Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Educação CURRÍCULO E PROCESSO PEDAGÓGICO: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula Kátia Aparecida de Souza e Silva Belo Horizonte 2011 Kátia Aparecida de Souza e Silva CURRÍCULO E PROCESSO PEDAGÓGICO: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Rita Amélia Teixeira Vilela Belo Horizonte 2011 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Silva, Kátia Aparecida de Souza e S586c Currículo e processo pedagógico: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula / Kátia Aparecida de Souza e Silva. Belo Horizonte, 2011. 292f.: Il. Orientadora: Rita Amélia Teixeira Vilela Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Educação. 1. Currículos. 2. Educação. 3. Teoria crítica. 4. Ambiente de sala de aula. 5. Hermenêutica. I. Vilela, Rita Amélia Teixeira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Educação. III. Título. CDU: 371.214 Dedicatória Dedico este trabalho de pesquisa à minha mãe que me ensinou o valor da educação e proporcionou tudo o que foi possível para que eu pudesse chegar até aqui. Dedico também essa dissertação ao meu marido, Adilson, por me ajudar não somente em relação a este trabalho, mas em todos os sentidos da vida, mostrando-se companheiro, amigo e solidário. Você me ampara nas horas difíceis, me mostra os encantos da vida e me impulsiona sempre para frente. Saiba que você é minha alegria, minha alma gêmea e os nossos filhos são o fruto desse amor. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela vida e pela oportunidade de experimentar o aprendizado, o conhecimento, a criação, o trabalho e a força. À professora Rita Amélia Teixeira Vilela, por toda atenção, paciência, compreensão, incentivo e, acima de tudo, pela confiança para a realização deste sonho. Aos meus pais, Wilson e Maria Aparecida, pelo amor, dedicação e por ter me ensinado o valor da vida e da esperança. À minha avó Maria da Conceição que me incentivou a sempre olhar para frente. À minha irmã Patrícia e ao meu cunhado Cláudio pelo carinho. Às minhas filhas, Karolina e Kamila, por entenderem as muitas vezes que deixei de brincar e estar com elas para estudar. Aos meus colegas do grupo de estudo que me abriram janelas para perceber outras maneiras de ver a realidade. À equipe de intérpretes, amigos, professores e colegas de curso que colaboraram na análise das aulas garantindo a possibilidade da realização da pesquisa. Aos meus colegas de curso, que de uma forma ou de outra ajudaram no percurso, estudando em grupo, sofrendo e curtindo as ansiedades dos seminários e avaliações. Agradeço a todos os meus amigos, em especial, o apoio e o incentivo dos amigos Elaine, Geralda e Marco Aurélio, que estiveram sempre prontos a ouvir e ajudar de coração aberto. Ao meu marido Adilson, pela paciência, companheirismo, apoio e amor incondicional. Aos professores que permitiram a gravação das aulas por contribuírem para que esta dissertação fosse possível. À Valéria, secretária do Mestrado e à Cristiane, pela disponibilidade e carinho. À CAPES pela concessão da bolsa de estudos que tornou possível a realização do curso. À Comissão Julgadora, pela presença e colaboração. “Desconfiai do mais trivial, na aparência do singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.” Bretch RESUMO A presente pesquisa objetiva compreender como ocorre a materialização do processo pedagógico sustentado na tríade educação, ensino e formação no currículo da sala de aula nas disciplinas de História, de Língua Portuguesa e de Matemática no 9º ano do Ensino Fundamental. Para isso, sem pretender realizar uma linha histórica buscou-se nos teóricos da educação compreender como a tríade foi edificada teoricamente. Além disso, esta pesquisa, de cunho qualitativo, amparou-se também em duas outras referências, a teoria crítica de currículo e a Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer. A metodologia utilizada foi a hermenêutica objetiva, desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann, que permitiu compreender a escola a partir da reconstituição da aula. A investigação evidenciou que a sala de aula não concretiza a tríade educação, ensino e formação, uma vez que, na maior parte das aulas analisadas, observou-se uma educação pautada no disciplinamento e no cumprimento de regras, constituindo um ensino fundado no discurso do professor, com conhecimentos banalizados, e sustentado, muitas vezes, no senso comum e em informações erradas. Desse processo, resulta a semiformação que reforça a alienação do sujeito e possibilita a continuidade da ideologia a qual entrementes o mundo se transformou. Palavras-chave: Teoria Crítica. Teoria da Educação. Currículo. Sala de aula. Hermenêutica objetiva. ABSTRACT This research aims to understand how the educational process takes place, based on education, teaching and training in the classroom curriculum in the disciplines of History, Portuguese Language and Mathematics in the 9th grade of elementary school. To do so, without intending to do a time line, we sought to understand how educational theoreis were built. Moreover, this research focuses on the qualitative aspects, with basis on two other references, namely the curriculum critical theory and Adorno's and Horkheimer's Critical Theory. The methodology of this paper was based on objective hermeneutics developed by German sociologist Ulrich Oevermann who made it possible to understand the school the educational process through class reconstitution. Investigation revealed that the classroom does not materialize the triad education, teaching and training, since, in most classes analyzed, there was an education based on the discipline and compliance with rules and an education founded on the teacher's discourse, with trivialized knowledge, often based on common sense and misinformation. This process results in a poor education that reinforces the subject's alienation and provides the continuity of the ideology in which the world has become. Key-words: Critical Theory. Educational Theory. Curriculum. Classroom. Objective hermeneutics.LISTA DE SIGLAS Af – Aluna feminino ALGS – Alguns alunos e alunas. Indica a fala de alguns alunos, não possibilitando a identificação do locutor ALXA – Representa uma aluna externa, ou seja, que está fora do grupo da sala de aula e, por algum motivo, interrompeu a aula ALXO – Representa um aluno externo, ou seja, um aluno que está fora do grupo da sala de aula e, por algum motivo, interrompeu a aula Am – Aluno masculino CL – Classe. Refere-se à fala da classe na sua maioria, não permitindo identificação do locutor OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico Pa – Pausa PCN’s – Parâmetros Curriculares Nacionais PISA – Programa Internacional de Avaliação Comparada PROF – Professor / masculino PROFA – Professora / feminino Prr – pigarros/aranhados de garganta PSX – Representa uma pessoa externa, ou seja, uma pessoa que está fora do grupo da sala de aula que, por algum motivo, interrompeu a aula Rrr – resmungos Rs – Risos SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica Sia – momentos de silêncio com ações realizadas pelo professor ou aluno/a Soaf – socos na mesa por parte de alunas Soam – socos na mesa por parte de alunos Sopr – socos na mesa por parte do professor ou professora Tss – tosses SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11 2 EDUCAÇÃO, ENSINO E FORMAÇÃO: PILARES DO PROCESSO PEDAGÓGICO DESENVOLVIDOS NA SALA DE AULA ......................................................................... 15 2.1 Século XVI – precursor da educação moderna ............................................................ 17 2.2 Jan Amos Komenský (1592-1670) ................................................................................. 21 2.2.1 A educação na perspectiva de Comenius ..................................................................... 27 2.2.2 O ensino na perspectiva de Comenius .......................................................................... 30 2.2.3 A formação segundo Comenius .................................................................................... 37 2.3 Jean Jacques Rousseau (1712-1778) .............................................................................. 38 2.4 A educação na perspectiva de Rousseau ....................................................................... 39 2.4.1 A educação de um a cinco anos .................................................................................... 41 2.4.2 A educação de cinco a doze anos .................................................................................. 41 2.4.3 A educação dos doze aos quinze anos .......................................................................... 41 2.4.4 A educação dos quinze aos vinte anos .......................................................................... 42 2.5 O ensino na perspectiva de Rousseau ............................................................................ 43 2.6 A formação segundo Rousseau ...................................................................................... 45 2.7 Immanuel Kant (1724-1804) .......................................................................................... 46 2.7.1 A educação na perspectiva de Kant .............................................................................. 48 2.7.2 O ensino na perspectiva de Kant .................................................................................. 