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RODRIGO GURGEL
CRÍTICA, 
LITERATURA 
E NARRATOFOBIA
Prefácio de Flavio Morgenstern
SUMÁRIO
CAPA
FOLHA DE ROSTO
EPÍGRAFE
PREFÁCIO: “Um crítico que é um crítico” — Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
I — O Crítico à procura de si mesmo
Em busca do livro primordial
Reminiscências do mundo onírico
Dez livros que mudaram minha vida
Re�exões no Império dos Filisteus
Narratofobia — ou o pavor de narrar
II — A Tradição Universal
Narrador malicioso — Thomas Bernhard
Zen e melancolia — Yasunari Kawabata
Perfeição corrosiva — Saki
Amizade entre luz e trevas — Tahar Ben Jelloun
Perene inconstância — Hans Jacob Christoffel Von Grimmelshausen
Submetido ao desespero — James Joyce
Antes do silêncio — Carmen Laforet
Tímido acerto de contas — Jean-Marie Gustave Le Clézio
Onde está o bardo? — William Shakespeare
O silêncio impossível — Antonio di Benedetto
Heroísmo anônimo e perfeição — Arthur Miller
Literatura e populismo — Kiran Desai
A adúltera e a contradição — Gustave Flaubert
O preço de ser um herói — Santiago Roncagliolo
Muito além da morte — Claudio Magris
A navalha do narrador — William Somerset Maugham
Nossa herança comum — Liev Tolstói
Efêmera felicidade — Mario Benedetti
Sofrimento e dignidade — Joseph Roth
Tarde demais — Henry James
A vítima de pandora — Philip Roth
Pela fresta da porta — Isaac Bashevis Singer
À procura dos deuses — John Banville
III — Entreato Chesterton
O que falta ao nosso tempo
A missão dos náufragos
Redescobrir o romance
IV — O toque do Shofar
Pecados de Wilson Martins
Álvaro Lins: O crítico para os dias de hoje
Centelhas de verdade — Chamfort, Kraus, Lichtenberg, La Rochefoucauld
O jugo da utopia — Lauro Machado Coelho
Palavras inatingíveis — Stuart Kelly
Como defender a democracia? — Alexis de Tocqueville
Memória e Lágrimas — Daniel Mendelsohn
Diálogos com a civilização — Philip Roth
Grandiosa epopéia — Felipe Fernández-Armesto
Miragens de Kafka — Calasso, Lemaire, Crumb e Günther Anders
Trágica ingenuidade — Frederic Amory
Crimes incomensuráveis — Ivo Patarra
A Ética da liberdade contra o autoritarismo — Ralf Dahrendorf
Pessimismo, contradições e apatia — Emil Cioran
Ao encontro de Nelson Rodrigues
Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho
V — Pouca fortuna
Atalhos de sonho — Julián Fuks
Só para lacanianos — Wesley Peres
Incoerências e cacofonia — Livia Garcia-Roza
Boas e más escolhas — Roberto Drummond
Açucarados chavões — Ana Miranda
Narrativa feita de haicais — Adriana Lisboa
Liberdade para contar uma boa história — Igor Gielow
Um sabor a fel — Ivone C. Benedetti
A pequena alegria de Fabrício Corsaletti
Num pântano de escárnio — Eduardo Alves da Costa
Torturante labirinto — José Luiz Passos
Primos muito distantes
Bordados sem risco — Autran Dourado
Romance aliciador — Alberto Mussa
A cópia monótona da realidade — André Sant’anna
Seguro no ofício de narrar — Luis S. Krausz
Romance e pan�etarismo — Oscar Nakasato e Ana Maria Machado
O narrador doutrinário — Rodrigo Lacerda
Apuro estilístico e perversidade — Otto Lara Resende
No limiar da anti-�cção — Carola Saavedra
Desesperança e poesia — José Luís Peixoto
CRÉDITOS
SOBRE O AUTOR
Tenho lido ultimamente, em vários artigos de jornal, e até em livros,
em autores diversos — uns, por sinal, não tendo nada a ver com a
literatura —, a opinião de que a crítica não deve ser a�rmativa, mas
displicente, não deve ser julgadora, mas apenas comentarista. Pensam
assim, em geral, aqueles que não obtiveram da crítica mais do que
censura ou silêncio; também se inclinam para este ponto de vista os
que não puderam realizar a crítica integral. Opinião extravagante e
absurda, porque nenhum verdadeiro crítico aceitaria o desempenho de
um tão secundário papel como seja o de falar de livros e autores sem
os julgar, sem se de�nir diante de uns e outros. Seria fazer do crítico
um corneteiro da fama dos autores; um empregado para atirar �ores
sobre cabeças mais ou menos gloriosas; um fabricante de elogios e
adjetivos para engordar vaidades e orgulhos. Bem sei que se faz isso na
vida literária; que existem os pro�ssionais do elogio e da frase feita;
que há os que escrevem sobre livros somente com este �m sem
grandeza. Mas não será possível tolerar que se queira oferecer como
teoria da crítica, como destino da crítica, aquilo que é a sua
descaracterização, a sua caricatura.
Álvaro Lins, “O Ato de Julgar”, 13 de fevereiro de 1943
UM CRÍTICO QUE É UM CRÍTICO
DIZER QUE RODRIGO GURGEL é hoje o maior crítico literário do Brasil
carrega um deboche exagerado no dissabor: dos críticos literários
atuais, talvez Rodrigo Gurgel seja o único que é, de fato, um crítico.
No país do homem cordial, do relativismo e do coitadismo, alguém
ter uma opinião pouco airosa sobre algo soa, à nossa intelectualidade,
o equivalente a defender a Inquisição. Neste país, um caso, visto
apenas nas últimas páginas deste livro, tornou Gurgel célebre: até a
53ª edição do Prêmio Jabuti, as notas, como nas escolas de samba,
variavam só de 8 a 10, permitindo apenas encômios e adulação aos
escritores. Já na 54ª, a nota foi de 0 a 10. Ainda assim, os jurados
preferiram se manter na margem de elogios. Gurgel deu nota alta ao
romance Nihonjin , de Oscar Nakasato, e notas bem baixas aos
demais. Resultado: matematicamente, seu voto foi o único relevante,
já que os outros jurados, quando davam notas baixas, ainda �cavam
perto de 8. O romance logrou-se vencedor, Gurgel se tornou um
polemista conhecido do público leitor e o Jabuti, claro, voltou a
fechar-se na margem de erro elogiosa.
Foi um caso arquetípico para as letras nacionais. Sob auspícios de
um sentimentalismo infantil, toda crítica verdadeira é tratada como
intolerância, e o trabalho do crítico literário é reduzido a macaquear
bordões sobre os escritores que seus mestres consideravam dignos,
sem possibilidade de se fugir a um círculo de cães farejando as
próprias intimidades, cuidadosamente elaborado para sua auto-
manutenção por gerações – e sem outro propósito senão a troca de
glori�cações. Tal cenário torna-se ainda mais hórrido quando se
lembra que tais intelectuais arrogam-se os maiores “questionadores”
de tradições e tabus, nunca olhando para si próprios para perceber
que são os mais irritadiços mantenedores de uma formalidade oca e de
mera troca de afagos.
Criticar um livro, neste cenatório – sobretudo um livro ou autor
tido por inquestionável pelos vanguardistas empacados – exige
coragem, num mundo de subserviência em que só se pode desgostar de
um livro se for escrito por Paulo Coelho ou Adolf Hitler. Coragem
quase física: a força dos escritos de Rodrigo Gurgel é tonitruante,
demonstrando que a atividade intelectual exige um preparo da alma
que parece transparecer no mundo físico. Se soa hiperbólico,
experimente-se dizer em voz alta curtas frases deste livro a um
professor de literatura, como “A verdade jamais esteve no ambiente
repressivo da classe de aula”, comentar “os limites do autor” de O
Guarani , ou admitir o tédio da última quebra de paradigmas destes
escritores “presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a
cada amanhecer” – se exemplos faltarem, que tal o apotegma
“Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de
Alencar”? Valeria uma cena de um romance: e mostra como é precisar
tirar uma faixa preta e quebrar tijolos com as mãos antes de escrever
um artigo de jornal. A literatura (a brasileira em especial) está
querendo chocar e ser moderna com preceitos mais antigos do que
nossa bisavó. A resposta que não quer do crítico é a que dá Rodrigo
Gurgel: merecidos bocejos. Tido por exigente, é apenas o erudito que
qualquer adolescente adoraria ter conhecido na escola. Por que, a�nal,
a literatura precisaria ser tão chata, quando todos nós temos uma
necessidade vital de boas histórias?
Bem ao contrário do que sonha nossa vã Academia, na crítica que
aqui é lida não há geniosidade irascível nem intolerância. Trata-se
apenas de técnica. É a intelligentsia que possui uma técnica falha
(abusando-se da hipérbole), não nosso Rodrigo Gurgel. Este está
vacinadocontra a verborragia das torres de mar�m, formalmente
divorciadas da realidade da nossa vidinha rés-do-chão. E sua técnica,
embebida em Aristóteles ou Michitaro Tada, é a complexa e simples
arte de esperar da literatura algo sobre a vida. Não apenas
entretenimento, nem muito menos a estúrdia auto-referente do
pedantismo vanguardista, de escritores que espatifam a sintaxe apenas
para que seus cupinchas acadêmicos realoquem os caquinhos, com
esgares de sabedoria arcana.
O que se lê nas páginas que seguem são as re�exões de um leitor
especializado, mas não é a dinamitação niilista de quem acordou de
mau humor. É exatamente o elogio às grandes obras, através dos olhos
de um erudito, que extrai dos livros mais do que nós, pobres mortais,
podemos sonhar. E sua verve move-se contra o que chama de
“narratofobia”, o mal daqueles que “escrevem não para satisfazer
seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir
determinados preceitos”. Parece que ninguém mais tem uma história
interessante a narrar – civilizações foram criadas através de narrativas,
mas o estado das artes prefere o umbigocentrismo e falar de si
próprio. Gurgel esmiúça símbolos, temas e elementos literários como
os estudiosos de mitos, buscando no sonho e verdade não-racional,
que só cabe na poesia e na consciência elevada, seus paradigmas,
como os símbolos analisados nos primeiros ensaios deste livro. Uma
história, uma narrativa �ccional ou histórica, deve conter algo que
inquiete nossa alma, que nos tire de nosso conforto. A grande
literatura é o oposto da auto-ajuda e do vitimismo social, hoje a
grande régua a medir o mundo pela Academia. É incômoda, trágica,
satírica, muitas vezes melancólica. Não é para formar heroísmo de
bordões e agitadores pan�etários.
Este estado desolado, eliotiano, não se construiu por acaso. Os
intelectuais, na Academia, no jornalismo, na massa falante – o
palpitariado – se escoraram em teorias que pretendem espremer toda a
realidade numa ótica simplista, justamente quando crêem
fanaticamente que descobriram um novo método para atingir uma
verdade universal por debaixo do que nós, viventes, conhecemos. Diz
o nosso crítico: “Assim funciona parcela signi�cativa da academia:
estabelece-se um modelo – e a maioria só consegue papagueá-lo”. É
comum na análise literária no Brasil a busca da correlação entre
literatura e sociedade, tão dominante, por exemplo, na USP. Por mais
importante que tal relação seja, ela não é a única a explicar a
literatura: Gurgel mostra aqui a relação entre literatura e
individualidade , sem deixar de lado a história, o país, a cultura, os
acontecimentos sociais. Mas é no âmago da alma individual que a
literatura tem seu poder de nos tocar, mesmo em romances sociais.
Minguada à sociologia de botequim, a literatura, então mera
coadjuvante, só consegue papaguear modinhas políticas sem nada de
verdadeiro ou relevante, para se tornar mera ferramenta de agitação
partidária. Não é sem razão que a literatura brasileira esteja hoje
encolhida a falar sobre a ditadura militar, que terminou há mais
tempo do que durou, do que dizendo qualquer coisa sobre viver no
Brasil atual, com as oscilações que vemos na prática e nos jornais –
que Gurgel garante não ler há anos, “exatamente para me proteger da
idéia de que a realidade do país é irreversível”.
Outra modinha que Gurgel demole, à luz dos melhores romances e
críticos, é o estruturalismo, mais arraigado ao nosso fazer didático do
que o pessimismo a Thomas Bernhard. Crendo estar atingindo uma
estrutura de poder velada aos pobres mortais, maquiavelicamente
plantada por alguma mente obscurantista, foi o principal cabresto
mundial para que as letras apenas arranhassem a superfície e a forma
do fruto literário, sem nunca lhe transpassar a casca. Tal técnica foi
escorada ainda pela Escola de Frankfurt e a futura “teoria crítica”,
gênese do moderno politicamente correto que deu ares de ciência
arcana para o chilique e o coletivismo plani�cante, graças ao
pedantismo e ao estilo rebuscadíssimo de seus autores – confundido
com conhecimento rigoroso por alunos embasbacados, que nunca
percebem que apenas estão falando difícil a mesma análise super�cial
de quando eram adolescentes. Síndrome do “eterno vanguardismo”.
Para completar esse caldo de revitalizações do marxismo, já brega
até na União Soviética stalinista, que precisava ser disfarçado por uma
linguagem mais chiquetosa, junta-se a psicanálise, do freudismo à
lacanagem, com suas misti�cações de lingüística e semiótica, prontas a
“analisar” e dizer aos nossos olhos que o beijo de uma criança em sua
mãe não é inocência, mas – olhe bem para o que você não vê – o
desejo de assassinar o pai para fazer sexo com a progenitora. Se a
literatura hoje não tem mais verossimilhança, alguma verdade interna
que permanece inalterada tanto num conto em que se ensina um gato
a falar quanto no Henrique VIII de Shakespeare, tal se dá a tais
tapeações humanitárias. Sem apelo em consultórios, a psicanálise
migrou para o departamento de Letras, onde sua simpli�cação da
realidade serve de explicação do todo do real – vide o grande ensaio
deste livro sobre Le Clézio. Tempere essa análise “crítica” da realidade
com a “desconstrução” de Jacques Derrida e a “dissolução” de Michel
Foucault, e teremos a literatura e a crítica literária modernosas, tão
prontas a nos ofender e melindrar com sua quebra de paradigmas e
destruição de tabus, e tão e�cientes em nos curar a insônia, que
preferimos ter a alma assombrada pelos fantasmas de Henry James ou
da épica e das tragédias gregas. No Brasil, ainda temos também o
revanchismo histórico, a vitimização da nossa miséria por culpa
estranha a nós mesmos e a idealização da periferia. Diz Gurgel: “A
grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou
eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph
Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra-
se no centro do nosso coração”.
E o que resta dos temas universais e eternos do existir humano,
tranca�ados no porão literário nunca visitado pela crítica moderna? O
amor, tema tão próximo do ser que não consegue ser destruído nem
sob totalitarismos, é trans�gurado em mera frustração sexual, o
grande tema da literatura “anti-tabu” (com sua antítese no sexo
mecânico e promíscuo). A amizade, suas dúvidas e suas crises, é mera
maquinação ou concordância temporária para �ns de poder. Como se
“desconstrói” o amor, que fez até Derrida intuir os limites de sua
brincadeira, ou como compreender os valores da cultura, do sentido
da vida (aquele que Viktor Frankl resgatou até num campo de
concentração), da família e do eterno sob a análise psicanalítica?
Se esta literatura não consegue mais espelhar a realidade ou a
verossimilhança do nosso existir, o que obras mitológicas com deuses
e dragões conseguem à perfeição, ao menos conseguem tornar
algumas pessoas (e, mais infelizmente ainda, alguns escritores) em um
bando de histéricos estampando suas frustrações e falta de amores
publicamente, como concretização non plus ultra de sua suposta
libertação, inconscientes de sua miséria. Reduzidos os homens às suas
funções primárias, com a alimentação tratada como propaganda para
políticas distributivistas e a reprodução como insatisfação sexual que
logo eclode na luta histérica revolucionária, não coube a tais literatos
muito além de criar livros que recebam a última função primária. São
os “universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à
libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências
rasteiras”.
A alma dividida, tema romântico por excelência, é vista por Gurgel
no Marrocos ou no sopé do Himalaia. O homem morti�cado entre o
dever e o prazer, tema de Homero a Ortega y Gasset, entre a
eternidade e as contingências do presente, é-nos mostrado tanto sob as
luzes barrocas, eivadas de contradições, de Hans Jacob Christoffel von
Grimmelshausen e seu personagem desnudando-se da inocência e
tomando parte em uma vida cheia de obrigações e vocações, quanto
nos tortuosos sentimentosde Gustave Flaubert ao escrever sua icônica
Madame Bovary . Escreve nosso crítico: “Sem o duelo permanente que
ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é
vendida aos incautos como o melhor realismo”. É esta dúvida interior,
este dilacerante processo de mentir para si próprio, este presente
atormentado por terrorismo, insurreições políticas, dramas familiares
e paixões fulminantes na paz, tão contrastantes com o amor quando
visto no caos, que tanto interessa a Gurgel, e que tão pouco é visto
numa literatura que se pretende marcante e séria. Ainda menos nos
“temas comezinhos da literatura brasileira”.
E tal combate interno é comum tanto aos clássicos os mais antigos,
dos primórdios de nossa e de outras civilizações, quanto aos
românticos, aos renascentistas, aos modernos. Nas duas obras que
inauguram a civilização ocidental, a Bíblia pelo lado judaico, o
conjunto da Ilíada e da Odisséia pelo outro, já �sgamos personagens
atormentados pela incumbência de feitos aparentemente muito
maiores do que suas capacidades, caminhos tortuosos e torturantes,
cheios de armadilhas e cobrando-lhes o risco vital de se apartarem da
existência. É o que Lionel Trilling chama de “imaginação moral”,
duas palavras que, juntas, explicam como termos superavit literário.
Aprendemos com Erich Auerbach que no relato do Antigo
Testamento, por exemplo, tudo é feito em poucas palavras (até os
nomes são simples), nada é narrado, apenas sabemos que Deus pede
um sacrifício e, dali a dias, Abraão sobe a montanha com seu �lho,
mantendo-nos em silêncio tão brumoso e tenebroso, análogo àquele
experimentado por Abraão, sabendo que tem uma escolha entre
sacri�car seu �lho querido ou desagradar ao Deus Todo-Poderoso, no
último resquício de uma sociedade que imita o ritmo cíclico da vida
através de sua visão cósmica de sacrifício. É enfrentando tal provação
em silêncio – silêncio “narrado” pela própria violência cortante da
frieza da ausência narrativa – que Abraão sela a aliança de Israel com
Deus, inaugurando o “salto no ser”, no dizer de Eric Voegelin, que
cria a primeira sociedade que vai buscar a verdade justamente no
silêncio da alma individual, na verdade transcendente, e não no ciclo
de repetições do mundo circundante, na primazia da transcendência
sobre o presente de mortes e vida – presente este que é sintoma e causa
de uma literatura tão doente e fraca para tanto aquietar quanto
provocar nossa alma. A tortura de Abraão até o monte, depois de
amarrar Isaac e estar prestes a cometer o sacrifício, é revivida pelo
leitor, que se apieda e se integra no todo daquela sociedade e de todo o
drama interno humano – não penas um caso arquetípico de literatura
de identi�cação e participação, mas também anagógico, nos termos de
Northrop Frye, quando todo o cosmo é reaprendido e vislumbrado
por uma literatura profética e participativa.
Já na Ilíada de Homero, a dúvida de Aquiles é entre ele próprio
morrer jovem, mas com glória (numa sociedade em que isto representa
muito mais do que aplausos acadêmicos) ou velho, mas apartado de
seu povo por não tomar parte na Guerra de Tróia. Aqui, tudo é
narrado, tudo é detalhado, tudo é esmiuçado – o que reduz a
participação da alma do leitor na perturbação do personagem, mas
não sem que entendamos como a literatura é crise, em sentido grego:
cisão, divisão, a dura conquista �nal que exige antes tantas escolhas,
cada uma vindicando uma perda. Já na literatura moderna, a boa
literatura, se começa a trabalhar temas cada vez mais perturbadores e
sutis, como �uxos de consciência (leia-se Gurgel ao analisar Joyce), a
de�nição da individualidade, a participação no passado coletivo, a
insatisfação globalizada com o sentimento de pertencimento a uma
cultura opressora e que nada nos diz, mas sem que consigamos
pertencer a outra – todos temas analisados de forma emocionante por
nosso crítico nestas páginas. Quantos personagens emocionantes
realmente conhecemos?
Tomando mais um pouco tal lição, podemos acompanhar o
trabalho genial de Rodrigo Gurgel, apresentando-nos as grandes
questões que passam despercebidas por uma leitura pouco
diligenciada, tanto nos processos rituais da vida, aqueles cíclicos e que
se repetem em cada história individual ou comunitária, imitando os
ritmos da natureza (seja no Peru sob a ditadura de Fujimori ou
naquele Israel sempre profético da humanidade), e também os
dialéticos, palavra tão escangalhada pela Academia, quando vemos
homens cujos sonhos estão em con�ito com a realidade, o que
aproxima tantos personagens da poesia – e do diálogo interior que
quase nunca podemos expressar. É essa tomada de posição, de
responsabilidade e de saber seu lugar no mundo, e o que se pode
comunicar pela �cção ao outro, que Gurgel nos apresenta, deixando-
nos com água na boca para desfrutar tantas grandes obras, e
preparados para entender o que está em jogo quando se terça armas
sobre cartas de escritores, traduções e visões críticas – não sobrando
mera bajulação, é claro, nem mesmo para os maiores nomes de seus
ramos.
Tal falta de tomada de responsabilidade é comum tanto à literatura
ruim quanto à crítica ruim, ambas com síndrome de puer aeternus e
deixando seu simbolismo, seu sentimentalismo e seus valores na
cultura, na mentalidade geral, no imaginário coletivo e nos
acontecimentos históricos recentes. No entanto, acompanhados de
nosso crítico, sentimo-nos mais familiarizados com os livros realmente
apaixonantes, mesmo em suas minudências mais sutis ou nas
complexidades mais cabeludas. Em poucas páginas, sabemos que os
únicos a temer um crítico que é crítico são os maus escritores, maus
professores ou os maus críticos. Todos mendigando aplausos,
cobrando tanto de nosso precioso tempo, e oferecendo apenas as
platitudes das explicações fáceis.
É
É responsabilidade a mais exigente e grati�cante cuidar de
apresentar este grande intelectual a um público tão importante quanto
os leitores de �cção – e também tarefa pavimentada de hesitações,
medos e aventuras perigosas, por não se querer tomar as rédeas do
leitor e conduzi-lo por impressões outras, desejando por �m ser
esquecido para que o leitor saboreie as palavras do verdadeiro autor. É
buscando uma integração no todo – zen , como nos ensina Rodrigo
Gurgel a ler Yasunari Kawabata –, longe de estruturalismos e outras
frescuras acadêmicas, que deixo a faina de reintegrar tais impressões
no objeto e no sujeito ao poder poético e de difícil assimilação por
esquematismos racionais à própria leitura literária – pois alguém da
grandeza de Rodrigo Gurgel, ao fazer crítica literária, também faz
literatura a mais brilhante.
Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
Reúno neste volume textos publicados na última década. A maior
parte, no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo . Outros, nas revistas
Sibila e Dicta & Contradicta , em meu próprio site ou como
entrevistas e prefácios. Ao preparar este livro, tentei criar um conjunto
homogêneo, que expressasse minha visão da literatura e do papel da
crítica literária. Só não foi possível ampliar, como gostaria, os textos
escritos para a Folha — mas a essência dos julgamentos respira neles
com igual força, com igual sinceridade.
Agosto de 2015
I — O crítico à procura de si mesmo
EM BUSCA DO LIVRO PRIMORDIAL
RECORDAR NOSSO PASSADO não pode ser um exercício de idealização. O
diálogo com o “eu” que nos observa e, ao mesmo tempo, envolto pela
neblina do tempo, nos dá as costas e caminha de volta à infância,
precisa estar impregnado daquela tensão que ressurge sempre que nos
debruçamos sobre o poço da verdade.
É o homem de carne e osso que busco quando olho sobre meus
ombros na direção da juventude, da infância. Mas não se trata de
revisitar um horizonte ensolarado. Trata-se, ao contrário, de repetir as
caminhadas de Miguel de Unamuno pelo claustro do Monastério de
Santo Estevão, em Salamanca, debruçar-se sobre o poço, no Pátio das
Cisternas, e gritar “Eu… eu… eu!”, para que o eco do passado, ao
repetir o pronome, rea�rme minha existência.
Um de meus sonhos recorrentes está impregnadodesse “eu” sempre
à minha espera, em algum ponto do emaranhado de reminiscências.
No sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó
paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei
de fazer durante a infância: retiro a chave pendurada no batente, num
prego, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre.
Sinto, imediatamente, o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e
o ar pegajoso que vem do ambiente escuro.
O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a
estante e o batente, o interruptor. A seguir, entrar. A lâmpada, fraca,
mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos
caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro
não está ali, mas no cômodo ao lado, que permanece escuro.
Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois
estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão.
Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o
interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada,
no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um
segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o
receio de que minha busca — e o encontro certo — não se
concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz.
Mas encontro a correntinha e puxo-a — e imediatamente vejo os
caixotes de livros no chão.
Sei o que venho buscar: o livro superior a todos os livros, um
manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, o guia para a
difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali,
aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas o conjunto de
páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a
síntese da experiência humana.
Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não
sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de
que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há
pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que �z
centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa,
principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a
morte prematura de seu �lho, meu tio-avô, mas sem nunca se
abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os
cabelos, os olhinhos atentos — e a língua ferina quando fala dos
políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-
chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual
experimento, antecipadamente, o prazer de achar o que procuro,
tamanha é minha certeza.
E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros
inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado
nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em
um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da
capa é repleto de pequenos e irregulares círculos cor de vinho,
dispostos aleatoriamente sobre o fundo amarronzado. O cheiro de
BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos
olhos. Estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e
começo o gesto de erguê-la — mas acordo.
Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho,
sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Nesse
primeiro momento da vigília — ainda atônito por ter percorrido
novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado
antes de abrir o volume —, tenho certeza de que outra oportunidade
surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à
sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra
vez o livro.
O sonho é impressionante por vários motivos, mas deixo aos
psicanalistas a tarefa de compor, mais que a análise, suas �cções.
O que me interessa é reencontrar esse objeto que se tornou uma das
poucas constâncias em minha vida. Há, claro, um conjunto de fatos,
de circunstâncias que formam uma personalidade, mas, no meu caso,
os livros têm papel primordial.
