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Diretoria A B R A L I C 2005/06 Presidente José Luís Jobim (UERJ/UFF) Vice-presidente Lívia Reis (UFF) 1 ° Secretário Antonio Carlos Secchin (UFRJ) 2° Secretário João Cezar de Castro Rocha (UERJ) 1 ° Tesoureiro Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) 20 Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ) Conselho Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG) Eduardo Coutinho (UFRJ) Gilda Neves Bittencourt (UFRGS) Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Cecília Queirós de Moraes Pinto (USP) Maria Eunice Moreira (PUC/RS) Reinaldo Martiniano Marques (UFMG) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Suplentes Márcia Abreu (UNICAMP) Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC) Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel. ABRALIC C.G.C.04901271/0001-79 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Instituto de Letras Rua São Francisco Xavier 524, 11 0 andar - CEP 20559-900 Bairro Maracanã - Rio de Janeiro 1 RJ Fone/Fax: (21) 2587-7313 E-mail: abrallc@terra.com.br 4 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 © 2006 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- Dl 03-6963J é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (AbralicJ, entidade civil de caráter cultural que congrega prOfessores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito, Editores José Luís Jobim Lívia Reis Antonio Carlos Secchin João Cezar de Castro Rocha Roberto Acízelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida Formatação e Casa Doze Projetos & Edições produção gráfica Tiragem 2000 exemplares Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada - v,l, n,l (1991 ),- Rio de Janeiro: Abralic, 1991- v, ,n,9, 2006 ISSN 0103-6963 1 , Literatura comparada - Periódicos, I. Associação Brasileira de Literatura Comparada, CDD 809,005 CDU 82,091 (05) A revista e o X Congresso Internacional da ABRALlC José Luís Jobim Lívia Reis Antonio Carlos Secchin João Cezar de Castro Rocha Roberto Acízelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida editores 5 Este segundo número da Revista Brasileira de Literatura Comparada, editado em nossa gestão, aponta para a possibilidade de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de dar ênfa- se aos periódicos científicos que tenham periodicidade no mínimo bianual nas avaliações do QUALIS. O lançamento desta edição no X Congresso Internacional da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em promoção conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universida- de Federal do Rio de Janeiro - faz parte também das comemora- ções referentes aos 20 anos de atividades ininterruptas de nossa associação, como não poderia deixar de ser. Agradecemos aos pesquisadores de todo o país e do exteri- or que responderam ao callfor papers, e não podemos deixar de dizer que gostaríamos de ter mais espaço para acolher ainda mais artigos do que o já elevado número que ora publicamos. De todo modo, a própria diversidade dos articulistas que contribuem para este número é uma comprovação expressiva da importância nacio- nal e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado. Agradecemos também aos nossos pareceristas ad hoc, que trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudéssemos lan- çar este número ainda em nosso evento de 2006. Quanto ao evento em si, foi no período entre 31 de julho e 04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso da ABRALIC, 6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo profes- sores e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contan- do com mais de 2.000 inscritos. É sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fundada em 1986, na UFRGS, completando assim 20 anos em 2006. Desde então, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas se- guintes Universidades: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC, UFBa, UFMG e UERJ. Seus últimos dois congressos (UFMG e UFRGS) reuniram, cada um, cerca de 1.700 professores e pesqui- sadores. Hoje, a ABRALIC é a associação científica mais antiga e com maior destaque na nossa área, e a maior associação de estu- dos literários da América Latina. Sua diretoria é eleita bianualmente, compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus mem- bros são da VERJ, UFF e UFRJ), responsáveis por todas as ativi- dades no biênio. Há também um Conselho, integrado por ex-pre- sidentes e por pesquisadores de destaque na área, que dialoga com a diretoria, nos assuntos de interesse da ABRALIC. O X Congresso Internacional da ABRALIC discutiu o lo- cal, o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetário: lu- gares dos discursos literários e culturais, e teve como subtemas: Lugares dos discursos literários e culturais. Construção de iden- tidades: local, regional, nacional, internacional, étnica, sexual, lingüística, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Me- trópole e colônia. O colonial e o pós-colonial. Herança ibérica e Novo Mundo. Relações culturais e blocos transnacionais (MERCOSUL e União Européia). Exceção cultural e globalização. Homogeneidade e heterogeneidade. Políticas cul- turais nacionais e internacionais. Interseções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferenças, assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais. Quadros de referência da circula- ção e aquisição do saber cultural e literário. As teorias e seus lugares de enunciação. Modos de ver, modos de julgar, descrições e prescrições. Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu tanto o Encontro Regional da ABRALIC-2005 quanto este X Con- gresso Internacional da ABRALIC, convém aqui reiterar a nossa concepção deste termo: "Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC I Jobim, J.L. ABRALIC: Sentidos do seu lugar. Rev. Brasileira de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, 8, p. 95-112, 2006. por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é constituído por redes públicas de sentido, formado- ras de subjetividade. Nele se constituem interpretações públi- cas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impõem sentido às experiências singulares dos sujeitos, elementos em relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os textos que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras pala- vras, o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referências deste dizer - incluindo determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, siste- ma que sempre já estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre história, e mesmo o apagamento de certos elementos constitutivos da história do lugar também é decorrente de ra- zões históricas." 1 Mais do que nunca, hoje, faz-se necessário estudar as corre- lações entre os lugares e os discursos literários e culturais, gerando construções de toda ordem, derivadas não só de relações políticas assimétricas, mas também de todo um quadro complexo de interse- ções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferenças, assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais. Com o evento de 2006,pretendemos, entre outras coisas: 1) Dar prosseguimento ao trabalho acadêmico que até o presente momento vem caracterizando o perfil da Associação Brasileira de Literatura Comparada (isto é, situar o estudo da Literatura em relação a problemas teóricos fundamentais para a discussão do quadro de referências em que se situam estes estudos, bem como em relação a pesquisas desenvolvidas em outras áreas das Ciênci- as Humanas); 2) Buscar uma maior integração acadêmica entre os associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias inter- universitárias, a partir da realização dos simpósios temáticos e da sinergia gerada pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuição re- flexiva em relação aos quadros de referência que delimitam fluxos literários e culturais; 4) Incentivar a emergência de novas parceri- as e projetos entre pesquisadores da área; 5) Enfocar as mais re- centes teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a 7 8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 atividade literária e seu papel de verdadeira intersecção entre as diversas áreas de conhecimento, perspectiva que mantém o cará- ter multidisciplinar dos eventos da ABRALIC. Tivemos a presença dos seguintes pesquisadores, como con- ferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC, todos com reconhecida qualificação e produção acadêmica: Ana Pizarro (Uni- versidade de Santiago de Chile), Benjamin AbdallaJr. (USP), Edson Rosa da Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca (Universidad de la República - Uruguai), Jean-Marc Moura (Université de Lille), Luisa Campuzano (Universidade de Hava- na), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman (PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso (Universidade de Roma - La Sapienza), Zilá Bernd (UFRGS). Ressalte-se que a publicação em livro das conferências, a exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional da ABRALIC-2006, permitirá a um público mais amplo o acesso ao resultado do evento. As atividades, em todos os dias do congresso, foram distri- buídas em mesas-redondas, na parte da manhã e ao final da tarde, da qual participaram os pesquisadores convidados, e em Simpósios, organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela Comissão Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez) mesas-redondas, cada uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (se- tenta e um) Simpósios, funcionando em um turno (manhã ou tar- de), durante os dias do evento. Três universidades participam diretamente da organização des- se Encontro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sede do evento, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria da ABRALIC foi responsável pela organização, junto com uma Comissão Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: José Luís Jobim (UERJIUFF); Lívia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin (UFRJ); João Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ); Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lúcia de Souza Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ) A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC Além dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, in- dispensáveis para tornar possível a realização do X Congresso In- ternacional da ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles cujo trabalho foi fundamental para o sucesso do empreendimento. Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção sobre o novo sistema de envio de todos os textos completos das comunicações a serem apresentadas em cada simpósio, para publicarmos, de modo que, no primeiro dia do Congresso, cada participante pudesse rece- ber, junto com o material do congresso, os anais, com a sua comu- nicação já publicada. 9 Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de simpósios, a seu critério, pudessem fazer apenas a discussão dos trabalhos, já que estes estavam disponíveis bem antes do evento. Este é um novo procedimento, já que o próprio formato dos con- gressos de nossa área não beneficia um possível aprofundamento crítico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura básica de nossos congressos consiste em apresentações de cerca de 20 minu- tos, sem discussão posterior - ou, pelo menos, sem uma discussão que mereça, até pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invés de se levarem papers que são lidos sem discussão, se possa introduzir a prática de disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedi- car-se apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a um maior adensamento geral das argumentações desenvolvidas so- bre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalização de opiniões contrárias, obriga ao acuramento de posições. Ressal- te-se que tanto a decisão sobre a disponibilização e circulação (ou não) dos textos antes do evento (por exemplo, através de anexos em e-mails para os participantes dos simpósios) quanto a sua forma de apresentação ou discussão no próprio evento foram decisões does) próprio(s) coordenador(es) de cada simpósio. A todos os sócios e participantes do X Congresso Internaci- onal da ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuição. Sumário A revista e o X Congresso Internacional 5 da ABRALlC Artigos A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira Joana Luíza Muylaert 1 3 Antonio Candido e o projeto de Brasil Regina Zilberman 35 A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos 49 A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor Patrícia Kátia da Costa Pina 65 O marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim Socorro de Fátima Pacífico Vilar 79 De São Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana para Monteiro Lobato Marisa Lajolo 99 Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos Délia Cambeiro 1 07 Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France Pierre Rivas 1 29 Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista Andréa Borges Leão 141 Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos Maria de Lourdes Patrini-Charlon 161 Da representação do horror ao vazio da representação Edson Rosa da Silva 1 81 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 A literatura e a virtualização do texto literário Rogério Lima 191 A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais Ana Cláudia Viegas 213 O hipotexto de N 011 Luiz Gonzaga Marchezan 229 Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em três tempos Marília Librandi Rocha 243 Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes Ângela Maria Dias 259 Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti Maria Luíza Berwanger da Silva 269 As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa Maria Esther Maciel 283 Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado Thais Flores Nogueira Diniz 293 Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas Laura Cavalcante Padilha 307 Resenhas Dom Quixote: utopias André Trouche e Lívia Reis, org. Rodrigo F. Labriola 323 Conceitos de literatura e cultura Eurídice Figueiredo, org. Maisa Navarro 327 Jacques Derrida: pensar a desconstrução Evando Nascimento, org Carla Rodrigues 330 História. Ficção. Literatura. Luiz Costa Lima Sérgio Alcides 336 Apresentação dos autores 345 A formação, os deslocamentos:modos de escrever a história literária brasileiraIntrodução Joana Luíza Muylaert de Araújo (UFU) As relações entre culturas literárias diversas têm recebido da crítica brasileira contemporânea tratamentos distintos, confor- me o ponto de vista teórico inseparável das escolhas do crítico e da sua sensibilidade para certos temas, autores e textos, e não outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisória e inacabada das interpretações é assumida explicitamente nos tex- tos de críticos e historiadores da literatura. A pergunta que então proponho, neste trabalho, refere-se à possibilidade de se postular histórias da literatura brasileira orientadas para os vazios, para as rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e orgânico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a tradição ou a formação de textos canônicos brasileiros. Em síntese, a proposta também poderia ser nos termos, a seguir, formulada: compreendendo a formação da literatura brasi- leira não como linha evolutiva de uma identidade essencialista e original a ser revelada, mas como imagem construída no cruzamen- to da cultura e da subjetividade dos diversos intérpretes, passaría- mos então a identificar váriasformações da literatura brasileira, tantas quantas propuseram os historiadores desde o romantismo. Em outras palavras, o que poderíamos interpretar, talvez equivocadamente, como desacertos da crítica, oferece-nos ao con- trário os elementos indispensáveis para a afirmação de uma escri- ta caleidoscópica da história, diversa e dispersa, com as aporias incontornáveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crítica e historiografia. A hipótese aqui apresentada pressupõe a reavaliação de ques- l3 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 tões teóricas pertinentes ao campo da historiografia literária, bem como ao terreno da crítica no Brasil, marcada pela insistência no descompasso das produções literárias brasileiras em relação às lite- raturas européias. E, uma vez que toda opção teórica nos com- promete em atitudes práticas, o ponto de vista escolhido me le- vou a assumir o gesto propositivo de afirmar em relação aos textos não o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles efetivamente se realizou. Nesse gesto está implicada, portanto, uma perspectiva críti- ca em relação às abordagens totalizantes da literatura brasileira, uma perspectiva plural e mais arriscada da história literária como representações assumidamente fragmentadas e inacabadas ou, nas palavras de Siegfried J. Schmidt, como construções "tão multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO, 1996, p. 116). E é desse ponto de vista que proponho examinar a possibilidade de outras escritas da história literária brasileira, além das que vem sendo elaboradas a partir da idéia de "formação" como um percurso evolutivo, relativamente contínuo, de estilos, formas e temas literários ou, ainda, como superação da tradição. A reflexão pretendida implica, em síntese, afinidade com as principais vertentes da historiografia literária contemporânea, com- prometidas com a redefinição dos paradigmas que sustentaram a historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de lite- ratura nacional, de história e narrativa ficcional enquanto gêneros estanques, de época e de periodização e, particularmente, a cate- goria dos textos canônicos, os chamados clássicos universais da literatura. São questões da teoria literária, inseparáveis da historiografia, que o historiador contemporâneo - compelido a problematizar o seu ofício - deve incorporar na sua escrita. Duplo desafio, portanto: além de uma inescapável opção teórica entre as diferentes concepções a respeito da história, deve ao mesmo tem- po teorizar sobre as mudanças constantes dos padrões estéticos ou as várias representações do que chamamos literatura, pois do historiador se espera que assuma a responsabilidade crítica, explicitando seus pressupostos teóricos e seus métodos, revelan- do, até onde isso é possível, as marcas de sua subjetividade na construção das histórias que narra e problematiza. No caso dos críticos brasileiros, distinguimos aqueles que, em seus trabalhos de crítica historiográfica, vêm promovendo des- A fonnação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira locamentos importantes nos modos de percepção de tudo o que se compreendeu até então como história da literatura nacional, tanto no que se refere a uma suposta brasilidade perceptível nos textos considerados quanto no que diz respeito a uma também presumível continuidade de formas e estilos sucedendo-se numa relação linear de causas e efeitos. Antes, porém, de expor algumas propostas dentre as mais representativas de uma historiografia não apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crítica de suas próprias premissas, considero necessária uma breve nota sobre o s-entido da idéia de "formação" e seus desdobramentos na historiografia literária moderna no Brasil, destacando-se os traba- lhos de Antonio Candido e Roberto Schwarz. o sentido da formação na historiografia de Antonio Candido Momento decisivo para a historiografia literária brasileira é o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crítica de autores como Silvio Romero e José Veríssimo, desenvolverá conceitos fundamentais como os de sistema e formação literária, pilares de seu trabalho historiográfico, construído a partir da idéia de que, como todo discurso, a história literária brasileira consiste na construção política/ideológica de um projeto mais ou menos consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e ins- tituições, interessados em solidificar a sua própria literatura. Com o necessário distanciamento em relação ao mecanicismo de algu- mas abordagens sociológicas da literatura, o autor pretende, con- forme ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpreta- ção dialética", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus diferentes momentos" (CANDIDO, 1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crítico dispõe de um conjunto de princípios balizadores das análises que empreenderá. Em linhas gerais, a noção de sistema liter~rio, desenvolvida pelo autor, sustenta-se· na inter-relação dos três fatores - produção, recepção e transmissão - que asseguram a formação e a continui- dade de uma tradição literária no país. A respeito, escreve o autor, explicitando seu método, que a mútua dependência entre autor, obra e público interessa na medida em que "esclarecer a produção artística", pois importa estudar as relações da literatura com a 15 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 vida social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite per- ceber "o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (CANDIDO, 1976, p. 24). Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singu- lar "dissonância" no conjunto de autores clássicos que procura- ram explicar o Brasil, orientados pelo comum propósito de apre- ender as "linhas evolutivas mais ou menos contínuas" do processo social e cultural do país, é matéria do recente trabalho de Paulo Arantes sobre o sentido da idéia de formação, "verdadeira obses- são nacional", na ensaística brasileira.! No ensaio em questão, . interessa ao autor traçar a história crítica de uma destacada linha- gem de "intérpretes do Brasil", iniciada pelos escritores românti- cos e retomada por críticos do final do século XIX, como Silvio Romero, Araripe e José Veríssimo, salientando-se a figura de Machado de Assis, e mais recentemente redefinida, a partir de novos princípios teóricos, por Antonio Candido e Roberto Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradição, desse modo compreendida "não como peso morto, mas como elemento dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâ- neas" (ARANTES, 1997, p.34). Roberto Schwarz: tradição e modernidade - descompassosda cultura brasileira É na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai empreender a reflexão sobre a obra de Machado de Assis, dando continuidade ao que permaneceu sugerido nas últimas linhas do segundo volume da Formação da literatura brasileira. Escreve Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos da cultura brasileira, que a experiência da segregação entre as elites intelectuais do país e as classes populares passou a ser per- cebida como um impasse - que inviabilizava a sintonia da nação com os países europeus mais avançados - apenas a partir da me- tade do século XIX.2 No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de Sílvio Romero, em polêmico e equivocado julgamento a respeito I ARANTES, Paulo Eduardo e ARANTES, Otília Beatriz Piori. Sentido da formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 2 SCHWARZ, Roberto. Naci- onal por subtração. In: -. Que horas são? São Paulo: Cia das Letras, 1989. A fonnação. os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira de Machado de Assis. Na passagem em questão, o crítico e histo- riador evolucionista, equívocos à parte, acusa no quadro intelec- tual brasileiro uma cisão social, um disparate: de um lado, uma pequena elite europeizada, distanciada do grosso da população, sem outro talento senão o de "copiar"; de outro, a maioria inculta, produtores anônimos do folclore, da arte popular. A cópia, o arre- medo, o pastiche seriam a conseqüência natural de uma produção intelectual realizada por escritores, políticos e estudiosos sem ne- nhuma relação com o mundo à sua volta. Certo é que o problema não poderia ser reduzido a um es- quema tão simples como o exposto nessa descrição realizada pelo escritor, em que são apontados os efeitos de questões cujas raízes foram apenas aludidas. A explicação para o descompasso cultural no interior da soci- edade brasileira e entre o país e as nações centrais desenvolvidas não poderia ser de natureza racial, conforme propunha Sílvio Romero; sem considerar os disparates das mesmas teorias raciais, basta a evidente constatação de quem imitava no caso não eram os mestiços do povo, mas a elite branca, europeizada, como observa o autor de Que horas são? O pecado original, nas palavras de Roberto Schwarz, não residia na cópia, mas no fato de que só uma classe copiava. Sílvio Romero vê nos tempos coloniais um relativo espíri- to de coesão nacional e atribui isso à "hábil política de segregação" que nos mantinha num circuito de idéias exclusivamente portugue- sas e brasileiras. Foi apenas depois com a vinda de D. João VI para o Brasil e, sobretudo, a partir do Império, que a cópia do modelo europeu e a distância entre elite letrada e população inculta passa- ram a ser percebidas como "disparate" ou "descompasso". O que sempre existiu - a imitação, a separação entre elite e classes popu- lares - desde os tempos da colônia, tomou -se um impasse, um dile- ma teórico para as gerações de intelectuais a partir da metade do século XIX. Dilema teórico que expressa, por sua vez, os impasses de natureza econômica, social e política do país. Como a passagem da colônia a Estado autônomo não acarretou, no Brasil Império, uma real modificação da estrutura básica característica da antiga colônia, assentada na escravidão e no latifúndio, o contraste entre formas de vida do Brasil Colônia e formas modernas de civilização burguesa, entre velhos princípios e as idéias liberais apenas acen- tuou as dimensões de um problema já antigo. 17 18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Diante desse quadro, é compreensível que tudo o que signifi- casse moderno fosse, simultânea e paradoxalmente, desejado e rene- gado como ameaça estrangeira à "coesão" e à "identidade nacional". A tese da cópia cultural proposta por Sílvio Romero surge como tentativa de explicar a discrepância entre os dois Brasis. Evitando a imitação, estaria solucionado o problema, o país se reconciliaria consigo próprio, a cultura nacional estaria salva. Mas esse, como se vê, constitui um falso problema. A renúncia à cópia é, na verdade, impensável'e mesmo indesejável; de fato, não so- mos atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque so- mos atrasados. A cópia não constitui necessariamente um valor negativo, menos ainda é ela a causa de graves desigualdades soci- ais e culturais no interior de uma mesma sociedade. Mas essas, porém, são avaliações possíveis segundo uma perspectiva con- temporânea nossa, do século XX; juízos portanto que não esta- vam no horizonte de um autor do século passado, inspirado por teorias raciais e pelo darwinismo social, como é o caso de Sílvio Romero. Em linhas gerais, essa é a leitura crítica de Roberto Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva política dos conflitos de classe, retoma o problema anunciado no século XIX. Roberto Schwarz: forma - expressão e matéria social na obra de Machado de Assis Tradicionalmente, Machado de Assis é considerado uma das raras exceções na experiência literária nacional; escritor uni- versal - voltado para uma temática centrada em problemas que afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - cons- truiu uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos modernos esquemas da forma narrativa contemporânea ao es- critor do que da provinciana prosa de acentuada cor local. Esse aspecto do romance machadiano, porém, nem sempre foi consi- derado uma qualidade. Basta lembrar as antigas polêmicas em torno do sentimento nacionalista, supostamente precário e mes- mo ausente, na obra do escritor. Seguindo as propostas sugeridas pelo próprio Machado no célebre artigo "Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo da fic- A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira ção machadiana expresso na forma, não a forma como a enten- dem os formalistas, mas numa "forma-expressão" da estrutura do país. O que significa essa "forma-expressão" para o crítico? O grande desafio para os escritores brasileiros do final do sécclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a realidade nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Ado- tar o romance" implicava "acatar também a sua maneira de tratar as ideologias". O romance é uma forma importada da Europa "cujos pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se alterados". Ora, o único modo de ser verossímil- isto é, de ser fiel à nossa condição já que a "dívida externa nas letras", tão inevitável quanto nas demais esferas da sociedade, nos conduzia à imitação de uma forma imprópria, inadequada para ex- pressar a realidade do país - era explicitar essa impropriedade, essa inadequação na forma importada. E essa "façanha" coube a Macha- do de Assis que soube reiterar, em nível formal, os deslocamentos de ideologias, próprias de nossa formação social, utilizando para isso, de modo consciente e crítico, a forma importada. Machado encontrou na sátira e na ironia a forma adequada a uma nova maté- ria. Na segunda fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma forma brasileira verossímil filiando-se, como era inevitável, às ten- dências européias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras, Machado foi original porque soube imitar de modo criativo. O nacionalismo de Machado, portanto, não exclui a univer- salidade, presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como é o caso de Memórias póstumas de Brás Cubas em que a indissolubilidade entre forma literária e matéria social se revela mais explícita na própria construção do enredo através do narrador. Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar que, por meio da atitude desabusada, prepotente e voluntariosa do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamen- to típico da elite intelectual brasileira, da qual Brás Cubas fazia parte, Machado conseguiu revelar a realidade nacional utilizando uma forma universal importada.Brás Cubas representa o homem culto brasileiro que "dispõe do todo da tradição ocidental", ado- tando a esse respeito uma atitude de superioridade irreverente e afetada, sem consistência crítica. O cosmopolitismo de Brás Cu- bas não passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral que ostenta se mostra "uma espécie de pacotilha, na melhor tradi- 19 20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 ção pátria, em que o capricho de Brás Cubas toma como provín- cia a experiência global da humanidade e se absolutiza". Brás é um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo co- nhecimento acumulado, banaliza "todas as idéias e formas à dis- posição de um homem culto do tempo", substituindo-as constan- temente de acordo com as suas veleidades pessoais. Ora, a uni- versalidade da narrativa machadiana reside exatamente no fato de a forma romance utilizada desmascarar, na sua própria constru- ção, o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a proposta de Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador é, ao mesmo tempo, tema (conteúdo) e princípio formal do romance; fórmula que, presente na prosa machadiana da segunda e grande fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano, desprovido de credibilidade", um lugar no primeiro plano da lite- ratura contemporânea universal, embora reconhecido apenas bem mais tarde e, ainda assim, em círculos restritos.3 Machado teria encontrado, desse modo, a solução para o problema apresentado há algum tempo em "Instinto de nacionalidade", conforme já indi- camos. Mas, como reiterou em vários artigos, o crítico entende que o verdadeiro antagonismo reside nos conflitos de classe soci- ais, por sua vez refletidos e refratados nas formas literárias; se as causas dos impasses nas esferas cultural e literária são em essên- cia de natureza histórica, a crítica deve pôr em relevo as relações entre forma artística e necessidade histórica. A insistência de Roberto Schwarz na perspectiva sociológica se contrapõe a algu- mas das recentes tendências da crítica literária brasileira, mais afi- nadas com o pensamento desconstrutivista europeu. São vários os textos em que o autor discute essa questão, reformulando o problema da "formação", central na obra de Antonio Candido. A propósito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louvá- vel, na crítica brasileira; que é o apreço pelo pensamento crítico das gerações anteriores, resgatado, é claro, em novas bases, con- forme já apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a esse respeito. É ainda Roberto Schwarz quem chama a atenção para a vida intelectual no país, marcada pela ausência de "um campo de problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias, que recolha as forças em presença e solicite o passo adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele- 'As observações de Roberto Schwarz sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, comentadas neste artigo, encontram-se em L'm mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira vância do problema da "formação em descompasso", conforme discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, é com o olhar voltado para o que há de próprio e ajustado nos escritos brasilei- ros que pretendo circunscrever um campo de problemas críticos pertinentes ao conjunto da produção literária nacional e suas rela- ções com o contexto mais amplo da literatura universal, assim denominada provisoriamente. Ao incorporar as abordagens críti- cas inspiradas na perspectiva da história literária como represen- tação de uma tradição inventada, sempre contingente em relação a nossas concepções e a nosso presente, encaminho essa reflexão para uma outra direção, diversa e, em certa medida, divergente, en relação à dos dois autores mencionados, cuja historiografia se enraíza na idéia de tradição como sistema mais ou menos coeren- te e coeso de obras e autores nacionais. Pressupostos da idéia de "formação": recortes Em conhecido texto, tanto quanto polêmico, Haroldo de Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos básicos da Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Valen- do-se de teóricos como Walter Benjamim e Derrida, entre outros, o crítico opôs as noções de "constelação" e "disseminação" aos princípios de "sistema" e "origem", eixos da historiografia de Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam na afirmação de que a perspectiva histórica fundamentada na ori- gem, na suposição de um começo não inventado ou deliberadamente construído, corresponde a uma "visão substancialista da evolução literária" correlata, por sua vez, a "um ideal metafísico de entificação nacional". Sem considerar as dife- renças entre a historiografia do século XIX e a proposta de Candido, ressalta o propósito comum, verificável em todas elas, de estabelecer uma "tradição contínua" de "estilos, temas, formas ou preocupações", o que leva o crítico a reduzir a concepção historiográfica de Candido a mera reedição do modelo romântico de história literária, "voltada para o desvelamento evolutivo- gradualista" da literatura nacional. Outro escritor foi mais conseqüente na crítica dirigida à Formação, sobretudo pelo êxito em conciliar o respeito ao "mes- tre" (LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame da obra. Sóbrio 21 22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 no tom e consistente na argumentação, Luiz Costa Lima inicia o ensaio com observações sobre o que denomina de "eixos da ativi- dade crítico-literária no século XX" (LIMA, 1992, p.153), visan- do, a partir dessas observações, situar no panorama contemporâ- neo o trabalho historiográfico de Candido. Ou, nas palavras do ensaísta, dirigir-se à Formação indagando "como ela se localiza quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questão da especificidade da linguagem literária", "a relação da linguagem literária com a socie- dade" e "a idéia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156). Submetendo ao crivo de uma leitura crítica passagens do prefácio à segunda edição e o capítulo teórico-metodológico da Formação, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia pa- recer "afastamento das histórias orientadas pela exclusividade do fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributário (LIMA, 1992, p.156). Tarefa nada fácil, devemos reconhecer, a de se propor a crítica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros de seus pressupostos teóricos e juízos de valor, ao eleger "vários caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36). Ainda mais levando-se em conta a astúcia de uma crítica que, longe de negar a subjetividade inerente ao seu exercício, pelo contrário, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsa- bilidade de suas escolhas, conforme atesta o parágrafo final do capítulo introdutório da Formação: Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser criadora, não apenas registradora. Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbítrio; sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, é definir o que se esco- lheu, entre outros. A este arbítrio o crítico junta a sua lingua- gem própria, as idéias e imagens que exprimem sua visão, recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39). Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passa- gens, é uma atitude crítica, derivada "de uma concepção a-histó- rica da forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e de uma insustentável dicotomia entre interpretação e conhecimento objetivo. Em outras palavras, a declarada subjetividade crítica não A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira se faz acompanhar de uma explicitação das teorias e métodosadotados e, ao que se sabe, é precisamente a teoria o elemento esclarecedor da "conduta interpretativa do crítico" (LIMA, 1992, p.157). Sendo assim, "o favorecimento da tolerância metodológica" (presumivelmente solidário de uma atitude consciente de seus li- mites, derivados das idiossincrasias do crítico), ao contrário do que poderia parecer, pretende na verdade fazer desaparecer as marcas da subjetividade inicialmente assumida e, no mesmo pas- so, legitimar a objetividade da crítica, uma vez colada ao seu ob- jeto, de fato e de direito, "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com leve ironia, descreve o impasse desse "crítico-caçador": Atividade dirigida por valores, a cadeia de decisões em que a crítica se insere - a cadeia formada por pressupostos teóricos, operacionalização metodológica e pragmática crítica - implica que seu agente não mais pode ser confundido com um caçador que, em busca da caça, se orienta pelos rastros que a presa deixa. Ao crítico, assim como ao historiador, só cabe a analo- gia com o caçador se se lembrar que um e outro não só perse- guem rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros ras- tros: os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158). 23 Além da concepção a-histórica da forma, acima menciona- da, Costa Lima acusa um outro rastro na Formação, em sintonia com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "asse- gurado pelo tom descritivo da narrativa" (LIMA, 1992, p.160). Esses traços do autor na obra, longe de garantir objetivida- de, são antes reveladores dos inevitáveis, incontornáveis, juízos de valor. Isso porque "a estabilidade estética" - ou visão a-histó- rica da forma - não se deveria apenas ao primeiro eixo da moder- na historiografia no século XX (a questão da especificidade da linguagem literária), mas a "uma concepção mais tributária de uma visão tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA, 1992, p.l59). Examinada a suposta evidência da idéia de sistema literário, assegurada na volumosa descrição dos fatos literários, Luiz Costa Lima lança a pergunta que Candido não fez, mas cuja resposta estaria diluída tanto na exposição de seus pressupostos quanto nos capítulos dedicados à história dos "momentos decisivos" da 24 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 formação literária brasileira: [ ... ] quão extensa deverá ser a recepção para que se lhe tenha como dec1aradora de um sistema? Bastará uma recepção ates- tada para que o sistema se afirme em funcionamento? Se o fosse, a fama local de Gregório não justificaria sua exclusão. Se, portanto, não basta uma recepção localizada, qual a exten- são necessária? (LIMA, 1992, p.162). Na passagem da Formação, abaixo destacada por Costa Lima, reúnem-se os dois traços que confirmam "a articulação de- cisiva da Formação ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo da preocupação crítica contemporânea, precisamente aquele que de- rivava da atitude dominante no século XIX" (LIMA, 1992, p.l64), a idéia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assi- nala: '[ ... ] Os escritores brasileiros que [ ... ] lançaram as bases de uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, estão explícitos - embora não explicados nem assumidos pelo autor da Formação - os conceitos de coerência eforma orgânica deriva- dos do funcionalismo antropológico inglês. Costa Lima, apesar de não se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importância decisiva desse legado na concepção de sistema" (LIMA, 1992, p.163) incorporada na historiografia de Candido. Em síntese, afir- ma o autor "que o decisivo na armadura teórica da Formação é menos a idéia de articulação entre produção e recepção literárias do que sua extensão nacional e seu caráter de coerência" (LIMA, 1992, p.163), favorecendo a "coesão homogeneizante" na inter- pretação da história da literatura brasileira. O fato de o barroco ter sido excluído da Formação se explica "não tanto porque sua circulação fosse drasticamente menor que a dos árcades, senão porque impede que se lançassem as bases de uma literatura brasi- leira orgânica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164). Tanto a exclusão de Gregório como a inclusão dos árcades "só se explicam porque o peso decisivo recai na qualificação de sistema nacional" (LIMA, 1992, p.164). Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva representatividade de um sistema literário, vejamos como o críti- co formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Cam- pos. Ao reivindicar o resgate do barroco, sua inclusão no cânone, A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita das histórias literárias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversário e, por esse motivo sobretudo, perde força, em grande parte, o con- junto de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa não é a questão, Tendo como alvo principalmente a idéia de sistema, Haroldo de Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta deci- siva: o que se entende por nacional? Na esteira de João Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos lembrar que a sátira barroca era prevista e codificada nos tratados poéticos, o que "impediria, se não por vezo anacrônico, que se envolvesse a poesia de Gregório em algum propósito nacional" (LIMA, 1992, p.165). Um outro problema, portanto, no centro da polêmica sobre a formação da literatura brasileira e que gerou, assim como a ques- tão do nacional, algumas respostas equivocadas, contra as quais se manifestaram outros críticos, além dos aqui citados. Em rela- ção ainda ao "seqüestro do barroco", muito oportunamente es- creve Lígia Chiappini: A contradição básica de Haroldo de Campos está em, ao mes- mo tempo, contestar a história contínua, a tradição que Anto- nio Candido se propôs a perseguir nos momentos decisivos de sua constituição, e integrar aí Gregório de Matos que, no en- tanto, vê como ruptura, Recusar como ideológica essa tradição e, no entanto, querer incluí-lo nela. Trata-se, no mínimo de um equívoco. Gregório só poderia entrar em um outro livro, não neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, não este (CHIAPPINI, 1992, p.175). Devemos ainda ressaltar o anacronismo muitas vezes não percebido por críticos de Antonio Candido, que, ao postularem a inclusão de Gregório de Matos na Formação, não se dão conta dos princípios que abraçam, julgando contradizê-los. Noções como uma suposta origem absoluta (que, aliás, Candido não postulou) e uma periodização tributária da concepção romântica retomam à cena, comprometendo o adequado entendimento da Formação, apontando erros onde houve extrema coerência em relação aos propósitos do autor, devidamente explicitados. A esse respeito, recorro mais uma vez às palavras esclarecedoras de Lígia Chiappini: 25 26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 "a origem não é um problema para Antonio Candido, mas para seus críticos. O que lhe interessa não é defender uma tradição hegemônica, mas entender a constituição de uma hegemonia, pro- jeto que ele explicita claramente para leitores que queiram enten- der" (CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro capítulo, "Literatu- ra como sistema". Não sendo a "origem" propriamente um problema, volta- mos então ao que, ao lado da idéia de formação, motivou este texto: a idéia de sistema literário nacional, preponderante nas his- tórias de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questão bem mais complexa do que supõe uma crítica apressada. Este e outros problemas a ele relacionados - como os vín- culos entre culturas literárias hegemônicas e periféricas - têm re- cebido da historiografia brasileira contemporânea tratamentos dis- tintos, conforme o ponto de vista teórico inseparável, sempre, das escolhas e da sensibilidade do crítico para certostemas, autores e textos, e não outros. A essa altura já podemos perguntar se seria possível, dentro do registro da formação, postular histórias da literatura que não impliquem a noção de sistema nacional coerente e orgânico. Ou ainda: é possível, é desejável escrever uma história literária não propriamente desvinculada da idéia de formação mas, simultânea e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando. Em outros termos: entendendo a formação da literatura bra- sileira não como percurso evolutivo de uma identidade suposta- mente essencialista e original (ou, no entender de Candido, como "continuidade ininterrupta de obras e autores" (CAND IDO, 1975, p.25), mas como construção discursiva de seus diversos intérpre- tes, representação até certo ponto inseparável de seu próprio refe- rente, seria mais apropriado falar deformações da literatura brasi- leira, do romantismo às mais recentes teorias da história literária. A propósito, a idéia de "formação de um sistema literário", proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele próprio explicitara, com o projeto romântico de construção nacional e da literatura. Essa noção, como sabemos, fez escola, inaugurando uma considerável tendência do pensamento crítico brasileiro no século XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo Arantes, "tirar as devidas conseqüências do roteiro traçado por Antonio Candido, reapresentando o problema da formação como A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira uma questão material de acumulação da experiência intelectual nas condições francamente proibitivas da dependência" (ARANTES, 1997, p.32-33). Desde então, "o sentimento acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à cultu- ra brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tônica de toda a crítica brasileira solidária com o autor das "idéias fora do lugar". 