53 2.7.3 A formação segundo Kant ............................................................................................ 56 2.8 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ............................................................... 57 2.8.1 A educação na perspectiva de Hegel ............................................................................ 60 2.8.2 O ensino na perspectiva de Hegel ................................................................................. 62 2.8.3 A formação segundo Hegel ........................................................................................... 64 2.9 Friedrich Christian Karl Ferdinand Wilhelm Von Humboldt (1767-1835) .............. 65 2.9.1 A educação na perspectiva de Humboldt ......................................................................69 2.9.2 O ensino na perspectiva de Humboldt .......................................................................... 71 2.9.3 A formação segundo Humboldt .................................................................................... 74 2.10 John Frederick Herbart (1776-1841) .......................................................................... 75 2.10.1 A educação na perspectiva de Herbart ....................................................................... 75 2.10.2 O ensino na perspectiva de Herbart ........................................................................... 77 2.10.3 A formação segundo Herbart ..................................................................................... 79 2.11 Émile Durkheim (1858-1917) ....................................................................................... 81 2.11.1 A educação na perspectiva de Durkheim ................................................................... 81 2.11.2 O ensino na perspectiva de Durkheim ........................................................................ 86 2.11.3 A formação segundo Durkheim ................................................................................. 88 2.12 Lições da Teoria da Educação: formação para humanização do homem para sua realização individual e coletiva ............................................................................................ 88 3 THEODOR ADORNO COMO REFERÊNCIA PARA A DISCUSSÃO DA ESCOLA NA CONTEMPORANEIDADE .......................................................................................... 93 3.1 Erziehung (Educação) .....................................................................................................95 3.2 Didatick (Ensino) ..............................................................................................................98 3.2.1 A sala de aula como exercício da dialética negativa ...................................................99 3.2.2 A sala de aula como lugar do esclarecimento ............................................................102 3.2.3 Sala de aula não pode ser o lugar do conformismo, da reificação do pensamento e da semiformação................................................................................................................104 3.3 Bilding (Formação) ........................................................................................................108 4 CURRÍCULO COMO EIXO NORTEADOR DO TRABALHO PEDAGÓGICO NA ESCOLA ...............................................................................................................................112 4.1 O campo curricular e a teoria tradicional de currículo .............................................117 4.2 Teoria critica de currículo: contestação e questionamento ........................................119 4.3 As Teorias Pós-Críticas .................................................................................................123 4.3.1 Os estudos culturais .....................................................................................................123 4.3.2 O multiculturalismo .....................................................................................................125 4.4 Século XXI – Mudanças tecnológicas: qual conhecimento, qual currículo? ............128 4.5 Qualidades básicas para o novo século: razão, reflexão, questionamento e responsabilidade – Novas dimensões do processo educativo ...........................................130 4.5.1 A primeirahabilidade: razão .......................................................................................130 4.5.2 A segunda habilidade: reflexão e questionamento .....................................................131 4.5.3 A terceira habilidade: responsabilidade ......................................................................132 4.6 Parâmetros Curriculares Nacionais – que escola é proposta? ...................................133 5 OS DADOS SOB A LUZ DA METODOLOGIA HERMENÊUTICA OBJETIVA ...138 5.1 Metodologia ....................................................................................................................138 5.1.1 O uso da hermenêutica objetiva nas práticas de pesquisas empíricas .......................140 5.1.2 Orientações para o desenvolvimento do método .........................................................143 5.1.3 O desenvolvimento da pesquisa ...................................................................................145 5.2 O que os dados revelam sobre a sala de aula? .............................................................151 5.2.1 Educação: uma mera adaptação ou um pilar para a formação da autonomia .........152 5.2.2 Tarefa educativa da professora: nenhum a menos na sala de aula ...........................153 5.2.3 O inicio da aula e o seu desenvolvimento....................................................................154 5.3 O ensino (didática) .........................................................................................................162 5.3.1 O anúncio do tema da aula e o material utilizado pelo professor ..............................164 5.3.2 O tempo da aula e a relação com o conhecimento......................................................167 5.4 Formação ........................................................................................................................183 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................186 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................191 ANEXOS .............................................................................................................................. 203 11 1 INTRODUÇÃO A educação é um processo de empoderamento. É uma resposta a um eterno desafio humano. Ela explora o potencial que os seres humanos têm de transcender os limites da evolução biológica e almeja garantir que a mudança social agregada seja mais rápida do que a evolução biológica da espécie humana (HAMILTON, 2002, p. 196). A presente dissertação constitui-se de um estudo para entender a tensão presente no processo pedagógico entre educação, ensino e formação, três dimensões estabelecidas pela Teoria Educacional, desde Comenius, como competências da escola 1 na realização da proposta curricular na sala de aula. A escolha do tema é fruto de inquietações advindas da minha trajetória como professora em escolas de Ensino Fundamental. No exercício profissional de professora, sempre me interroguei sobre o que a sala de aula é, na medida em que seu propósito é ensinar, educar e formar. No movimento dinâmico da sala de aula, percebo que o currículo que é planejado nem sempre se materializa conforme foi proposto. Entretanto, é durante a aula que os conteúdos ganham vida, sustentados na interlocução com os alunos e, é justamente aí que os jovens se pronunciam acerca de seus interesses e anseios pelo aprendizado efetuado na escola. É também na aula que eles denunciam as práticas pedagógicas que mais se distanciam de sua realidade. Logo, esse espaço é um lócus privilegiado de pesquisa e de estudo, que permite entender o processo pedagógico e sua materialização através do currículo. Diante disso, pergunto: O currículo materializado nas práticas cotidianas dos professores possibilita uma formação plena do aluno? Pesquisas de sala de aula desenvolvidas sob os mais diferentes focos de análise já mostram tradição no país em estudos que procuram tanto desvendar questões de aprendizagem e de relações sociais na escola, como também discutir a relação entre currículo formal e currículo real (VILELA; SOUZA, 2007). Os estudos de currículo, de forma geral, buscam elucidar como o currículo se desenvolve nas práticas cotidianas da sala de aula em uma sociedade na qual a escola apresenta dificuldades em responder aos anseios e às necessidades dos estudantes, o que conduz a críticas sobre a escola. Apontada como lócus que não mobiliza o desejo dos alunos pelo conhecimento, a escola apresenta-se contraditória, uma vez que, desde os tempos de Comenius, foi instituída com objetivo de “ensinar tudo a todos”, 1 Essas três dimensões e a justificativa para essa forma de abordagem serão esclarecidas no capítulo seguinte. 