Às camadas do meu ser correspondem livros. Nasci e fui educado
entre três bibliotecas: a de meu pai, composta, basicamente, de obras
de �loso�a e da área jurídica, mas onde descobri as sisudas capas
negras do Tesouro da Juventude — com a velha ortogra�a, em que eu
podia saborear a beleza excêntrica de palavras como ophthalmologia ,
columna e aucthor — e o Lello Universal ; a de minha avó,
pequeníssima, mas com livros indispensáveis, como As mil e uma
noites e Madame Bovary ; e a do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa.
Cada uma me ofereceu o que tinha de melhor, mas a do Gabinete
fez o principal, pois a bibliotecária da noite, Dona Odete, deixava que
eu transpusesse o balcão de madeira escura e, penetrando no acervo,
percorresse as estantes livremente. Ali, então, descobri o mundo.
Mas o que forma um leitor é, antes de tudo, o exemplo de outros
leitores. E não se trata apenas da imagem de meu pai sentado à velha
escrivaninha, que antes pertencera a meu avô, compulsando suas
coleções de jurisprudência. Antes, vejo-o de pijama, aos domingos,
lendo religiosamente os jornais e obrigando-me a ler editoriais e
artigos que considerava interessantes ou bem escritos, cuja
argumentação o impressionava.
O tempo que passei na universidade também não foi de todo
perdido, principalmente porque, na PUC de São Paulo, tive duas
professoras brilhantes: Samira Chalhub, de Teoria Literária, e Anna
Maria Marques Cintra, de Língua Portuguesa. Mas foram Ivanira
Dadalt e Paulo Vieira, no colégio, que me mostraram a literatura e a
língua sob perspectivas que, comparadas à dos livros didáticos atuais,
fazem-me pensar que cumpri, antes de tudo, o mestrado.
Ivanira, delicada como uma gueixa, apresentava cada movimento
literário inserido num contexto cultural e político maior. Músicas,
pinturas, revoluções: tudo interpenetrava a literatura. E quando, certa
manhã, no corredor repleto de algazarra, com O Guarani nas mãos,
des�ei um rosário de reclamações sobre o livro, ela, com sua eterna
paciência, con�rmou-me os limites do autor, sem deixar de insistir
para que eu chegasse ao �m do volume. “É preciso conhecer tudo”,
disse-me.
Com Paulo Vieira não foi diferente. Que professor atual
recomendaria a seus alunos que lessem Thomas Merton? Paulo o fez
— e, passados quarenta anos, minha gratidão só cresce. Ao corrigir
uma de minhas redações, deu-me um 9. Não havia nenhum erro, mas
uma frase estava marcada em vermelho e, ao lado, a observação:
“Fale comigo depois da aula”. Procurei-o e ele me explicou que eu
usara um espanholismo, que aquela construção não pertencia à língua
portuguesa, deu-me exemplos, mostrou-me como seria o correto em
português. Um purista, dirão os modernosos. Um sábio, a�rmo.
Mais tarde, pude conviver com Nelson Foot, professor autodidata,
respeitável lingüista que, aposentado, passava as tardes brincando
com poesias em sua biblioteca: escolhia um poema de Cecília Meireles
e traduzia-o para o romeno, depois para o latim, a seguir o francês,
�nalmente o inglês. Gosto de imaginá-lo brincando com os textos
como se fossem animais de estimação.
Havia um rasgo de orgulho e independência no adolescente de
quinze anos que pegava o Cometa e, semanalmente, vinha de Jundiaí
para percorrer sebos e livrarias do Centro de São Paulo, tornava-se
amigo dos livreiros e voltava, muitas vezes, carregado de antigos
volumes, díspares como uma biogra�a de Savonarola, um dicionário
de locais históricos da Grécia e uma primeira edição de Murilo
Mendes ou Guilherme de Almeida.
Mas há outro sonho envolvendo o porão da casa de minha bisavó.
Desta vez, os livros não estão presentes. E não há recorrência. Sonhei
esta pequena história uma só vez, em setembro de 2007.
O céu da manhã está encoberto. A primeira percepção é de que não
há sol. Vejo-me, ainda criança, no quintal da casa de minha bisavó, à
procura de algo. Ela, no seu imutável vestido negro, altiva, pronta a
educar-me nas mínimas oportunidades, me observa, de pé no alto da
escada que leva à cozinha. A cena tem tantos detalhes — o tanque em
desuso à direita;o canteiro circular no centro, com as roseiras; o
corredor lateral que leva à entrada —, tantas recordações miúdas,
observadas enquanto vejo a criança brincar, que imediatamente penso
se não seria esse o melhor início para um livro de memórias. Há um
único gesto surpreendente, no �nal: arranco, de sob a soleira da porta
do porão, um ramo seco, semelhante a uma forquilha. Experimento
júbilo incontrolável, pois se trata de um tesouro, sem dúvida, cujos
poderes não posso conceber. Ergo o galho de pontas retas, compridas
e pálidas, balanço a descoberta no ar, pleno de satisfação — e minha
bisavó sorri, não de qualquer jeito, mas tenho certeza que pensa: “Ele
encontrou, �nalmente. Agora tudo está bem”.
O galho bifurcado é apenas o substituto do livro. Formas diversas
para a mesma fascinação.
Se o tempo me fez mais seletivo, se a ânsia adolescente de ter todos
os livros foi substituída por uma serenidade que diminuiu o número
de compras mas não tornou possível ler tudo o que desejo, isso não
muda o anseio das visões oníricas, de que, algum dia, aquele menino
que penetra no porão me permita ler ao menos o título, talvez a
primeira linha do livro que sintetiza a vida.
REMINISCÊNCIAS DO MUNDO ONÍRICO
Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas
trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país?
O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos
que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao
autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da
mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de
desvendarmos nosso eu.
Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o
itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças — às vezes
fragmentadas — como se formassem o mapa de uma aventura que
clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em
vigília, pode oferecer o tesouro — quem sabe inominável segredo —
escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar
durante o dia — e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê-
lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já
se esvai — as mesmas etapas noturnas, como o menino que,
encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto,
tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra,
que ele só consegue alcançar com grande esforço.
Noites atrás, depois de longa conversa com minha mulher sobre o
processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante
o sono, para meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança:
um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por
religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a
aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos
para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado
degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da
escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a
buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse
momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer
minha di�culdade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais
trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de
uma opção prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã,
circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno,
mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona
mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as
orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta
semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir
em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me
diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob
a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente
amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma
coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente
e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna
subiam, rumo à superfície, exemplares — animados e inanimados —
de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de
uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns
segundos à minha frente, para depois continuar sua rota ascendente.
Alegremente atônito, deixei-me �car ali, esquecido das aulas,
maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de
completude que acordei.
Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre
buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-
lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes
de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas
idéias, não sei quais associações �zeram-me lembrar do poema de
Eugenio Montale:
Talvez uma manhã andando num ar de vidro, 
voltando-me, verei cumprir-se o milagre: 
o nada às minhas costas, detrás de mim 
o vazio, como um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato 
árvores casas colinas para a ilusão costumeira. 
Mas será tarde já; e eu partirei calado 
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me
a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se
tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade
jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas �las
de carteiras paralelas e professores, a maioria deles incapaz de me
mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com
que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável
necessidade de buscar outro caminho de�agraram a certeza de que eu
não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É
certo: a verdade, sempre a encontrei em outro lugar, oposto àquele
apontado pela escola.
Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua
semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância
deixou-me descon�ado. E a repentina solução para um problema que,
há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que
me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de
conhecer o ignorado.
Certamente não era à toa que as vestes da religiosa — notei bem
enquanto ela me falava — refulgiam num branco tão ofuscante
quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado, e que
depois se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no
“ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz
insólita e, em breve, com um novo olhar.
A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito
de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos
rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a
tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres,
a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta-
nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência.
O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento
que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do
prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma
claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte,
onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração.
E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num
mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular;
ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma
inesgotável.
Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve
origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas
convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os
elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda
não estão nomeados, quando ainda não foram classi�cados e
diminuídos pelo homem.
Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da
água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu
também havia retornado à infância, quando tudo está por ser
descoberto.E sentia-me — espectador e personagem do meu sonho —
como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória
e buscar o que, por acaso, houvesse perdido.
Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o
poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o
real — para ele, o vazio, o nada —, eu me aproximei do reinício de
tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da
realidade.
Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à
mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que
jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha
relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele,
a partir daquele sonho — e em todas as manhãs, esforçando-me para
repetir o ritual onírico de maneira consciente — eu devesse calar-me
“entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem
olhar, e carregar comigo “o meu segredo”.
A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada
pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado,
esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz
que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe
pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de
observação a cada momento, a �m de reencontrar, sob a mesmice do
cotidiano, o caráter inusitado do real.
Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a
realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é
habitual — resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela
trágica ou pueril, inocente ou terrível.
De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os
sonhos que carrego comigo — um patrimônio que cabe à lucidez
decifrar —, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília,
esta que acabo de descrever insu�a em minha consciência também
uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna
de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao
pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova
forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os
frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver
solitária entre os homens, carregando seu segredo?
Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que
surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a
conclusão de Montale à sua angústia é o poema — e não o silêncio —,
então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o
desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda.
Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua
própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco
meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a
“ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E,
principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela
maioria.
DEZ LIVROS QUE MUDARAM MINHA VIDA
1.
De Euclides da Cunha, Os Sertões foi o primeiro livro que estudei
com olhar de leitor malicioso — não no sentido de “má índole”, o
mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”,
“sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de
português no velho Instituto de Educação, em Jundiaí. Quando
comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível —
o livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao
meu lado.
Foi, aos dezessete anos, o primeiro lampejo de que as melhores
obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê no
seu contato super�cial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir
a musicalidade que a linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro
estava além dos meus conhecimentos — tudo me impulsionava a ir
adiante, a perseverar.
2.
Descobri John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de
aula na universidade. E a primeira aula do primeiro dia. Meu
professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio,
tirou o maço de Continental sem �ltro do bolso rasgado da camisa,
acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e, olhando para o vazio,
agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina,
começou: A thing of beauty is a joy for ever… Quando terminou, o
feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me vincular à
terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que
pudessem existir no meu espírito. Desde aquele dia, não passa um
semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro poema de
Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por
Homero: era como se eu tivesse descoberto um novo planeta.
3.
Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para
Drummond. Em algum momento daquele primeiro semestre,
interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio, e começou a
declamar “Campo de �ores”. Comprei Claro enigma depois da aula. E
descobri “Tarde de maio”, “Remissão” — nada resta do que
escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o �m
sem a injustiça dos prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que
pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”.
4.
O início de A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar,
ensolarada e todavia prenunciadora de morte”. Eu não sabia que a
visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe
do que qualquer outro romance. Com Hermann Broch descobri que a
�cção não precisava estar presa aos temas comezinhos da literatura
brasileira, às historinhas pér�das, a permanentes universos
mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita,
aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras.
5 e 6.
Lorde Jim e A fera na selva con�rmaram Broch. A grande literatura
está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes
esfaimados sem nenhuma dúvida interior.
Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha
encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história
sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa
consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos
incautos como o melhor realismo.
7.
Em algum momento da década de 1970 comprei Raízes da Criação
Literária , de Edmund Wilson. Foi meu primeiro contato com uma
crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao
contrário, a erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram
colocadas de forma clara — e o autor realmente dialogava com os
livros.
Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me,
percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo e a semiótica. Wilson
foi o �ltro que impediu minha contaminação completa. Na faculdade,
forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland Barthes,
eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada.
8.
A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em A
orgia perpétua , con�rmou o que eu intuíra ao ler Edmund Wilson: na
análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase
cientí�co, mas sem matar a obra, sem transformá-la num esquema,
numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a linguagem, sem
desvincular a obra da realidade.
Vargas Llosa ensinou-me ainda mais: mostrou-me que o
hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era
um engodo. E por um simples motivo: o bom escritor carrega a ira de
Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira,
muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o
vírus negativo que é o segredo da sua acessibilidade: para que um
romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”.
9 e 10.
Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de
Carvalho me vacinou contra o marxismo e a intelectualidade
materialista, hedonista e cética que ponti�ca na mídia e na
universidade brasileiras. Depois de ler O imbecil coletivo ainda militei
anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo permanecia —
desculpem-me o chavão — uma ilha de lucidez.
Fazia com Olavo deCarvalho o que o diretor do Gabinete de
Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da
ditadura militar: guardava-o num armário bem fechado, em algum
ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus próprios
pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho
seguirem destituídos de sentido. Ao mesmo tempo, percebia a
tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos
“companheiros” e sua prática cínica, aética.
O imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a
Isaiah Berlin — e então livrei-me do coscorão esquerdista. Olavo e
Berlin foram meus guias no processo de rompimento de�nitivo não
apenas com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver.
Ambos são intelectuais completos. Minha leitura de Berlin começou
por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em Pensadores russos , aula de
crítica literária e cultural.
Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin
ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que sempre estiveram à mão,
obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é
que justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda.
Aliás, a esquerda tem se notabilizado na história exatamente por,
chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais.
Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se
resume a desacreditar do marxismo. Seria muito pouco para dois
pensadores excepcionais. Eles me fazem re�etir, como os outros livros
que mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição
humana — e cada página deles acrescenta algo à minha
Weltanschauung .
REFLEXÕES NO IMPÉRIO DOS FILISTEUS
Respeito ao leitor
Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez
menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o
senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece.
Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações
dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certas
políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também
aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a
linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros.
Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada
semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer
chegar ao ponto �nal do texto sem saber o que, exatamente, o
articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à
tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se
a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a
respeitar o leitor.
Forma de hipocrisia
Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo , Karl Erik
Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo
jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer
julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm
coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade
exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida
assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça
e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa a�nidade e essa
conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas
exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”.
Quando li essas palavras, �quei em estado de júbilo: alguém
pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte
dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos
exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso
hermético, �cam naquilo que minha avó chamava de “conversa para
boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome
do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Papel da crítica
Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e
narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica
literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás,
extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a
obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa
ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o
depauperamento da cultura, da própria civilização.
Um subterfúgio verbal
Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela
trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra
“dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os
críticos di�cultariam a renovação e a inovação na literatura.
Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal,
pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as
estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo
“critérios estabelecidos”.
A questão, na verdade, é outra.
Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham
no sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve
para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária,
seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve
mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve
ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças,
para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade,
evitando adulações e idéias preconcebidas. E ambos devem agir,
principalmente, com independência.
Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o
quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos
agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica,
certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado
parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla
obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a
avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A
verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e
escritores cumprirem suas funções.
“Verniz onírico”
A crítica precisa reencontrar o caminho que possa salvá-la do
discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela
precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão
monista da obra literária e da própria realidade.
É inacreditável que grande parte da crítica e da produção
acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo
estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando
publica Critique de la critique .
Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o
Todorov de Poétique de la prose , que foi publicado em 1971… Assim
funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo
— e a maioria só consegue papagueá-lo.
À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como
bem de�niu Thomas Pavel em A miragem lingüística , infelizmente
pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular
a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de
geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas
sua lição, no delicioso A literatura em perigo , é atualíssima:
“Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples
ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”.
Dupla desorientação
O problema, entretanto, começa muito antes da universidade.
Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as
mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam
ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã , de Graça Aranha, ou
Bom Crioulo , de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um
disparate.
Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem
entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos
feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo
problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três
décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do
sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se
fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura.
Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens lêem péssimos
autores antigos como se fossem gênios —e péssimos autores
contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura.
Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que
um jovem de quinze ou dezesseis anos não lê, por exemplo, Homero
na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem
realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro;
além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como
José de Alencar... Mas é a escola que temos: claudicante como todas as
instituições do país.
Império de filisteus
No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de
pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da
idéia de que a realidade do país é irreversível.
Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset
completou seu trabalho de contaminação nas últimas décadas. A
pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais
ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas
clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova
superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para �car.
O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império
dos �listeus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia
o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio �listeísmo”.
Por isso mesmo não podemos �car em silêncio ou agir como
vaquinhas de presépio.
Uma só resposta
Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio
esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que,
demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e,
prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu
próprio eu — e só então expressa suas idéias, seus sentimentos.
É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada
textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser
não só uma re�exão, mas de apontar caminhos, soluções, regras,
quando não verdades.
Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina
faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para
as �ores das margens, numera as linhas — e fecha a página do
caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O
esquematismo refulge a cada linha.
Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto
estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica
literária.
Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas
apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império
dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem
branca, apressados e super�ciais.
Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os
homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma
única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”.
De quem o medíocre gosta?
O relativismo, que hoje impera em todos nichos da cultura, chama
de intolerante a quem possui certezas. Os fracos, temendo serem
julgados, agem como preconizou Ernest Hello: acrescentam a cada
frase uma perífrase açucarada: ‘parece que’, ‘ousaria dizer que’, ‘se é
permitido expressar-se assim’.
Hello, hoje desgraçadamente esquecido, está certo: “Ao medíocre
agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre
nenhum tema, que nada a�rmam e que tratam com respeito todas as
opiniões contraditórias. Toda a�rmação lhe parece insolente, pois
exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um
pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e
reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento
das transições e dos matizes”.
Competição de coxos
Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia
comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho
nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a
honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis.
À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos — o que
apenas o tempo poderá dizer —, quando, depois de ler certa obra,
vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem
nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se
há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao
contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja
movido por uma pulsão sádica.
E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele
não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo
que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada,
protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao
dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer
ou não fazer inimigos.
Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é
apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, �cam
satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de
celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a
literatura, a vida intelectual.
De minha parte, se considero um livro ruim, a�rmo claramente o
que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de
tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha
um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de
coxos, o primeiro que chega ao �nal continua sendo coxo, apesar de
tudo”.
Os dançarinos
Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam
como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem
na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os
incapazes, a �m de deixar mais espaço no salão para os bons
dançarinos.
Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país
subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as
edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da
população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel
do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste
país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para
poucos dançarinos.
Quem faz crítica literária aqui deveria trocar idéias, de maneira
didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo
assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em
literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há
o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim.
O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado
em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa
treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”.
Polidez
O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria
obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale.
É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer.
Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis
limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra
representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa
representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser
uma estrutura coerente?
Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o
interlocutor, deixar a conversa �uir sem a prévia preocupação de
provar este ou aquele ponto de vista.
Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de
forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita
estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos
já falaram.
Então, por polidez, escuto até o �m seus argumentos. Mas o autor,
ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas idéias e da
forma como as expôs, já julgou a si próprio.
O chavão da vanguarda
O �ccionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de
narratofobia . Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve
abandonar o clichê, o lugar-comum. Quando digo clichê, não me
re�ro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os
namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês
vanguardistas. Um jovem de vinte anos que escreve algo parecido com
“beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições
de igualdadecom a melhor vanguarda. E há críticos e professores que
dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar-
comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na
forma e no conteúdo, tremendo chavão.
Patologias
Mas há outros problemas na nossa �cção.
Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na
linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática
(muitos escritores, inclusive, justi�cam seu desconhecimento e sua
negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o
narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o
niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as
patologias atuais.
Crítica e patrulhamento
Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao
a�rmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘— O
racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de
jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis �lhos que escutam
reggae e rock and roll o dia inteiro [...]”.
O ensaísta terminava a a�rmação salientando o fato de que, caso
tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com
certeza, grande parte do valor.
Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi
acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda �cariam
felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo,
se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de
desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência
multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do
valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para
imigrantes desempregados.
A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os
ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar
que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio
violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos
sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia.
David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio
“Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, a�rmou, sem
receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um
camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro
de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”.
O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese
simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia
�el do real, é, no mínimo, insípida.
Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a
ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta
tais maneirismos.
Buscando um “meio-termo justo entre os excessos de requinte e de
simplicidade”, ele a�rma, no entanto, “ser difícil, senão impossível,
explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que
o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais
‘perigoso’”.
Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual.
Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parem de
escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou
talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam
com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”.
No atoleiro moral
Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no
Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste
que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a
maldade”.
A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se
melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir
tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal.
Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente
impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar
interesse?
O problema da re�exão de Anne Rice é que ela só exprime o senso
comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais
interessante que a maldade.
A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados
— do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após
dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos
apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por
esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do
que a maldade.
Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a �gura do
egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na
�cção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia,
também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do
século XX elevou à categoria de deus.
Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma
só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não
desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente
cultua o mal — inquieta, perturba, estimula.
Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos
intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a
frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a
bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido,
propagandeado.
A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no
atoleiro moral — e não querem que ele saia daí.
Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham
coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente
interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência
são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que
pretendem aprisioná-lo.
Fracasso, vileza e perversidade
Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do
mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos
contemporâneos usando uma pinça.
Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a
impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo
eterno vanguardismo.
Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea
— relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas
nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer
aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só
valorizam acrobacias lingüísticas.
Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo,
que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é
apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados
da doença à qual dei o nome de narratofobia .
Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias,
corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com
discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa
literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro
não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.
NARRATOFOBIA — OU O PAVOR DE NARRAR
Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma
estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos
criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos.
Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às
regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das
panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o
de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche.
A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista,
mas pedante e arti�cial, além de subserviente: nasce para agradar a
uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos
diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis.
Mas serei didático. Vamos a um exemplo que tornará mais
compreensíveis os parágrafos acima.
A vida, muitas vezes, parece um indistinguível conjunto de
ausências. Ao rememorarmos, no �nal do dia, tudo o que �zemos,
percebemos como a reconstituição �dedigna dos nossos atos é
impossível. Algo nos escapa; às vezes, um detalhe importante. E, ao
tentarmos realizar o balanço do que restou em nossa memória,
descobrimos que a fatia de realidade à qual procuramos acrescentar
nossa marca — a ín�ma seqüência do real que, revisitada, gostaríamos
de vislumbrar e concluir,com absoluta certeza: “Passei por aqui,
toquei este objeto, comuniquei-me com este ser” —, essa parcela de
verdade praticamente inexiste, como se a vida não fosse mais que um
vôo rasteiro, capaz apenas de tatear super�cialmente o existir.
Uma citação dos diários de Liev Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897,
utilizada por Viktor Borisovich Chklovski em seu ensaio “A arte como
procedimento”, pode elucidar a sensação de desconforto que é
inseparável do nosso cotidiano:
Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me
lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes,
não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci,
isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém
conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu
ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola
inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido.
Entre os inúmeros comentários de Chklovski a este trecho,
especialmente um chama a atenção, pelo teor de verdade que o
estudioso russo concentra em uma única frase: “A automatização
engole os objetos”.
O desejo daqueles que possuem um mínimo de autoconsciência é,
sem dúvida, de que todos os atos só se concretizassem depois de uma
re�exão prévia, cuja intensidade fosse su�ciente para revelar as mais
secretas intenções: a gama de condicionamentos ocultos,
sorrateiramente, sob a aparência de naturalidade que forra o viver. E,
acrescento, não bastaria que conhecêssemos as razões que nos
impulsionam, mas seria imprescindível concentrar a atenção em cada
uma de nossas decisões, no exato momento em que agimos, além de
prever as possíveis conseqüências de nossos atos. Se tal irrestrita
consciência fosse possível, cada insigni�cante gesto nasceria apartado
de toda banalidade.
Sabemos, contudo, que não é assim. E estamos cientes de que o
estranhamento de Tolstói é um sintoma que experimentamos com
relativa freqüência.
A arte, no entanto, pode nos ajudar no sentido de superarmos esse
distanciamento em relação à vida. Ela detém o poder de lacerar a
banalidade ou, no que se refere à literatura, criar uma realidade
paralela de tal maneira envolvente que, ao despertar em nós o que
costuma ser condenado à letargia (por nossa limitada capacidade de
percepção), romper o automatismo do cotidiano e conceder
signi�cação, muitas vezes inusitada, ao real.
Chklovski fala exatamente sobre isso, ao comentar o trecho de
Tolstói:
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra
é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto
como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma,
aumentar a di�culdade e a duração da percepção.
O ato de percepção em arte é um �m em si mesmo, e deve ser prolongado [...].
As a�rmações de Chklovski são conhecidas. Suas idéias foram
disseminadas no bojo das correntes estéticas que, de um modo ou de
outro, se inspiraram no formalismo russo ou se �liaram a seus
princípios. No entanto, foi graças a tal disseminação que essa teoria
— utilizada, no caso acima, para explicitar as qualidades de Tolstói —
tornou-se regra absoluta. E, como todas as regras, reduziu a riqueza
das propostas de Chklovski a um só ponto: “O procedimento da arte
é o procedimento de aumentar a di�culdade e a duração da
percepção”.
Não bastasse tal reducionismo, os reprodutores do pensamento de
Chklovski desprezaram o fato de que os exemplos citados no ensaio,
extraídos da �cção de Tolstói, não apresentavam uma leitura penosa,
árdua ou cheia de obstáculos. Esses repetidores cegos preferiram
entender “di�culdade” como “di�cultar a leitura a qualquer custo” —
e esmeraram-se no sentido de esquecer, por exemplo, a ponderação
que Chklovski faz: “[...] A liberação do objeto do automatismo
perceptivo se estabeleceu por diferentes meios; neste artigo, quero
indicar um destes meios do qual quase que constantemente se serviu
Tolstói [...]”.
À evidência de que Chklovski não tem a pretensão de expor uma
receita sobre como escrever textos literários — ele não só enaltece o
estilo claro, plenamente inteligível do autor de Anna Kariênina , como
insiste em dizer que seu objetivo é apresentar apenas “um” dos meios
utilizados — devemos acrescentar a péssima leitura que alguns
escritores, críticos e acadêmicos �zeram do ensaio: entenderam, repito,
o termo “di�culdade” de forma extremamente simplista; submeteram
o trabalho do teórico a um raciocínio esquemático; e a minuciosa
análise do texto tolstoiano foi colocada de lado, certamente para que
não maculasse a excelência do novo mandamento.
Essa simpli�cação é prática comum, não só em teoria literária.
Dilui-se a complexidade para se adquirir uma certeza, a receita
infalível sobre quais procedimentos devem ser seguidos — neste caso,
para se criar obras realmente “modernas”. A maioria dos mestres
mostra-se pródiga nesse sentido, e a repetição constante gera, é claro,
resultados medíocres, desalentadores.
No caso especí�co da literatura, tal regra tem servido a uma
perigosa misti�cação: a de que a verdadeira obra de arte é difícil de ser
compreendida. Essa mentira resultou — e continua a resultar — em
escritores que, para cumprir o dogma, especializam-se em erigir a
linguagem à condição de protagonista da obra. A obediência cega à
suposta lei gerou — e continua a gerar — obras sem enredo e sem
personagens, ou narrativas nas quais enredo, personagens, �uxo de
tempo, con�guração do espaço, etc. amontoam-se num verdadeiro
caos.