27 Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequação que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso trato enviesado com as idéias" (ARANTES, 1997, p.33) como uma das possibilidades de se reapresentar o problema da forma- ção literária brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasilei- ros, motivadas por outro sentimento - o de que, em matéria de prosa ou poesia literária, nem sempre a crítica comparativa pro- voca sensação de descompasso ou desacerto, a menos que se iden- tifique o historiador da literatura brasileira ao historiador da na- ção brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laços indissociáveis entre literatura e sociedade. Porque, não é redundante nem excessivo reiterar, o que na verdade está em pauta é, antes, uma questão de perspectiva teóri- co-política, em jogo nas diversas propostas críticas da produção literária brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resul- tar de uma outra convicção: a de que o sentimento de sermos ainda uma cultura periférica em desacerto com a cultura hegemônica central - ou "uns desterrados em nossa terra", con- forme célebre formulação de Sérgio Buarque de Holanda, no pa- rágrafo de abertura de Raízes do Brasil (1995, p.31) - não seria privilégio do brasileiro, mas sentimento comum às culturas mo- dernas, à margem dos grandes centros de decisão política e eco- nômica, que vem se aprofundando na mesma proporção dos impasses e contradições da sociedade contemporânea. Na impossibilidade de se sentir em casa, familiarizado com o que seria próprio de sua cultura, na impossibilidade de superar o desterro ou acertar os ponteiros do relógio nacional, por que não assumir e incorporar a estranheza que nos constitui? Por que não acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - des- de o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirma- ção desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se traduzido como expressão de uma melancólica ou nostálgica bus- ca do que nunca teria ou terá existido? 28 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 É com o sentimento paradoxal de estranha familiaridade que assumimos identidades que não nos pertencem, assim, poe- tas, prosadores e (por que não?) historiadores deveriam narrar suas histórias como se fossem um outro, com o olhar oblíquo de quem, não se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem diante de si, precisa criar as conexões, os vínculos, ali onde as lacunas, as fraturas não permitem uma imagem coesa e coerente. A história da literatura, percebida como busca criativa de um sen- tido para as experiências de uma coletividade, solicitaria do histo- riador o mesmo gesto de deslocamento, de pôr-se no lugar do outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibi- lidade de apreensão totalizante e absoluta da experiência literária, esse historiador sustentaria na sua própria voz as múltiplas e dis- persas vozes da cultura, construindo, no lugar das histórias tra- dicionais teleológicas, narrativas caleidoscópicas, micro-históri- as, anotações à margem. Considerações finais Gostaria de encerrar essas considerações/recortes evocan- do dois autores argentinos que, em seus ensaios crítico-poéticos sobre a história e a tradição literária de culturas à margem, reve- lam percepções inteiramente novas para quem havia se habituado a pensar o problema como impasse, beco sem saída, ou ainda como contradição a ser, num futuro incerto, superada. De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhe- cidos - "O escritor argentino e a tradição" (BORGES, 1998) e "Sobre os clássicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles não se apresentaram casualmente à minha lembrança. Ao contrá- rio, esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem qualquer veleidade teórica definitiva, produzidos, pois, de um outro lugar - não propriamente acadêmico/disciplinar - pareceram-me, por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma palavra outra que não as que costumam soar dos lugares já conhe- cidos e percorridos. Como de costume, em sua prosa quase austera em contras- te com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira principais contradições implícitas na noção de obras clássicas. Clás- sico, nos lembra o autor, "é aquele livro que uma nação, ou um grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de interpretações sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Con- tingentes e, em certa medida, imponderáveis, essas decisões variam tanto quanto as formações históricas sobre as quais se erigiram. Levando mais longe a provocação, relembra que, se houve um tempo em que "acreditava que a beleza era privilégio de uns poucos autores", agora sabe "que é comum e está a nossa espreita nas casuais páginas do medíocre ou em um diálogo de rua" (BORGES, 1999, p.168). Até aqui nada de muito novo nos é re- velado, não fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as quais relativiza julgamentos consagrados pela crítica a respeito de um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir: Para alemães e austríacos, o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segun- do Paraíso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de Jó, a Divina Comédia, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, salvo que diferirá do presente. Uma prefe- rência pode muito bem ser uma superstição (BORGES, 1999, p.l68). Sendo assim, a "beleza" de um texto não se revela na forma, na estrutura, na imanência textual, nem tampouco em qualidades vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existência de obras clássicas eternas. Essa "beleza" é antes resultado de um encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glória de um poeta depende, em suma, da excitaçãoou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão de suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168). Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar ainda o deslocamento radical da perspectiva centrada na obra (e, portanto, no autor) para uma direção, senão oposta, divergente, destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessidade ine- vitável de referências e sua extrema precariedade, construídas que são sobre o movediço, incerto território do tempo. Movimento divergente também no sentido de que desloca o foco para outras, 29 30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 diversas, diferentes literaturas, por nós não apenas desconheci- das, mas quase sempre sequer suspeitadas. Num gesto de sincera modéstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras seja completo, tenho certeza de que, se o tempo me propiciasse a ocasião de seu estudo, encontraria nelas todos os alimentos que o espírito requer" (BORGES, 1999, p.l68). Concluindo, na questão dos clássicos interferem as barrei- ras lingüística, política ou mesmo geográfica, obrigando aqueles que da literatura se ocupam a admitir as limitações de seus parâmetros de "beleza", que são também as da coletividade de que fazem parte. Afinal, a preferência por determinados autores e textos é tanto uma questão pessoal quanto das "gerações de ho- mens" que, "urgidas por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade" os livros tornados clássicos (BORGES, 1999, p.169). Isso posto, poderíamos pensar que Borges, um iconoclasta, desconsidera ou minimiza a importância dos clássicos, quando o que se passa não é exatamente assim. Em outro texto, tratando do escritor argentino e da tradição, afirma com veemência o pertencimento à cultura ocidental do escritor argentino e de todos os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998). Como no caso dos clássicos, a tradição ocidental do outro/ nosso colonizador é também "um gosto adquirido", incorporado e transformado por sua vez em outra tradição, nossa, própria, e do outro simultaneamente. Numa certa medida, não haveria como escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o escritor à margem" ao beco sem saída das imitações mais ou me- nos bem feitas do modelo europeu ou do sonho romântico de uma literatura autêntica, surgida de um outro lugar, de uma pátria de origem imaculada, não de outros povos mas própria supostamen- te. Estaríamos assim ligados à cultura ocidental por destino ou fatalidade histórica e portanto não teríamos escolha. Por outro lado, a condição de culturas e tradições à mar- gem (uma vez que se expressam nos limites de um centro, tão imaginado quanto real, mas em relação ao qual não se percebem tão estreitamente vinculadas