12 orientando-se pela premissa de que tudo que há para ser ensinado deve e pode ser aprendido (COMENIUS, 2002). A escola, devido a críticas reiteradas de seus resultados, tem vivido uma crise de identidade, seja ela caracterizada pelos objetivos e finalidades de suas propostas, seja pelos seus procedimentos e metodologias utilizadas. Colocada sub judice, questiona-se seu real papel na sociedade. É importante lembrar a íntima relação da educação escolar com o contexto social e cultural, tendo-se em vista que os projetos da escola devem refletir os anseios da sociedade, e esta, também por estar em crise, tem seus desafios muito mais instigados e problematizados. Interroga-se, então: com que tipo de educação, a escola está comprometida: ensinar o que e a quem? Adequar o aluno às normas vigentes nos campos político e social? Prepará-lo para ser um sujeito esclarecido e pleno de autonomia como preconiza a Teoria da Educação? Ou ainda para competir no mundo do trabalho? Compreender a escola de hoje e como ela deve agir para fazer com que o indivíduo se entenda como sujeito, entenda a sociedade e nela possa interferir satisfatoriamente é fundamental para a construção de uma escola consciente de seu papel. Vilela, com base em Theodor Adorno, argumenta que a crise da educação é “a crise da formação cultural da sociedade capitalista, uma formação na qual o homem é alienado, mesmo que tenha sido educado (escolarizado/instruído)” (VILELA, 2007, p. 232). A afirmativa de Vilela toma por base as críticas à escola, apresentadas pelo teórico alemão Theodor Adorno que salienta que a escola tem contribuído para afastar da experiência escolar dos alunos a própria experiência de pensar de forma reflexiva e crítica, através da imposição de normas, rotinas que reforçam atitudes passivas e desestimulam os alunos para o aprendizado. Desse modo, a instituição escolar contribui para fortalecer os mecanismos de dominação, promovendo um ensino voltado para a aceitação, o conformismo e a indiferença frente a realidade (ADORNO, 1995). Portanto, é preciso entender os processos que produzem a expulsão do pensamento, da crítica e da reflexão na escola, considerando-se que essa instituição foi historicamente pensada para o desenvolvimento dessas habilidades (MONROE, 1979). Diante disso, é proposto, nesta pesquisa, compreender como o processo pedagógico é materializado no currículo da sala de aula nas disciplinas História, Língua Portuguesa e Matemática no último ano do Ensino Fundamental, para nesse processo, verificar e explicar a tensão presente no processo pedagógico entre educação, ensino e formação, na realização dos propósitos curriculares específicos dessas disciplinas. Nessa direção, compreendo que o currículo escolar deve estabelecer princípios que possibilitem novos contornos para trilhar os caminhos que orientarão novas relações do 13 homem consigo mesmo, com a natureza, com os outros homense projetos no sentido de construir um mundo mais justo e igualitário. É necessário que a educação escolar, esteja dirigida para a Mündigkeit, como preconiza Theodor Adorno (1995). Ou seja, uma educação voltada para o desenvolvimento da autonomia, entendida, por ele, nos princípios de Kant como “força de reflexão para autodeterminação, para o não fazer simplesmente como os outros” (ADORNO apud VILELA, 2006, p. 60). Para Adorno, a escola, em seus processos pedagógicos, deve objetivar o desvendamento dos mecanismos de dominação e conhecer o modo pelo qual a segregação e a exclusão operam na escola, apesar do discurso a favor da inclusão que ela mesma propaga: escola de qualidade para todos (VILELA, 2006, 2007, 2007a, 2009). Dessa forma, o trabalho educativo deve estar centrado no fortalecimento de experiências que possibilitem o desenvolvimento da “capacidade de falar pela própria boca, falar por si mesmo” (VILELA, 2006, p. 49) o que, na definição de Adorno com base em Kant, seria a formação do sujeito autônomo. A capacidade do sujeito de pensar por si mesmo abre a possibilidade da construção de uma sociedade preocupada com o bem comum, base para a sociedade democrática e isso já era defendido pelos gregos, por Comenius, pelos teóricos da educação dos séculos XVIII e XIX, e reiterada por diferentes educadores e cientistas sociais contemporâneos, entre eles por Theodor Adorno. Não quero dizer com isso que a educação escolar seja compreendida como remédio para a criminalidade, para o adoecimento, para a distribuição de renda, entre tantas outras responsabilidades atribuídas falsamente a ela. Promover uma educação escolar efetiva não resolverá todos os males da sociedade, mas ela será capaz de contribuir para a formação de uma consciência crítica e reflexiva, permitindo aos indivíduos desvendar as contradições da vida social e exercer resistência contra uma cultura banalizada, a favor de uma nação mais democrática. É possível uma educação escolar pautada nesses princípios, nos dias atuais? O que tem realizado a escola, hoje, e que situações e que condições precisa enfrentar se ela deve ser a instituição responsável para formar plenamente o sujeito? Outra discussão muito recorrente no espaço escolar é a de que os jovens alunos não gostam da escola, não se interessam por ela ou ainda não enxergam o seu valor. É como se os jovens rejeitassem a escola e o professor e, com isso, deixassem de estabelecer uma relação produtiva com o saber, sobretudo com o saber escolar. Assim, é preciso perguntar: As experiências pedagógicas a que esses jovens estão submetidos podem explicar esse fato? Não estaria a escola restringindo a experiência formativa desejada, necessária e a que tem direito esses jovens? Adorno argumenta que uma escola consciente de seu papel na sociedade e 14 preocupada em oferecer uma verdadeira educação orienta seu trabalho no sentido de formar pessoas com amplo conhecimento e atitudes de respeito, solidariedade, justiça, com capacidade de vida social. Essa formação tem acontecido na sala de aula? As práticas curriculares materializadas na sala de aula são capazes de implementar essa formação? O que realmente acontece na sala de aula? A pesquisa amparou-se nos estudos da Teoria da Educação, na teoria crítica de currículo e na Teoria Crítica de Adorno. No plano metodológico, a hermenêutica objetiva desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann ofereceu possibilidades para compreender a escola a partir da reconstituição da aula. Essa metodologia está fundada nos princípios da Dialética Negativa de Adorno, cuja premissa é desvendar o que é verdadeiro no aparente. Para isso, deve-se tensionar o aparente e o real e colocar sob suspeita aquilo que parece ser com aquilo que realmente é. Para tanto, a presente dissertação está estruturada em cinco capítulos e considerações finais. No primeiro capítulo, apresenta-se a introdução. No segundo capítulo, como a tríade educação, ensino e formação, sustentáculos do processo pedagógico, está presente na teoria pedagógica conforme apontam alguns clássicos da educação, como em Jan Amos Komenský, Jean Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Friedrich Christian Karl Ferdinand Wilhelm von Humboldt, John Frederick Herbart, Émile Durkheim. No terceiro capítulo, apresenta-se as contribuições de Theodor Adorno para refletir a sala de aula mergulhada no processo de dominação provocado pelas relações sociais do capitalismo que se instaurou em todas as instâncias da sociedade, inclusive na escola. No quarto discute-se a constituição do currículo e sua importância no campo educacional na atualidade. No quinto capítulo, subdivido em duas partes, apresenta-se, primeiramente, a metodologia da hermenêutica objetiva e como se deu o processo de desenvolvimento da pesquisa e, em seguida, os dados revelados na sala de aula e sua análise. Por último, são elencadas as considerações finais, em que se realiza alguns questionamentos sobre os dados e a situação da escola brasileira na atualidade. 15 2 EDUCAÇÃO, ENSINO E FORMAÇÃO: PILARES DO PROCESSO PEDAGÓGICO DESENVOLVIDOS NA SALA DE AULA [...] arte Universal de ensinar tudo a todos, ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades, cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém, possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para piedade e, assim, nos primeiros anos de juventude, receba instrução sobre tudo o que é da vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida (COMENIUS, 2002, p. 11). Neste capítulo, fez-se um recorte na literatura sobre teóricos que discutiram o processo pedagógico, considerando as dimensões da educação, do ensino e da formação como pilares do processo pedagógico. Para maior entendimento dessa tríade, foram escolhidos estudiosos como Jan Amos Komenský, Jean Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Friedrich Christian Karl Ferdinand Wilhelm von Humboldt , John Frederick Herbart, Émile Durkheim, os quais apresentam teorias que influenciaram e ainda influenciam o pensar e o fazer pedagógico realizado nas escolas de hoje, mesmo que isso não seja declarado e mesmo que o estudo desses teóricos não seja contemplado na formação de professores no Brasil. Esse foi o primeiro motivo que definiu a escolha desses estudiosos, tendo em vista que os mesmos procuraram desvelar a importância não apenas do ensino, mas também da educação como premissas fundamentais para a formação do ser humano. Além disso, esses autores mostraram com pertinência a importância da escola como instituição insubstituível para realizar esse processo. É importante ressaltar que, nessa escolha, há ainda uma forte influência dos estudos de sala de aula realizados em Frankfurt, de onde buscamos a orientação teórico-metodológica para a pesquisa, conforme se esclarecerá nos capítulos subseqüentes. Na formação dos professores alemães, o estudo sistemático desses teóricos, como “clássicos da educação”, está presente como condição para o entendimento da escola e, assim, os estudos de sala não podem deixar de examinar como as práticas pedagógicas refletem as dimensões da Teoria Educacional. Essa não é tradição brasileira, conforme foi dito, entretanto, na nossa orientação de pesquisa, abordar os clássicos tornou-se também condição essencial para o trabalho investigativo. Ao apresentar os estudiosos, não se pretendeu delimitar nesse texto uma linha histórica, mas procurar compreender como a tríade educação, ensino e formação foi edificada com dimensões inerentes ao processo escolar para poder compreender como a materialização do currículo pode ser compreendida como efetivação ou não do projeto educacional historicamente definido para a escola, comoserá demonstrado na proposta dos diferentes teóricos abordados. 