Dessa forma, parte da produção literária distanciou-se radicalmente
do receptor da mensagem — o leitor —, transformando-o em um ser
incapacitado para decodi�car o texto, condenando-o a ler sem
entender, ou ler defrontando-se com di�culdades sobre di�culdades. A
falsi�cação da teoria de Chklovski foi transformada em uma espécie
de tormento, nova técnica de tortura, cujo objetivo é impedir que o
leitor cumpra seu papel de co-autor.
Sem dúvida, quando a linguagem serve apenas à reinvenção de si
mesma, esquecendo-se do ato de narrar, a leitura — o exercício de
recriar a obra — torna-se impossível.
No afã de corresponder à mentira disseminada em nome de
Chklovski, inúmeros escritores se concentram em elaborar a
linguagem de tal modo que, ao término de seus esforços, são
compreendidos apenas por si próprios ou, quiçá, por um seleto grupo
de iluminados.
Obedecendo a um atavismo desolador, esses escritores repetem o
que Antonio Candido detectou inclusive nos primórdios da nossa
literatura: a situação arti�cial em que os próprios escritores são “ao
mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo
multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a
literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de
um ponto de apoio”.
Fechados em si mesmos, presos à falsa necessidade de criar uma
nova vanguarda a cada amanhecer, bajulando-se em suas seitas
particulares, tais escritores parecem buscar o que Gustave Flaubert
expressou certa vez: “O que me parece belo, o que eu gostaria de
fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se
sustentaria pela força interna de seu estilo, como a Terra, sem estar
sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou
pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.”
Inebriante devaneio, sem dúvida. Mas apenas devaneio.
Partindo do afã de di�cultar, a qualquer custo, a recepção da obra
literária, e passando por centenas de outras simpli�cações,
semelhantes à quimera �aubertiana e repetidas ad nauseam ,
chegamos ao que diagnostico como narratofobia — o pavor, a paúra
de narrar —, reforçada, em inúmeros casos, por evidente insegurança
no uso da linguagem. (É risível, aliás, o caradurismo de alguns
escritores, que justi�cam seu desconhecimentoe sua negligência em
relação à língua citando ambíguas opções estéticas. Seria bom lembrá-
los de que esses argumentos caíram em desuso quando soaram as
últimas patacoadas da Semana de 22.)
Os resultados de tal fobia são sempre nocivos para o leitor,
abandonado diante da página impressa, condenado ao deserto no qual
a imaginação, por mais que se esforce, não consegue dar conta de
construir o que seria tarefa do escritor.
As conseqüências desse tipo de literatura, no entanto, não se
esgotam na leitura obscura, forçosamente a�itiva. Nossos poucos
leitores, ávidos por uma literatura que os conduza para longe da
mesmice e da banalidade, encontram, nas livrarias, as seções de
literatura brasileira abarrotadas de textos herméticos. É fatal,
portanto, que sejam raptados para o mundo da subliteratura,
tornando-se reféns dos romancinhos kardecistas e de outras tantas
panacéias na forma de brochura.
Quando os escritores se submetem aos falsos mandamentos do
“bem escrever”, quando se fecham na permanente recriação de um
dialeto exclusivo, quando optam pelo purismo doentio, não
apresentam apenas graves sintomas de narratofobia, mas certamente
contribuem para manter os leitores presos ao cotidiano inconsciente,
capturados pelo estranhamento e pelo automatismo que Liev Tolstói
descreveu com perfeição.
II — A tradição universal
NARRADOR MALICIOSO — 
THOMAS BERNHARD
EM , AO DISCURSAR DURANTE A CERIMÔNIA em que recebeu um
prêmio de incentivo do governo austríaco, Thomas Bernhard
expressou-se de maneira categórica: “Os séculos são pobres de
espírito, o demoníaco em nós é a prisão perpétua da terra dos pais,
onde os componentes da tolice e da brutalidade mais intransigente
tornaram-se necessidades cotidianas. O Estado é uma estrutura
condenada permanentemente ao fracasso; o povo, uma estrutura
condenada sem cessar à infâmia e à fraqueza de espírito”.
E prosseguiu, sem deixar qualquer margem de dúvida em relação ao
seu pensamento: “Somos austríacos, somos apáticos; somos a vida, a
vida como indiferença à vida, vulgarmente compartilhada; somos, no
processo da natureza, a loucura das grandezas, o sentido da loucura
de grandeza como porvir. Não temos nada que dizer, exceto que
somos lamentáveis […]”. Ao �nal do discurso, num clima de absoluto
mal-estar, o ministro da Educação e os responsáveis pelo prêmio
retiraram-se do local.
O incidente, um marco na biogra�a do autor, é emblemático no
sentido de revelar não só o lado corrosivo de uma personalidade, mas
também a veemência que toda a obra de Bernhard expressa.
Não por outra razão, se iniciarmos a leitura de Origem pelo relato
“A causa” (publicado em 1975), deixando para o �m o capítulo “Uma
criança” (publicado em 1982) — ou seja, se seguirmos a ordem
original em que os textos foram divulgados pelo autor e não a
proposta pela edição brasileira —, veremos que o primeiro intuito da
narração é radiografar, a seu modo, a realidade daqueles anos entre
1943 e 1945, durante os quais Bernhard estudou em um internato
para meninos — “cárcere projetado com re�namento”, diz ele —, sob
o comando de um o�cial-modelo do exército hitlerista e da SA, a
temida milícia paramilitar do Partido Nacional-Socialista.
Naquela Áustria anexada à Alemanha, na Salzburgo “nazista até os
ossos”, nasce o país apático que Bernhard condenaria, décadas mais
tarde, não só em discursos e entrevistas, mas em todos os livros, até
sua morte, em fevereiro de 1989.
Hipocrisia e provincianismo
Para compreendermos, parcialmente, o que movia Bernhard — e
termos uma visão mais ampla do universo focalizado em Origem — é
importante recuperarmos os fatos históricos centrais daquele período.
Com o nascimento da República — depois da renúncia de Carlos I,
o último imperador austro-húngaro, em 1918 —, a Áustria foi
reduzida a um território diminuto, de economia frágil, e que passaria
a experimentar crises cada vez mais graves, até o assassinato pelos
nazistas, em 1934, de Engelbert Dollfuss, substituído na chancelaria
por Kurt von Schuschnigg, que, isolado pelos países do Eixo,
renunciaria em 1938, permitindo a entrada triunfal de Hitler e a
anexação da Áustria à Alemanha, rati�cada por um plebiscito no qual
os nazistas obtiveram 99% dos votos.
É exatamente nesse período que têm início os anos de formação de
Bernhard. Ele conhecerá não só o despotismo nazista, mas,
posteriormente, as humilhações sob as tropas aliadas e os difíceis anos
de reconstrução do país, com sucessivas crises econômicas, até que a
Áustria começasse a se recuperar, entre o �nal da década de 1950 e
início dos anos 60, quando o escritor, adulto, já respondera a seu
primeiro processo por difamação (1955), em conseqüência de um
artigo contra o teatro de Salzburgo, e migrava do mundo da música
(Bernhard foi aluno de canto, encenação e arte dramática no
Mozarteum de Salzburgo) para a literatura e a dramaturgia (seu
primeiro romance, Gelo , data de 1963).
Na verdade, o apoio incondicional ao nazismo permaneceu como
uma nódoa na história da Áustria majoritariamente católica. E é sob
esse manto de hipócrita consensualidade que as forças políticas
presentes nas décadas de 30 e 40 continuarão a atuar, agora sob novos
disfarces. Em 1986, por exemplo, eleito presidente da Áustria pelo
Partido Popular, Kurt Waldheim foi acusado de participação em
crimes de guerra nazistas, mas permaneceu teimosamente no poder até
1992, condenando o país a seis anos de isolamento internacional.
Some-se a este panorama o provincianismo desalentador criticado
por inúmeros intelectuais e teremos completado o cenário em que
Bernhard gerou toda a sua obra — uma Áustria que parecia ter
esquecido Albert Schnitzler, Hermann Broch e Robert Musil, para
�carmos apenas entre os escritores.
Narrador perverso
À parte o cenário histórico, os relatos presentes em Origem
inspiram a descon�ança inicial que toda narrativa autobiográ�ca
desperta, pois, à medida que a leitura avança, torna-se claro que nos
deparamos com a voz de um narrador cuja preocupação central não é
contar a vida do autor. Essa suspeita transforma-se em certeza
quando, depois de lermos os quatro relatos �nais do livro (os
primeiros a serem publicados na Áustria), passamos à leitura de “Uma
criança”. Neste, surge uma voz coloquial cujo objetivo é, aí sim,
principalmente relatar os fatos em um célere �uxo de acontecimentos,
como se, �nalmente, Bernhard se dispusesse a escrever sua
autobiogra�a.
O melhor nos aguarda, contudo, em “A causa”, “O porão”, “A
respiração” e “O frio”, quando nos deparamos com um discurso
prolixo, no qual há deliberada intenção de ampli�car os fatos por
meio do estilo persuasivo, hiperbólico, marcado de contínuos
incrementos que somam, linha a linha, novas camadas de signi�cados
ao mesmo fato, como se o narrador construísse uma espiral
ascendente, acrescentando, a cada nova curva, uma série de sinônimos
e de imprevisíveis acumulações.
O leitor vê-se, assim, enredado por sucessivos acréscimos de
ênfases, conglomeradas nessa espiral audaciosa que busca, página a
página, criar um clima de estranhamento e miti�cação.
Torna-se evidente, no transcorrer dos blocos monolíticos em que os
relatos se organizam, o objetivo perverso do narrador. O texto,
impregnado de disfemismo, numa tensão incansável, atribui, de
maneira exaustiva, características exageradas e negativas aos
acontecimentos e aos estados de ânimo. Amplia-se o drama do “eu”
protagonista, de forma a se expressar uma condenação absoluta.
A questão é que não se encontra em pauta a exposição da verdade.
O narrador tem consciência de que “toda história sempre foi
falsi�cada e passada adiante como tal”, e caracteriza a si mesmo como
parcial e provocador:
Minha tarefa só pode ser a de comunicar minhas percepções, tenham elas o efeito que
tiverem, relatar sempre as percepções que me pareçam dignas de comunicar aos outros,
aquilo que estou vendo ou aquilo que ainda hoje trago na memória, quando, como
agora, volto os olhos para trinta anos atrás; se muita coisa já não me é clara, outras se
revelam com demasiada nitidez, comose tivessem acontecido ontem. A �m de se salvar,
os interlocutores não acreditam, e com freqüência descrêem do que há de mais óbvio. As
pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre
fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser […]. Tudo
que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha
existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas.
Em um longo trecho entre as páginas 242 e 244, o narrador enfoca
claramente o problema da verdade e da mentira, tratando-as como
conceitos indignos de con�ança:
A verdade, só a conhece quem foi afetado por ela, penso eu; e se desejar comunicá-la aos
outros, será de pronto transformado num mentiroso. […] Escrever sobre uma época, um
período da existência […], é coletar centenas, milhares, milhões de falsidades e
falsi�cações conhecidas daquele que escreve como verdades, e nada além de verdades.
[…] O descrito clari�ca algo que decerto corresponde ao desejo de verdade daquele que
descreve, mas não à verdade em si, porque essa não é possível comunicar.
Mais à frente, ele concluirá, asseverando a supremacia da narração
em si mesma, desvinculada do que poderia ser ou não avaliado como
verdadeiro: “A razão já me proibiu há muito tempo de dizer e escrever
a verdade, porque fazê-lo é apenas dizer e escrever uma mentira, mas,
para mim, escrever é necessidade vital, e é por isso mesmo, por esse
motivo, que escrevo, ainda que tudo que escreva nada mais seja do
que mentira que, por meu intermédio, é transmitida como verdade.”
Ora, esse narrador, para quem “apenas o desavergonhado é capaz
de escrever, […] só o desavergonhado supremo é autêntico”, guarda
consigo a consciência de que até mesmo “a língua é inútil, quando se
trata de falar a verdade”, pois ela “permite àquele que escreve apenas
uma aproximação sempre e somente desesperada — e, por isso
mesmo, duvidosa — aproximação em relação ao objeto, só re�etindo
o autêntico falseado, o terrivelmente distorcido”.
Mas, apesar de sua justi�cada descon�ança, ele nos oferece, em sua
insistência pessimista e dramática, por meio de reiterações as�xiantes,
contaminadas de ceticismo, páginas capazes de nos libertar da
escravidão do senso comum, alertando-nos de que só “a
desesperança” nos traz “clareza sobre as pessoas, as coisas, as
relações, o passado, o futuro […]”.
Há trechos inesquecíveis, seja por sua crueza, seja pelo lirismo
consternado, pleno de mágoa e de lucidez cortante: o menino que
exercita o violino entre as estantes lotadas de sapatos suados e que
pensa apenas em suicidar-se; o encontro com a mão decepada de uma
criança, em meio aos prédios destruídos por um bombardeio aéreo; a
permanente repugnância pela escola; o retorno ao internato nacional-
socialista, depois do �nal da guerra, agora transformado em escola
católica, na qual ele encontra a mesma realidade do período nazista,
mas sob um cenário diferente (“onde antes estivera pendurado o
retrato de Hitler, dali pendia uma grande cruz”); o contraditório
relacionamento com a mãe; o amor absoluto pelo avô, �gura
magní�ca do livro; as cenas terrivelmente depressivas na casa de
repouso de Grossgmain e no sanatório de Grafenhof; a descoberta de
Dostoiévski, ao ler Os demônios . Trechos nos quais ele nos hipnotiza
com sua mórbida retórica.
Dessas páginas, nas quais o narrador exercita até o paroxismo o
método que propõe a si mesmo — “decompor, desmontar e
desagregar os objetos de minha contemplação” —, não emerge a
verdade certamente almejada por alguns leitores, que devem buscá-la
na biogra�a escrita pelo tradutor espanhol de Bernhard, o
premiadíssimo Miguel Sáenz.
Esse narrador despojado de qualquer inocência nos previne de que
“somos tudo e nada”, e que “no exato meio-termo entre uma coisa e
outra, sucumbimos cedo ou tarde”. Ele disseca a vida com esmero e
frieza, convidando-nos a olhar, sem temor, para o caos e a escuridão
que se escondem nas dobras da existência — e também dentro de nós.
ZEN E MELANCOLIA — YASUNARI KAWABATA
A citação de certa obra dedicada à gestualidade japonesa pode
expor uma das características desse povo que, apesar de todos os
esforços do Ocidente, preserva sua face adoravelmente enigmática: “O
que é particular ao Japão é que se as mulheres exibem sua beleza,
deixam de ser belas”. A frase pertence ao antropólogo e crítico
literário Michitaro Tada, cuja obra — A cultura gestual japonesa —
ganha ainda maior signi�cação graças a Francisco Calvo Serraller, que
explica os interstícios do substantivo “gesto” para um japonês:
“Movimento corporal controlado e, em particular, marcado pela
suavidade”.
Tais citações, se transplantadas à literatura, lembram a obra de
Yasunari Kawabata, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de
1968. Seu estilo despojado, sem arroubos, no qual a contenção se
repete a cada parágrafo, deu vida a inúmeras narrativas, como os
romances Mil tsurus e Kyoto .
No caso de Kawabata, a aparente economia de recursos esconde,
entretanto, séculos de elaboração �losó�ca, literária e espiritual, em
relação aos quais o escritor não esconde manter orgulhosa dívida,
como explica no discurso pronunciado durante a cerimônia do Nobel,
quando empreende uma viagem às tradições que o formaram, em cuja
base encontramos o zen-budismo — ou simplesmente zen.
As duas primeiras citações do discurso, utilizadas para exempli�car
como o autor vê e entende o povo japonês, pertencem a monges
budistas. Entre eles, Dogen, religioso do século XIII, fundador de uma
das vertentes do zen, a Soto Zen:
Na primavera, �ores de cerejeira.
No verão, o cuco.
No outono, a lua. E
no inverno, a neve fria e transparente.
Para Kawabata, nesse poema “as imagens mais comuns e também
as palavras mais comuns estão enlaçadas umas nas outras sem
vacilação, e transmitem, assim, a verdadeira essência do Japão”.
Ao ocidental que desconhece a história desse país e os princípios do
zen, o poema soará, segundo advertência do próprio Kawabata, como
“um encadeamento descuidado, vulgar, medíocre, uma forma
sumamente tosca de apresentar imagens de paisagens naturais
características das quatro estações”.
No entanto, o leitor aberto à percepção dessa desconcertante
seqüência de imagens verá o que Kawabata distingue: “Ao contemplar
a beleza da neve, da lua cheia, das cerejeiras em �or, isto é, quando
despertamos ante as belezas das quatro estações e entramos em
contato com elas, quando sentimos a felicidade de nos termos
encontrado com a beleza, é quando mais pensamos em quem amamos,
e desejamos compartilhar com eles essa felicidade.”
Além de todos esses sentimentos, os versos retratam o que
poderíamos chamar — talvez erroneamente — de a essência do zen,
caminho para o reencontro das alternâncias que são indissociáveis do
movimento da vida e do cosmo; e a tentativa, tão própria do zen, de
recuperar a unidade primeva, há muito perdida.
Outro poema, também citado por Kawabata, pode esclarecer a
questão:
Se meu coração puro brilha,
a lua pensa
que essa luz lhe pertence.
Escrito pelo monge Myoe (1173-1232), esta delicada jóia resume o
que o zen busca: superar a dicotomia entre sujeito e objeto, um estado
de iluminação interior no qual toda lógica é rompida, alcançando-se o
satori , “súbito relâmpago da consciência de uma nova verdade jamais
sonhada”, de acordo com Daisetz Teitaro Suzuki. Ou, como nos
explica Kawabata: “Vendo a lua, o poeta se converte na lua; a lua,
vista pelo poeta, chega a ser o poeta. Ao submergir-se na natureza,
forma um todo com ela. Assim, a luz do coração puro do monge,
enquanto este medita no Pavilhão durante a escuridão que precede o
amanhecer, transforma-se, para a lua do amanhecer, em sua própria
luz.”
Esses poemas passaram por processo semelhante ao dos escritos
pelos místicos e santos espanhóis Teresa de Ávila e João da Cruz:
compostos para expressar uma busca essencialmente espiritual,
acabaram sendo incorporados à tradição literária de seus países.
Assim, se um católico contemporâneo lê os poemas de São João daCruz para colocar-se em estado de predisposição à via mística que esse
reformador da Ordem Carmelita chamou de Subida do Monte
Carmelo, os versos de Dogen e Myoe despertam, nos que se iniciam
na trilha do zen, a sede dessa verdade cujo fulcro se encontra nas
rachaduras do efêmero.
No caso especí�co dos poemas citados por Kawabata, eles não
ocultam uma fórmula mágica ou algum ensinamento a ser transmitido
de maneira velada, pois, como diz o escritor, “a iluminação não
provém do ensinamento, mas da visão interior. A verdade está na
‘escritura não escrita’, está ‘fora das palavras’”.
A ponte de um sonho
As raízes da arte de Yasunari Kawabata encontram-se também
estreitamente ligadas ao Genji Monogatari ( A história de Genji ),
primeiro romance da literatura mundial, escrito no princípio do século
XI por Shikibu Murasaki, dama da corte do imperador. O escritor não
mede elogios à obra: A história de Genji “marca o ponto mais alto
alcançado pelo romance japonês. Não existe obra literária comparável
a essa, nem entre as antigas nem entre as atuais. [...] Foi, penso que
por sua índole, o livro do qual mais se embebeu meu coração.”
Kawabata descobriu no romance o “esplendor da cultura cortesã”,
quando “aqueles dias gloriosos” da Era Heian (794-1185) estavam
começando a entrar em decadência. O livro ocupou um papel
marcante em sua vida, inclusive nos meses �nais da Segunda Grande
Guerra, período no qual ele lia diariamente o Genji , compelido a um
exercício que servisse não apenas como escape, mas lhe concedesse a
certeza de que o Japão, ao inquirir o passado, encontraria formas de
superar os bombardeios, as mortes e a provável derrota.
Essa obra inspirou os principais escritores do Japão, como
Junichiro Tanizaki, que a traduziu para a língua japonesa moderna.
No caso de Kawabata, exerceu evidente in�uência na formação do
autor, acrescentando ao sentimento de impermanência transmitido
pelos poemas zen uma atmosfera em que a dor predomina sobre o
prazer, pois o clima de tristeza perpassa todo o romance, e o Genji é a
evocação de um mundo que nunca existiu exatamente da forma que
Murasaki o descreve, como a�rma Donald Keene, um dos principais
estudiosos da literatura japonesa:
Dentro do tempo que o romance abarca, encontramos um tom cada vez mais pessimista,
e quando morre o herói, o singular Genji, seus sucessores são apenas uns jovens não
mais que agradáveis [...]. Nesse e em muitos outros aspectos, o romance descobre uma
obsessão com a idéia de tempo, obsessão análoga à que se pode observar em grande
parte da poesia japonesa. O esplendor e a beleza que caracterizaram cada aspecto da
carreira do príncipe Genji se dissipam. Até mesmo ao contemplar alguma graciosa
bailarina ou as �ores que caem de uma bela árvore há sempre a consciência quase
penosa de que tudo tem de acabar. [...] Ainda quando o romance mostra-se pleno de
humor e de encanto, a impressão dominante é de tristeza, por causa, em grande parte,
dessa insistência sobre o correr inexorável do tempo.
Outro estudioso do romance, Antonio Cabezas, experiente tradutor
de literatura japonesa em língua espanhola, diz que “o último capítulo
se intitula ‘A ponte de um sonho’, e esta ponte não é outra coisa que a
vida”. Um �nal cujo desgosto é ampliado pela morte prematura de
Murasaki, que não conseguiu terminar a obra.
A irrealidade branca
Alguns aspectos da vida de Yasunari Kawabata certamente foram
responsáveis por predispô-lo a tais in�uências, moldando essa
personalidade que nunca conseguiu superar a propensão aos estados
depressivos.
O escritor nasceu em 1899. Logo após, em 1900, perdeu o pai e, no
ano seguinte, a mãe. Ele e sua única irmã, quatro anos mais velha,
passam, então, a ser criados por parentes: Kawabata, pelos avós
maternos. Sua irmã também morrerá pouco tempo depois; e, logo a
seguir, com a idade de sete anos, o menino perderá a avó, restando-lhe
acompanhar, no período da adolescência, a lenta derrocada do avô,
atingido pela cegueira.
Em seu prefácio à coletânea das cartas trocadas entre Yukio
Mishima e Kawabata, Diane de Margerie a�rma que “preso entre o
vazio dos seres desaparecidos e uma agudeza matemática para a
observação, Kawabata vê-se submerso em uma irrealidade branca,
uma bruma que ele trata de penetrar para sobreviver, uma necessidade
aguda de ver, de captar, de contemplar, para remediar a ausência da
memória e a mutilação do olhar”.
Em seu estudo sobre o escritor — Concepção estética de Kawabata
Yasunari em ‘Tanagokoro no Shosetsu’ —, a professora e tradutora
Meiko Shimon reforça a tese de Margerie, a�rmando que Kawabata
jamais conheceu o semblante da mãe, de quem não restara nenhuma
fotogra�a.
Ora, se somarmos todos esses diferentes aspectos talvez possamos
começar a entender que caminhos levaram o escritor a se tornar, no
Japão do século XX, quem melhor retratou o “mundo �utuante” —
expressão cara aos japoneses e aos estudiosos dessa cultura —, mundo
de ilusões, de aparências, onde a consternação se alterna com o gozo,
o transitório impera e o belo é marcado de fugacidade. Mundo ao
qual Yasunari Kawabata concedeu um traço particular de melancolia,
ainda que buscasse criar, com sua escritura de parágrafos breves e
orações predominantemente coordenadas, a iluminação de um haicai,
o traço rápido da pintura sumi-ê, que brota da mente vazia de
vontades do pintor, ou um estado búdico de contemplação.
A cerimônia do chá
Em Mil tsurus , o autor descreve um Japão dividido entre suas
tradições e a ocidentalização do pós-guerra. Kikuji, o jovem
protagonista, é a �gura do homem perplexo, imaturo e tímido, que
não consegue abandonar a infância. Aos oito ou nove anos, levado
pelo pai à casa de uma de suas amantes, presencia o que jamais
esquecerá: Chikako, a amante, com o seio à mostra, corta, sobre uma
folha de jornal, os pêlos da mancha escuro-arroxeada, do tamanho de
uma palma da mão aberta, que lhe recobre metade do seio esquerdo e
se estende até a boca do estômago. Enquanto os pêlos caem sobre o
jornal estendido no chão, o menino escuta os ratos que correm no
sótão e vê, ao fundo, o único elemento de beleza: na varanda interna,
uma cerejeira em �or, símbolo de pureza e também de perenidade da
existência. Essa dicotomia, repetindo-se em diferentes momentos, fará
a narrativa oscilar entre bem e mal, entre o Japão pré-guerra e a
vulgarização dos costumes provocada pela abertura sem controle ao
Ocidente.
A história começa, no entanto, com Kikuji já adulto, lembrando o
pai falecido e dirigindo-se ao templo Engakuji para participar, a
convite de Chikako, de uma cerimônia do chá. Antes de entrar no
salão reservado à cerimônia, o narrador mostra a bagunça e o barulho
que maculam o ambiente. Logo depois, o timbre de voz indiscreto de
Chikako e sua incontrolável maledicência completam a cena.
O leitor ocidental, contudo, só compreenderá o papel desses
elementos antagônicos se conhecer o signi�cado da cerimônia,
indissociável do zen-budismo, exatamente como tantos outros
aspectos da cultura japonesa: “Na cerimônia do chá, o chá é mais um
coadjuvante neste universo que almeja, através do exercício de cada
movimento, chegar à perfeição do esquecimento de si, ao se pôr a
serviço do homenageado, de se tornar magia o tempo que escorre em
movimentos de ângulos precisos, uma oferenda de paz num mundo-
fora-do-mundo”, explica Madalena Hashimoto (em Pintura e escritura
do mundo �utuante ). Assim, ao descrever a cerimônia que é
transformada por Chikako apenas em um motivo a mais para rir, falar
alto e mexericar, Kawabata denuncia o Japão que parece esquecer de
si mesmo ao abraçar, cegamente, novos valores.
Durante a cerimônia, Kikuji conhecerá outra amante do pai, a
viúva Ota, de 45 anos, que se torna sua amante e o desperta para
formas inesperadas de prazer: “Nunca tinha imaginado que uma
mulher pudesse ser tão suavemente receptiva. Uma submissão
sedutora, uma obediência sem deixar de instigar, uma receptividade
que o sufocava em cálido aroma”.
O erotismo de Kawabata é sempre diáfano. Neste caso, ele
descreve, mais que a experiênciaviolenta da paixão, um processo de
amadurecimento. Às vezes, as descrições aproximam-se do desejável
repouso no ventre materno: “Ele não sabia que o prazer de uma
mulher podia ser assim incessante, como a suave ondulação das águas
do oceano”.
