://pt.wikipedia. org/wiki/Gy%C3%B6rgy_ Luk%C3%A1cs Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J1 4 Walter Benjamin (1892–1940) Ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Benjamin tinha seu ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” na conta de primeira grande teoria materialista da arte. O ponto central desse estudo encontra-se na análise das causas e consequências da destrui- ção da “aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade. Bertolt Brecht (1898–1956) Dramaturgo, poeta e encenador, Brecht foi um dos autores mais importantes do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóri- cos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações desua companhia, o Berliner Ensemble, realizadas em Paris, durante os anos 1954 e 1955. Ao final dos anos 1920, Brecht torna-se mar- xista, vivendo o intenso período das mobiliza- ções da República de Weimar, desenvolvendo o seu teatro épico. Seus textos e montagens fizeram-no conhecido mundialmente. Brecht é um dos escritores fundamentais desse século: revolucionou a teoria e a prática da dramaturgia e da encenação, mudou completamente a função e o sentido social do teatro, usando-o como arma de consciencialização e politização. Fonte: http://en.wikipedia. org/wiki/Walter_Benjamin Fonte: http://pt.wikipedia. org/wiki/Bertolt_Brecht C E D E R J 1 5 A U LA 1 8ROBERTO SCHWARZ E AS IDEIAS FORA DO LUGAR Em Ao vencedor as batatas, Roberto Schwarz propõe-se a estu- dar, como sugere o subtítulo do livro, “forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro”. Entretanto, mesmo sendo uma obra produzida em meados dos anos 1970 – só para não esquecer, a 1ª edição é de 1977 – Schwarz resiste à “tentação” de sustentar suas reflexões com os postulados da teoria estruturalista tão em voga naquele período. Em vez de iniciar o trabalho fazendo uma varredura completa da estrutura textual dos romances de Machado de Assis, o estudioso opta por abrir o estudo a partir de uma análise minuciosa dos processos sociais com os quais o autor de Dom Casmurro dialogaria profundamente, durante o desenvolvimento composicional de suas narrativas. O conceito de “Ideias fora do lugar”, que dá nome ao primeiro capítulo de Ao vencedor as batatas, nasce, então, da escolha do ensaísta em operar com noções que privilegiavam a busca do entendimento pleno dos processos sociais que se forjaram no Brasil, ao longo de sua formação histórica, e suas implicações, na construção dos discursos literários de Machado de Assis. Dito de outra maneira, temos a seguinte questão: para melhor compreender os caminhos artísticos presentes na prosa machadiana, é preciso entender como o escritor relacionava-se com as ideias hegemônicas presentes na sociedade brasileira oitocentista. A abordagem de Schwarz consegue apresentar magistralmente a súmula de tais ideias e como elas se configuravam contraditoriamente no tecido social brasileiro, sobretudo quando olhadas em perspectiva com as fontes europeias. O primeiro aspecto do problema apresentado que o autor destaca no ensaio será, justamente, o contrassenso ideológico sob o qual se pretendeu estabelecer os valores da sociedade brasileira, ao longo do século XIX. Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato “impolítico e abominável” da escravidão. Este argumento – resumo de um panfleto liberal, contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil do sistema da ciência. [...] Grande degradação, considerando-se que a ciência eram as Luzes, o Progresso, a Humanidade etc. Para as artes, Nabuco expressa um sentimento comparável quando protesta contra o assunto escravo no teatro de Alencar: “Se isso ofende o estrangeiro, como Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J1 6 não humilha o brasileiro!” Outros autores naturalmente fizeram o raciocínio inverso. Uma vez que não se referem à nossa realidade, ciência econômica e demais ideologias liberais e que são, elas sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis. “Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, esquecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado de nosso escravo feliz”. Cada um a seu modo, estes autores refletem a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu. Envergonhando a uns, irritando a outros, que insistem na sua hipocrisia, estas ideias – em que gregos e troianos não reconhe- cem o Brasil – são referências para todos. Sumariamente, está montada uma comédia ideológica, diferente da europeia. É claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências, encobrindo