16 O segundo motivo para a o uso da referência desses teóricos da educação atribui-se à escolha, nesta pesquisa, da metodologia da análise sociológica hermenêutica objetiva, desenvolvida no Instituto de Educação da Universidade de Frankfurt por um grupo de pesquisadores liderado por Andréas Gruschka, no departamento de formação de professores para a escola secundária. Compreende-se que, para a realização desse procedimento que permite conduzir uma análise fina, minuciosa e detalhada da aula, é imprescindível conhecer as teorias educacionais que organizam o processo pedagógico e, consequentemente, o currículo e as ações realizadas na sala de aula. Assim, na investigação proposta, é essencial o estudo dos teóricos educacionais para desvendar, de forma crítica, a tensão presente no processo pedagógico entre educação, ensino e formação, visando compreender o currículo na atualidade. Salienta-se, assim, que, na investigação proposta, os conceitos de educação, ensino e formação são compreendidos conforme descritos na Teoria Educacional. Assim, a educação é entendida a partir do sentido durkheimiano de formar as novas gerações para uma vida adaptada ao seu meio e ao seu tempo. Esse processo de adaptação não deve ser imposto, considerando-se que deve ser realizado no confronto das contradições entre as regras impostas pela escola e o compromisso individual de aprender, pautado pelo desafio de formar para a individuação e para a autonomia. A didática, derivada do verbo grego, dídaskó, significa ensinar, instruir. É importante compreender que o ensino (ou a didática) não se restringe apenas àquele ato do professor de fornecer informações acerca de um conteúdo, uma vez que essa dimensão abarca todo o processo de mediação do conhecimento, constituindo-se na essência da tarefa docente. Ou seja, ele inclui um conjunto das ações do professor dirigidas para se conseguir que a escola seja o lugar do ensinar e do aprender. Assim, desafiar o aluno para a aprendizagem e para o conhecimento é uma estratégia que depende, em grande parte, da condição possibilitada pelo professor no momento da concretização da aula. Já a formação refere-se ao processo no qual o sujeito se eleva à condição de sujeito pleno com capacidade de reflexão e de decisão própria, tornado-se, assim, a pessoa edificada por ela mesma. A formação resulta do processo de autonomia consubstanciado por cada um através do domínio do conhecimento social e cultural acumulado (do ensino) e da capacidade de fazer uso próprio das normas sociais (da educação), ou seja, ela somente é realizada através do ensino e da educação (VILELA, 2009; VILELA; NOACK-NAPOLES, 2010). Desse modo, desenvolver um capítulo acerca dos teóricos anteriormente referidos possibilitará maior compreensão de como os conceitos, educação, ensino e formação encontram-se presentes na sala de aula brasileira. No caso da presente pesquisa, procurou-se 17 interpretar o que as aulas do 9.º ano do Ensino Fundamental, fundadas na tríade educação, ensino e formação, revelam sobre a sala de aula. O que há para ser desvelado ali? 2.1 Século XVI – precursor da educação moderna Historicamente, o processo educativo escolar provê de uma longa tradição que se constituiu nas gerações de nossos antepassados. Ela inclui formas de disciplinar, de ensinar conhecimentos, de pensar, de agir, de sentir, de perceber e de se comportar diante das várias situações de mundo. Recusar essa tradição é negar as marcas que fazem parte do ser humano, é se despir da forma pela qual se é conduzido a entender o mundo. Isso não significa que o homem está engessado para mudanças, pelo contrário, é a partir do entendimento dessa vivência que se pode realizar críticas e desconstruir o que parece tão naturalizado. Não se pode desconsiderar uma tradição, mesmo que não se concorde com ela, porque para se chegar a essa oposição teve-se, de certo modo, que utilizar referências para estabelecer um processo reflexivo com possibilidades de pensar outras formas de ser. Adorno (2009), teórico social no qual se sustentam tanto a metodologia hermenêutica objetiva quanto a orientação epistemológica do grupo de pesquisas de Frankfurt, chama a atenção para o fato de que a reflexão e a autonomia são processos possibilitados pela educação. Segundo ele, esses processos são capazes de permitir que os sujeitos possam fazer constantes análises das diversas situações que se apresentam no cotidiano, não apenas para aceitarem ou se adaptarem à sociedade a qual estão imersos, mas para terem a capacidade de decidir com autonomia. Assim, é importante conhecer a tradição histórica que embasa, na sala de aula, o fazer pedagógico dos professores, filhos da tradição da educação, nas mais diversas relações que se podem estabelecer entre o sujeito e o objeto do processo pedagógico. Nos dias atuais, a escola é questionada sobre seu papel na sociedade. Para alguns estudiosos, vive-se um período de transição com ressignificação, reformulação e criação de novos valores que organizam o modo de viver na sociedade. Defende-se aqui que mudanças são necessárias para recuperar o papel da educação na sociedade. No entanto, é preciso considerar as bases que sustentam o pensamento educacional. Segundo Telles (1999, p. 55), o novo não deve constituir-se em “uma ruptura completa com o passado, pois nada se constrói sobre nada. O passado deve estar vivo como lição, mostrando os erros e acertos”. Assim, considerar o passado é importante para traçar novas linhas de condução para se fazer uma 18 escola mais conectada com os tempos contemporâneos e conforme diz Hamilton (2002, p. 188) “debruçar sobre a escolaridade do passado significa também refletir acerca da escolaridade no futuro”. Desse modo, o século XVI é um importante período na história da educação, porque indica mudanças substanciais na forma de fazer a educação escolar marcando o início da pedagogia moderna. Não se quer, com isso, desconsiderar profícuos períodos anteriores que, sem dúvida, trouxeram importantes contribuições no modo de pensar e fazer a educação, porém precisava-se encontrar um recorte inicial de importante significado, um fio condutor que possibilitasse nortear e organizar a discussão. É certo que o século XVI foi um período que fundou importantes pressupostos da Pedagogia Moderna. Na educação europeia, a linguagem, nesse período, ganha novos contornos com o aparecimento de termos conhecidos na literatura educacional como classe (1519), currículo (1573), programa (aproximadamente por volta de 1500) (HAMILTON, 2002) e que possibilitaram uma nova configuração no modo de pensar a escolarização. Observa-se, nesse período, uma preocupação com a educação para uma maior parcela da sociedade, resultado de mudanças sociais que começaram a colocar novas exigências sociais e de qualificação. Nota-se, também, um novo quadro conceitual na educação que convergia para um ensino organizado, com o intuito de atender um grupo maior de pessoas. Reformas educativas iniciam-se na Europa com objetivo de controlar os alunos e organizar os conteúdos e métodos. Sobre esse processo, Hamilton afirma que [...] o ensino e a aprendizagem tornaram-se para o bem ou para o mal, mais aberto ao escrutínio e ao controle externos. Além disso, o currículo e a classe entraram em pauta educacional numa época em que as escolas estavam sendo abertas para uma seção muito mais ampla da sociedade. (HAMILTON, 1992, p. 47). Hamilton (2002) salienta ainda que o século XVI é marcado pela transição da atenção pública da aprendizagem para a instrução, o que pode ser comprovado a partir de vários escritos educativos europeus em que o foco de preocupação transfere-se do como e o que aprender para o como e o que ensinar às crianças. A escolarização moderna moldou-seem torno de novas ideias e práticas acerca da instrução. Desse modo, Ricos patrões investiram nestes métodos modernos e memorandos públicos, guias e manuais de método listavam e elaboravam seus pressupostos. Decretos municipais os endossaram, professores arrojados os adotaram e, não menos importante, as trocas européias em termo de idéias educativas garantiram sua disseminação. Criava-se uma nova tecnologia instrucional (HAMILTON, 2002, p. 189). 