Chikako, no entanto, intromete-se em tudo, destilando seu veneno e
tornando-se o ponto de desequilíbrio do enredo, sombra sempre à
espreita, com sua mancha recoberta de pêlos a denunciar a pureza
perdida de um Japão que luta para reencontrar seu caminho. Ao
mesmo tempo, Kikuji é o jovem apartado das tradições e da memória
paterna, tentando inutilmente negar o pai — um especialista na
cerimônia do chá — ou, ao menos, superá-lo.
Depois da morte da viúva, que se suicida, Fumiko, sua �lha,
também se torna amante de Kikuji. Virgem de gesticulação contida e
adorável submissão, aspecto frágil e nítido pendor para o trágico, ela
se transforma na �gura do Japão que o protagonista hesita em
redescobrir. Paralelamente, uma quarta mulher cruza o caminho de
Kikuji: Iukiko, com seu lenço de tsurus (grous), ave símbolo da
longevidade e da felicidade, a atestar, com sua delicadeza, o caráter
perene das tradições e do amor.
A obra está permeada de referências às cerâmicas utilizadas na
cerimônia do chá, quase sempre peças artesanais seculares. Kawabata
concede-lhes vida, torna-as receptivas às emoções. As lágrimas da
viúva Ota escorrem sobre elas, reacendendo a memória dos amores
passados. As cores dos utensílios se repetem na �sionomia dos
personagens ou na natureza, formando, em diversos trechos, cenários
de colorido mágico.
Assediado constantemente pela imagem da mancha de Chikako,
enredando-se nas dissimulações dessa mulher grosseira, Kikuji tateia a
realidade em busca de uma saída, de uma solução. Entre o desprezo às
suas raízes, a visão da morte e a formidável atemporalidade das
cerâmicas — a obra humana que sobrevive ao próprio homem, a arte
que sobrevive à destruição do Japão tradicional — ele se liberta ao
desvirginar Fumiko, que o conduz a “um abismo de encantamento e
torpor”. O �nal, contudo, desconcertante como todos os �nais de
Kawabata, contribui para rea�rmar a intenção do autor: “É errôneo
considerar meu romance Mil tsurus como uma evocação da beleza
formal e espiritual da cerimônia do chá. É uma obra crítica, uma
expressão de dúvida e uma advertência frente à vulgaridade em que
caiu a cerimônia.”
Kawabata constrói suas narrativas por meio de pequenos quadros
que se sucedem, encerrando os parágrafos quase sempre num instante
de suspensão da realidade: “Kikuji passou por detrás dela, com o
intuito de abrir a porta de vidro que dava para o quintal. Veio-lhe o
suave aroma das peônias brancas dispostas no vaso sobre a mesa. A
moça curvou-se de leve como se lhe desse passagem.”
John Lewell, estudioso do escritor, citado por Meiko Shimon, diz
que Kawabata “raramente estruturou seus romances com um começo,
um meio e um �m, preferindo desenvolver uma rica textura linear,
algo como versos encadeados”.
Mas há outro aspecto que chama a atenção: a imaterialidade de
inúmeros trechos cria um universo de emoções, fatos e
comportamentos que seguimos, inebriados, apenas para, no �m, saber
muito pouco. Esse caráter insubstancial também se deve à voz do
narrador: ou ele nos esconde algo ou encontra-se “limitado pelas
ignorâncias, dúvidas e erros dos personagens”, ou apenas — jamais
saberemos — trata-se de “um observador igualmente imperfeito”,
comenta Antonio Cabezas.
Assim, enquanto os elementos do romance levitam diante de nós,
somos reconduzidos ao sentimento de impermanência e à sensação de
que o vazio se encontra no âmago de todas as coisas.
A continuidade do viver
A história de Kyoto transcorre no período imediatamente posterior
à retirada das tropas de ocupação norte-americanas. A jovem Chieko,
abandonada quando ainda bebê, é criada como �lha por Takichiro
Sada e sua esposa, proprietários de uma pequena loja de quimonos.
Sada é um artista frustrado e assiste, devido à ocidentalização do país,
à decadência de seu comércio. Chieko, “na plenitude da mocidade”,
conhece, por acaso, sua irmã gêmea, Naeko, de quem estava separada
desde o nascimento. Apesar de os pais adotivos não terem escondido
que Chieko havia sido abandonada, ela sempre alimentou dúvidas em
relação à sua verdadeira origem. Depois que conhece Naeko, alegra-se
e, ao mesmo tempo, sofre por saber que seus verdadeiros pais eram
pobres e estão mortos. Deseja aproximar-se da irmã, mas as diferenças
de classe e o complexo de inferioridade de Naeko di�cultam o
relacionamento. Shin’ichi, companheiro de passeios de Chieko, ao
partilhar das dúvidas de sua amiga, expressa a imagem que melhor
caracteriza a dor dos principais personagens de Kawabata: “Nascer
neste mundo signi�ca ser abandonado por Deus”.
As páginas iniciais do romance são exemplos da delicada escritura
de Kawabata. Com suas frases curtas e objetivas, ele adiciona, sem
qualquer pressa, camada após camada, novos elementos à descrição
da primavera, introduzindo-nos em um cenário no qual Chieko e a
natureza acabam por se fundir numa fascinante empatia.
Se em Mil tsurus a ocidentalização é enfocada de maneira oblíqua,
em Kyoto o escritor torna-se implacável. Logo após a saída dos
ianques, todos os aspectos da vida estão deteriorados: dos motivos
que enfeitam os quimonos à organização da economia, passando pelos
costumes. No templo Nenbutsuji, entre centenas de lápides de pedra,
erguidas em memória dos mortos desconhecidos, fazem-se sessões de
fotogra�as, nas quais “as mulheres utilizam estranhos vestidos
semitransparentes”; antigas tecelagens familiares, responsáveis pela
confecção de tecidos que são exemplos de esmero artesanal e intuição
artística, acabam substituídas por teares mecanizados, cujos produtos,
feitos em série, de baixa qualidade, seguem os padrões ocidentais de
beleza; no templo Nin’naji, “nos caminhos entre as cerejeiras do
bosque havia tablados, e as pessoas promoviam festança de bebedeira
e cantoria. Era uma desordem total. Velhotas interioranas dançavam
alegremente, e bêbados roncavam alto, alguns deles chegando a rolar e
cair do banco em que se deitaram”.
A contraposição às mudanças é feita não apenas por meio do olhar
amargo de Takichiro Sada, mas descrevendo-se a diversidade da �ora
e as variações da natureza, estação a estação, ou detalhando os
festivais e comemorações seculares de Kyoto. Há também descrições
dos quimonos e dos obis — com suas cores e desenhos que, desligados
da preocupação de obedecer à moda ditada pelo mercado, expressam
traços da personalidade de quem os veste —, além da gestualidade
contida e harmoniosa de homens e mulheres, essencial à etiqueta
japonesa, que se revela no ato de prender ou soltar o cabelo, nas
manifestações de carinho entre as irmãs, na reverência de um
subalterno diante do patrão, ou no simples movimento de puxar as
portas corrediças da casa, fechando-as à noite. São indícios da
sobrevivência do verdadeiro Japão, capaz de confrontar, mesmo que
furtivamente, os hábitos nefastos que invadiram o país.
Ao �nal, nada se resolve, e o leitor permanece incerto quanto ao
futuro das irmãs. Contudo, é exatamente esse o objetivo de Kawabata,
pois ele não almeja uma solução para os dramas pessoais, e tampouco
se preocupa com a suposta necessidade de um clímax. Para desespero
de alguns leitores, o escritor pretende apenas insinuar o
prosseguimento da vida, a continuidade do �uxo da existência.
Podemos concordar com a a�rmação de Antonio Cabezas — “Sem
jamais �losofar de um modo explícito, Kawabata expõe genialmente a
sua fé na força da realidade: o que existiu uma vez, existiu para
sempre” —, mas apenas parcialmente, pois há uma sugestão implícita
nos �nais do escritor: podemos acompanhar seus personagens nessa
trilha cujo único objetivo louvável seria a proposta básica do zen, ou
seja, a reintegração ao todo, pois dores e decepções não podem ser
superadas de outra forma.
O êxtase do nada
Em sua carta recomendando Yasunari Kawabata ao Nobel de
Literatura, Yukio Mishima revela a “obsessão”perseguida, desde os
primeiros escritos, por seu mestre e amigo: “O contraste entre a
solidão fundamental do homem e a inalterável beleza que se apreende
intermitentemente nas fulgurações do amor, como um raio que
subitamente pudesse revelar, no coração da noite, os ramos de uma
árvore em plena �oração.”
O raio de que fala Mishima lembra o impacto do satori na
consciência, o “súbito relâmpago”, o “olhar intuitivo no âmago das
coisas”, �guras usadas por Daisetz Teitaro Suzuki para explicar o zen
aos ocidentais. De fato, a �cção de Kawabata pretende repetir o
caminho em direção ao satori, semelhante às tradicionais artes
japonesas, nas quais se incluem a disciplina dos samurais ou o manejo
da espada ( iai ) e do arco e �echa ( kyudo ).
Kawabata buscou elaborar uma literatura do comedimento, que
dissesse menos, mas, utilizando sutilezas que só a cultura japonesa
possui, ganhasse nova força expressiva. Ele almejou que a experiência
da leitura de sua obra produzisse um efeito semelhante ao do exemplo
de certo mestre zen: “Antes que um homem estude o zen, as
montanhas são para ele montanhas e as águas são águas. Mas quando
ele vislumbra a verdade, as montanhas não são mais montanhas, nem
as águas são águas. Mais tarde, quando atinge o satori, as montanhas
são novamente montanhas e as águas são águas.”
Ou seja, que seus leitores pudessem vislumbrar a realidade de
maneira clara, despida do véu de ilusão com que nossas ânsias e
desejos a recobrem.
Ler os romances de Yasunari Kawabata — e também suas cartas,
nas quais se revela inseguro e procrastinador — é entender o que ele
disse em seus escritos da juventude: “Pai e mãe, que �zeram de mim o
�lho de meu avô [...]. Ninguém no mundo, mais que vocês, deu-me o
dom de submergir-me no êxtase do nada”. Mas o “nada” do qual sua
obra está embebida não é ocidental. Completamente diverso do
niilismo, trata-se do esvaziamento que pretende conduzir quem o
experimenta a um estágio de consciência acima do bem e do mal, da
pureza e da impureza — o estado da mente livre de todas as antíteses,
de todas as injunções.
PERFEIÇÃO CORROSIVA — SAKI
Só em raras oportunidades encontramos uma obra arrebatadora.
Passado algum tempo, talvez anos, quando a revisitamos e o mesmo
encantamento se repete, podemos ter certeza de que o primeiro júbilo
não surgiu de uma falsa impressão, mas foi nossa resposta aos escritos
de um gênio. É o que sinto sempre que volto a Hector Hugh Munro,
mais conhecido pelo pseudônimo de Saki.
De acordo com minhas informações, que podem estar incompletas,
Saki nunca foi traduzido no Brasil. A Editora Hedra, contudo,
preencheu essa deplorável lacuna: lançou uma pequena, preciosa
coletânea de contos desse inglês nascido na Birmânia. Claro que o
ideal seria repetirmos o que ocorreu na Argentina: não satisfeita com
as cinco coletâneas da Editorial Claridad, a Alpha Decay publicou, em
2005, os Cuentos completos , de Saki; e, em 2009, o Alicia en
Westminster , conjunto de catorze textos que parafraseiam o clássico
Alice no País das Maravilhas , de Lewis Carroll. Mas esse passo
civilizador, ao que parece, ainda demorará muito.
Voltando ao volume Um gato indiscreto e outros contos , da Hedra,
ele serve como ótima introdução à obra desse escritor malé�co,
sarcástico, impiedoso e bem-humorado, que desacredita, a cada
página, da espécie humana, mas está sempre disposto a oferecer aos
homens uma segunda chance, ainda que eles, reiteradamente, a
menosprezem. Talvez venha daí — de encontrarmos nele um espelho
zombeteiro das nossas miseráveis existências — a verdadeira
compulsão que nos assalta quando começamos a ler Saki: um conto só
é pouco; dois não bastam; no terceiro, rindo a valer, imaginamos o
que ele ainda nos reserva; quando terminamos o quarto, à beira de um
ataque apoplético, alguns talvez ainda duvidem que as coisas possam
piorar; e ao �nal do quinto, pobres de nós, somos seus escravos — e
encontramos prazer nessa estranha devoção.
As espirituosas e às vezes macabras histórias de Saki transcorrem
no chamado período eduardiano, no Reino Unido ou nas colônias
inglesas. E a vivacidade desses textos talvez nasça não só da
experiência de Munro como correspondente do The Morning Post na
Rússia, em Paris, nos Bálcãs e em Varsóvia, de 1902 a 1908, mas
também da nítida in�uência que ele sofre de Oscar Wilde.
De qualquer forma, Saki nos seduz com a crueldade de seus contos
escarnecedores. Suas sátiras são aulas sobre como as inconveniências
sociais subjazem ao verniz vitoriano — e sobre como elas podem
emergir de repente, graças a fatos corriqueiros. Todas as expectativas
que temos em relação aos comportamentos mais adequados à vida
social são destruídas por esse escritor que, ao substituir o decoro por
situações vexaminosas, cria personagens que se espojam no prazer de
ludibriar seus semelhantes ou de viver segundo as regras do próprio
egoísmo, doa a quem doer.
No entanto, enquanto rimos, a voz de nossa consciência parece
repetir o que o escritor, ensaísta e crítico V. S. Pritchett a�rmou: “Saki
escreve como um inimigo. A sociedade o entediava a ponto de um
assassinato. Nosso riso é apenas uma nota ou duas menor que um
grito de medo”.
Reino dos animais
De fato, seu desprezo pela sociedade era tão fundo, que ele reservou
aos animais os papéis dignos, inocentes ou justiceiros. No conto “Um
gato indiscreto”, por exemplo, o estudioso Cornelius Appin ensina o
gato Tobermory a falar; e este se torna o acusador das hipocrisias que
latejam no grupo de supostos amigos de Lady Blemley. O �m de
Tobermory será triste, mas ele não sofrerá a injustiça de morrer nas
mãos de um espécime da raça humana. Seu professor, ao contrário,
ainda que imbuído de nobre missão, terá a pena que os humanos
merecem.
Um pobre ratinho condenará Theodoric Voler — no conto “O
camundongo” — às mais estúpidas humilhações, provando que o
homem despreparado para os transtornos inevitáveis da realidade
pode sofrer muito. Em “Esmé”, uma inocente hiena provocará
verdadeira tragédia, transformada, contudo, num fato corriqueiro pela
leviandade da Baronesa, mulher egoísta e fútil. Na história “O tigre de
Mrs. Packletide”, o velho e indefeso felino permitirá à subalterna,
Miss Mebbin, um saboroso e lucrativo golpe. Em “Os intrusos”, uma
antiga disputa de limites, entre famílias que alimentaram ódios
durante gerações, acaba resolvida pelas forças da natureza: os
invasores, humanos, transformam-se em vítimas dos verdadeiros
donos das propriedades, aos quais de nada adiantará implorar
clemência. Quando o fantástico surge, por meio de um personagem
que habita a nebulosa fronteira entre o humano e o animal — em
“Gabriel-Ernest” —, o simplório Van Cheele será a testemunha
derrotada por forças irracionais.
O escritor satírico Tom Sharpe está certo, portanto, nos
comentários que faz às narrativas de seu mestre: “Nos contos de Saki
a civilização foi derrubada e substituída por uma estranha
supernatureza. Nesse mundo, o animal que triunfa é a inteligência e
existe a permanente suspeita de que, se os seres humanos se
comportassem como animais, o mundo se organizaria de um modo
muito mais harmônico.”
Saki reserva à sua espécie, quase sempre, um papel derrisório. Dois
dos melhores contos da coletânea — “A cura do desassossego” e “O
método Schartz-Metterklume” — apresentam humanos cujo maior
prazer é perturbar a vida de seus semelhantes. E o fazem com
hilariante perfeição, digna de ser aprendida e imitada. Já em “A
omelete bizantina”, a dissimulada Sophie Chattel-Monkheim,
“socialista por convicção e Chattel-Monkheim por casamento”, terá
seus discursos contra o capitalismo colocados à prova pela numerosa
criadagem; levada a uma crise de nervos após inesperada greve,
concretiza-se o que o narrador, irônico, havia anunciado: “É um dos
consolos dos reformistas de meia-idade que o bem que inculcarem, se
há de existir, deve existir depois deles”.
Técnica exemplar
Há, em todos esses contos, apenas um ser verdadeiramente bom: o
menino Conradin, de “Sredni Vashtar”. Sufocado pela doença e pela
tirania da velhaprima, esse garoto de dez anos elege para si, no
pequeno mundo que lhe resta, um deus particular: o furão ao qual dá
o nome que intitula a narrativa. A partir desse momento, um tipo
especial de religiosidade nasce. O galpão abandonado, onde o animal
permanece preso, transforma-se num templo, sede de inocentes rituais.
No início, Conradin nada pede, não faz promessas, apenas adora a
criatura que lhe parece representar “o lado impaciente e terrível do
mundo”. Saki reúne, no mesmo espaço, a a�ição da criança torturada,
o sexo e a emergência do sagrado como forma de sublimação. O
instinto religioso transforma-se, lentamente, numa experiência
negativa, malé�ca, não porque Conradin seja mal, mas porque é
impossível não reagir, de algum modo, à prima mesquinha e
opressora; a�nal, o que pode a criança contra o adulto, a não ser que
tenha proteção divina? Sredni Vashtar ouvirá as preces do menino,
comprovando, mais do que a força do mal, que a maldade surge
principalmente quando não somos amados.
História soberba, “Sredni Vashtar” é um exemplo do domínio
técnico de Saki, que constrói narrativas perfeitas, “orbes cerrados,
tematicamente rígidos” — para lembrar a feliz de�nição de Mario
Lancelotti em seu sintético mas brilhante De Poe a Kafka (para una
teoría del cuento) —, submetidos ao “império irreversível do fato, do
acontecimento, [...] requisito tão simples quanto fecundo, de que
deriva, forçosamente, o resto de suas exigências clássicas: unidade,
originalidade, intensidade, estilo depurado”.
Saki condensa no primeiro parágrafo da narrativa todo o drama do
protagonista. E a partir daí a história converge para um único ponto,
resolvido páginas depois. Nada desvia a atenção do narrador, que
investe sobre seu tema como um símio furioso, mas sem jamais
descartar a sutileza: em pleno clímax, o leitor tem diante do olhar
somente indícios, sinais, sugestões — e ainda assim pode assistir à
terrível crueza da vingança.
Trata-se de um escritor que trabalha a estrutura e as nuanças das
frases a ponto de transformá-las em pequenas jóias de asteísmo. No
início de “Um gato indiscreto”, por exemplo, o narrador descreve o
cenário — “Era uma tarde fria e chuvosa de �m de agosto, aquela
estação inde�nida...” — e temos a impressão de ingressar em um texto
leve, de imagens débeis. Mas logo a seguir ele desmantela nossa
certeza, completando, de maneira inusitada: “…quando as perdizes
ainda estão em segurança, ou refrigeradas, e não há nada para caçar
[...]”. Os dois segmentos se antagonizam na exata medida para
despertar a nossa surpresa, alertando o leitor sobre o instável universo
em que ele começa a penetrar. Mais à frente, Saki não pode apenas
dizer que um personagem é feio. Ele revoluteia sua ácida retórica e
cria uma descrição indireta da feiúra, que aguilhoa não só o objeto da
descrição, mas também suas observadoras: “Seu exterior [...] não
sugeria o tipo de homem a quem as mulheres se dispõem a perdoar
uma generosa dose de de�ciência mental”.
Some-se a tais habilidades um universo de personagens incomuns —
o capelão burocrata de “O sanjaque perdido”; a deliciosamente sádica
e imaginosa sobrinha de “A janela aberta”; o rapaz sem nome de “O
contador de histórias”, e Bertha, a menina das medalhas por bom
comportamento, pontualidade e obediência que protagoniza a história
dentro do conto — e será inevitável lembrarmos Edgar Allan Poe e
suas famosas resenhas ao Twice-Told Tales , de Nathanael
Hawthorne: “Se nos pedissem para designar a classe de composição
que, ao lado do poema, pudesse melhor satisfazer as exigências de
grande genialidade, que pudesse oferecer a esta o mais vantajoso
campo para o seu exercício, deveríamos falar, sem hesitação, do conto
em prosa”. Declaração que Hector Hugh Munro, conhecendo-a ou
não, realizou plenamente.
AMIZADE ENTRE LUZ E TREVAS — 
TAHAR BEN JELLOUN
“Sem a amizade a vida seria um erro”, escreveu Aristóteles.
Conclusão de�nitiva, mas que, isolada, sem dúvida necessita de
algumas justi�cativas, possíveis de serem encontradas no romance O
último amigo , do marroquino Tahar Ben Jelloun. O livro, no entanto,
não nos oferece uma resposta fácil e não tem qualquer compromisso
no sentido de demonstrar a veracidade dessa proposição. Ao
contrário, mergulhando nas vias sinuosas de uma amizade
estreitamente ligada às oscilações políticas e sociais do Marrocos, o
autor nos oferece o primado da dúvida, alertando-nos para a suspeita
de que a conclusão de Aristóteles talvez não corresponda à verdade.
A assertiva aristotélica, presente, pelo que me lembro, na Ética a
Nicômaco, coloca a amizade acima de todas as outras formas de
relacionamento, concedendo a esse tipo tão raro de amor — raridade
que a vida contemporânea, marcada, entre outras mazelas, pelo
super�cialismo das relações, só faz aumentar — a condição de algo
essencial. Tal status não será contestado, certamente, pelas raríssimas
pessoas que já o experimentaram, mas mesmo em relação a elas é
possível questionarmos se o que viveram foi, de fato, uma amizade, e
não uma experiência unilateral, maquiada pelo idealismo ou, ainda
pior, exagerada por uma imaginação refém de certas carências
afetivas.
Esse é o questionamento que se intromete, sem qualquer trégua, em
todas as páginas de O último amigo : a idéia de que o Outro, o nosso
semelhante, longe de nos completar, apenas nos esgota, nos exaure.
O animal humano só seria realmente inteiro, ou seja, pleno, ao
assumir o gregarismo que a natureza incutiu em nossas células? Ben
Jelloun constrói o enredo desse romance, publicado na França, em
2004 — pois o autor, apesar de nascido no Marrocos, escreve em
francês —, de maneira a nos deixar incertos sobre qual seria a melhor
resposta, ou a mais correta, conduzindo-nos por uma trama cuja
conclusão nos leva a duvidar se todas as formas de comunicação,
incluindo as mais sutis ou complexas, como a amizade, são
verdadeiramente possíveis.
Página após página, constatamos que o Outro quase sempre
responde mal aos nossos estímulos e às nossas investidas, não
passando de uma decepção. Mamed e Ali, os personagens centrais do
romance, dão a impressão de caminhar na mão oposta à idéia de que
nascemos para o encontro com nossos próximos. A verdade, assim,
pode ser outra, diversa do que pensou Aristóteles, pois talvez não haja
encontro algum, na verdade mal toquemos em nossos semelhantes, e
quando o fazemos, se prestarmos atenção, veremos desequilibrar-se
em sua face — e também na nossa — a persona que escolhemos usar
naquela manhã, a mentira que a polidez destila em nome da boa
convivência social. Nada mais.
Olhares dessemelhantes
Mamed e Ali falam um do outro, separadamente, em duas longas
rememorações que formam o eixo do livro. E ambos vêem a si
mesmos e ao outro de maneiras sutilmente opostas. Quem, a�nal, fala
a verdade? Qual dos dois é o mais idôneo, o mais con�ável? Quem
conhece a si próprio ou fala de si mesmo com sinceridade? E qual
deles soube compreender e amar o outro? As perguntas se sucedem e
vemos ganhar vida homens aparentemente incompatíveis, mas que se
acreditam amigos.
Ali, de tez clara, nasceu em Fez, cidade tradicional do Marrocos,
onde se instalaram judeus e muçulmanos fugidos da Guerra da
Reconquista, na Península Ibérica. Mamed é pardo e sempre viveu em
Tânger, cidade cosmopolita que, a partir de 1912, quando o Marrocos
se torna protetorado francês, é declarada zona internacional e passa a
ser administrada por vários países europeus. Ali é politizado, mas
prefere ler poesia, incluindo o su� andaluz Ibn Arabi. Mamed é um
leitor voraz de Lênin e Marx. Ali se masturba pensando em Ava
Gardner; Mamed o faz sem grandes vôos de imaginação, lembrando-
se de uma colega da escola. Quando ambos começam a namorar,
descobrem caminhos opostos para satisfazer a libido naquela
sociedade em que a virgindade da mulher era um tabu insuperável.
Onde um se apaixona, o outro se mantém frio. Onde um demonstra
equilíbrio, o outro se revela um teimoso contumaz. Tudo parece, do
começo ao �m, separá-los. E, no entanto, eles permanecem unidos,
�éis,ainda que, em diferentes ocasiões, não sejam con�dentes.
Eles perscrutam a amizade como se esta fosse palpável, viva,
pulsando entre os dois. Mas o fazem com olhares dessemelhantes,
cada um prendendo-se às suas próprias necessidades, aos seus
próprios sentimentos. “Era difícil saber qual de nós dois tinha mais
ascendência sobre o outro. Nós nos completávamos, precisávamos um
do outro. Isso nos dizíamos e �cávamos quase orgulhosos”, lembra
Ali. Mas as recordações de Mamed, ainda que pareçam seguir na
mesma direção, possuem nuanças reveladoras: “Ali [...] tinha uma
capacidade de entrar na minha vida, no meu mundo e no meu
imaginário que me fascinava e me inquietava ao mesmo tempo. Essa
forma superior de inteligência é temível. Eu o invejava. Com o tempo,
aquele aspecto intuitivo se tornava preocupante. Éramos dois livros
abertos face a face. Tornáramo-nos transparentes um para o outro.
No fundo, eu não queria aquilo.”
O relacionamento, para Ali, estava vincado de um ideal quase
romântico. Contudo, a percepção de Mamed, mais fria, elabora uma
rememoração aguda, na qual os pormenores formam um discurso
angustiado. E depois que o drama, anunciado desde a primeira
página, instala-se na narrativa, Ali conclui, longe do �nal do livro, ao
assistir O falso culpado , de Alfred Hitchcock: “A verdade se
mantinha em um �o esticado entre a luz e as trevas. A vida cotidiana
parecia simples ali, enquanto era muito complexa; basta que uma
aparência se confunda com um sentimento para que nos encontremos
no centro de uma conjuração de forças ocultas e invisíveis em que
tudo pode se desequilibrar em direção ao horror.”