que não possam com ele romper sem que, com esse gesto, se sintam órfãos de origem e de valores par- tilhados) proporciona inesperadas possibilidades de transgredir, inovar sem a imposição de uma "devoção especial" diante de toda A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira a cultura ocidental herdada. "Creio que os argentinos, os sul-ame- ricanos em geral ( ... ) podemos lançar mão de todos os temas eu- ropeus, utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas", é o que nos diz Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser euro- peu sendo argentino, descartando com essa atitude todos os luga- res comuns da velha questão sobre o local e o universal. Em outros termos, é essa a perspectiva de Ricardo Piglia. "O olhar oblíquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as qua- lidades do escritor do "próximo milênio", conforme uma "sexta proposta" para a literatura, imaginada pelo autor de Nome falso- Homenagem a Roberto Arlt, para ser acrescentada às de Ítalo Calvino já conhecidas. O "deslocamento" a que se refere Piglia (2001) - da periferia para o centro - não mais diz respeito ao mapeamento geográfico das culturas hierarquizadas. Não seria esse o sentido do gesto próprio do escritor "à margem". Piglia fala de um lugar específico - "do subúrbio do mundo" - é verdade, mas para mostrar que esse é o lugar da linguagem, ou da literatura, nesse caso tomadas sinônimas. A verdade tem a estrutura de uma ficção de onde outro fala. Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que sempre é outro o que vem falar. "Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é aquele que tem que saber ouvir para que isso que se conta não seja uma mera informação e tenha a forma da expe- riência. Parece-me, então, que poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, a distân- cia, o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na fronteira, naquilo que se ouve, naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3). Creio que é desse lugar distanciado em relação à própria palavra, quase sempre cristalizada, que o historiador da literatura libertaria outros sentidos para a história que narra, libertaria a ver- dade da correspondência, no limite impossível, com os fatos, apro- ximando-se do narrador ficcional na medida em que cede espaço para a entrada em cena do outro que nos constitui. O historiador contaria não exatamente o que aconteceu mas, como o poeta! prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ainda, como quer 31 32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 Piglia, "O ponto cego da experiência, que quase não se pode trans- mitir", a menos que se "suponha uma relação nova com a lingua- gem dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2). Referências ARANTES, Otília Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. BORGES, Jorge Luis. O escritor argentino e a tradição. In: --o Obras completas. São Paulo: Globo, 1998, p.288-296, V.I. ---o Sobre os clássicos. In: --o Obras completas. São Paulo: Globo, 1999, p.167-169, v.2. CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na fomwção da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989. CANDIDO, Antonio Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 2 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975. CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: -. 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Antonio Callado No estudo sobre o que chama de comunidades imaginadas, Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regi- ões do globo terrestre, se constitui o sentimento de nação ou a consciência nacional. 1 Se, na Europa, a introdução da imprensa fra- turou a unidade do latim, promoveu a ascensão das línguas vemáculas e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador da Igreja, na Améri- ca o processo foi distinto. Nesse continente, a consciência nacional associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento de uma sensibilidade singular, conforme a qual as pessoas geradas no Novo Mundo começaram a se perceber vinculadas ao espaço natal, a se entender desde uma noção de pertença à terra de origem, a qual desejaram transformar em nacionalidade. Anderson indica que, na Europa da imprensa nascente, houve a territorialização da língua, que fragmentou a unidade até então garantida pela fé e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cu- nho "nacional", condição que garantiu sua permanência na Idade Moderna. Na América, talvez seja possa afirmar que a "territorialização" foi literalmente telúrica, graças à assimilação 36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 entre o espaço e o sentimento suscitado por ele. Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a associação entre nacionalidade e conquista do território tenha se dado de modo mais completo. Ainda que a independência tenha envolvido a área ocupada pelas treze colônias originais, a expan- são na direção do Ocidente já se anunciava no século XVIII; e, na primeira metade do século XIX, o país incorporava a Louisiania, disputava o Texas e avançava célere rumo à conquista da região junto à orla do oceano Pacífico. A Doutrina Monroe, ambígua aos olhos atuais, significou, em 1823, uma tomada de posição política que tinha como referência o desenho geográfico do Estado que se apresentava à população norte-americana. Outros povos elegeram fórmulas distintas, sem abrir mão da relação entre nacionalidade e espaço físico. Alguns colocaram a literatura na função de intermediário, transferindo-lhe a tarefa de representar o sentimento da nacionalidade que se definia por um apreço especial conferido à pátria, local de nascença e perma- nência. No Brasil, o processo tomou configuração particular, pois, mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consci- ência nacional, coube à literatura substituí-lo, tomar seu lugar e constituir, ela mesma, a encarnação do nacional. Não foram os teóricos e militantes da Independência que delegaram à literatura aquela missão, pois a tarefa definiu-se algu- mas décadas após a separação da metrópole. Foi preciso, inicial- mente, suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, de- pois apear o imperador do poder e então buscar na história os dados que ajudariam a encorpar a consciência da nacionalidade. É que essa não podia se construir à revelia das relações mantidas, desde o período colonial, com a Metrópole, de modo que se fez à custa da conciliação entre separatismo e aceitação da dependên- cia econômica e cultural. O aparecimento, em 1838, de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, modelado conforme o de Pa- ris, colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o fato de que, no começo da década de 1840, seus membros ainda buscassem fórmulas que ensinassem "Como se deve escrever a história do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e ven- cido, em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemão Carl F. Philip Antonio Candido e o projeto de Brasil 2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro 6 (24) : 389 - 411. Janeiro de 1845. Cf. igualmente ZILBERMAN, Regina Romance histórico, história romanceada. In: . AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; V ASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Org.). Gêneros de fronteira. Cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. J Cf. DENIS, Ferdinand. Resumo da história literária do Brasil. Trad. e notas Guilhermino Cesar. Porto Alegre: Lima, 1968. Cf. GARRETT, Almeida. Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa. In: _. Parnaso Lusitano. Paris: J. P. Aillaud, 1826. 4 SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. "Bosquejo da história da poesia brasileira." In: ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. p. I üO. Originalmente publicado em Modulações poéticas. Rio de Janeiro: Tipografia Francesa, 1841. von Martius, é sugestivo das dificuldades experimentadas por aque- le colegiado, numa época em que a autonomia política parecia assegurada.2 A mesma década de 40 do século XIX presenciou fenôme- no interessante: se ainda era preciso estabelecer parâmetros para a redação da história do Brasil, que, da sua parte, não podia evitar a afirmação da presença e influência portuguesa, a história da lite- ratura, por outro lado, já propunha algumas formulações bem de- finidas. As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na trajetória literária que o país parecia dispor: em 1826, tanto o francês Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almeida Garrett, am- bos residentes na ocasião em Paris, conferiam detida atenção aos poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusi- tanos.3 Mas os brasileiros não demoraram a se manifestar, valen- do a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa Silva,já então membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasi- leiro, redigia o "Bosquejo da história da poesia brasileira", bas- tante calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ainda as- sim, confiante de que ''já possuíamos uma literatura, senão legi- timamente nacional, - que raras o são -, ao menos em parte",4 sintoma de que igualmente contabilizávamos um passado e con- sistíamos uma nação. A literatura corporificou doravante a nação, respondeu por ela e prestou contas, em nome da autonomia e da auto-suficiên- cia, ausente talvez em outros setores da vida pública e social. Os historiadores da literatura converteram-se em avalistas da nacio- nalidade, o que, se, de um lado, aumentou sua responsabilidade, de outro, afiançou a notoriedade que alcançaram, bem como sua inserção nos aparelhos de Estado: no século XIX, o Colégio de Pedro 11 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no século XX, a universidade, onde exercem seu ofício. A história da história da literatura é, pois, a da trajetória da busca, encontro e afirmação da nacionalidade, expressa e materi- alizada pelas obras que formam aquele acervo. Antônio Candido situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contra- dições, indicando, por extensão, as alternativas que se abrem ao pesquisador a partir do modo como desempenhou sua função. 