19 Essa nova concepção acerca da instrução pode ser vista, por exemplo, nos textos dos princípios da pedagogia jesuíta, como o Exercitia spiritualia e o Ratio studiorum. Outro importante fato deveu-se às influências protestantes no campo educacional, o que resultou em um novo conceito e espírito à educação. Destaca-se aqui o “estabelecimento de sistemas escolares baseados na idéia de educação comum para todos” (MONROE, 1979, p. 176). No entanto, para o desenvolvimento desse sistema de escolas públicas foi preciso o entendimento de que, para se atingir o bem estar do Estado, tornava-se necessário “a educação individual do cidadão” (MONROE, 1979, p. 176). A origem dessa ideia está expressa na doutrina da Reforma, a qual defende que [...] o bem-estar eterno de cada indivíduo depende da aplicação da sua própria razão à revelação contida nas Escrituras. Conseqüentemente, a capacidade de ler as Escrituras, a vantagem de lê-las no original e a necessidade do treino das faculdades do raciocínio, apresentaram novas tarefas à escola e exigiram a educação universal e obrigatória das crianças de todas as classes e de ambos os sexos (MONROE, 1979, p. 176). [...] o Estado tinha o “dever de obrigar os seus súditos a enviar seus filhos à escola”, da mesma forma que compelia todos eles a prestar serviço militar para sua defesa e prosperidade. Conseqüentemente, a educação deveria ser mantida e dirigida pelo Estado (MONROE, 1979, p. 179). Outra concepção é a de que a educação deveria ser dada pela família e pela escola. Martinho Lutero, importante reformador protestante, defendia que era preciso enviar as crianças à escola por um período de uma ou duas horas e o restante do tempo elas deveriam aprender um ofício em casa. Essas duas ocupações deveriam acontecer concomitantemente (MONROE, 1979; LOPES, 2003). Além disso, também pode ser atribuída a Lutero a ideia de que o currículo escolar deveria conter o latim, o grego e o hebraico. Possivelmente, essas línguas foram sugeridas por ele, devido ao fato de elas constituírem as línguas das Escrituras. Para ele, também deveria constar no currículo a lógica e as matemáticas. Além disso, salientava o ensino das ciências, da ginástica e da música. O contexto do século XVI representou um período de importantes mudanças no campo político e educacional e, possivelmente, a doutrina e a ética protestante tenham tido grande importância no mundo da educação. O principal resultado da Reforma foi o estabelecimento de sistemas de escolas controladas e parcialmente mantidas pelo Estado, fundadas no princípio de que era dever da família, da igreja e especialmente do Estado, velar para que todas as crianças freqüentassem as escolas e recebessem pelo menos uma educação elementar. Os sistemas de escolas públicas dos Estados Alemães – foram os primeiro do tipo moderno. Até 1559, não encontramos um sistema de escolas para 20 todo o povo. Nesse ano o Duque Würrtenberg adotou um plano que não foi aprovado pelo Estado senão 1565. Este sistema, uma ampliação do plano saxônico, cogitava de escolas elementares vernáculas em cada aldeia, nas quais deviam ser ensinadas a leitura, a escrita, a religião e a música sacra (MONROE, 1979, p. 189). No presente trabalho, decidiu-se por iniciar o estudo por Jan Amos Komenský (Comenius) (1592-1657), importante educador do século XVII, que articulou a pedagogia do século XVI com a pedagogia do século XVII, apresentando um novo mosaico da educação. Considerado o primeiro sistematizador e organizador dos estudos pedagógicos, o educador instituiu um verdadeiro tratado na arte de ensinar, educar e formar. Por essa razão, neste capítulo, será enfatizado o trabalho educacional do pedagogo Comenius, que instaurou e defendeu a premissa de ensinar tudo a todos mostrando a necessidade de reformar as escolas e produzir uma metodologia capaz de tornar eficiente o ensino. Segundo Narodowski, O núcleo central da obra de Comenius como fonte, como origem, como grau zero da Pedagogia moderna, é a sua capacidade de condensar aspectos que a Pedagogia do século XVI e do início do século XVII já havia delineado, [...] ele conforma um novo mosaico a partir de alguns elementos já existentes, além de outros componentes de elaboração própria. Esse é o caso da Didática Magna, como obra fundante, completa e totalizante, que foi precedida por muitas outras obras pedagógicas, não somente no tempo como, também, no estabelecimento de não poucos conceitos que logo haveriam de fazer parte da Pedagogia (NARODOWSKI, 2006, p. 14). A pedagogia comeniana implanta uma série de dispositivos discursivos sem os quais é praticamente impossível compreender a maior parte das posições pedagógicas atuais. É nesse sentido que Comenius constitui-se numa referência inicial, uma vez que ele dispõe elementos sem os quais a Pedagogia moderna seria irreconhecível em suas principais facções e matizes presentes (NARODOWSKI, 2006, p. 16). Assim, pode-se dizer que muitas das ideias de Comenius já haviam sido apontadas por outros estudiosos, mas é a partir dele que uma nova configuração toma forma. Para o educador, o homem deveria ser educado e instruído para encontrar a felicidade eterna com Deus. Assim, o objeto da educação consistia em auxiliar no alcance desse fim. Nesse aspecto, todos os educadores daquele momento concordaram. No entanto, Comenius se diferenciava dos demais estudiosos em relação à concepção de educação. Estes consideravam que, para alcançar a felicidade com Deus, era necessária uma educação para “destruir os desejos naturais, instintos e emoções, fornecendo uma disciplina mental e moral adequadas” (MONROE, 1979, p. 217). Para Comenius, porém, o propósito da educação deveria ser atingido “pelo domínio de si mesmo, e este deveria ser assegurado por meio do conhecimento, de si mesmo, o que inclui o de todas as coisas” (MONROE, 1979, p. 217). 21 Comenius contribuiu para o campo educacional de acordo com as demandas sociais e educacionais de seu tempo histórico-social e deixou um importante legado, o qual pode ser ainda considerado nas problemáticas escolares em que vivemos hoje. Para uns, seu trabalho está ultrapassado, para outros, seus ensinamentos são pertinentes e devem ser considerados para a educação atual. Gasparin salienta que, nos dias atuais, se tem observado dificuldades por parte dos professores no uso da didática realizada na sala de aula e, portanto, [...] o retorno a Comenius se tornou uma urgência a partir do momento em que constatamos a crise em que se encontra a didática atual. A preocupação com o imediato e o prático, no trabalho docente cotidiano, tem conduzido com freqüência a um profundo desconhecimento dos clássicos em educação que, em seu momento histórico, foram capazes de apreender as necessidades e os desafios que as práticas social e educacional determinavam. (GASPARIN, 1994, p. 13). Neste trabalho, considera-se que os estudos de Comenius ultrapassam o tempo e, portanto, merecem aprofundamento para o entendimento da educação, do ensino e da formação do ser humano de hoje e corroboraram para pensar a escola em suas particularidades. A seguir, serão destacados elementos importantes da obra de Comenius que mostram uma vida dedicada à fé e à educação. 2.2 Jan Amos Komenský (1592-1670) Jan Amos Komenský nasceu em Nivnitz, Morávia, no dia 28 de março de1592 e morreu Amsterdam, no dia 15 de novembro de 1670. Foi professor, cientista e escritor, educado “na fé protestante minoritária da Unitas Fratum („União de Irmãos‟), uma seita anabatista que baseava sua inspiração na vida e no martírio do grande reformador boêmio Juan Hus”, o qual viveu no período de 1369-1415 (NARODOWSKI, 2006, p. 17). Esse grupo era rígido em termos de doutrina e conduta, com firme consideração pelas Sagradas Escrituras, pela humildade e pela profunda piedade. Contrariando o latim utilizado na época, adotava o tcheco como língua materna. Aos seus membros era imposta uma vida austera com orações diárias. Além de um conhecimento sólido da Bíblia, os Unitas Fratum, também denominados de irmãos morávios, preocupavam-se com a educação, fator que influenciou fortemente a ligação de Comenius com a religião e com o processo pedagógico. 22 A congregação dos irmãos morávios originou-se no século XV, com Juan Hus, religioso e reitor da Universidade de Praga que defendia a necessidade da educação como forma de possibilitar a unidade do grupo. Os irmãos morávios foram responsáveis pela fundação de várias escolas, consideradas as melhores da Europa, inclusive a Universidade de Praga. Para esse grupo, a educação era fundamental para o entendimento das escrituras, por esta razão preocuparam-se em educar seus membros e traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para sua língua materna, com o intuito de facilitar o acesso à leitura desse livro sagrado. Esses elementos formativos de Comenius foram decisivos na constituição da Teoria Educacional (MONROE, 1979; LOPES, 2003; NARODOWSKI, 2006). Comenius estudou na escola secundária de Prevov, na qual aprendeu latim, as artes liberais, gramática, retórica e dialética. Nessa instituição, observou as precariedades no tipo de educação oferecido, em termos pedagógicos, e percebeu que mudanças acerca do processo ensino aprendizagem eram necessárias. Para ele, a escola era deficitária, desorganizada e empregava uma metodologia incapaz de produzir um ensino eficiente. Tratava-se de um ambiente sem maiores atrativos para os alunos, utilizando-se de mecanismos de coação como a palmatória e onde os educadores dirigiam-se aos seus educandos como adultos em miniatura (COMENIUS, 2002; LOPES, 2003; NARODOWSKI, 2006). Assim, sua preocupação com a educação pode ser evidenciada a partir de sua própria experiência escolar. Nas escolas, existiu a confusão de ensinar, aos alunos, muitas coisas ao mesmo tempo [...]