Re�exão formulada a duras penas, e que ele produz não apenas em
relação à sua amizade com Mamed, mas de maneira a sintetizar toda a
sua vida.
A perda da esperança
O Marrocos que serve de cenário à narrativa de Tahar Ben Jelloun
é, inicialmente, um país em transição política. As lembranças dos dois
amigos remontam à década de 1950, período conturbado na história
marroquina, quando a derrota dos franceses na Indochina (maio de
1954) e a insurreição na Argélia (novembro do mesmo ano), somadas
aos atos de terror que ocorrem no Marrocos, praticados por
partidários da independência, acabam forçando a França a concordar
com o retorno de Muhammad V do exílio, em 1955. A independência,
ainda que apenas de fachada, viria no ano seguinte, seguida de crises e
cisões partidárias que acabam levando à ascensão, em 1959, de
Hassan II (�lho de Muhammad V) ao trono. A partir desse ponto, as
esperanças de democratização desaparecem. E será sob um regime
despótico que os dois protagonistas viverão, experimentando os anos
de violenta repressão política da década de 1960, quando, em 1965, o
general Muhammad Oufkir se torna o homem de con�ança da
monarquia, intensi�cando as prisões, as torturas e os
desaparecimentos de presos políticos.
Ali e Mamed serão presos, torturados e mantidos incomunicáveis
durante longos meses, a �m de, “reeducados”, servirem dignamente à
pátria. Sofrerão medo e terror — “medo difuso, sem nome, sem cor”,
diz Ali —, seguidos da dissolução de todos os seus sonhos, quando
viver não será mais a busca de um ideal, mas somente a conformação
dos desejos às possibilidades estreitas que o Estado corrupto e
submetido aos interesses estrangeiros lhes oferece.
Os amigos que, na adolescência, desobedeciam às regras severas do
Ramadã, alicerçando a cumplicidade que os unia, acabarão por se
separar. Mamed, formado em medicina, parte para a Suécia, enquanto
Ali, tendo abandonado a faculdade de cinema no Canadá, resigna-se a
uma licenciatura na área de Letras, sem abandonar o Marrocos. Ben
Jelloun utiliza essa separação com habilidade, servindo-se dela não só
para salientar as diferenças entre os dois amigos, mas também com o
intuito de revelar os antagonismos sociais que colocam a Suécia e o
Marrocos em posições absolutamente opostas na ordem mundial.
O poder massacrante de um Estado absoluto vem acompanhado da
desagregação de todas as esperanças. Ficam para trás os anos de
juventude, com as tardes passadas no hamman , essa verdadeira
instituição do Maghreb, lugar de banhos ritualísticos, erotismo e
sociabilidade. Os amigos que tra�cavam kif , um tipo de marijuana
plantada nas montanhas do Rif, ao norte do Marrocos, afastam-se.
Não acontecem mais os namoros ao som de Dalida, a bela cantora
nascida no Egito e que, radicada na França, tornou-se mundialmente
famosa interpretando Bambino e Parole, parole . Desaparecem as
atormentadas visitas aos prostíbulos. A leitura do Jardim perfumado ,
do xeque Omar Ibn Nefzaui, uma espécie de Kama Sutra árabe, já não
desperta qualquer alegria. E quanto a Frantz Fanon, um dos principais
ideólogos anticolonialistas, que Mamed e Ali estudavam com
voracidade no colégio, deste restou apenas uma vaga lembrança.
À sombra da morte
A realidade, os dramas familiares, os casamentos, os �lhos, a
resignação ou o inconformismo, a busca de uma fuga do sistema
opressor por meio da sexualidade, a submissão à doença, a indignação
crescente contra o Marrocos que, comparado à Suécia, torna-se um
país de poeira, mentiras, corrupção e nepotismo, tudo contribui para a
manutenção dessa amizade que subsiste apesar da distância. E Ben
Jelloun tece a narrativa de maneira a prender o leitor em uma
suspensão permanente. Seu texto não arrebata, mas seduz, levando-
nos de adiamento a adiamento, por vezes resvalando a verdade, mas
acabando sempre por adiá-la.
A palavra �nal, nesse romance forjado de sutilezas, em que a
dúvida persiste até a última página, pertence a Mamed. E quem foi
ele, a�nal? O mais amigo? Seria ele o derradeiro amigo? E por que,
depois dele, qualquer amizade seria impossível, estaria condenada ao
fracasso?
Outro �lósofo, Nietzsche, em seu A gaia ciência , de�niu a amizade
como “uma espécie de continuação do amor”, a “elevada sede
conjunta de um ideal”, colocada acima da “cobiçosa ânsia que duas
pessoas têm uma pela outra”. Entretanto, ele também encerra seu
raciocínio com duas interrogações: “Mas quem conheceu tal amor?
Quem o experimentou?”.
Em O último amigo , a expectativa de uma carta, cujo único intuito
é, presume-se, a destruição, perpassa todo o romance. Será sob esse
signo, e sob a sombra nem um pouco acolhedora da morte, que Ali e
Mamed se reencontrarão a última vez. Nesse reencontro, quando
todas as diferenças e semelhanças avultam, nesse reencontro do qual
restará apenas uma carta, reside a resposta de todas perguntas,
esconde-se a verdade não apenas sobre os sentimentos que uniram
Mamed e Ali, mas sobre a esperança, sempre renovada, de que a
amizade, a amizade ideal de Aristóteles ou de Nietzsche, seja
realmente possível.
PERENE INCONSTÂNCIA — HANS JACOB 
CHRISTOFFEL VON GRIMMELSHAUSEN
O mais grato — e infelizmente raro — prazer do crítico literário é
quali�car um livro de genial. Pouco importa que ele não seja o
primeiro a reconhecer o valor da obra, admirada por todos que amam
e estudam a literatura do Ocidente, pois basta-lhe a satisfação de
a�rmar a seus poucos leitores: leiam, é genial — O Aventuroso
Simplicissimu s, de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen lhes
concederá exatamente o que promete em sua epígrafe: “Afastar-se da
loucura e viver onde a paz mora”.
Guardadas as devidas proporções, Grimmelshausen representa,
para o barroco alemão, o que Manuel Antônio de Almeida e seu
Memórias de um sargento de Milícia s signi�cam para o romantismo
brasileiro: arejamento, limpeza dos entulhos retóricos, do exagero
exótico, da adjetivação excessiva; e predileção pela ironia. Para um
tempo rico em poetas — e que teve grandes nomes, como o jesuíta
Friedrich Spee, Paul Gerhardt (cujos versos foram musicados por
Bach), Angelus Silesius e Andreas Gryphius (que também foi
dramaturgo) —, é notável a escolha de Grimmelshausen pela prosa.
Anônimo, esse empobrecido descendente de aristocratas tinha perfeita
consciência de que seu trabalho ia na contramão da época. Movido
por uma inesgotável sofreguidão de narrar, ele desprezou os falsos
eruditos, os pretensiososque produziam versos fúteis, ocos, e pôde,
vivendo longe da in�uência deles, entregar-se ao romance, gênero que
consolidou.
Primeiro grande romancista da literatura alemã, Grimmelshausen
viveu num dos períodos mais conturbados da história, o da Guerra
dos Trinta Anos (1618-1648), con�ito iniciado pelo choque, no centro
do Sacro Império Romano Germânico, entre os partidários da
Reforma e da Contra-Reforma. A intervenção gradativa de vários
países no combate transformou um problema localizado em uma
guerra na qual as potências já não se preocupavam com a defesa de
questões religiosas, mas com a luta pela hegemonia na Europa
Central. Para se ter uma idéia da grandiosidade do con�ito, quando a
guerra terminou, a população masculina da Alemanha estava reduzida
à metade. O exército sueco, por exemplo, um dos mais sanguinários
da história, destruiu, só na Alemanha, quase vinte mil povoados.
Maurício Mendonça Cardozo, no elucidativo posfácio de O
Aventuroso Simplicissimus , conta que a cidade de Grimmelshausen,
Gelnhause, foi invadida pelos espanhóis em 1634, por ocasião da
Batalha de Nördlingen, quando as tropas forçaram a população a se
esconder nas �orestas próximas. O escritor tinha treze anos. Acabou
sendo preso, depois tornou-se ajudante de regimento, a seguir soldado
e, salvo por saber ler e escrever, escrivão de regimento; mais tarde,
secretário de chancelaria. Terminada a guerra, instalou-se na
cidadezinha de Gaisbach, onde viveu da administração dos bens de
algumas famílias e do comércio de vinhos. Lutando para conseguir
uma situação estável, acabou nomeado prefeito de Renchen, na região
da Floresta Negra, cargo que ocupou até morrer, aos 55 anos.
A lei do viver
Desconhecido, assinando seus livros com vários pseudônimos —
anagramas de seu verdadeiro nome —, Grimmelshausen escreveu uma
obra que não é apenas exemplo da conhecida dualidade barroca, das
tensões antitéticas nas quais o homem se vê dividido entre suas
paixões e Deus, entre o pecado e a virtude, a fugacidade do presente e
a ânsia pela salvação. Sim, tais antíteses fazem parte do drama de
Simplicissimus — e sua luta interior, as divisões de sua personalidade,
as alternâncias de humor e de objetivo, bem como a insegurança e as
mudanças abruptas provocadas pela guerra, conformam o quadro
tipicamente barroco, em que a realidade parece se contorcer sobre si
mesma, transformando a vida do protagonista numa in�ndável
sucessão de alterações de curso.
Há um brilho especial na inconstância, no verdadeiro caos, nas
volutas de equívoco que engolfam o protagonista. Ele pode oscilar
entre alegria e tristeza, compenetração e arroubo guerreiro, luxúria e
isolamento, liberdade e prisão, amor e misoginia, busca da santidade e
pilhagem, mas está sempre imbuído de sinceridade, de certa leveza e
de propósitos que, bons ou maus, nos seduzem.
Ao mesmo tempo grave e sutil, Simplicissimus é um pícaro
perspicaz, de �níssimo humor, dissimulado, encantador, que jamais se
nega à auto-análise, à introspecção. Ele nos fascina a cada página,
pois seus dramas não o derrotam, mas servem para impulsioná-lo a
novas aventuras, agarrado à vida, sem jamais conceder às dúvidas e
aos temores aquela propriedade da angústia quase absoluta que
domina os heróis da literatura moderna. Trata-se de um homem que
alcança a mais re�nada forma de sabedoria: consegue rir dos
acontecimentos e, principalmente, de si mesmo.
Essa densa obra, parcialmente autobiográ�ca, na qual a sátira está
embebida de lirismo, inspira-se nos romances picarescos espanhóis —
Grimmelshausen deve ter lido o Lazarillo de Tormes , traduzido para
o alemão em 1617 — e funda o Bildungsroman .
Pastor de cabras e ovelhas, �lho adotivo de camponeses,
Simplicissimus lentamente evolui: toma consciência de sua própria
ignorância; aprende a arte da malícia; torna-se hábil esgrimista,
soldado invejado pela coragem e astúcia; especializa-se na artilharia e
na construção de fortalezas; inventa aparelhos curiosos e fantásticos;
domina a técnica da composição musical e aprende a tocar vários
instrumentos; alcança a fama como ladrão e ator; desvenda segredos
da alquimia; estuda astrologia, matemática, astronomia, cabala,
teologia; viaja pelo mundo; e é disputado como amante.
Narrando suas aventuras e desventuras, Simplicissimus muitas vezes
olha a própria história em retrospecto, e pode avaliar seu passado com
os olhos de um homem sábio, culto. E, se demonstra desilusão, ela é
passageira, pois viver exige presteza, diligência. Matreiro e, ao mesmo
tempo, justo, há uma ética subjacente a todos os seus atos.
Espirituoso, sempre com respostas e perguntas na ponta da língua —
o tradutor, Mario Luiz Frungillo, teve o cuidado de elaborar notas que
explicam os divertidíssimos trocadilhos —, ele tem a virtude de
conceder à pregação moral um papel menor em seu discurso, pois seu
principal desejo é o de que conheçamos um tipo humano peculiar, ele
próprio, síntese de todos os homens, que pretende nos ensinar a lei
que, em sua opinião, rege o viver:
Oh singular agir! Oh estar tão inconstante!
Quem pensa em se �rmar, logo é impelido adiante.
Oh condição fugaz, cuja queda segura
Vem antes da suposta paz, certeira e dura
Como a morte. Do que esta instável existência
Fez comigo se pode aqui tomar ciência,
E comprovar por �m que a inconstância apenas
É constante, ela só, na alegria e nas penas.
Engenhosidade
Otto Maria Carpeaux diz, com acerto, em sua História da
Literatura Ocidental , que Grimmelshausen “aspirava a um
cristianismo além das con�ssões dogmáticas”, mas discordo dele
quando a�rma, no Literatura alemã , que o �m de Simplicissimus é a
conversão. Primeiro, porque no �nal do Livro V (a tradução brasileira
engloba os seis livros que formam o corpo principal das aventuras
simplicianas), quando o protagonista se despede do mundo, ele apenas
retorna à vida de eremita (que já experimentara no início da obra) e
consuma o despojamento que, gradativamente, vinha realizando, sem
adotar qualquer religião em especial. E, segundo, porque ainda que o
Livro VI termine com o herói recusando-se a voltar à civilização,
depois de viver anos numa ilha deserta à qual fora lançado durante
um naufrágio, sabemos que Grimmelshausen deu seqüência às
aventuras de seu personagem com mais quatro livros, publicados entre
1670 e 1675. Neles, segundo Walter Muschg, em História trágica da
literatura , “Simplicissimus volta à Alemanha transformado em um
curandeiro milagroso, invocador de espíritos e descobridor de
tesouros; ganha a vida escrevendo trovas [...] e como vendedor
ambulante de um médico com quem percorre novamente metade da
Europa. Agora ele é ‘uma raposa velha, que viu, ouviu, aprendeu, leu
e experimentou muito durante a vida’”. Rea�rmando o lado �nório da
personalidade de seu protagonista, Grimmelshausen, ainda segundo
Muschg, transforma a charlatanice em parábola poética:
“Simplicissimus está construído totalmente sobre o tema do ilusório, e
a maneira como seu autor segue reelaborando-o só pode ser explicada
pelo prazer do jogo hermético, que ele leva no coração como todos os
gênios do cômico.”
Mas Grimmelshausen também faz uma radiogra�a da severa
estrati�cação social daquele período e da desordem criminosa
provocada pela guerra, analisa a organização dos Estados, coloca na
boca de um louco duras críticas aos governantes, escreve literatura de
viagem, cria sonhos que são parábolas e apólogos, e produz
acontecimentos de pura fantasia, nos quais Simplicissimus é
transportado a um sabá, visita certo mundo subaquático, no qual
vivem estranhas e geniais criaturas, domina as artes da magia e chega
a dialogar com a folha de um caderno in-oitavo : antes de lhe servir
como papel higiênico, ela reclama da fugacidade de sua vida e solicita,
em nome dos inúmeros serviços prestados, que não seja utilizada para
um �m tão desonroso; o que, evidentemente, lhe é negado.
Dono de fantástica engenhosidade, Grimmelshausen jamais teme
mostrar os vícios, os defeitos de seus personagens. Sem idealizar a
humanidade, lutando para sobreviver num tempohostil e precário, o
escritor consegue arrancar da imaginação a síntese buscada não só
pela literatura barroca: à única regra invariável da existência, a
inconstância, o homem não deve responder com lamentos, mas, sim,
tomar distância dos fatos; não sem antes emitir uma sonora
gargalhada.
SUBMETIDO AO DESESPERO — JAMES JOYCE
James Joyce passou a vida em busca de epifanias. Não a
manifestação divina, mas pequenas ou grandiosas iluminações que, ele
acreditava, escondiam-se sob os fatos e seriam capazes de arrancá-lo
do presente repleto de mesmice e angústia — luta, em grande parte
decepcionante, para libertar-se da Irlanda, das in�uências e
lembranças familiares, do catolicismo e de sua própria fragilidade.
Herdada do cristianismo, essa tentativa de compreender a realidade
a partir de uma perspectiva transcendental refuta as interpretações
comuns do tempo, da ordem dos fatos. Para Joyce, a história não
pode ser uma continuidade corruptível, que tem começo, meio e �m,
mas, como dizia Gregório de Nissa, deve ir “de começos em começos
por começos que não têm mais �m”. Ou, nas palavras de Agostinho
de Hipona, em suas Con�ssões , “não existem coisas futuras nem
passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o
passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com
propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas,
o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às
coisas futuras”.
Os motivos do escritor irlandês, contudo, não eram religiosos ou
teológicos, ele não estava preocupado em sublimar a imanência ou
distinguir, de forma profética, o destino �nal do homem e do mundo.
O que Joyce transformou em técnica literária, o registro do que ele
acreditava serem revelações, nasce do desespero para perpetuar o
presente, do temor de que tudo lhe escape a cada novo instante. Ele
tenta reter a essência dos acontecimentos — para que o tempo não
passe, não se desdobre. Como a�rma Harry Levin no clássico James
Joyce: A Critical Introduction , “o afã de toda a vida de Joyce foi
escapar do pesadelo da história, conceber a totalidade das
experiências humanas num plano simultâneo, sincronizar passado,
presente e futuro”.
Dois livros mostram aspectos do desespero joyceano: se Epifanias
apresenta alguns dos resultados que o autor alcançou na tentativa de
revelar mistérios para os quais a maioria dos homens está cega, em
Cartas a Nora (correspondência enviada à esposa, Nora Barnacle)
conhecemos a a�ição no seu estado mais cru, livre das regras que o
autor se impunha ao escrever literatura.
Epifanias é um livro desigual, provoca reações opostas. Para o
editor e crítico literário John Gross, esses pequenos textos são
“obstinadamente exânimes”, “carentes de drama”, “amorfos e
insubstanciais”. Na opinião de Harry Levin, podem ser lidos “como
exemplos de um gênero único e delicado, manifestações concretas da
quidditas [essência] escolástica ou do porquê das coisas”. Ambos
estão certos, a depender do trecho escolhido.
O leitor que enfrenta a primeira epifania pensará como Gross.
Trata-se de um diálogo que só adquire sentido ao ser redescoberto no
início de Retrato do artista quando jovem . Mas se não empreendemos
esse exercício detetivesco ou não procuramos o auxílio de um guia
seguro, as poucas linhas transformam-se numa cena desprovida de
sentido — e podem despertar a culpa no leitor inexperiente, que se
perguntará por qual motivo não percebe a singularidade de um texto
assinado pelo autor de Ulysses . Não há erro nenhum, no entanto,
pois esses fragmentos são apenas exercícios de estilo, excertos de
diálogos, rápidas cenas urbanas, visões do mundo onírico, amostras
do que ele desenvolveria nos contos e romances.
As epifanias mostram a distância que há, quando se dispõe apenas
de palavras, entre pretender desvelar um episódio fortuito e atingir
realmente o objetivo, a ponto de produzir algo semelhante a um
arrebatamento. Convidam o leitor a se manter eqüidistante da
veneração e do menosprezo; só assim não se comportará como alguns
obsessivos estudiosos, que poderiam descobrir literariedade até mesmo
numa lista de compras, se encontrassem alguma escrita por Joyce.
Mas há passagens extraordinárias, como a Epifania 33, na qual a
primeira impressão, fotográ�ca, prolonga-se num quadro noturno
povoado de prostitutas melancólicas e carentes. Ele a utilizará anos
mais tarde, no Ulysses , mas antes transcreve o trecho, com variações,
numa carta pungente que envia a Nora, em 29 de agosto de 1904. Só
depois de lermos tal peça autobiográ�ca começamos a entender esse
homem dilacerado pelo remorso e pelo anseio de ser famoso.
É curioso que, num espaço de três décadas, esta seja a segunda
edição brasileira das cartas de Joyce a Nora — a primeira, de 1982,
foi lançada por Massao Ohno & Roswitha Kempf, com tradução de
Mary Pedrosa. Nossos editores parecem dar preferência às con�ssões
íntimas do escritor, desprezando, na ampla epistologra�a que deixou,
as cartas, por exemplo, a Ezra Pound ou Sylvia Beach, sua benfeitora.
De qualquer forma, a correspondência revela muito mais que o
escritor fetichista. Nora não foi apenas a epifania carnal de Joyce —
veja-se, na carta de 21 de agosto de 1909, a descrição próxima de um
êxtase místico: “Teu amor me atravessou e agora sinto que a minha
alma é algo assim como uma opala, isto é, cheia de matizes e de cores
estranhamente variáveis” —, mas tornou-se, para o escritor apóstata,
a substituta profana da Virgem Maria: “Minha mãezinha, me ponha
no escuro santuário do teu útero. Proteja-me, querida, do mal! Sou
muito criançola e impulsivo para viver só. Me ajude, querida, ore por
mim!” (24 de dezembro de 1909). Esse trecho e outros, repletos de
lamentos tediosos, escritos por um menino inseguro e desprotegido,
não passam de degradações, na forma e no conteúdo, das epifanias 7 e
34, em que brilha o tema do amor maternal.
À parte os clichês melosos e as súplicas infantis, o desespero de
Joyce se irradia por todas as direções. Exige que Nora recorde os
locais onde se encontraram e, segundo ele, foram felizes. Ela passa
cinco dias sem lhe enviar uma carta e ele a acusa de ter esquecido “os
belos dias do nosso amor”. Reconhece que tal cobrança é algo
monstruoso — mas volta a fazê-la na mesma carta (12 de julho de
1912). Quando está em Dublin, visita repetidamente esses lugares,
incluindo os que ela habitou; e sua desesperadora insistência em
recordar está longe do sereno “presente respeitante às coisas
passadas” de Agostinho: “Vejo-te... vejo-te... vejo-te...”, repisa ele a 25
de outubro de 1909, buscando epifanias que façam renascer o passado
tirânico.
Há igual sentimento em relação ao futuro. Reconhece que as
“ambições desmedidas” são as “forças dominantes” de sua vida (27
de outubro de 1909) e a promessa de alcançar a fama, o sonho de
Stephen Dedalus, seu alter ego , de um tempo ulterior em que suas
epifanias serão enviadas a “todas as grandes bibliotecas do mundo,
incluindo a de Alexandria” (em Ulysses ), ecoa pelas cartas.
Nada muda quando se trata do “presente respeitante às coisas
presentes”. O Joyce perfeccionista, capaz de ordenar detalhes no
vestuário de Nora, é o mesmo que visitava amigos para anotar trechos
de seus diálogos e apreender, nas conversas banais, o indício de algo
único, revelador. Ele reconhece, a 22 de agosto de 1912, sua
compulsão: depois de perguntas e recomendações que descem a
detalhes da higiene pessoal de Nora, exclama, num paroxismo, “Pobre
Jim! Sempre planejando e planejando!”.
A realidade se encarregou de atormentar o autor de Finnegans
Wake com anti-epifanias. E apesar do permanente remordimento da
consciência — o agenbite of inwit que ele inocula no personagem
Leopold Bloom, de Ulysses —, Joyce conseguiu extrair beleza do
desespero. Os “cascos que brilham no meio da pesada noite como
diamantes, apressando-se para além do gris” (Epifania 27), ou os
olhos de Nora, “�ores silvestres azuis crescendo em alguma sebe
emaranhada e molhada de chuva”, na carta escrita a 19 de novembro
de 1909, são comoventes.Mas a “besta ártica”, que o escritor fustiga com a bengala na
Epifania 16, avulta de forma perturbadora: ela é o próprio James
Joyce, contorcendo-se sobre si mesmo e murmurando palavras numa
língua incompreensível.
ANTES DO SILÊNCIO — CARMEN LAFORET
Carmen Laforet pertence àquele grupo de escritores notabilizados
por uma única obra, que alcançou sucesso graças à con�uência de
vários fatores, incluindo-se o literário. No caso especí�co dessa catalã,
é curioso que, depois do seu primeiro e famoso romance, Nada , a
crítica tenha deixado de se empolgar com os poucos trabalhos que ela
publicou — e há certa estranheza na maneira como Laforet acaba
enveredando por uma senda de progressivo isolamento. Nem mesmo
seu terceiro livro, La mujer nueva , narrativa de sua angustiada
reconversão ao catolicismo — que lhe valeu o Prêmio Menorca, o
Prêmio Nacional de Literatura e alguns problemas com a censura
eclesiástica que vigorava na Espanha franquista —, demonstrou ter
força su�ciente para não apenas impor-se no quadro da literatura
espanhola, mas, principalmente, convencer a escritora do seu próprio
valor. Em 1963 surgiria um novo romance, La insolación , mas a
partir desse ponto a voz de Laforet murcha até alcançar completo
silêncio, sem cumprir o plano da trilogia intitulada Tres pasos fuera
del tiempo , da qual La insolación seria o primeiro volume. O
segundo, Al volver la esquina , surgirá postumamente, em 2004.
Assim, chega a ser desolador que o furacão provocado por Nada
não tenha se repetido. Depois de vencer a primeira edição do Prêmio
Nadal, o romance, publicado em 1945, ganhou reimpressões quase
que imediatas. Mais tarde, em 1948, a Real Academia Espanhola
distingue Laforet com o Prêmio Fastenrath, o que assegura ao livro
um êxito que repercutiria nas décadas de 1950 e 1960, conquistando,
até hoje, leitores e o respeito da crítica.
Sem diminuir o valor da obra, essa reação, quando analisada
passado mais de meio século, pode ser facilmente compreendida: na
Espanha em que o ódio entre franquistas e republicanos permanecia
latente, com algumas das melhores vozes literárias exiladas, mortas ou
silenciadas pela censura, parece natural que a jovem Carmen Laforet e
sua personagem/narradora Andrea — ingênua, tímida e frágil,
tentando se libertar de uma família moralmente devastada, e ao
mesmo tempo ansiando por amizade, amor e segurança —
arrebatassem o país. Elas se tornaram, sem dúvida, a metáfora de uma
Espanha que, apesar da destruição e dos miasmas da guerra que
também devastara a Europa, buscava renascer.
Pássaros escuros
O primeiro capítulo de Nada já nos mostra a desenvoltura de
Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna,
carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras
impressões da cidade — intensas, marcadas por um poder de síntese
que recupera odores, luzes, sons — e o clima de crescente expectativa,
rompido abruptamente, logo no primeiro contato com os familiares,
“�guras alongadas, quietas e tristes, como luzes de um velório de
interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se transmuta em
pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece
povoado de �guras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas,
coberta pela manta preta, assemelha-se a um ataúde. As ilusões se
desfazem.
A família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e
escândalos. A violência entre irmãos impera. E o drama será levado ao
extremo pela crescente pobreza, pela fome. Relacionando-se com
desrespeito e cinismo, os parentes se apegam a seus mundinhos
particulares, a certezas mesquinhas, afundando cada dia mais.