37 38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 1. Uma história de formações Quando publicou, em 1959, a Formação da literatura bra- sileira: momentos decisivos, Antonio Candido já tinha percorrido os caminhos da história da literatura, matéria de sua Introdução ao método crítico de Sílvio Romero, de 1945, e de sua participa- ção, com o capítulo "O escritor e o público", no projeto encabe- çado por Afrânio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O crítico literário talvez fosse mais notório, graças à atuação na re- vista Clima, no começo da década de 1940, e nos jornais Folha de São Paulo,Diário de São Paulo e Estado de São Paulo (cujo famoso Suplemento Literário ajudou a planejar e a manter), nos anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Brigada ligeira, de 1945, e O observador literário, de 1959.5 Quando publicado, "Formação da literatura brasileira: momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais ex- tenso e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento da tradição da literatura brasileira, com ênfase na documentação dos séculos xvrn e XIX, citada ao longo dos dois volumes do livro. Candido costuma falar com certa modéstia da obra, atribuindo sua feitura à encomenda do editor José de Barros Martins, que o encarregara de elaborar "uma história da literatura brasileira, aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a di- vulgação séria e o compêndio", aguardara pacientemente "nada menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado, portador de um título não muito usual nos meios literários.6 Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso Furtado publicava a Formação econômica do Brasil e que, na década anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Júnior editara Formação do Brasil contemporâneo: colônia, enquanto Nelson Werneck Sodré, em 1944, escrevera e publicara, pela co- leção Documentos Brasileiros, da José Olympio, a Formação da sociedade brasileira. Um ano antes do aparecimento da Forma- ção da literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lançara Os donos do poder, cujo subtítulo informava tratar a obra da "For- mação do patronato político brasileiro". O capítulo das "formações" congregava importantes inte- lectuais e pesquisadores do Brasil até o princípio da década de 60, que, por meio do título de seus livros, confessavam determi- S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa; SCARAB6TOLC, Eloísa Faria (Org.). Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras; Poços de Caldas: Instituto Moreira Salles, 1992. 6 CANDIDO, Antonio. Prefácio da la edição. In: ___ o Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 2. ed. revista. São Paulo: Martins, 1964. V. I, p. 13. Antonio Candido e o projeto de Brasil 7 IGLÉSIAS, Francisco. Introdução. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963. 8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. El nacimiento de la tragedia. Introdução, tradução e notas Andrés Sánchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998. 9 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. La genealogía de la moral. Introdução, tradução e notas Andrés Sánchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998. nada afinidade intelectual entre si. No prefácio à Formação econômica do Brasil, Francisco Iglésias destaca que, ainda que o autor do livro, Celso Furtado, fosse economista, a atitude que assume na redação da obra é a do historiador. O mesmo atributo confere Iglésias a Caio Prado Júnior, que, em 1945, escreve a História econômica do Brasil. Nesse caso, destaca que o trabalho de Prado Júnior importa sobretudo para a história, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista talvez desejasse ser acolhido pelos economistas.? A observação de Iglésias indica como o termo "formação", presente direta ou indiretamente nos títulos, vincula-se ao âmbito da história, apre- sentando-se como uma das facetas da investigação das genealogias. O estabelecimento das "formações" é uma maneira de fazer história, que, desde logo, nega uma tendência do gênero, a de buscar as origens ou o ato primordial da fundação. Esse procedi- mento vigorou no século XIX, sobretudo quando se estabilizaram as histórias nacionais, caracterizadas pelo esforço de fixar o mo- mento, ou a data, de nascimento da pátria. Aceito o episódio inici- al, estruturava-se a cronologia, contínua e ascendente, na direção do aperfeiçoamento das marcas iniciais e diferenciadoras, que vi- riam distinguir e assegurar o perfil nacional. O século XIX mostrou-se pródigo no que diz respeito a histórias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas histórias da literatura. Também essas movimentavam-se na busca dos incidentes fundadores, a gênese mítica, a partir da qual se construía uma tradição; marcada por especificidades e diferenças. O pensamento romântico, valorizando as origens e a primitividade, colaborou para fundamentar teoricamente a historiografia da lite- ratura, que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobre- tudo graças à sua aliança com a escola e o ensino. N a passagem do século XIX para o XX, pensadores como Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo da história, de um lado, entendendo o nascimento como um evento consagrador, e não como manifestação de primitividade inacabada e imperfeita, de que é exemplo seu estudo sobre a tragédia grega;8 de outro, valo- rizando a pesquisa em nome das genealogias, momento de revela- ção, compreensão e análise da natureza dos temas e objetos que vêm a ser matéria da reflexão do filósofo. 9 A pesquisa focada na genealogia privilegia o começo, acom- 39 40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006 panhando a transformação, e não sua evolução. Só que o começo é móvel, porque corresponde ao tempo em que a investigação inicia, ocasião escolhida e fixada pelo pesquisador, que a elege em sintonia com o tema a estudar e a perspectiva a assumir. Se o tema perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o trabalho executado, passando, doravante, um a depender do ou- tro. O ângulo metodológico adotado faz com que o tema dependa do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas for- mulações apresentadas. O modo como Antonio Candido lida com a formação da literatura brasileira guarda afinidades com essa proposta de se fa- zer história, cujo resultado permitiu-lhe, por extensão, refletir so- bre a sociedade brasileira a partir de paradigmas que suplantam as limitações impostas pela ótica romântica. 2. Formação e sistema Candido explica o entendimento da noção de formação na introdução de sua obra, dividida em quatro capítulos. O primeiro começa por uma tomada de posição, estando declarado no pará- grafo de abertura que" este livro procura estudar a formação da literatura brasileira como síntese de tendências universalistas e particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor com- preender o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifes- tações literárias" e "literatura propriamente dita", sendo essa considerada "um sistema de obras ligadas por denominadores comuns".11 Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de que os textos literários estão interligados garante a identificação do sistema. A literatura não se confunde com a obra; pelo contrá- rio, ultrapassa-a, constituindo uma armação que acolhe ou rejeita criações distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrição não es- gota, porém, a r.~,:[c de sistema, que transcende o universo artís- tico, ao incluir umà r~de de sujeitos e de concepções vigentes no meio onde a criação individual aparece. Eis a natureza dos deno- minadores comuns, assim discriminados pelo Autor: Estes denominadores são, além das características internas, (lín- gua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e 10 CANDIDO, Antonio. Op. cit. p.25. 11 Id. p. 25. Ênfases do A. Antonio Candido e o projeto de Brasil 12 Id. p. 25-26. 13 CANDIDO, Antonio. "A literatura e a vida social". In: . Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1965. p. 27. Ênfases do A. 14 Cd. JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: _. Lingüística e comunioação. 2. ed.Trad. Isidoro Blickstein e José Paulo Peso São Paulo: Cultrix, 1969. p. 123. psíquica, embora literariamente organizados, que se manifes- tam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um con- junto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de
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