. Quem não sabe que nas escolas clássicas diariamente se mudava de exercícios e lições a cada momento? E eu pergunto: que é confusão, senão isso? (COMENIUS, 2002, p. 66). Se, pois, quisermos igrejas e estados e famílias bem organizados e florescentes, antes de mais nada ponhamos em ordem as escolas, fazendo-as florescer, para que se tornem forjas de homens e viveiros de igreja, estado e família; só assim alcançaremos nossos fins, e não de outro modo (COMENIUS, 2002, p. 34). As obras de Comenius expressam traços evidentes da estreita relação entre sua forma de pensar o homem, as formas de convivência na sociedade, o processo de escolarização e os preceitos da fé protestante. Sua vida e obra evidenciam a dependência estabelecida entre o homem, a fé e a ciência. Assim, salienta Comenius [...] finalmente, é de interesse do CÉU que as escolas sejam reformadas para promover a educação idônea e universal das almas: por isso, não é de se espantar que o fulgor da luz divina retire com maior facilidade das trevas todos aqueles que o som da trombeta divina não foi capaz de despertar (COMENIUS, 2002, p. 38). 23 No trabalho proposto, a discussão do processo pedagógico será realizada a partir da obra a Didática Magna. Nela, estão impressas claramente as influências de seus precursores e como é desenvolvida a base do processo pedagógico. A referida obra pode ser considerada como um texto ramista por ser tributária do pensamento de Petrus Ramus 2 , autor da Dialética e Professio Regia, obras em que Comenius toma o entendimento de que o conhecimento pode ser organizado, sistematizado de modo a ser mais facilmente aprendido. Entre as influências de Ramus está a defesa de que “a natureza deveria ser o guia da reforma educacional e que os elementos de um campo de estudo deveriam ser extraídos da observação dela ou da experiência” (RIOUX apud HOFF, 2004, p. 145). Comenius mostra claramente essa influência quando argumenta em seu capítulo XIV, a necessidade de buscar na natureza a ordem perfeita da escola. Segundo estudiosos, a Didática Magna é um texto enciclopédico 3 porque procura compendiar e sistematizar um verdadeiro tratado de educação, ensino e formação (LOPES, 2003; NARODOWSKI, 2006). As palavras de Comenius evidenciam esse propósito quando ele afirma “ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 2002, p. 13). Está expresso, já no início da obra, o pressuposto do desafio de reunir os conhecimentos necessários capazes de estabelecer uma organização do ensino para um maior e melhor aprendizado dos alunos. Em Herborn, Comenius sofre a influência dos pensadores Francis Bacon e Wolfgang Ratke. De Bacon herdou, principalmente, a utilização do método indutivo, o qual propõe iniciar-se das particularidades para as conclusões gerais. Já de Ratke, Comenius abstraiu entre seus vários ensinamentos, construtos em defesa de um sistema nacional de educação e de uma escola pública de boa qualidade e gratuita para todos (LOPES, 2003). Da pedagogia ratiquiana, Comenius apreendeu princípios fundantes que o seguiram por toda a sua obra, expressos principalmente na Didática Magna. As propostas e práticas pedagógicas de Ratke coadunam com as de Comenius em vários pontos. Entre essas influências, destacam-se cinco importantes na forma de pensar o ensino defendido por Comenius. 2 Pierre de la Ramée, também conhecido por Petrus ou Peter Ramus, foi matemático francês nascido em Cuts, próximo a Noyon, Vermandois, em 1515, e muito contribuiu para a matemática no sentido pedagógico. Propôs modificações nos currículos das universidades sugerindo maior ênfase à matemática, à lógica, à física e a outras ciências. Entre outras ideias, propôs reformas no ensino e na estrutura da Universidade de Paris, a criação da cadeira de matemática na universidade, a abolição das taxas de estudante e mudanças no programa de artes. Trabalhou em muitos tópicos e escreveu uma série inteira de livros didáticos em lógica e retórica, gramática, matemática, astronomia e ótica. Morreu em 1572. Entre suas principais obras estão Professio Regia, Dialética. Foi perseguido e condenado por suas ideias antiaristotélicas. 3 Esse termo foi atribuído à obra de Alsted, denominada Encyclopédia, composta de 35 livros distribuídos em sete volumes, datada de 1630 devido à sua pretensão de reunir metodicamente todas as ciências em uma única obra. 24 A primeira delas é a possibilidade de tornar a arte de ensinar e de aprender em processos mais fáceis de serem efetivados. Para isso, era preciso partir do mais simples para o mais complexo e respeitar a natureza infantil, evitando-se castigos como forma de manter a atenção dos alunos no aprendizado. Some-se a isso, uma metodologia que orientasse o trabalho pedagógico de modo preciso. A segunda é a defesa pela universalização do ensino atribuindo ao Estado não apenas a responsabilidade de criar escolas, mas também de organizá-la administrativamente e pedagogicamente. Assim, a instrução pública deveria ser dada a todas as pessoas, sem exceção e, para isso, ela deveria ser obrigatória, gratuita e unitária (HOFF, 2004). Isso incluía possibilitar o acesso dos alunos a todo o material necessário para seus estudos, inclusive aos livros didáticos. Ratke foi um grandeeditor e estimulador de livros didáticos e escolares e atribuía grande poder e valor aos livros como fontes capazes de apresentar, de forma científica, os conteúdos a serem trabalhados em todas as séries. Acrescenta-se que esse material deveria ser “facilmente assimilável e utilizado comodamente em sala de aula” (HOFF, 2004, p. 147). A terceira diz respeito à formação dos professores que, para ele, consistiria em uma formação global no campo das ciências e domínio sobre o conteúdo de sua disciplina. A quarta refere-se ao uso da língua materna em todos os níveis escolares, incluindo-se nos livros didáticos que deveriam também estar grafados na língua vernácula, no caso, a língua alemã, conforme expresso por ele, no Memorial de Frankfurt. Ratke advertia que, desse modo, o aprendizado não contrariaria o curso da natureza, ou seja, a forma natural para o desenvolvimento da aprendizagem. Assim, o estudante deveria aprender primeiramente a língua materna e secundariamente o ensino das línguas estrangeiras. Ratke defende que A correta utilização, seguindo o curso da natureza, indica que a cara juventude, em primeiro lugar, aprenda corretamente a língua materna que, para nós, é a língua alemã; aprenda a falar e escrever sua própria língua a fim de que possa entender melhor as outras. Para isso, o melhor meio é a bíblia. A seguir, é preciso ministrar e fielmente aprender a língua hebraica porque é a mãe de todas as línguas e o berço da escritura santa. Em terceiro lugar, a importância recai sobre a língua grega, a língua do Novo Testamento, a fim de que a cara juventude possa ler, entender e seguir a palavra e a vontade de Deus. Em quarto lugar, deve-se aprender o latim com alegria e divertimento a partir das comédias de Terêncio. Nesta língua, pode-se estudar e entender melhor as leis (Iura) a partir das Instituições de Justiniano. São as quatro línguas principais. Delas nasceram quase todas as outras. Nessas quatro devem ser aprendidas e divulgadas todas as coisas. Tudo o que nelas aparece como honrado deve ser seguido em nível espiritual e temporal. Quem, no entanto, tem a intenção de compreender mais e aprofundar os conhecimentos da bíblia, deve estudar a língua hebraica; para entender o Antigo Testamento, há de estudar a língua caldéia; e para compreender o Novo, deve estudar a língua siríaca. Todas essas línguas – alemão, hebreu, caldeu, siríaco, grego e latim – podem ser ensinadas 25 e propagadas com proveito a partir dos livros acima nomeados. Quando, porém, se estuda a gramática numa língua, através de um método uniforme, como eu estou orientando, então também as outras línguas devem ter o mesmo formato. Dessa forma, não haverá nenhuma dificuldade no aprendizado4. (RATKE apud HOFF, 2002, p. 7). Essa última influência pode ser percebida no trabalho de Comenius com a produção de um dicionário em sua língua materna, o tcheco, concluído na obra Thesaurus Linguae Bahemicae, “um léxico completo de uma gramática exata das locuções da língua tcheca” (LOPES, 2003, p. 77). Além disso, defende primeiramente o ensino da língua materna e somente depois das estrangeiras, cada qual no seu tempo, evitando-se seu ensino de uma só vez. Tal fato está expresso na Didática Magna, capítulo XXII, método para ensinar as línguas. Segundo Hamilton (1992), Comenius pode ser visto como “um neo-estóico 5 ”, uma vez que em sua obra Didática Magna está contido o pressuposto de que o homem, para formar-se, necessita de educação e instrução para desenvolver virtudes necessárias para que realmente possa se tornar homem. Esta é uma influência clara do grupo dos morávios na obra de Comenius, que defendia a importância do homem controlar a si mesmo para sua convivência feliz na sociedade. É certo que, segundo Comenius, a instrução deveria ser realizada sob a ótica de uma racionalidade técnica, sob a luz do conhecimento científico para formar o homem como homem. Várias passagens dessa obra ilustram a preocupação de Comenius em humanizar o homem e, assim, ele afirma que para “todos aqueles que nasceram homens a educação é necessária, para que sejam homens e não animais ferozes, não animais brutos nem paus inúteis” (COMENIUS, 2002, p. 76). De fato, todas as influências recebidas por Comenius são visivelmente compartilhadas pelos educadores e filósofos protestantes da época. Comenius sofreu influência também do luterano João Valentim Andreae 6 que sustentava três premissas básicas para a sociedade e para a educação: 4 Memorial de Frankfurt, datado de 7 de maio de 1612, traduzido do texto alemão que se encontra no livro de Hohendorf Die Neue Lehrart. Paedadogische Schriften Wolfgang Ratkes (A Nova Arte de Ensinar. Textos Pedagógicos de W. R.), Berlim, coleção Zerbster Ratichiana, C. 18, n. 33, p. 49-56) e publicado na Revista Histedbr On-Line, n.5 da Unicamp. 