Naquele apartamento se concentram os vícios humanos — e a
narradora compara os moradores, acertadamente, aos personagens
dos Caprichos , de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a
sátira ou o grotesco das gravuras do pintor, mas é igualmente
implacável. Angustias, a tia hipócrita e autoritária, é “uma daquelas
últimas folhas de outono, mortas na árvore antes de serem arrancadas
pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que eram
como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por
terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que
guarda alguma dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo
quase arteriosclerótico, movendo-se pelo apartamento às escuras com
“distinção espectral”.
Orfandade
A esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet
contrapõe o mundo da universidade, com os amigos igualmente
burgueses, mas abastados. Pouco saberemos dos estudos, das leituras
de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que sente por causa dos
sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade provocado pela
pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe,
mesmo que isso signi�que não ter dinheiro para comer. É a forma de
Andrea mendigar atenção, amor.
A jornada da protagonista oscila entre preservar sua
individualidade e construir relações que possam libertá-la da família
— e também de seus medos, da insegurança, de suas carências. Sem
amor-próprio, porém, ela se torna uma presa fácil das armadilhas que
se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um grupo de
jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza — ao
contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos,
contaminados por um persistente sentimento de inadequação. Os dias
mais felizes serão passados ao lado de Ena e seu namorado, Jaime.
Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada; e,
terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão.
Há uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu
desamparo é mais vasto, mais denso. E, para amadurecer, Andrea
pagará alto preço, nada aviltante, é verdade, mas constituído por uma
série de descobertas dolorosas. E ela só consegue vencer algumas de
suas inseguranças e abandonar a família depois de agir exatamente
como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante
brevíssimo tempo.
A solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de
um convite inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente.
Fica-se, portanto, com a impressão de que o processo de
amadurecimento não se completou. Ela se despede de nós — e jamais
saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim, diferente
do que alguns dizem, Nada não é um clássico Bildungsroman , pois
enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela
que ultrapassamos para garantir o direito de entrar na vida adulta.
Nômade
Fernando Valls, professor de literatura espanhola contemporânea
da Universidade Autônoma de Barcelona, questiona-se sobre o
misterioso silêncio de Carmen Laforet, do qual falamos no início. Na
opinião de Valls, “tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as
obras que tinham como fundo as vicissitudes de sua própria biogra�a,
ela não foi capaz de obter os mesmos sucessos com a invenção de
outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com absoluta razão, o
caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a “exigência
incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para
alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual
aspirava com tamanho afã”.
Faltam-me elementos para avançar nessas re�exões. Mas tenho a
viva impressão de que Laforet passou sua vida em permanente crise,
sem jamais encontrar a resposta que pudesse satisfazê-la plenamente.
Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela renunciaria ao
catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar sem
rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea
repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que
tudo segue, desbota, estraga, enquanto a vida continua. Que não
existe �nal na nossa história até que chega a morte e o corpo se
desfaz...”. Não por outro motivo, seu principal romance chama-se
Nada . Mas é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de
vazio tenham dominado sua existência. Viver imersa em uma
atmosfera soturna teria sido um peso excessivo, injusto, para essa
mulhercuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa
na cisão e no ódio.
TÍMIDO ACERTO DE CONTAS — 
JEAN-MARIE GUSTAVE LE CLÉZIO
No prefácio à segunda edição de A interpretação dos sonhos ,
Sigmund Freud faz um longo comentário a respeito da elaboração
dessa obra que se tornou marco revolucionário do estudo sobre os
mecanismos da psique: “[...] Este livro tem para mim, pessoalmente,
[...] uma importância que só apreendi após tê-lo concluído. Ele foi,
como veri�quei, parte de minha própria auto-análise, minha reação à
morte de meu pai — isto é, ao evento mais importante, à perda mais
pungente da vida de um homem”.
À parte as considerações de cunho estritamente psicanalítico que
continuam sendo tecidas a partir dessa observação; e à parte,
principalmente, as simpli�cações, tão ao gosto popular — tal
referência à perda do pai transformou-se num repetido aforismo —, o
importante, para nosso objetivo, é o fato de A interpretação dos
sonhos ter nascido, inclusive, como resposta de um homem à
necessidade de assimilar o luto causado pela morte paterna. Morte,
aliás, ainda segundo a psicanálise, desejada na infância. Luto,
portanto, que, ao ser superado, representaria a libertação de uma
culpa — e, supõe-se, o nascimento do homem pleno.
Nem todos, contudo, têm o privilégio de possuir a capacidade para
empreender, sozinhos, esse doloroso processo. Alguns, agindo de
maneira solitária e intuitiva, alcançam certo êxito. Mas a grande
maioria, inconsciente de tantas outras questões, restringe-se a cumprir
seu doloroso fado. No caso do escritor Jean-Marie Gustave Le Clézio,
ele também optou por escrever um livro, O africano .
Regras coercivas
Médico do governo britânico na África, o pai de Le Clézio passaria
nesse continente a maior parte de sua vida. Separados pela Segunda
Guerra Mundial, pai e �lho se reencontrariam em solo africano logo
após a derrota alemã, a �m de vivenciarem o desencontro inevitável
entre o garoto mimado pela mãe e pelos avós maternos — se não
satisfaziam seus desejos, ele passava a jogar objetos e móveis pela
janela do apartamento, até ser atendido — e o pai precocemente
envelhecido, facilmente irritável, disciplinador e autoritário.
Para chegar ao pai, Le Clézio retoma sua própria infância na
África. Não se trata, no entanto, de uma recuperação minuciosa. Num
tom intimista, o narrador discorre super�cialmente sobre corpos,
rostos, cicatrizes, rituais, a falta de pudor “magní�ca”, a liberdade
experimentada nas grandes extensões da savana — repetidas vezes
comparada a imagens marinhas, oceânicas —, a natureza exuberante,
os insetos que se reproduzem em profusão, o calor. “A África [...]
dava-me um corpo dolorido e febril, esse corpo que a França me
ocultara na doçura anemiante da casa de minha avó, sem instinto, sem
liberdade”, diz Le Clézio, compondo uma �gura simpli�cadora.
Sua vida na África, o que o autor chama de “ingresso na
antecâmara do mundo adulto”, seria marcada, no entanto, pela
excessiva autoridade paterna. Vivendo sob um sistema de regras
coercivas — algumas, de fato, necessárias, outras totalmente absurdas
—, ele conhece a submissão ao homem que, além de lhe arrebatar a
mãe, tolhe sua personalidade.
A cada página, aguardamos que Le Clézio enfrente o que de fato
sentia em relação ao pai — quantas vezes o odiou? Quantas vezes
desejou insultá-lo? Quantas noites sonhou com sua morte? —, mas a
narrativa super�cial se impõe, os detalhes são escamoteados, a
verdade jamais chega a emergir. Em nenhum momento o narrador se
permite uma auto-análise severa — e a cada novo parágrafo temos a
crescente certeza de que a intenção de esconder os fatos, dissimulada
no texto, obedece à falta de coragem ou, talvez, a uma estranha
necessidade de autopreservação.
A tarefa de se enganar
Apesar do super�cialismo, a grande tarefa que Le Clézio se impõe é
a de resgatar seu pai. E ele a empreende repetidas vezes, enfocando
certos assuntos, inclusive, de forma cíclica. Mas sem nunca ir ao
fundo das questões.
O pai foge do primeiro emprego como médico — e o narrador
conclui, apressadamente, que ele o fez “para escapar da mediocridade
da vida inglesa, e também pelo pendor à aventura”. O leitor se
surpreende com a conclusão rápida, incisiva, sem qualquer
embasamento; mas logo depois passa a compreender a lógica que
move esse narrador sempre pronto a se iludir, pois, para ele, o único
pai possível, o único pai aceitável é a �gura quixotesca do herói que
desprezou o colonialismo — “os donos de plantações e seus ares de
grandeza”, o “conformismo da sociedade inglesa”, o “mundo colonial
e sua presunçosa injustiça”, com “suas amantes de ébano prostituídas
aos quinze anos, introduzidas pelas portas dos fundos, e as esposas
o�ciais bufando de calor e projetando nos serviçais [...] o rancor que
tinham” —, isolando-se na miséria africana, lendo insistentemente A
imitação de Cristo e dedicando-se, mais do que à medicina, à tentativa
de, por meio da medicina, purgar-se das próprias frustrações.
Além de super�cialidade, há também idealização. Um exemplo são
os comentários sobre certa fotogra�a: um rio como qualquer outro
rio, uma paisagem desolada, pobre e comum, tendo uma casinhola à
margem. Mas o narrador vê “selvageria e mistério”. O conhecimento
de que foi ali que seu pai se instalou certa vez, que essa casinha serve
como exemplo de tantas outras habitações passageiras utilizadas pelo
pai, basta para criar a atmosfera engrandecedora. Um psicanalista
talvez possa dizer por que o pai despótico precisa ser substituído pelo
pai heróico — mas, para nós, é su�ciente sabermos que a tentativa de
substituição não convence.
A incrível disparidade que há entre fotos e texto repete-se na
descrição do rei Banso, cuja fotogra�a também ilustra o livro,
levando-nos a pensar que o narrador está irremediavelmente preso às
suas fantasias, tentando, a qualquer preço, dar uma nova roupagem
ao frágil legado paterno.
Em determinado trecho, ele diz que pode “sentir a emoção que
possui” o pai “quando ele atravessa as chapadas e as planícies
herbosas, quando cavalga pelas trilhas que serpenteiam por �ancos de
montanhas, descobrindo a cada instante novos panoramas [...]” —
mas não nos fala que emoção é essa. E não verbaliza porque não sabe,
porque o pai será eternamente uma incógnita. Mas ele se dá conta
dessa impossibilidade? E, principalmente, se dá conta dessa
idealização pueril? Temos a impressão de que, a cada página, Le
Clézio leva adiante a consoladora tarefa de se enganar.
Indulgência
Esse narrador pusilânime passa ao largo dos dramas que poderia
esmiuçar e, quem sabe, esclarecer. Não nos explica os motivos da
grave crise que dividiu e dispersou a família paterna, formada por
ingleses radicados nas Ilhas Maurício. E sua visão da África está
repleta dos lugares-comuns que culpam os colonizadores pela miséria
do continente — mundo no qual, com exceção de seus pais, todos os
brancos são impuros e não merecem con�ança.
Aliás, no que se refere ao casal que o gerou, o narrador alcança o
ápice da idealização: no meio de um verdadeiro inferno, vivendo
expatriados de tudo que a civilização ocidental conquistou, os pais de
Le Clézio são seres perfeitos — Adão e Eva expulsos da hipócrita
sociedade européia e convocados a recriar o novo paraíso em solo
africano.
Tímido acerto de contas com o passado, O africano é o livro de um
adolescente sexagenário — indulgente consigo mesmo, indulgente com
a África, indulgente em relação ao pai. Como Enéias nas profundezas
do Hades, Le Clézio tenta abraçar Anquises repetidas vezes, mas
sempre em vão, pois a sombra paterna lhe foge de maneira
irremediável.
ONDE ESTÁ O BARDO? — 
WILLIAM SHAKESPEARE
Jamais esquecerei o primeiro encontro com Shakespeare. Há quase
cinqüenta anos, meu colégio organizou uma excursão a São Paulo,
para que assistíssemos a Ricardo III , no Teatro Municipal. Diferente
dos outros alunos, eu sabia do que a peça tratava. Não cheguei a ler
Ricardo III naquela época, mas meu pai gastou um bom tempo
falando-me de Ricardo, duque de Gloucester, e da Guerradas Rosas.
Numa noite fria, sentamos, duas ou três turmas, lá em cima, no
an�teatro — mas um fato extraordinário ocorreu. Por alguma razão,
o reinado de horror transformou-se em comédia. Tudo era motivo de
riso: do cortejo fúnebre de Henrique VI até os combates �nais,
passando pelo assassinato dos príncipes. Um riso espontâneo, apenas
aqui e ali motivado pela encenação. Eu me contorcia na cadeira, sem
rir, acompanhando cada lance do drama, enquanto a platéia, às
gargalhadas, refutava os con�itos, imatura para entender o patético.
Saí do teatro em silêncio, devastado pelo estranhamento. Havia algo
de errado em tudo aquilo — e eu me transformara num estrangeiro.
Sensações semelhantes repetiram-se enquanto lia algumas das peças
do Teatro completo de Shakespeare, na tradução de Carlos Alberto da
Costa Nunes, publicada pela Editora Agir.
Essa tradução sofre, dentre outros problemas, de um anacronismo
que muitos chamam de erudição. A variada cultura de Nunes é
incontestável, e raros tradutores conseguem se dedicar, com igual
empenho, a originais gregos, latinos e ingleses, o que esse médico
maranhense fez durante grande parte do seu quase um século de
existência. Mas, neste caso, seu trabalho é carregado de cultismo, há
um excesso de re�namento, e Nunes esquece que o Bardo concebeu
suas peças, antes de tudo, para serem representadas. Representadas
não exclusivamente à nobreza, mas principalmente no Globe Theatre,
onde se reuniam bêbados, prostitutas, comerciantes, intelectuais — e
também nobres. Assim, a tradução que deveria buscar a simplicidade
ganha características tortuosas, como se todo clássico fosse,
necessariamente, complicado, difícil.
Mesmo o argumento de que a tradução de Nunes é exclusivamente
para leitura não justi�ca suas escolhas, pois não há dois Shakespeares
— um para o leitor solitário, outro para o palco. O dramaturgo que
eletrizava as platéias do Globe — na acertada opinião de Samuel
Johnson, ele “aproxima o distante e torna familiar o extraordinário”
— deixou seus preciosismos para os sonetos, acreditando que eles,
sim, o fariam alcançar a imortalidade; e preferindo, nas peças,
dialogar com o público.
Entretanto, há outras questões que merecem atenção no trabalho de
Carlos Alberto Nunes.
Maquinações políticas
No drama Henrique VIII , por exemplo, Shakespeare abre a peça
com o diálogo de Buckingham e Norfolk, duques da corte, que
comentam sobre o encontro entre os reis da Inglaterra e da França, a
�m de estabelecer um tratado. Criticam o excesso de luxo do evento,
que durou vários dias, argumentando que tudo não passou de
cenogra�a inútil, pois a França continuava a desrespeitar os termos do
acordo.
Buckingham, que não pôde estar presente, pergunta a Norfolk
quem foi o responsável por organizar a reunião — e só depois de
insistir ouve a resposta: “Alguém, decerto, / que inclinação nenhuma
demonstrara / para um negócio desses”. A fala, que alude ao cardeal
Wolsey, lorde chanceler de Henrique VIII, homem de sua total
con�ança, soa estranhíssima, ilógica, pois a especialidade de Wolsey é,
como descobrimos no transcorrer da peça, exatamente dar às
super�cialidades o ar da grandeza, montar estratagemas, ser ardiloso,
perseguir seus inimigos e enganar o próprio rei. Nossa tese se con�rma
quando consultamos a tradução de F. Carlos de Almeida Cunha
Medeiros e Oscar Mendes, na Obra completa de Shakespeare,
publicada pela Editora Nova Aguilar. Eis a resposta sucinta de
Norfolk: “Alguém que, certamente, não é noviço nesta classe de
negócios”. Ou seja, o oposto do que Nunes propõe.
Logo a seguir, em uma fala de Buckingham, a escolha de Nunes, de
se prender à versi�cação, cobra seu preço na forma de um cacófato e
da sintaxe confusa, sem transparência: “[...] Ele mesmo / a lista
preparou dos gentis-homens, / de maneira geral só escolhendo / os a
que ele pretende impor um fardo / muito grande para honra
secundária”. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes
(que a partir de agora chamaremos de CM e OM), abdicando do
verso, fazem melhor: “Ele mesmo fez a lista dos gentis-homens,
escolhendo aqueles a quem deseja impor um pesado encargo, a troco
de pequenas mercês”.
Em dado momento, outro nobre, Abergavenny, comentando sobre
parentes que se endividaram para participar do encontro entre os reis,
a�rma: “de tal modo esgotaram seus haveres, / que jamais poderão
voltar ao prístino / bem-estar da família”. CM e OM usam apenas
“nunca mais voltarão ao antigo estado de conforto”, não ousando
inserir um arcaísmo como “prístino”, que na década de 1950, data da
primeira edição deste trabalho de Carlos Alberto da Costa Nunes, já
era usado somente nos piores exemplos da oratória tupiniquim.
As rubricas também apresentam problemas. Vejamos: “Entra o
cardeal Wolsey; a bolsa é trazida na sua frente; alguns guardas e dois
secretários com papéis o seguem”. Ora, o leitor de Nunes �ca se
perguntando sobre essa estranha bolsa, mas não encontrará resposta,
a não ser que leia uma das notas de CM e OM, quando será
informado de que a bolsa, carregada por alguém do séquito, contém o
grande selo, símbolo do rei, que confere autoridade a Wolsey.
Quando Norfolk tenta acalmar Buckingham, usando alusões
tipicamente shakespearianas, ele diz, segundo CM e OM: “Sede
prudente, não acendais para nosso inimigo uma fornalha tão quente
que sirva para chamuscar-vos [...]. Não sabeis que o fogo que empurra
o líquido até fazê-lo transbordar, parecendo que o aumenta, faz que
ele diminua?”. Em Nunes, a confusa organização do pensamento e a
escolha de utilizar “licor” na rara acepção de “qualquer líquido”
exaurem a fala: “Como o sabeis, a chama que o licor / faz subir na
vasilha e derramar-se, / parecendo aumentá-lo, o esgota apenas”.
As colocações dos pronomes também massacram o leitor.
Agradecendo a Wolsey, o rei (Ato I, Cena 2), diz: “[...] Eu me
encontrava / na iminência de ser estraçalhado / pela de�agração de
uma conjura. / Mas frustraste-la; muito agradecido”. CM e OM,
menos formais, novamente resolvem melhor: “Eu me achava debaixo
da ameaça de uma conspiração prestes a estalar e agradeço porque a
�zestes fracassar”.
Cacófatos e exercícios de tortura com a língua são freqüentes em
Nunes. Ouvindo as falsas acusações contra Buckingham, Henrique
VIII interrompe a testemunha e comenta: “Lembro-me ainda / desse
fato: sendo ele do meu feudo, / entre os vassalos dele o pôs o duque”.
CM e OM, ao contrário, não maltratam o português (e muito menos
o leitor): “Estou lembrando desse dia... Embora estivesse ele obrigado
a servir-me, o duque o reteve a seu serviço...”.
Drama da maturidade de Shakespeare, Henrique VIII é uma
história de maquinações políticas — na qual a lei obedece a planos
furtivos, à sede de poder, e não ao direito, à justiça. Mesmo que
Wolsey acabe por ser denunciado, a sensação �nal, com a queda da
rainha Catarina e o casamento de Henrique e Ana Bolena, é a da
prevalência do mais ardiloso, daquele que consegue torcer a lei em seu
benefício, mediante inúmeros artifícios.
Como sempre, Shakespeare nos oferece um panorama da
humanidade. Ou, segundo o que ensina Samuel Johnson no seu
Prefácio a Shakespeare ,
suas peças não são, no sentido exato e crítico, nem tragédias nem comédias, e sim
composições de uma espécie diferente, mostrando a condição real da natureza sublunar,
que abrange o bem e o mal, a alegria e a tristeza, misturados em uma proporção
in�nitamente variável e combinados de inúmeras maneiras, re�etindo o curso do mundo,
onde a perda de um é o benefício de outro; onde, ao mesmo tempo, o libertino está
correndo para o seu vinho e o pesaroso enterrando seu amigo; onde a maldade de um é
às vezes derrotada pela galhofa de outro, e muitos malefícios e muitos benefícios são
feitos e impedidos sem nenhum motivo.
Em meio às intrigas da corte, por exemplo, dois lordes (Ato I, Cena
2) criticam as modas importadas dos franceses e, assim, reforçam a
velha rivalidade entre França e Inglaterra — um diálogo que deveria
fazer a platéia do Globe vir abaixo de tanto rir. Na Cena 4 do Ato I, o
duplo sentidodas palavras confere lubricidade ao diálogo dos nobres.
E quando as mulheres sentam-se à mesa, as falas prosseguem,
levemente licenciosas, reforçando a sugestão do adultério que o rei
está prestes a cometer.
Logo a seguir, na primeira cena do Ato II, a contraposição é
perfeita: graças à conversa de dois desconhecidos, sabemos que,
enquanto Henrique e a corte se divertiam, Buckingham era condenado
pelos juízes, apesar de os testemunhos terem sido forjados por Wolsey.
Temos, então, a despedida de Buckingham, nobre, plena de dignidade,
criando um terrível contraste em relação à cena passada. Durante seu
discurso, o duque fala de si mesmo na terceira pessoa, como se �zesse
referência a alguém que já não existe, o que amplia a dramaticidade.
Aqui, na tradução de CM e OM: “Ó vós, seres raros que me estimais
e ousais chorar por Buckingham; vós, seres nobres, amigos e
companheiros, cujo adeus é para ele a única amargura, a única morte,
acompanhai-o como amigos bons, até seu �m; e, quando o longo
divórcio do aço cair sobre mim, fazei de vossas orações um inefável
sacrifício e levai minha alma para o céu [...]”. Até o �nal, não menos
digno, profundamente amargurado (na tradução de Nunes): “Quando
algo triste relatar quiserdes, / contai como eu caí”.
As escolhas de Shakespeare em relação a Henrique e Ana Bolena
são curiosas. Ana parece estar longe de ser uma sedutora, mas dúvidas
sobre suas intenções são despertadas no leitor por uma dama de
companhia (Ato II, Cena 3). A velha irônica, que aguilhoa Ana com
perguntas, coloca a nova escolhida de Henrique numa situação
desconfortável. No que se refere ao rei, seu divórcio de Catarina é
justi�cado utilizando-se um problema de consciência — e não o seu
caráter voluptuoso, ou a necessidade de ter um herdeiro. Nesse
sentido, o drama às vezes assemelha-se a uma patriotice.
Os editores, infelizmente, não tiveram o cuidado de traduzir
expressões ou frases que o tradutor preferiu deixar na forma original.
Assim, em vários trechos, o leitor monolíngüe se perderá. Em
Henrique VIII , a hipocrisia de Wolsey está concentrada na frase em
latim que ele usa para tentar convencer Catarina de sua honestidade.
CM e OM traduziram a fala melí�ua: “Tão grande é a integridade de
nossa mente em relação a ti, sereníssima rainha...”
Catarina, por sua vez, mantém-se altiva. Shakespeare constrói uma
rainha inteligente, capaz de jogos verbais instigantes, como este, ao se
referir aos dois cardeais que lhe oferecem, falsamente, amizade: “Eu
pensava que fôsseis santos homens, por minha alma! Duas reverendas
virtudes cardeais! Mas, temo que sejais dois pecados cardeais, dois
corações hipócritas” (na tradução de CM e OM).
Quando Wolsey começa a perder prestígio, Shakespeare rege as
expectativas do público: na Cena 2 do Ato III, sabemos que o
monarca conhece as intenções do cardeal — e, para nosso maior
prazer, também sabemos que Wolsey não tem consciência disso,
sentindo-se plenamente seguro. O vilão está em maus lençóis, mas só
nós e o autor estamos cientes de sua derrocada, o que aumenta nosso
prazer.
Os monólogos de Wolsey, quando se vê perdido, não têm a
dignidade das falas de Buckingham ou de Catarina. Seu passado não
permite que tenhamos piedade dele — e seus discursos se assemelham
a lamentos de uma velha raposa. Mas não deixa de ser gracioso vê-lo
reconhecer que cairá “como brilhante meteoro ao entardecer” (Nunes
traduz, estranhamente, “como lúcido meteoro”) ou — exemplo de sua
invencível egolatria — imaginá-lo comparando-se a um anjo caído:
“Oh! Como é miserável o pobre homem que depende do favor dos
príncipes! Há entre o sorriso ao qual aspira, o doce olhar dos
príncipes e a própria desgraça, mais tormentos e temores do que os
causados pela guerra ou aqueles sofridos pelas mulheres. E quando
cai, cai como Lúcifer, desesperado para sempre!” (CM e OM).
Será Catarina, numa de suas falas mais brilhantes, próxima da
morte, quem dará ao leitor a síntese da personalidade de Wolsey (Ato
III, Cena 2): “Era incapaz de mostrar piedade, a não ser com aqueles
de quem projetava a ruína. Suas promessas eram o que ele então era:
magní�cas; mas o cumprimento delas era o que ele hoje é: nada” (CM
e OM).
Pouco antes do �nal, Shakespeare desloca nossa atenção para o
povo que se espreme nos portões do palácio, acotovelando-se para ver
o cortejo que leva Elizabeth, �lha de Henrique e Ana Bolena, à
cerimônia de batismo. A confusa tradução — e a ausência de notas —
matam o caráter malicioso da fala do porteiro, que reclama do
empurra-empurra. Ele diz, respondendo ao lacaio que lhe pergunta o
que deve fazer (segundo Nunes): “Que tereis de fazer, senão derrubá-
los / às dúzias? Acaso isto aqui é Moor�elds, para fazerem / uma
parada? Ou terá chegado a esta corte alguma / índia do estrangeiro,
com uma grande cauda, para / que as mulheres nos venham sitiar
dessa maneira? / Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está /
acontecendo atrás das portas!”.
Mas do que Shakespeare está falando? Índia com uma grande
cauda? CM e OM esclarecem: “Que quero que tu faças? Que os
derrubes às dúzias. Isto aqui é Moor�elds para que se reúnam aqui?
Ou acaba de chegar à corte algum estranho índio com um grande
instrumento, para que as mulheres nos assediem desta maneira? Deus
me abençoe! Que fervedouro de fornicações há na porta!”.
Completam o trecho, na edição da Nova Aguilar, duas notas: uma
salienta o sentido obsceno de great tool ; enquanto a outra nos explica
o porquê da referência a Moor�elds: tratava-se de um campo usado
para passeios.
Indulgente com a falta de escrúpulos de Henrique VIII, um
personagem menor na peça, Shakespeare decepciona quando chega ao
�nal, fechando o espetáculo com uma profecia sobre os grandes feitos
da menina que se tornará Elizabeth I.
Moral nefasta
Dentre as tragédias de Shakespeare, a de abertura mais inusitada
talvez seja Macbeth , principalmente para quem teve a chance de
assistir no teatro. Quanto ao leitor, vê-se obrigado a imaginar, entre
trovões e relâmpagos, as três bruxas que praguejam em um local
deserto. As falas rápidas se sucedem, e Carlos Alberto Nunes,
infelizmente, não recria o tom incisivo das imprecações. Parte da força
se perde, inclusive, por ele não traduzir “Graymalkin” e “Paddock”,
expressões que se referem, nas conjuras das feiticeiras, ao “Gato
Cinza” e ao “Sapo”, os conhecidos animais de todas as histórias de
bruxaria. Nesse começo enfraquecido, a fala que elas pronunciam em
coro, antes de desaparecer — e que resume o clima da peça —
também soa debilitada: “São iguais o belo e o feio; / andemos da
névoa em meio”. Mas há outras traduções, melhores. CM e OM
dizem: “O belo é feio e o feio é belo! Pairemos entre a névoa e o ar
impuro!”; enquanto Manuel Bandeira prefere: “O Bem, o Mal! / — É
tudo igual. / Depressa, na névoa, no ar sujo sumamos!”.