o essencial a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas ideias seriam falsas num sen- tido diverso, por assim dizer, original. A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão. [...]Que valiam, nestas circuns- tâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos tanto? Não descreviam a existência – mas nem só disso vivem as ideias. [...] Essa impropriedade de nosso pensamento, que não é acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua, atravessando e desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológica do Segundo Reinado. Frequentemente inflada, ou rasteira, ridícula, ou crua, e só raramente justa no tom, a prosa literária do tempo é uma das muitas testemunhas disso (SCHWARZ, 1977, p. 13-14). Na passagem apresentada, Schwarz destaca um dos problemas centrais do Brasil da primeira metade do século XIX. Dividido entre o trabalho escravo que sustentava a base da economia concreta e o ideário do liberalismo europeu de caráter Iluminista, as classes dominantes do país dividiam-se entre os insatisfeitos e os satisfeitos com o legado da escravidão. Enquanto a Europa e a América do Norte já haviam superado o problema da escravidão, o Brasil continuava irremediavelmente atrela- do a ela. Por outro lado, o problema ideológico do liberalismo europeu estava vinculado à exploração da força de trabalho que, em geral, era C E D E R J 1 7 A U LA 1 8muito mal remunerada. Essa questão esvaziava ou colocava em xeque a crença no progresso da humanidade, propagada pelo ideário Iluminista. No desenvolvimento do ensaio, Roberto Schwarz assim apresenta as bases sociais do Brasil do século XIX: [...] Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. Mais ou menos diretamente, vêm daí as singularidades que expusemos. Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro, com seus corolários sociais – uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada. A prática permanente das transações escolava, neste sentido, quando menos uma pequena multidão. Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles (SCHWARZ, 1977, p. 14). A descrição social do Brasil do século XIX, além de fortalecer a tese central do ensaísta, aponta para outra grande contradição do país. No Brasil, o liberalismo esbarrava na incongruência da escravidão: Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, descarrilhava. [...] Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais; o que, entretanto, é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o país como todo. Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdadedepen- dente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em consequência, por este mesmo mecanismo. Assim, com mil formas e nomes, o favor Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J1 8 atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção (SCHWARZ, 1977, p. 15-16). A escravidão no Brasil era, de fato, uma incongruência sob todos os aspectos. Contudo, desde o período colonial, a relação social mediada pelo conceito do “favor” foi urdida e passou a definir efetivamente o “espírito” brasileiro. O monopólio da terra definiu os três tipos básicos de classes no país: o latifundiário, o escravo e o homem livre. Este último, de livre só tinha o nome, pois, na realidade, sempre dependeu do favor dos mais abastados para garantir a sobrevivência. O desenvolvimento do país se deu, desde os seus primórdios, através do jogo de interesses entre as classes abastadas e aquela advinda da figura do homem livre, mas pobre, por isso dependente. Olhada em perspectiva, a sociedade brasileira traz enraizada, até os dias de hoje, a cultura do favor que, com o tempo, foi sendo elaborada e incorporada nas práticas sociais do país. O tempo se encarregou de sedimentar tal cultura e forjar a mentalidade patrimonialista, que perpassa muitas vezes a esfera dos negócios privados, mas vai expressar todo seu potencial nocivo nas esferas da administração pública. Por isso, não é raro ver- mos homens públicos que tratam a máquina pública como se fosse seu patrimônio privado. É importante destacar ainda que muitos escritores brasileiros – Machado de Assis seguramente foi um dos mais perspicazes – através do discurso literário, expuseram as entranhas perversas desse mecanismo social. C E D E R J 1 9 A U LA 1 8A incorporação do “favor” como “mediação quase universal” no Brasil teve como consequência, por um lado, a desarticulação do Estado burguês tal qual preconizado pelos ideais liberais. Por outro lado, a prá- tica do “favor” provocou a substancial perda do valor da educação e da cultura, uma vez que o que importa é a relação de “amizade” e “compa- drio”, sempre disponíveis a qualquer tempo. Nas palavras de Schwarz: Vimos que nela as ideias da burguesia – cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração – tomam função de ...ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se... industrializa. O quiproquó das ideias não podia ser maior. A novidade no caso não está no caráter ornamental de saber e cultura, que é da tradição colonial e ibérica; está na dissonância propriamente incrível que ocasionam o saber e a cultura de tipo “moderno” quando postos neste contexto. São inúteis como um berloque? São brilhantes como uma comenda? Serão a nossa panaceia? Envergonham-nos diante do mundo? (SCHWARZ, 1977, p. 18). A questão central do problema apresentado pelo ensaísta está menos no aspecto decorativo que a educação e a cultura assumem diante da prática do “favor” e mais na percepção da inutilidade de tais atributos em um tipo de sociedade marcadamente patrimonialista. O percurso empreendido por Roberto Schwarz na construção do conceito das “Ideias fora do lugar” é sintetizado da seguinte maneira pelo ensaísta: Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível no dia a dia, fomos levados a refletir sobre o processo da colonização em seu conjun- to, que é internacional. O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário (SCHWARZ, 1977, p. 24). De maneira clara e demonstrando rara sensibilidade para apre- ensão da vida brasileira, Roberto Schwarz nos oferece, através de seu estudo, uma visão do país, plasmada das páginas literárias com uma Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J2 0 propriedade poucas vezes vista até então. Atende ao Objetivo 1 1. Leia o trecho do ensaio “Contribuição, salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, de Sergio Paulo Rouanet: Mas creio que se Schwarz escreve tão bem, isso tem uma explicação mais geral: ele não é apenas leitor de Machado, mas também de Proust, Mann, Joyce e Musil. É hábito quase escandaloso entre nós. Em geral, o crítico literário brasileiro lê muita crítica e pouca literatura. De tanto frequentar Todorov e Kristeva, a sua escrita (perdão, escritura) tem um aspecto deci- didamente búlgaro. Todos leram o que Barthes escreveu sobre Sarrasine e Bakhtin sobre Pantagruel, mas quantos têm o hábito de ler regularmente Balzac e Rabelais? (ROUANET, 2003, p. 304-305). Ao destacar as qualidades da produção de Roberto Schwarz, Rouanet acaba por efetuar um exame severo do ofício do crítico. Destaque os principais pontos abordados na avaliação do estudioso, explicando como eles aju- dam a compreender o percurso formativo do trabalho crítico de Schwarz. RESPOSTA COMENTADA A afirmação de Rouanet joga luz sobre um problema grave que acomete parte do campo da crítica literária brasileira. As colocações do estudioso confrontam a prática de muitos críticos de literatura, que supõem poder prescindir da leitura literária para efetuar seus trabalhos. Em outras palavras, Rouanet demonstra que a crítica literária sem a presença da literatura é um engano, e pautar a atividade crítica apenas com as contribuições dos estudos teóricos estrangeiros – mesmo os mais importantes – é insuficiente para o desenvolvimento de um trabalho verdadeiramente consistente. ATIVIDADE C E D E R J 2 1 A U LA 1 8 Ao destacar a clareza da expressão escrita de Schwarz, Rouanet acaba por traçar uma espécie de percurso formativo do ensaísta que pauta seu trabalho crítico pelo mergulho profundo nas obras literárias, que devem funcionar como base central de toda atividade crítica. Ou seja, para Rouanet, o que faz de Roberto Schwarz um grande crítico é a capacidade do estudioso de travar um diálogo pro- fundo com as principais obras da literatura universal. Para conhecer melhor o pensamento de Roberto Schwarz, acesse o site Youtube e assista ao programa Obra Aberta da TV Cultura e Arte, exibidoem 2002, sobre a produção literária de Machado de Assis. Nele, Roberto Schwarz analisa os mais variados aspectos da cultura brasileira presentes na obra do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. O programa está dividido em quatro blocos, conforme os links abaixo: 1 – http://www.youtube.com/watch?v=m5y1Tc5sKN8 2 – http://www.youtube.com/watch?v=VcN9VtdOzt8&featu re=relmfu 3 – http://www.youtube.com/watch?v=qmYVXuvMwxg&fea ture=relmfu 4 – http://www.youtube.com/watch?v=KUlu1TC8vEA&featu re=relmfu CONCLUSÃO Por fim, é preciso que se diga que o