5 Estóico: aquele que considera a virtude e a razão como os únicos bens do homem que possibilitam a felicidade. Desse modo, procuram aniquilar as paixões e os desejos (HAMILTON, 1992). 6 João Valentim Andreae (1586-1654) é um pastor luterano “estritamente ligado à ordem dos rosa cruzes, uma sociedade de místicos reformados, de origem medieval. Influenciado pelo misticismo, funda, em 1616, uma loja Rosa Cruz, misturando alquimia, misticismo e reforma social aos ideais filosóficos religiosos que o inspiram. Na obra Reipublicae christianopolitanae descriptio, o pastor trata a educação, opondo-se às técnicas mnemônicas em uso nas escolas da época, favorecendo uma aprendizagem que parta das palavras para as coisas e da língua materna para a estrangeira” (LOPES, 2003, p.78). 26 a) uma sociedade ideal deve adorar a Deus com alma pura e cheia de fé; b) deve haver esforço em prol da mais íntegra moralidade; c) devem-se cultivar as capacidades mentais estudando as ciências, as artes e, em especial, a matemática e a história (LOPES, 2003, p.78). A obra de Andreae é citada por Comenius na Didática Magna como um homem de conhecimentos sólidos, o qual é iluminado por Deus. Desse modo, ele diz que Andreae “em seus áureos escritos denunciou de modo incomum os males das igrejas e dos Estados, assim como os das escolas indicando os remédios” (COMENIUS, 2002, p. 16). Além disso, Comenius escreveu a obra Janua liguarum reserata (A porta aberta das línguas), publicada em 1631. Trata-se de uma enciclopédia que inclui uma variedade de temas, totalizando 98 (NARODOWSKI, 2006). Nela está expressa a noção de que pensamento e linguagem estão interligados, além de evidenciar a importância da experiência prática e a graduação de dificuldades como fundamentos importantes a serem considerados na aprendizagem. Conforme salienta Monroe, este livro de Comenius é o [...] mais famoso, o que por si só o tornaria notável em seu século. Durante muitas gerações os estudantes de três continentes usaram este livro como um manual de línguas, no lugar do Donato e Alexandre das gerações precedentes. Embora muito diferentes destes últimos, era igualmente difícil em muitos aspectos. O plano do livro era simples e “natural”. Partindo de alguns milhares de palavras latinas mais comuns referentes aos objetos familiares, o trabalho consistia em organizá-las em sentenças, começando pelas mais simples e chegando progressivamente às mais complexas, de tal modo que se apresentasse uma série de assuntos relacionados; o livro todo apresentava assim uma resumida enciclopédia do saber, como também um vocabulário e um conhecimento prático do latim vulgar. (MONROE, 1979, p. 220- 221). Para Cotovello (1999), Comenius influenciou fortemente educadores de países europeus, o que evidencia que sua presença foi de inegável importância. Na Inglaterra, em 1641, foi convidado a colocar seu ideal pansófico em prática, nesse país com a fundação do Collegium Lucis. No entanto,seu plano foi frustrado devido às agitações internas. No ano de 1642, Comenius ingressa na Suécia para dirigir a reforma das escolas do país e escreve vários livros. Entre essas obras pode-se citar Novíssimo método das línguas de 1647, importante contribuição ao estudo de idiomas. Contudo, o educador tcheco nunca abandonou sua crença de que a formação do homem é fundamental para a constituição da paz entre as nações. Esse pensamento fica evidente em sua obra intitulada Consulta universal sobre o melhoramento dos negócios humanos, na qual vincula a formação “de todos os seres humanos como condição básica para o progresso da humanidade e para a paz mundial” (LOPES, 2003, p. 89). 27 Pode dizer que a educação, o ensino e a formação são claramente evidenciados nas obras de Comenius, especialmente na Didática Magna. A educação e o ensino são, para ele, princípios organizadores do processo capazes de proporcionar uma verdadeira formação, entendendo-se que é a forma mais precisa para que o homem possa realmente se tornar homem. O estudioso compreende o homem como ser educável que possui inata aptidão pelo saber. Além disso, evidencia a necessidade para o cuidado com as formas relacionais de tratamento entre professores e alunos. A efetivação da formação humana faz-se através da educação e da instrução e, para isso, é imprescindível a presença da ordem, da disciplina, da sequência, da homogeneização dos alunos, de um método bem definido e de um professor bem preparado. E todos esses pontos, Comenius trata de forma bem detalhada, mostrando como deveria ser cada um deles para que a formação do homem realmente ocorra de forma efetiva. Estes pontos serão trabalhados aqui ao longo do capítulo. 2.2.1 A educação na perspectiva de Comenius Para Comenius, a educação escolar refere-se “àquela educação ou, o que dá no mesmo, àquela ação adulta sobre a infância cujo controle recai decididamente sobre os mecanismos gerais e suprafamiliares” (NARODOWSKI, 2002, p. 53). Ele salienta a importância de se educar na tenra idade, devido à maior facilidade de aceitação do governamento por parte das crianças. Para isso é essencial o exemplo centrado nas atitudes daqueles que conduzem a sua educação, no caso os adultos. Segundo ele, “para orientar e guiar as crianças, são mais úteis os exemplos do que as regras: se algo é ensinado a uma criança, pouco fica gravado, mas se for mostrado o que fazem, ela logo os imitará, sem precisar de ordens” (COMENIUS, 2002, p. 86). O homem só pode se educar se tiver conhecimento do mundo, domínio e governo de si mesmo (COMENIUS, 2002). A disciplina sobre si é muito importante para que o homem possa se educar para atingir o propósito maior que é a vida eterna, comungando com os preceitos divinos. Assim, a disciplina deve ser exercida nos costumes 7 para constituir-se em 7 Nesse contexto, os costumes devem ser entendidos como “não só a correção do comportamento externo, mas o equilíbrio interno e externo dos movimentos da alma” (COMENIUS, 2002, p. 55). 28 valor para o espírito, uma vez que deve tender “a estimular e a reforçar com constância e prática, em todos e tudo, o respeito a Deus, a dedicação ao próximo e o entusiasmo pelos trabalhos e os deveres da vida” (COMENIUS, 2002, p. 314). Para isso, é importante que ela seja realizada através do exemplo e não apenas de palavras, devendo-se ter a devida vigilância e a atenção contínua dos docentes e dos alunos. Comenius critica severamente toda forma de instrução e educação realizada de forma violenta à base da força. Para ele, somente é possível educar e educar-se através do entendimento das normas, internalizando-as com autonomia para sua efetivação plena. Assim, a educação é condução dos adultos sobre os jovens, de modo que estes possam aprender por si sós, a guiar-se para a manutenção de uma ordem maior para a vida em uma sociedade. Cabe, nessa concepção de educação, um papel importante ao professor que tem a “missão de formar os jovens tem o dever de conhecer o fim, a matéria e a forma da disciplina para não ignorar por que, quando e como convém deliberadamente ser severo” (COMENIUS, 2002, p. 311). Assim, o autor salienta a importância dos professores como formadores dos jovens, como responsáveis por estimular o desejo de aprender, e alerta para a necessidade de rigor e severidade nos casos de indivíduos que contrariam a moral, relacionando três tipos de pecados. O primeiro tipo refere-se aos “pecados de impiedade, como blasfêmias, obscenidades, atos de qualquer tipo contra a lei de Deus” (COMENIUS, 2002, p. 313). O segundo constitui-se nos pecados “para a arrogância ou a maldade premeditada, como quando se desprezam as ordens do preceptor ou de superior e não se faz deliberadamente o que se deveria fazer” (COMENIUS, 2002, p. 313-314). O terceiro diz respeito aos “pecados de soberba e de altivez, mesmo de inveja e de preguiça, como quando alguém se recusa ajudar o companheiro que lhe pede alguma explicação” (COMENIUS, 2002, p. 314). Todos esses pecados devem ser corrigidos com diferentes sanções para se evitar uma formação inadequada, ou seja, um indivíduo incapaz de conviver em sociedade. Outro aspecto importante para a educação refere-se à importância da escola como lugar de prazer. Os estudos devem ser organizados para que sejam, por si, prazerosos para as mentes. Desse modo, a escola deveria ser um [...] lugar tranqüilo, bonito, bem iluminado, limpo, ornado por pinturas retratos de homens ilustres, mapas, recordações históricas ou emblemas. Deve haver do lado de fora, nas imediações da escola, um espaço não só para brincar e andar, mas um jardim onde seja possível levar os alunos para que aprendam a admirar árvores, flores, relva (LOPES, 2003, p. 120). 