Os leitores de Macbeth estão condenados a pairar “entre a névoa e
o ar impuro”, vendo o belo ser desprezado como feio — e o feio
enaltecido como belo, pois o que ressalta nessa tragédia é a corrupção
transformada em motor da história. Aqui, o mal está destituído de
qualquer banalidade, ganha vida própria e passa a justi�car todos os
comportamentos.
O corte da Cena 1 para a Cena 2, nesse primeiro ato, nos leva ao
campo de batalha. O rei, Duncan, e outros nobres encontram um
o�cial ferido e o questionam sobre os combates. Mas a resposta do
soldado, que enaltece Macbeth por ter derrotado o rebelde
Macdonwald com atos de bravura, soa parcialmente incompreensível
aos leitores de Nunes. Em certo trecho, ele diz: “O impiedoso
Macdonwald [...] suprimentos / das ilhas do oeste recebeu de quernes /
e galowglasses ; e a fortuna, rindo / para sua querela amaldiçoada, /
mostrou-se prostituta de um rebelde”. Quem seriam esses quernes e
galowglasses ?, pergunta-se o leitor. Vejamos como cuidaram do
trecho outros tradutores. CM e OM dizem: “O implacável
Macdonwald [...] recebera das ilhas do oeste um reforço de kerns e de
gallowglasses e a Fortuna, sorrindo-lhe para a maldita causa, parecia
prostituir-se ao traidor”. O textocomeça a �car mais claro, e uma
nota se encarregará de elucidar nossa principal dúvida: “ kerns eram
soldados de infantaria, [...] geralmente usados na antiga Irlanda. Os
gallowglasses eram mercenários estrangeiros armados com machados
[...]”. Mas há outra solução possível, que Bandeira nos oferece, mais
simples, certamente ideal para o palco: “O implacável Macdonwald
[...] das ilhas do oeste recebeu reforço / De tropas irlandesas, e a
Fortuna / Sorria-lhe à diabólica empreitada / Como rameira de
soldado”.
Ainda na Cena 2, Duncan se regozija ao saber da vitória de
Macbeth e decide premiá-lo com o título que pertencia ao inimigo:
thane de Cawdor. O rei termina sua ordem desta forma:
Duncan — Jamais de novo há de trair o thane / de Cawdor nosso afeto. Sem delongas /
o condenais à morte e com seu título / saudai Macbeth.
Ross — A mim tomo esse encargo.
Duncan — Folga Macbeth com o que para ele é amargo.
O “ele” dessa última fala refere-se ao traidor, mas a intercalação
das palavras de Ross e as frases sinuosas nos deixam em dúvida. Além
disso, a acepção do verbo “folgar”, neste caso, é completamente
anacrônica para o português falado no Brasil. Ninguém mais utiliza
“folgar” no sentido de “ter prazer” ou “alegrar-se”. Aliás, tal uso já
não era comum na década de 1950. CM e OM suavizam o caminho
do leitor, optando por uma solução extremamente simples — e
perfeita: “O que ele perdeu, Macbeth conquistou”.
Na Cena 3 desse primeiro ato, as bruxas retornam. Macbeth e
Banquo (outro comandante que luta a favor de Duncan), retornando
da batalha, ainda sem saber da decisão real, serão avisados, pelas
sibilas, das glórias que o futuro trará. Macbeth será, inclusive, rei. E
Banquo (que mais tarde morre por ordem de Macbeth), pai de reis.
A confusão dos sentidos ressurge nesse trecho. Macbeth comenta
jamais ter visto dia assim, tão feio e, ao mesmo tempo, tão belo. E,
segundos depois, Banquo interroga as bruxas: “Mulheres deveis ser,
embora as vossas / Barbas me impeçam crer que sois mulheres”
(Manuel Bandeira). Dessa forma, a própria realidade escapa a um
julgamento certo, renovando os indícios de que a luta pelo poder
instaurará um período de grave relativismo moral, em que a
dissimulação e o crime se tornarão lei.
As profecias das bruxas acendem a ambição de Macbeth, e ele
percebe o quanto a fantasia se apodera de sua consciência: “Meu
pensamento, onde o assassínio é ainda / Projeto apenas, move de tal
sorte / A minha simples condição humana, / Que as faculdades se me
paralisam / E nada existe mais senão aquilo / Que não existe”
(Manuel Bandeira). O futuro enquanto potência se apropria da
vontade de Macbeth, desencadeia sua cupidez — e ele se encarregará
de converter o improvável vaticínio em realidade. As predições das
feiticeiras não são, portanto, prognósticos certos, mas apenas liberam
o mal que Macbeth já traz dentro de si. E ele tem consciência disso,
pois, em outro trecho, quando se encontra diante do rei, dirá, à parte:
“[...] Estrelas, escondei vossos fulgores para que a luz não veja meus
negros e profundos desejos! Que os olhos se fechem diante de minha
mão e, entretanto, que se cumpra o que os olhos não ousariam olhar,
quando tudo estiver pronto para ser realizado!” (CM e OM). Trecho,
aliás, que a tradução de Nunes descaracteriza, inclusive sob o peso de
rimas paupérrimas: “Estrelas, escondei a luz jucunda, / para que a
escuridão não veja funda / de meus negros anseios! Que na frente / da
mão o olho se feche prontamente; / mas que se concretize o que,
acabado, / faça o olho estremecer de horrorizado”.
Lady Macbeth se incumbirá de empurrar o marido no escuro
precipício que ele corteja. Ela não hesita nos momentos-chave e se
revela mais inescrupulosa do que Macbeth. À medida que a trama
avança, no entanto, o sangue se torna insuportável, e ela constata:
“Nada se ganha, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem
satisfazer-nos. Mais vale ser a vítima do que viver com o crime numa
alegria cheia de inquietudes!” (CM e OM).
A moral de Macbeth não é apenas nefasta, mas também curiosa.
Para ele, se o mal praticado fosse punido somente post-mortem , não
haveria qualquer problema. A questão toda se concentra no fato de
que, ainda nesta vida, o mal se volta contra seu próprio agente. Esse
raciocínio é um dos momentos fundamentais da peça: “Se o
assassinato atirasse a rede sobre todas as conseqüências e capturasse
ao mesmo tempo o sucesso; se o golpe fosse tudo e terminasse tudo
aqui embaixo, no banco de areia e no baixio deste mundo,
arriscaríamos a vida futura... Mas, nestes casos, somos julgados aqui
mesmo; damos simplesmente lições sangrentas que, aprendidas, viram-
se para atormentar o inventor.” (CM e OM)
E por que, então, ele prossegue? Consciente de que o mal se voltará
contra ele, por que ele continua a agir? Esta é, sem dúvida, a mais
intrigante característica do homem: dar-se conta do erro — e persistir
nele. Freud, referindo-se à sua própria incapacidade para abandonar
os charutos, apesar de todos os males que o vício lhe causava, avaliou
esse comportamento, segundo Peter Gay, como “uma disposição
extremamente humana, que ele chamou de saber-e-não-saber, um
estado de apreensão racional que não resulta numa ação compatível”.
Nesse sentido, Macbeth não é um monstro, mas humano, demasiado
humano.
Ao saber da morte da esposa, a fala de Macbeth — que se tornou
clássica — impressiona não tanto pela famosa conclusão de que “a
vida é uma história repleta de som e fúria, contada por um idiota”,
mas, principalmente, pela visão da inexorável passagem do tempo — e
sua completa esterilidade: “O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança
em pequenos passos, de dia para dia, até a última sílaba da recordação
e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos o caminho da
poeira da morte”. Pensamentos, aliás, tão angustiantes quanto os de
Henry ‘Hotspur’ Percy ao morrer (em Rei Henrique IV , Primeira
Parte): “O pensamento é o escravo da vida e a vida é o bufão do
tempo, e o tempo, que domina todo o Universo, deve ele mesmo se
deter...” (traduções de CM e OM).
Todas as mais esdrúxulas profecias se cumprem: a �oresta de
Birnam se move — e Macbeth é morto por alguém que não nasceu de
um ventre de mulher. Para esse homem cegado pela ambição,
corruptor de todos os valores, nada mais justo que, no �nal, até a
natureza dê a impressão de se revoltar contra ele. Quando a cabeça de
Macbeth entra em cena, carregada por Macduff, o círculo se fecha —
o sangue do assassino estanca o sangue das vítimas.
Gigantesco bibelô
Uma questão se impõe, ao �nal destes comentários: não bastasse o
fato de o Teatro completo ser composto por três volumes pesados, de
leitura extremamente desconfortável, qual o sentido de se reeditar
uma tradução datada, que sequer foi corrigida em seus erros ou
deslizes, que não oferece notas indispensáveis e cujas introduções
estão superadas, em vários pontos, pela crítica contemporânea?
Fariam bem as editoras se seguissem o conselho de Marcia A. P.
Martins, da PUC do Rio de Janeiro, em uma das introduções a O
conto de inverno , peça de Shakespeare traduzida por José Roberto
O’Shea: precisamos de traduções que permitam “ao público brasileiro
apreciar o verso, a verve e a riqueza imagística shakespeariana sem
recorrer a pirotecnias estilísticas, que criam um efeito de intimidação e
conseqüente distanciamento, ou estratégias banalizadoras, que
simpli�cam a linguagem e privilegiam o enredo [...]”.
Num mercado editorial caracterizado, cada vez mais, pelo
pro�ssionalismo, em que ótimas traduções são oferecidas, o Teatro
completo — gigantesco bibelô — caminha na contramão, colaborando
para frustrar os leitores e afastá-los de Shakespeare e de sua magní�ca
dramaturgia.
O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL — 
ANTONIO DI BENEDETTO
O processo impregnado de complexidade, ao qual se sobrepõem
idéias de avanço ou expansão intensamente ideologizadas, e que
convencionamos chamar pelo nome de progresso , tem, dentre outros,
um atributo característico: tornar a organização da vida cada vez mais
tortuosa, ao invésde simpli�cá-la. Progredir é, em certos casos, um
sinônimo adequado de complicar. Os aparelhos, os sinais, as
linguagens e os sons gradativamente incorporados à vida consomem
nossa atenção, nossos gestos, nossa capacidade de entender. Além
disso, do manual de instruções de um aparelho eletrônico à
numeração das linhas de ônibus, passando pelo desenho das vias
urbanas, pelos impostos que escorcham e pelas regras que somos
obrigados a obedecer — inclusive nos atos mais simples, como o de
andar a pé ou de carro —, há uma evidente arbitrariedade que se
insinua no cotidiano, às vezes melí�ua, às vezes violenta.
Não há espaço melhor para averiguarmos as a�rmações acima do
que os principais centros urbanos. Na opinião do geógrafo Milton
Santos, um marxista romântico, “a cidade é o lugar em que o Mundo
se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos homens
a diferença. Por isso, a cidade é o lugar da educação e da reeducação.
Quanto maior a cidade, mais numeroso e signi�cativo o movimento,
mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o
aprendizado”.
Essa linha de pensamento, contudo, não é seguida por nós, os
realistas, entre os quais se inclui o narrador de O silencieiro , escrito
pelo argentino Antonio Di Benedetto. Para nós, o progresso
transformou as cidades em confusas aglomerações, nas quais a
opressão e o abuso vicejam.
Revolta e impotência
Mais do que os comportamentos expressos pelo su�xo eiro , o
narrador-personagem do romance de Di Benedetto anseia
desesperadamente pelo silêncio. E não se trata de uma aspiração, mas,
sim, de uma febre cuja intensidade aumenta na exata medida em que o
nível dos ruídos cresce.
Os barulhos, elementos inextricáveis da cidade, intrometem-se no
cotidiano desse homem, ganhando, pouco a pouco, existência própria.
Deixam de ser meras conseqüências do aprimoramento tecnológico e
se transformam em entidades possuidoras de uma teimosia que não só
perturba a vida, mas a altera profundamente. Recolhido ao quarto, o
narrador ouve, por exemplo, os sons a�itivos da o�cina mecânica
instalada no imóvel vizinho. Eles invadem o aposento; e a percepção
do ruído é tão intensa, que não se trata de apenas ouvi-lo, mas de
vivenciá-lo tal qual uma pena, um sofrimento: “Não o vejo,
simplesmente o padeço”. Em outro trecho, ele dirá que o ruído chega
ao “dorso” do dormitório, criando uma metáfora — repetida no
transcorrer da obra — que não deixa dúvidas sobre a força do
barulho, capaz de atingir o quarto como se este fosse parte do corpo
do protagonista.
Os ruídos indesejados arrombam a privacidade, obrigando os
personagens a participarem do que não lhes interessa: um churrasco
para comemorar a inauguração da o�cina; os bailes no salão aberto
do outro lado da rua; o programa de rádio que o proprietário da
venda próxima escuta no último volume.
Página a página, os rumores circundam e acossam o narrador,
obrigando-o a ser o que não deseja, a agir em desacordo com sua
índole. Violentado, ele busca refúgio na lei, mas o estudo do Código
Civil mostra-lhe as dubiedades do texto: uma defesa do cidadão, mas
também perigosa teia, na qual o reclamante pode se tornar réu.
Não há segurança, portanto. E a própria espera do barulho, sua
antevisão, a certeza de que ele se repetirá, despedaça o narrador. O
barulho, então, migra da o�cina para o âmago do personagem,
transformando-o num hospedeiro revoltado, mas impotente:
Volto ao lar. No caminho, a cidade que desce pela minha rua apaga suas vitrines, baixa
persianas: desmantela seus andaimes de trabalho. Até amanhã.
Mas resta um lugar onde a atividade prossegue: no dorso da minha casa.
A luz cinge-se ao canto onde está o torno, esse torno que pulsa conseqüente, como
descubro que começa a pulsar, na minha cabeça, uma veia que bombeia algo mais
sacri�cada que as outras, e dói um pouco.
Lentamente, os ruídos — cuja “sina é avançar” — o levam a
pequenas distrações, pequenos erros, falhas sem importância. E à
medida que o barulho deixa de ser exceção para se tornar a norma
irrevogável, todas as soluções possíveis fracassam e as polaridades do
real se alternam. A partir desse ponto, o drama envereda rumo à
loucura, cumprindo as etapas do estresse, da doença e, �nalmente, do
delírio. Mas seria ingênuo tratar esse narrador-personagem sem nome
como um caso patológico. Na verdade, são os ruídos que lhe subtraem
essência e existência, até levá-lo à despersonalização extrema, ao
desejo da morte como promessa de um silêncio absoluto: “Penso no
Além e imagino um silêncio incorruptível”.
Gênese e estilo
Enquanto o personagem esquadrinha a cidade em sua busca por
silêncio, também sonha escrever um livro, cujo tema central seria o
desamparo. Mas é exatamente essa a obra que se faz enquanto ele
investiga a origem dos barulhos, livro no qual ele se encontra, cada
vez mais privado do que lhe é indispensável, escrito, contudo, por
outra pessoa, alguém chamado Antonio Di Benedetto. O autor,
inclusive, revela — em entrevista concedida a Günter W. Lorenz — a
gênese do romance, num relato que, guardadas as devidas proporções,
assemelha-se à trajetória de seu personagem:
[...] Digo que em El silenciero discuto o ruído físico e metafísico. Os dois me perturbam,
como pessoa comum e como romancista, desde certa época penosa de minha vida. Tinha
o tema, mas não conseguia nem tramar a narração nem ver e de�nir os personagens.
Ainda que o protagonista fosse eu mesmo! Quando tive acesso à Europa, convenci-me
de que em Paris — cidade que supunha mais ruidosa e atormentadora —, com mais
seres atormentados pelas duas classes de ruídos, me envolveriam os elementos
necessários para os argumentos. Puro engano. Não vi nem soube observar, ou melhor,
não ouvi nem soube escutar, nem em Paris, nem em Bordéus, nem em Amsterdã, nem em
Londres. Regressei à Argentina. Fiz-me todo ouvidos. Bem, é um exagero, pois na
verdade não precisava me empenhar, os ruídos bloqueavam-me novamente,
morti�cantes e destruidores. Observei, estudei, o problema se encarnou em personagens
que começaram a dar forma ao romance. Nasceu El silenciero : psicologias,
comportamentos, neuroses, metafísica de homens de cidade, talvez de qualquer cidade
moderna, industrial ou pré-industrial; todavia, captadas, aprendidas, aprofundadas em
meu milieu .
Di Benedetto constrói sua história por meio de um estilo tenso, de
frases enxutas, objetivas: uma prosa antibarroca, que dá vida à voz
cortante do narrador descon�ado, prestes a explodir, andando pelas
ruas como se os barulhos o tocaiassem a cada esquina. Narrada em
primeira pessoa, a saga desesperante apresenta um homem indefeso,
ciente de seus direitos, mas constatando a cada passo que o Estado, as
pessoas e a tecnologia trabalham contra ele. Os verbos ressaltam dos
períodos, formando um cortejo de sons ruidosos — bater, pregar,
rebitar, fender, limar, acelerar, acionar, acometer, esfregar, morder,
triturar — que acabam por engolfar o leitor.
De fato, a precisão das palavras torna �agrante a materialidade dos
ruídos e os diferentes estados de ânimo que o narrador observa ou
experimenta. Por exemplo, ao se referir à mãe, com quem vive, ele
a�rma: “Andava crivada a buzinaços”. E quando o delírio sobrevém,
a confusão mental é evidente: “Na esquina bebe — ou esteve bebendo
— uma grossa serpente que se arrasta pela rua. O bombeiro que cuida
dela nesta ponta me tira a apreensão: não se trata do meu lar”.
A vida imposta
No período de tempo em que �nalizo esta análise, o fragor das ruas
invade mais uma vez o apartamento. Uma serra circular guincha com
estridência em algum ponto; da quadra da escola, situada no
quarteirão em frente, sobe insistente microfonia e a voz melancólica
do funcionário que testa o ampli�cador dezenas de vezes; ônibus e
carros aceleram, freiam, buzinam; um operário arranca a marteladas a
estrutura de ferro que, presa à marquise do prédio, sustentava um
letreiro. É sábado, início da manhã, o inferno da cidade apenas
começa — e não sou o protagonista de O silencieiro . Ou talvez seja,
talvez tenha sido sempre, semsaber.
A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da
tecnologia fugiram, há muito, do nosso controle. Entre a elaboração
da ciência e os resultados que ela provoca — em termos de técnicas,
instrumentos, modos de vida e variações de comportamento —, existe
um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O
silencieiro se diz um mártir, “mártir da pretensão de viver minha vida
e não a vida alheia, a vida imposta”. Como resposta, ouve de um
político, ex-jornalista, a acusação de ser “inimigo do progresso”, ou
seja, nada mais que o velho recurso dos cínicos, o lugar-comum que
serve para manter as coisas exatamente onde estão.
Assim, vivendo sob a arbitrariedade, o narrador-personagem
descobre, com amargura, que a lógica e a ética não servem à vida real.
Os fatos se colocam apenas; são o que são. Os ruídos produzem
loucos que, por sua vez, buscam novos ruídos — ou uma solução
excêntrica, semelhante à experimentada pelo silencieiro, mas de
conseqüências injustas e implacáveis.
HEROÍSMO ANÔNIMO E PERFEIÇÃO — 
ARTHUR MILLER
A contística de Arthur Miller, reunida em Eu não preciso mais de
você , não pode ser equiparada à sua dramaturgia, mas se impõe como
exemplo de �cção madura e persuasiva.
Bastaria, para elogiar Miller, a consciência, exposta no Prefácio, do
que os gêneros literários exigem, o dever de “seduzir, ameaçar ou
domar” o público. “Mais perto ou mais longe do terrível calor do
centro do palco”, o dramaturgo também sabe que, além de exigir o
“tom adequado”, nenhum gênero sozinho “é capaz de fazer tudo
direito”.
Certa mescla de sobriedade e delicadeza con�gura grande parte das
narrativas, como “Monte de Sant’Angelo” — em que a busca pelas
raízes familiares contagia um amigo insensível —, “Por favor, não
mate nada” — singelo hino de louvor à vida, destituído dos nossos
conhecidos e maçantes discursos politicamente corretos — e “Moça
do lar, uma vida”, na qual insegurança e dúvidas perturbam a
protagonista sem vencê-la, sem condená-la ao tédio ou à alienação.
O herói clássico ressurge em “A noite do serralheiro”. Tony
Calabrese é o homem simples, �lho de imigrantes, marcado por
diversas fraturas morais, vítima, na juventude, da manipulação
familiar.
A chance de redenção chega em uma noite invernal — mais uma em
que ele �nge trabalhar. Calabrese afasta, ainda que de forma
temporária, os planos mesquinhos, a preguiça e os ressentimentos
para se debruçar sobre a escuridão, vencer o medo e os limites físicos e
cumprir seu dever.
Poder de descrição, técnica para intercalar planos narrativos e
aguda psicologia dão vida a esse personagem complexo e cativante.
O mesmo heroísmo anônimo marca “A profecia”, em que a
protagonista, reconciliada consigo mesma, chega ao �nal livre para se
sentir “enlevada pelo coração daqueles cujas portas resistem aos
ventos do mundo”.
A narrativa que dá título ao livro lembra Pelos olhos de Maisie , de
Henry James, mas com a concentração, a tensão que só o gênero breve
permite. A história do garoto problemático, febril e fantasioso termina
numa doce epifania — e rea�rma a metáfora de Cortázar ao de�nir o
conto: “Um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade
numa permanência”.
Há também um Miller capaz de não se submeter ao senso comum
da esquerda norte-americana que apoiou Stálin mesmo depois do
Pacto Molotov-Ribbentrop — em “Moça do lar, uma vida” — ou se
empanturrou de freudismo e utopia apenas para apaziguar
sentimentos de culpa — em “O engenho de terebintina”. Esse olhar
crítico, deliciosamente irônico, aprimora o que transpira perfeição.
LITERATURA E POPULISMO — KIRAN DESAI
Aos pés do Kanchenjunga, no sopé da cordilheira do Himalaia,
“onde a Índia se dissolve no Butão e no Sikkim”, diz o narrador de O
legado da perda , transcorre grande parte da história escrita por Kiran
Desai, a ganhadora do Booker Prize de 2006.
Em uma velha propriedade, cercada de árvores antiqüíssimas e
distante de Darjiling e Kalimpong, os centros urbanos mais próximos,
tudo está em decadência: além da escuridão e da umidade, escorpiões,
besouros, ratos e cupins dividem a casa com um cozinheiro senil, uma
cachorra medrosa, Mutt, o misantropo juiz Jemubhai Patel,
aposentado do Supremo Tribunal, e sua neta, Sai, jovem de dezessete
anos que perdeu os pais repentinamente e, obrigada a abandonar o
colégio interno, foi acolhida pelo avô.
Descendo a colina onde se localiza a residência do juiz, a meio
caminho das cidades, um pequeno grupo de ingleses, vivendo na Índia
há décadas, forma o microuniverso que cultua as tradições britânicas:
tio Potty, as irmãs Noni e Lola, e o padre Booty.
Na periferia de Kalimpong mora Gyan, contratado para dar aulas
de matemática e física a Sai, por quem se apaixonará. E a milhares de
quilômetros dali, em Nova York, encontra-se o ingênuo Biju, jovem
�lho do cozinheiro de Jemubhai Patel, saltando de emprego a emprego
com uma única ambição: conseguir o green card .
Em torno desses personagens, Kiran Desai organiza sua trama,
usando um narrador nem um pouco ingênuo, atento às diferenças
sociais, às injustiças e ao conjunto de mazelas presente na história da
humanidade, e não só no mundo globalizado: pobreza, doenças,
ignorância.
Para o narrador, a lógica da subserviência foi interiorizada, graças
em parte ao sistema de castas, pelos serviçais indianos; os preconceitos
se manifestam nos atos e nos pensamentos de ricos e pobres,
indiferentemente; e as desigualdades sociais imperam, formando a
regra geral da humanidade, onde não há espaço para o exercício de
compreender o semelhante.
Oferecendo como pano de fundo os dramas dos personagens — a
solidão, o cinismo e os ódios do magistrado; a insegurança e a
sinceridade de Sai; as agruras sofridas por Biju —, o narrador coloca
no centro do seu relato as contradições da história, intensi�cadas pela
globalização, e as titubeantes reações dos homens, lutando para se
impor sobre os demais ou, apenas, viver suas próprias vidas, seguindo
suas escolhas particulares. A �m de alcançar esses objetivos, nenhum
meio é desprezível: mentira, adulação, perfídia, força e, claro, �ngida
submissão — armas que, quando menos se espera, podem ser úteis.
Nada escapa à observação e aos comentários desse narrador. Os
nepaleses radicados na Índia se revoltam, de�agram a guerrilha e
isolam a região, acentuando as diferenças sociais e os preconceitos. Os
pobres não sonham à noite com “símbolos freudianos [...], mas com
códigos modernos, os dígitos de um telefone [...], uma televisão
falsi�cada”, tamanho é o desejo de consumir. Em Kalimpong, diante
de um laboratório de análises clínicas, a ameixeira é regada com
sangue podre. Na �la para solicitar um visto de entrada nos EUA, os
indianos se esforçam para “mostrar aos funcionários que eram um
grupo pré-selecionado, numericamente restrito, perfeito para viajar ao
estrangeiro, hábeis no uso de garfo e faca, não arrotavam alto, não
trepavam no assento da privada para �car de cócoras como muitas
mulheres da aldeia estavam fazendo nesse momento mesmo não tendo
nunca visto uma privada antes, despejando água para limpar os
traseiros e inundando o chão com pedaços de merda molhada”.
E na comunidade de imigrantes que conseguem chegar aos EUA, ali
também há vencidos e vencedores, exploradores e explorados,
enquanto palpita no coração de todos o mesmo desejo: o green card .
Também para esses o narrador reserva sua ironia:
Para ir embora queria um green card . Era um absurdo. Como ele desejava a triunfal
Volta ao Lar Pós-Green-Card , tinha sede disso, poder comprar uma passagem com um
ar de alguém que podia voltar se quisesse, ou não, se não quisesse... Olhava os
estrangeiros legalizados com inveja quando compravam nas lojas baratas de bagagem a
miraculosa mala expansível do terceiro mundo, dobrada como uma sanfona, cheia de
bolsos e zíperes para outras aberturas, a estrutura toda se abrindo num espaço
gigantesco capaz de conter o su�ciente para uma vida inteira em outro país.
Um narrador implacável, que aponta os erros e as culpas de todos,
sem verdadesprontas, sem receitas politicamente corretas, corajoso o
su�ciente para recusar as falsas soluções da esquerda ou da direita —
mas nem sempre.