ineditismo das formulações de Roberto Schwarz sacudiu o cenário da crítica literária e social brasileira dos anos 1970, gerando uma série de debates em torno do pensamento do autor. Todavia, engana-se quem supõe que o alcance e as discussões em torno das ideias do ensaísta ficaram circunscritos apenas aos anos 1970. Ainda hoje, trinta e cinco anos após a sua publicação, as “Ideias fora do lugar continuam a instigar o pensamento e a reflexão. Mas isso, Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J2 2 isso já é outra história... ATIVIDADE FINAL Atende ao Objetivo 2 Leia o capítulo de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e em seguida responda à questão: CAPÍTULO LXXIV HISTÓRIA DE D. PLÁCIDA Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de D. Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia. — Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém queria casar comigo. Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, D. Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava: — Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias de pessoa C E D E R J 2 3 A U LA 1 8rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo, não é? D. Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. D. Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro... Interrompeu-se um instante, e continuou logo: — Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. — Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola... Ao soltar a última frase, D. Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim (ASSIS, 1988, p. 133-135). a) Explique em que medida o trecho apresentado articula-se com as teses desenvolvidas em “As ideias fora do lugar”, especialmente no que diz respeito às questões da cultura do “favor”. Literatura Brasileira I | Roberto Schwarz e as ideias fora do lugar C E D E R J2 4 RESPOSTA COMENTADA O trecho apresentado ilustra bem a questão do “favor” como mediação preferen- cial nos jogos sociais do Brasil oitocentista. Na verdade, a mediação do “favor” nas relações sociais extrapolou o século XIX e ainda hoje pode ser percebida como um dos traços mais marcantes da sociedade brasileira. Tal fato só reforça a atualidade das críticas apresentadas no romance de Machado de Assis. No caso específico do capítulo LXXIV de Memórias póstumas de Brás Cubas, a mediação do “favor” fica explicitada na figura de D. Plácida, senhora de origem pobre, viúva e trabalhadora braçal. Depois de uma sucessão de adversidades, pri- meiro passa a viver na condição de agregada da família de Iaiá Virgília, depois se vê presa em uma teia de adultério (relação de Brás Cubas e Virgília) que contraria seus princípios éticos, contudo, garante sustento e proteção contra uma velhice de abandono e miséria. R E S U M O A trajetória acadêmica e intelectual de Roberto Schwarz contou com uma for- mação sólida na área das Ciências Sociais, mas também recebeu contribuições fundamentais dos mais variados intelectuais de orientação marxista. Entre eles podemos destacar as figuras de Anatol Rosenfeld, Theodor W. Adorno, Georg Lukács, Walter Benjamin e Bertolt Brecht. Antonio Candido foi também figura muito importante na consolidação do caminho do ensaísta. C E D E R J 2 5 A U LA 1 8 LEITURA RECOMENDADA Como já dito, a atualidade das formulações de Roberto Schwarz vem atravessando o tempo e mantendo-se viva até o presente. Para conhecer um pouco dos diálogos suscitados pelo trabalho do estudioso, leia o seguinte: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia. São Paulo: Cia. das Letras, 2010. ___________. A escravidão entre dois liberalismos. In. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1992. SCHWARZ, Roberto. Por que “ideias fora do lugar”? In. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. A formulação do conceito de “As ideias fora do lugar” alçou Roberto Schwarz à condição de um dos mais importantes intelectuais do país. Em linhas gerias, o referido conceito aponta a contradição presente no pensamento da elite brasileira oitocentista, que consistia em defender, no plano do discurso, os ideais do libera- lismo. Entretanto, na prática, o que contava era o uso da mão de obra escrava que sustentava a produção da economia. A formulação do estudioso destaca ainda o problema do “favor” como “mediaçãouniversal” nas relações sociais brasileiras. Tal mediação acaba por transformar o saber e a cultura em meros adornos de classes, uma vez que o que conta realmente são as relações patrimonialistas.
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