29 O pedagogo preocupou-se com uma educação capaz de apreciar o belo, tornando o indivíduo um ser sensível consigo mesmo, com os outros e com Deus, uma vez que estes são importantes elementos na formação do homem. Para a verdadeira educação escolar, Comenius propõe três fundamentos essenciais e inseparáveis, considerados por ele como ornamentos da alma: a instrução, a moralidade e a piedade. Visto que a presença do homem no mundo é “para servir a Deus, às criaturas e a nós mesmos, e para usufruir o prazer que emana de Deus, das criaturas e de nós mesmos” (COMENIUS, 2002, p. 97). Para o autor, esse é o verdadeiro prazer, considerado grau supremo de felicidade [...] nesta vida, porque o homem, sentindo que Deus lhe é eternamente propício, exulta por seu paterno e imutável favorecimento de tal modo que o coração arde de amor por Deus, e não faz nem deseja outra coisa senão aquietar-se suavemente imerso na misericórdia de Deus e pregustar a alegria da vida eterna (COMENIUS, 2002, p. 99). O prazer sentido dentro de si é o dulcíssimo deleite de que goza o homem consagrado à virtude, graças à boa disposição interior, vendo-se pronto a tudo o que a ordem da justiça requer. Essa alegria é maior que a precedente, e, como diz a máxima, “A boa consciência é um perene festim” (COMENIUS, 2002, p. 99). Dessa forma, a formação humana somente se edifica com uma educação preocupada com o desenvolvimento da moral e da piedade (MONROE, 1979; COMENIUS, 2002; LOPES, 2003; NARODOWSKI, 2006). A moral, em Comenius, constitui-se na arte de formar costumes. É possível dizer que Comenius elabora um verdadeiro tratado para ensinar os adultos a educarem a juventude para uma vida na sociedade. Para ele, uma sociedade harmoniosa constitui-se de indivíduos capazes de controlar seus desejos e paixões, internalizando a disciplina como necessária, o que constitui um verdadeiro bem para todos. Afirma que o homem não nasceu para ser egoísta, uma vez que essa ação faz parte da natureza corrupta, a qual se preocupa apenas consigomesmo, independentemente do bem público. Por essa razão, na educação, procura-se inculcar nos jovens a finalidade da vida para servir ao próximo, a Deus, ou seja, uma vida adaptada para viver em sociedade (COMENIUS, 2002). Outro elemento importante na constituição da educação é o desenvolvimento, no indivíduo, da piedade. O conceito de piedade de Comenius constitui-se em [...] coração – impregnado pelo reto sentimento, no que se refere à fé e à religião – saber buscar a Deus em toda parte (o Deus que as Escrituras dizem estar oculto – Is XLV, 15 –, sendo chamado do rei invisível – Heb XI, 27 –, que se esconde sob o véu de suas obras e que presente invisivelmente em todas as coisas visíveis, governa-as de modo invisível), segui-lo por onde quer que tenha estado, fruí-lo onde quer que seja encontrado (COMENIUS, 2002, p. 271). 30 A definição de piedade mostra que todas as coisas devem convergir para Deus e para consegui-la é necessário considerar três fontes básicas, que são as Sagradas Escrituras, o mundo e nós mesmos. Das Escrituras Sagradas extrai-se a “consciência e o amor de Deus” (COMENIUS, 2002, p. 272). Do mundo, retira-se a admiração pela natureza, expressão sábia de Deus e de nós mesmos, a contemplação da maravilhosa obra divina que é o homem. Por sua vez, o modo de retirar a piedade dessas três fontes baseia-se na meditação 8 , prece 9 e tentação 10 . Da mesma maneira, a moral e a piedade devem ser incutidas no ser humano, desde pequeno, para ele aprender a andar com Deus 11 , buscando a bem aventurança da vida eterna. Todos esses princípios, segundo Comenius, contribuem para instituir uma educação que visa à formação correta do homem. É importante dizer que a concepção de vida correta, para Comenius, é sustentada pela concepção religiosa do mundo, da qual é possível deduzir uma concepção educativa – o homem formado, completo, instruído e correto. Entretanto, essa visão religiosa não tira o mérito da sua proposição pedagógica onde está explícita a defesa da educação, como socialização do homem para a vida apropriada ao seu tempo e lugar, como condição para a formação do homem. Portanto, registra-se em Comenius o reconhecimento, como função da escola a primeira dimensão da tríade do processo pedagógico. 2.2.2 O ensino na perspectiva de Comenius Para além da estreita relação da concepção de educação de Comenius, identificada em sua forte ligação com a fé religiosa protestante, é preciso examinar sua contribuição prática no campo do ensino. Sua postura e visão de mundo como educador protestante estão coerentes com sua história de vida, o que é compreensível para a época em que viveu e produziu sua obra. Entretanto, sua contribuição para a tarefa de ensinar e seu entendimento da função pública da educação extrapola questões religiosas. Nessa parte, destaca-se didaticamente 8 Meditação é a “reflexão contínua, acurada e devota sobre as obras, as palavras e os dons de Deus, ou seja, sobre como tudo ocorre por vontade de Deus (seja, porque Ele age, seja porque permite que os outros ajam) e sobre como todos os desígnios da vontade divina atingem seu fim por caminhos admiráveis” (COMENIUS, 2002, p. 273). 9 A Prece é a “tensão freqüente e contínua em direção a Deus e súplica por sua misericórdia, para que nos ampare e guie com seu Espírito” (COMENIUS, 2002, p. 273). 10 A Tentação consiste “no freqüente tentear, nosso e alheio, dos progressos que realizamos na piedade; aqui também cabem, a seu modo, as tentações humanas, diabólicas e divinas. O homem deve pôr-se à prova de sua fé (II Cor XIII, 5) e sua presteza em cumprir a vontade de Deus” (COMENIUS, 2002, p. 273). 11 Andar com Deus para Comenius (2002) é obedecer aos ensinamentos divinos, cumprindo-os em sua vida terrena. Significa colocar a fé em prática tanto interior quanto exterior. 31 características específicas do ensino, isto porque Comenius trabalha o ensino, a educação e a formação, dimensões inerentes ao processo pedagógico, de forma contextualizada. A escolha para esse formato foi no sentido de explicitar, de forma um pouco mais detalhada, cada uma dessas dimensões, para tornar possível a identificação e a compreensão do desenvolvimento dessa trilogia nas aulas analisadas. Como dito anteriormente, o ensino compreende o processo que possibilita a mediação do conhecimento. Nessa lógica, o professor tem papel importante na dinâmica da aula. Sua função de ensinar deve contribuir de forma significativa para um processo que instaura a vivência da reflexão e da autonomia. Para a leitura do que a sala de aula revela, é essencial compreender como a didática ou o ensino tem implicação no processo pedagógico e na distribuição do conhecimento. Preocupado com a forma de ensinar, Comenius sistematiza uma série de fundamentos em que mostra como deveria ser o ensino realizado nas escolas em sua obra Didática Magna. Nessa obra, Comenius evidencia que toda juventude, de ambos os sexos, deve ser enviada à escola. Faz-se necessária uma educação pública, obrigatória, universal, gratuita e de qualidade para todos os indivíduos. Salienta-se aqui que o estudioso defende a instrução para as mulheres que, segundo ele, nenhuma explicação justificaria a exclusão destas ao direito à instrução e a educação. Isso porque, em primeiro lugar, o dom do saber é inato em todo homem, independentemente do sexo, e, em segundo lugar, porque a instrução e a educação são condições essenciais para a formação do homem e para o atingimento pleno da vida eterna. Comenius explicita o que chama de educação universal, compreendendo que ensinar tudo a todos não significa ensinar o conhecimento de todas as ciências e artes, tendo em vista que a brevidade da vida impossibilitaria tal objetivo. Assim, ele afirma que Todos aqueles que estão no mundo não só como espectadores, mas como atores, devem aprender a conhecer os fundamentos, as razões, os fins de todas as coisas mais importantes, que existem ou existirão. E é preciso cuidar (aliás garantir) para que ninguém no mundo jamais depare com alguma coisa que lhe seja tão desconhecida que não consiga sobre ela emitir juízo moderado ou dela fazer um uso adequado, sem erros nocivos (COMENIUS, 2002, p. 95). Na visão comeniana, a instrução é um dos pilares que possibilita ao homem a orientação necessária em suas decisões para que possa encontrar o verdadeiro prazer não decorrente do corpo, mas da alma, originada nas coisas que o rodeia, em si mesmo ou em Deus (COMENIUS, 2002). Fica clara a posição de Comenius acerca da instrução como 32 aprimoramento, acima de tudo, do espírito. Assim, para ele, deve-se ensinar ao homem os conhecimentos necessários para que suas atitudes sejam dignas de Deus, ou seja, uma instrução capaz de contribuir para a formação de um homem sábio, honesto e piedoso. Para tal, é fundamental que as escolas sejam reformadas e melhoradas, uma vez que estas se apresentavam pedagogicamente e administrativamente caóticas sem uma organização em bases racionais. Comenius propõe para a reforma da escola uma ordem rígida no tocante a arte de ensinar, sobretudo, acerca do controle do tempo, dos trabalhos escolares e do método a ser utilizado pelos professores. Em relação ao tempo, este deve ser bem planejado, para que não o perca com ensinamentos inúteis e desnecessários aos objetivos propostos para o ensino e para que se possa desenvolver a arte de ensinar que [...] não exige mais que uma disposição tecnicamente bem feita do tempo, das coisas e do método. Se formos capazes de estabelecê-la com precisão, ensinar tudo a todos os jovens que vão à escola, sejam quantos forem, não será mais difícil que imprimir mil páginas por dia com bela escrita em caracteres tipográficos, transportar casas, torres e qualquer peso com a máquina de Arquimedes,
Compartilhar