Tropeços
Em certos momentos, a in�exibilidade do narrador descamba para
a crítica maniqueísta, demonstrando um esquerdismo às vezes
dissimulado, às vezes ostensivo. Vejamos alguns exemplos.
Para as inglesas Lola e Noni, certos sentimentos só devem ser
mencionados entre pessoas socialmente iguais. Certo dia, Kesang, a
criada, relata às patroas seu casamento com o leiteiro, a grande
paixão de sua vida, e chega às lágrimas. Essa incontrolável emoção
choca as irmãs. Na opinião de Lola, “os criados não experimentam o
amor da mesma forma que gente como elas duas”. A seguir, Lola
re�ete consigo mesma, concluindo que “nunca havia experimentado a
coisa real”, essa “fé no mergulho da paixão”. Quanto a Noni, o
narrador é taxativo: “Nunca amara de jeito nenhum. Nunca sentara
em seu quarto silencioso e conversara sobre coisas capazes de fazer
sua alma tremular como uma vela. [...] Nunca desfraldara sobre sua
existência a breve bandeira gloriosa do romance”. Assim, Noni chega
a “sentir inveja” de Kesang.
Ora, a idéia de que somente os pobres podem ser capazes de um
amor genuíno, sincero e profundo não é apenas melodramática, mas
populista, demagógica. Esse exagero no enaltecimento dos pobres —
sob o qual se esconde o objetivo de depreciar as remanescentes dos
colonizadores britânicos — surge como uma saída excessivamente
fácil e, portanto, inconvincente.
Nossa con�ança no narrador se quebra quando ele não consegue
manter uma distância respeitosa de sua história e decide intervir,
fazendo críticas que vão muito além das digressões próprias de um
narrador em terceira pessoa: “Said logo encontrou trabalho na
Banana Republic, onde ia vender para os so�sticados urbanos a gola
rolê preta da moda, uma loja cujo nome era sinônimo da exploração
colonial e da rapina do terceiro mundo”. A conclusão não pertence a
Said — aliás, um tipo engraçadíssimo, que não dá a mínima para a
“exploração colonial” —, mas ao narrador onisciente. Este, perdendo
o controle, abandona a necessária circunspecção e passa a exprimir
julgamentos que remetem o leitor a uma autoridade colocada fora da
trama. À medida que tal prática se repete, a verossimilhança se
desintegra.
O narrador também dedica o mais absoluto desprezo aos indianos
que, vivendo fora de seu país, �zeram fortuna e se ocidentalizaram,
abandonando os costumes tradicionais. Há sempre um olhar de crítica
para eles, descrições que beiram o sarcasmo, como se enriquecer e
adquirir novos hábitos fossem atos impuros, pecaminosos.
Outro aspecto, ainda que menor, contribui para prejudicar a leitura:
a autora abusa das onomatopéias, um recurso que, vez ou outra — na
voz, por exemplo, de um personagem cômico ou de uma criança —,
até pode ser sugestivo. Em O legado da perda , contudo, tais signos
infantilizam a narrativa — “O tom abafado das rezas rolara pelas
montanhas quando as mulas e cavalos passaram pocotó-pocotó
saindo da névoa [...]” — ou, além de tornar infantil, surgem como
elementos completamente desnecessários: “Ia subir e descer a
montanha em dias de mercado, com enfeites dourados, deuses em
cima do painel, uma buzina cômica, PÓpumPOM pó ou TUÍI-dii-dii
DII-TUÍI-dii-dii”.
Quem sabe híndi?
A edição brasileira de O legado da perda oferece alguns obstáculos
ao leitor. Há centenas de palavras, às vezes frases inteiras, escritas,
aparentemente, em híndi, que não mereceram notas de rodapé
É
explicativas. É estranho que o editor tenha optado por traduzir ou
tornar compreensíveis os títulos de canções e as expressões
idiomáticas de língua inglesa, esquecendo do leitor brasileiro no que se
refere ao híndi. Assim, aprendemos, por exemplo, que Let’s B Veg é
uma “brincadeira lingüística com Let’s Be Vegetarian — Vamos ser
vegetarianos”, mas jamais saberemos o que um motorista de táxi está
dizendo ao perguntar: “ — Oi, koi hai? Khansama? Uth. Koi-hai?
Uth. Khansama ?”.
O que signi�ca laddus ? E puris ? E salwar kauriz ? E to sunao
kahani ? E ghas phus , ekdum bekaar , bidis , kakas-kakis-masas-
mais-phois-phuas ? Tais expressões pululam em quase todas as
páginas, chegando, algumas vezes, a comprometer a leitura. Uma
mulher pergunta pela esposa do juiz Patel e insiste: “— Não tem
nenhuma história de purdah , espero?”. Na página seguinte, o
problema se repete, aparentemente acentuado, na voz de outra
mulher: “— O senhor tem uma swaraji bem debaixo do nariz”. A
reação de Patel é de indignação e revolta contra a esposa, e até
supomos, parcialmente, qual é o problema, mas as lacunas
permanecem, insuperáveis.
Os leitores até podem correr ao Google ou a dicionários em busca
de um e outro signi�cado, mas tal quantidade de palavras merecia
atenção especial. Se o editor optou por não encher as páginas com
notas de rodapé — decisão, aliás, compreensível —, um glossário,
colocado no �nal do volume, resolveria o problema.
A verdade
Se deixarmos de lado as irregularidades, o romance oferece bons
momentos. Há ótimas descrições da cachorra Mutt, humanizada
graças ao amor incondicional que o juiz lhe devota. O personagem
Gyan cresce no transcorrer da narrativa, dividido entre a guerrilha —
luta que lhe parece uma opção concreta diante de sua vida banal, sem
possibilidades de mudança — e o amor por Sai, a jovem
ocidentalizada e, exatamente por esse motivo, difícil de amar e
compreender, já que ela parece ter assimilado os “vícios” dos
colonizadores ingleses. E também os trechos em que o juiz mergulha
no passado, a �m de reencontrar as razões de todos os seus
ressentimentos: apesar de poucos, são notáveis.
O melhor, no entanto, �ca para Sai, talvez o alter ego da escritora.
Só ela encontra a redenção. Só ela descobre que, diante da covardia,
do medo, dos costumes desumanos ou da mediocridade, o homem
deve reinventar a vida acreditando em seus próprios valores. E que,
para os espíritos realmente livres, a verdade está sempre à mão.
A ADÚLTERA E A CONTRADIÇÃO — 
GUSTAVE FLAUBERT
Gustave Flaubert escreveu Madame Bovary entre 1851 e 1856. Na
verdade, “escrever”, neste caso, é um eufemismo. O verbo não dá
conta de todos os estados emocionais experimentados durante a
execução do projeto e, muito menos, do confronto ocorrido — não só
naqueles anos — entre o escritor e as palavras. Mas podemos
acompanhar os altos e baixos da relação autor–obra lendo a
correspondência de Flaubert, da qual uma pequena parte foi traduzida
no Brasil.
No início de novembro de 1851, ele escreve à amante, Louise Colet:
“[...] Avanço penosamente no meu livro. Eu gasto bastante papel.
Quantas rasuras! A frase demora a vir. Que diabo de estilo escolhi!
Que desgraça os temas simples!”. E conclui: “Eis-me comprometido
por um ano pelo menos”. Poucas semanas mais tarde, em fevereiro de
1852, percebe que previu mal o futuro: “[...] Isso está tomando
proporções formidáveis em termos de tempo. Com certeza, eu ainda
não terei terminado até o início do próximo inverno”. E as
di�culdades persistem: “Não escrevo mais que cinco ou seis páginas
por semana”.
Mal abril começou, ele está desesperado:
Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho
vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas
um homem. [...] Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde
que voltei daí? Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por
dia; e qual o �m de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em
que se amparar a não ser a ferocidade de uma fantasia indomável.
Ainda escrevendo a Louise, sua privilegiada interlocutora, a 24 de
abril ele experimenta sentimentos contraditórios:
Eu completei [...] vinte e cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram
duras de conseguir. [...] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no
momento não vejo mais nada. [...] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria
exterior e onde não tenho nada em que me apoiara não ser uma espécie de raiva
permanente, que às vezes chora de impotência, mas que é contínua. Eu gosto do meu
trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha
o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando,
depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não �z nem uma frase, caio no
meu divã e �co ali paralisado num pântano interior de tédio.
Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da
quimera. Um quarto de hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na
última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é
que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava,
deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da satisfação de tê-
la encontrado.
Até o início de junho de 1856, as cartas oscilarão do júbilo ao
cansaço, do desespero ao encontro repentino de forças para
perseverar, da repugnância ao prazer de conseguir a palavra correta
para o que ele deseja dizer.
“Passo várias horas a procurar uma palavra”, a�rma em maio de
1852. No dia 23 do mesmo mês, sente-se “estéril como uma pedra”.
Mas em 18 de julho, comemora: “Quinta à noite, às duas horas da
manhã, eu me deitei tão animado com meu trabalho que às três me
levantei e trabalhei até o meio-dia. [...] Eu ainda sinto o gosto dessas
trinta e seis horas olímpicas e �quei contente, como na felicidade”.
Entretanto, passados quatro dias, se diz pronto a “recopiar, corrigir e
rasurar toda a primeira parte”, concluindo: “Que coisa desgraçada é a
prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre”. E logo depois,
a 27 de julho, a constatação lapidar: “Ao escrever esse livro, eu sou
como um homem que tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada
falange”.
No dia 26 de outubro, a�rma ter “vinte e sete páginas (quase
prontas) que são o trabalho de dois grandes meses”. Em janeiro de
1853, diz ter conseguido 65 páginas em cinco meses. Em abril,
contando a partir de janeiro, alcança a marca de 39 páginas. E em
meio à “fadiga” e à “fetidez do tema”, que se alastram por todo o
abril, ele lamenta: “Há três semanas que estou a escrever dez páginas!
Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E
quando trabalho bem, estou menos adiantado no �m do dia do que no
começo”.
Quando chega outubro, ele detesta o livro e a si mesmo:
Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra
mais forte, eu a empregaria) que eu �co às vezes doente �sicamente. Há três semanas
que tenho com freqüência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou
melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria
enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às vezes sou
tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que santa idéia maldita
eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci, os pavores da Arte!
No entanto, pouco antes do Natal, a 23 de dezembro, às duas da
madrugada, Flaubert, apesar de “fatigado com a lentidão” e de temer
“o despertar, as desilusões das páginas recopiadas”, é um homem
seduzido pela escrita:
[...] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas
circular em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo
junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa �oresta, por uma
tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras
que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É
orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? Ou
então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las
sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom
Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer
negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc!
Mais tarde, em 18 de abril de 1854, ele reclamará novamente:
“Quando é que virá o dia bem-aventurado em que escreverei a palavra
�m ? Em setembro, vão fazer três anos que estou neste livro. É muito,
três anos passados sobre a mesma idéia, a escrever com o mesmo
estilo [...], a viver sempre com os mesmos personagens, no mesmo
meio, com os �ancos de encontro à mesma ilusão”.
No ano seguinte, 1855, em maio, escrevendo ao amigo Louis
Bouilhet, diz temer que o �m do romance pareça “acanhado, pelo
menos como dimensão material”. Quando setembro está prestes a
terminar, trabalha “mediocremente e sem gosto ou talvez com
desgosto” e se diz “verdadeiramente cansado”. Finalmente, a 1º de
junho de 1856, revela a Bouilhet ter enviado o manuscrito ao editor
— mas só depois de suprimir “cerca de trinta páginas, sem contar
nisso aí muitas linhas subtraídas”, além de detalhar vários outros
cortes.
Método e paixão
Se há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase
in�nito de se escrever uma biogra�a. Esse período de 1851 a 1856
poderia ser visto sob diversos prismas, mas pre�ro pensar nesses anos
torturados como uma seqüência de meses centrais na carreira do
escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary , mas
principalmente pelas centenas de páginas jogadas no lixo, pelo
número inexprimível de palavras rasuradas e frases refeitas, pelas
horas de angústia e pelo gozo, ainda que efêmero, de chegar a um
resultado — uma infatigável luta com as palavras.
Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele
sabia que “todo talento de escrever não consiste senão na escolha das
palavras. É a precisão que faz a força” — diz a Louise Colet, a 22 de
julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert
tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus
próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha,
imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a
emoção e a palavra. O narrador de Madame Bovary conclui em certo
trecho que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual
batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando
desejaríamos enternecer as estrelas”. Ter a clara consciência da
imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim
persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão,
exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja
primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão terrível de
seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato,
em 22 de abril de 1853, ele escreve: “O único meio de viver em paz é
colocar-se, de um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada
em comum com ela, a não ser pelo olhar”. Se Flaubert agiu
corretamente ao se transformar em um tipo especial de misantropo,
isso podemos discutir em outro momento. O que interessa neste texto
é que, pensando dessa forma e agindo como agiu, exatamente por
esses motivos, deu vida a Emma Bovary.
Em seu ensaio sobre Flaubert, Henry James chama nossa atenção
para a personalidade de Emma: “[...] Ela mergulha cada vez mais
fundo em duplicidade, dívidas, desespero, e encontra um �m trágico
[...]. E faz tudo isso enquanto permanece absorvida pela visão e pela
intenção românticas, e permanece absorvida pela visão e pela intenção
românticas enquanto rola na lama”. Ora, a febre de Emma re�ete a
febre de seu criador. Flaubert não escreve apenas, mas se espoja nos
rascunhos da obra, cego a tudo que não seja o romance, reclamando
do que o obriga a interromper seu trabalho e procrastinando o mais
que pode os encontros com Louise Colet, dedicado exclusiva e
apaixonadamente à literatura, escrevendo e devorando Rabelais,
Cervantes e Montaigne — a vida que ele chamou de uma “orgia
perpétua”.
Fetichismo
Mas para se viver em uma “orgia perpétua” faz-se necessário
desejar não somente o clímax do prazer — esse gozo que se aproxima
do estertor. Alguns amantes imaginam quea volúpia é feita também
do amor aos detalhes; às vezes, do apego fetichista a este ou àquele
pormenor. E Flaubert demonstra ser esse tipo doentio de amante. Uma
cena, para ele, requer a evocação de tantas minúcias, que chegamos a
nos perguntar se, de fato, tudo é imprescindível. Mas tudo é
imprescindível. Um editor malevolente poderia suprimir algumas
frases — e Madame Bovary continuaria genial. Perderíamos,
entretanto, uma série de elementos que, combinados, não só forjam
verossimilhança, mas seduzem, modelam o mundo do qual nos
aproximamos como animais curiosos, sedentos de uma realidade que
não seja a nossa.
Quando Charles Bovary visita pela primeira vez a propriedade dos
Bertaux, onde Emma vive com o pai, a quinta se revela para o leitor
em meio à sonolência do médico. Amanhece, e não bastasse o vapor
úmido que se eleva de uma grande estrumeira, “sob o telheiro havia
duas grandes carroças e quatro charruas com seus chicotes, seus
cabrestos, sua equipagem completa, entre os quais as peles de carneiro
pintadas de azul sujavam-se com o pó �no que caía dos celeiros”. Ao
penetrar na casa, Bovary vê o almoço dos criados fervendo ao redor
do fogo, as roupas úmidas secando na lareira, e “a pá, as pinças e os
foles, todos de proporções colossais”, que “brilhavam como aço
polido”, e a “abundante bateria de cozinha onde se re�etiam de forma
desigual a chama clara do fogão juntamente com os primeiros raios de
sol que entravam pelas vidraças”. É a exaltação do detalhe. Mas não
há um único elemento que, ao ser retirado, dele possamos dizer: —
Realmente, era desnecessário.
Nas seguidas visitas que Bovary faz aos Bertaux, Emma, ao se
despedir,
sempre o acompanhava até o primeiro degrau da escada externa. Enquanto não traziam
seu cavalo, ela permanecia ali. Já se haviam despedido, não se falavam mais; o ar livre a
rodeava, levantando em desordem os pequenos e loucos cabelos de sua nuca ou
sacudindo em seus quadris os cordões do avental que se enroscavam como bandeirolas.
Uma vez, num dia de degelo, a casca das árvores ressumava no pátio, a neve fundia nos
telhados das construções. Ela estava na soleira da porta; foi procurar a sombrinha,
abriu-a. A sombrinha de seda furta-cor que o sol atravessava iluminava com re�exos
móveis a pele branca do seu rosto. Embaixo, ela sorria no calor tépido e ouviam-se as
gotas d’água, uma a uma, que caíam sobre o chamalote esticado.
O jogo de luzes, a brisa e a leve tensão da despedida, ampliada pelo
silêncio de Emma e Charles. E as gotas d’água a entrecortar o silêncio,
propagando ainda mais a tensão — Flaubert interliga os elementos, e
semeia no leitor o desejo de estender a mão para conceder à cena o
tato, o sentido que falta.
Algum tempo depois do casamento, os Bovary são convidados ao
castelo do marquês de Andervilliers. Emma penetra em uma galeria na
qual se sucedem, “sobre a madeira escura do lambri”, as pinturas que
retratam os antepassados da família. Ela tenta, em vão, captar todas
as imagens, sorver cada detalhe, mas é impossível:
Depois, mal se distinguiam os que vinham em seguida, pois a luz das lâmpadas, caindo
sobre o tapete verde do bilhar, deixava �utuar uma certa sombra na sala. Escurecendo as
telas horizontais, quebrava-se contra elas em �nas arestas seguindo as fendas do verniz;
e, de todos aqueles quadrados negros debruados de ouro saíam, cá e lá, uma porção
mais clara de pintura, uma fronte pálida, dois olhos que �xavam o observador, perucas
que caíam sobre os ombros empoeirados dos trajes vermelhos, ou então a �vela de uma
jarreteira no alto de uma panturrilha roliça.
A miríade de pormenores, a volúpia por descrever, por chafurdar
num oceano de cores, formas e perfumes, se repetirá sempre. Flaubert
agoniza para dar conta de toda a realidade, e parece, a cada novo
parágrafo, próximo do paroxismo ou do êxtase, o que con�gura uma
sobrecarga emocional permanente. Quando Emma retorna do castelo,
sofrendo pelo fato de abandonar aquele mundo ideal, fecha
“piedosamente na cômoda seu belo vestido e até seus sapatos de cetim
[...]”. Mas não só. Falta algo à frase. E então Flaubert nos oferece o
complemento preciso: “[...] cuja sola amarelara-se com a cera
deslizante do assoalho”. A busca do pormenor exato faz com que
Flaubert escreva a um passo do esgotamento; mas ele se dispõe a
pagar o preço, a �m de que nada escape ao leitor.
Amor e ódio
Esse extremo cuidado com os detalhes nos fornece indícios da
personalidade de Emma desde as primeiras páginas do romance. Em
uma das visitas de Bovary à quinta dos Bertaux, o futuro casal bebe
licor. Depois de servir a si mesma uma dose pequena, Emma leva o
copinho à boca: “Como estava quase vazio, ela inclinava-se para trás,
para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o
pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da
língua entre os dentes �nos, lambia aos poucos o fundo do copo”. A
adúltera já não está toda nesses gestos? Sua luxúria não freme na
ponta dessa língua serpeante?
Flaubert descreve bem inclusive quando recusa pormenores ao
leitor. Depois de reencontrar Léon Dupuis em Rouen, Emma iniciará
seu segundo caso de adultério, agora com o jovem escrevente, que
conhecera em Yonville. Quando saem da catedral e se fecham na
carruagem que passa a trafegar por toda a cidade, nada mais sabemos.
O escritor não precisa dizer o que ocorre por trás das cortinas — e
também não precisamos ter, sob os olhos, um mapa de Rouen, a �m
de acompanhar a sucessão de ruas. O in�ndável e tortuoso percurso
alimenta num crescendo a nossa descon�ança e, ao mesmo tempo,
explica tudo. À nossa imaginação bastam a mão nua que passa sob as
cortinas e joga fora a carta de despedida que Emma havia escrito a
Léon, agora transformada em pedacinhos de papel; e depois de horas
fechados ali, a mulher que desce sozinha, “caminhando com o véu
abaixado e sem virar a cabeça”. Minutos mais tarde, sabendo que o
marido a aguarda em Yonville, o narrador arremata nossa certeza,
dizendo que Emma sente “no coração aquela covarde docilidade que
é, para muitas mulheres, ao mesmo tempo como o castigo e o preço
do adultério”.
O escritor nos faz amar e odiar Emma Bovary. Poucos homens não
se encantariam ao ver a clara nudez dessa mulher contrastando com o
carmim das cortinas de má qualidade e, a melhor parte, depois que
não existem mais segredos, ela, tão experiente em dissimular e trair,
agindo como uma menina envergonhada: “A cama era uma cama de
casal de acaju em forma de barca. As cortinas de levantina vermelha
que desciam do teto fechavam-se baixo demais, perto da cabeceira que
se alargava; e nada havia no mundo de mais bonito do que sua cabeça
morena e sua pele branca destacando-se sobre aquela cor púrpura
quando, com um gesto de pudor, ela fechava os dois braços nus,
escondendo o rosto nas mãos.”
Nossa imaginação despreza as cenas chulas e o vocabulário
mortalmente cru ao nos depararmos com uma descrição que oferece,
melhor que as palavras grosseiras, o frenesi da entrega: “Despia-se
brutalmente, arrancando o �no cordão do seu corpete que lhe sibilava
ao redor das ancas como o escorregar de uma cobra. Ia na ponta dos
pés nus ver ainda uma vez se a porta estava fechada; depois, com um
único gesto, deixava cair, juntas, todas as suas roupas; — e, pálida,
sem falar, séria, abatia-se contra seu peito, com um longo
estremecimento.”
Mas ela se entrega apenas quando ama. Chantageada, oprimida
pela cobrança das dívidas e das promissórias, pelo processo e pela
penhora dos bens, pode insinuar a Léon que ele deveria roubar para
ajudá-la, mas não aceita ser seduzida pelo notário de Yonville.
Revolta-se, tenta persuadir Rodolphe, o primeiro amante, a lhe dar
dinheiro, e quando percebe que está perdida, manipula ainda uma
última vez. Demonstrando a argúcia e a agilidade de re�exos que a
tornam exuberante, manipula para poder se matar. E a mesma avidez
daquela língua que buscava o fundo do copo de licor, reencontramos
na mão que, arrancando a rolha do pote de veneno, mergulha para
retornar cheia do pó branco que Emma sepõe a comer sofregamente.
A dor das mulheres
Numa carta de setembro de 1852, Flaubert escreve a Louise Colet
sobre a dor das mulheres, de como se aproximou delas e as observou
para escrever seu romance: “Eu conheci suas dores, pobres almas
obscuras, úmidas de melancolia guardada, como estes pátios fundos
das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo”. Pergunto-
me o quanto esta a�rmativa é sincera. Quem escreve não é o homem
que pretendia viver acima da humanidade, sem nada ter em comum
com ela, “a não ser pelo olhar”? A contradição do escritor revela mais
que a mera simpatia pelo drama alheio. O intenso desejo de perfeição,
a busca febril dos detalhes e das palavras precisas — essas forças
certamente dominam Flaubert. Mas no íntimo desse homem há lugar
para a solidariedade que o aproxima de seus semelhantes. Caso não
fosse assim, não teria criado uma personagem tão múltipla, em
relação à qual não só ele, mas todos nós, com maior ou menor
exatidão, podemos dizer: Madame Bovary c’est moi .
O PREÇO DE SER UM HERÓI — 
SANTIAGO RONCAGLIOLO
O romance Abril vermelho , do peruano Santiago Roncagliolo,
vencedor do Prêmio Alfaguara de Romance 2006, é um thriller que
reúne suspense, terrorismo, paixão, violência, neuroses familiares,
política e humor. Todos esses elementos são arranjados por mão �rme,
hábil em criar uma trama que — depois de enganar o leitor com pistas
falsas — será resolvida apenas nas últimas páginas.
Entre 9 de março e 3 de maio de 2000, nos estertores do governo
Alberto Fujimori, o promotor distrital adjunto Félix Chacaltana
Saldívar vê-se envolvido numa série de terríveis e inexplicáveis
assassinatos. Decepcionado com o casamento, ele abandonara a
capital, Lima, para viver em Ayacucho, a cidadezinha onde nasceu. E
lá, ao contrário da tranqüilidade que busca, servindo a um Estado no
qual os militares e o serviço de inteligência comandam a democracia
de fachada, à sombra do Sendero Luminoso, Chacaltana terá de
enfrentar inúmeras verdades.
Ele é o burocrata de meticulosidade ímpar, um perfeccionista cuja
compulsão não se restringe apenas ao apego às leis, mas abraça cada
detalhe de sua vida, incluindo o uso da sintaxe nos relatórios que
envia aos superiores. Preocupa-se com a expressão perfeita,
independente de relatar ou não a verdade. Ao mesmo tempo, é tímido,
ingênuo, menosprezado por todos e alvo de chacotas. Parece �anar
acima da realidade, dividido entre a parvoíce e um agudo senso de
dever, que o forçará a seguir em frente nas investigações, apesar do seu
receio e dos empecilhos criados por policiais e militares.
O início da história oferece ao leitor páginas cômicas, relatadas por
um narrador sarcástico, nas quais surge Chacaltana, esse promotor
que dialoga com a mãe já falecida e age em seu cotidiano como se ela
estivesse viva; e que, para se sentir seguro, chega a dormir na cama
materna. Lentamente, à medida que os crimes se sucedem e a
investigação avança, ele se arrepende de cada nova pista descoberta,
pois sabe que isso o obriga a perseverar. Forçado a agir, o homem que
acreditava representar a lei descobre, atônito, uma realidade sobre a
qual não possui nenhum poder. A cada passo, Chacaltana percebe que
seus relatórios são peças inócuas dentro da vasta e emaranhada
máquina estatal, e, ainda pior, que todos estão envolvidos numa
vergonhosa trama: militares, governo e Igreja — há, por exemplo, um
crematório, construído por solicitação do Exército, no subsolo da casa
paroquial.
Poder e linguagem
A partir de certo momento, Chacaltana nota que todos aqueles com
quem conversa acabam assassinados. Torna-se, desse modo, o centro
dos crimes que investiga: uma espécie de Édipo, buscando às cegas o
assassino que, indiretamente, parece ser ele próprio. Descon�ado de
todos, vendo todas as certezas ruírem, “se o promotor Chacaltana
sabe algo por experiência própria”, como a�rmou Santiago
Roncagliolo, em seu discurso ao receber o Prêmio Alfaguara,
é que toda paz implica olhar o horror cara a cara e ser capaz de certo grau de perdão.
Mas ele também sabe que todo perdão traz consigo uma injustiça. Viver sem sangue
signi�ca, de alguma forma, conviver com aqueles que o derramaram. Depois do que
experimentou neste livro, o promotor se pergunta o que pode ser pior: deixar os
assassinos em paz ou deixar que sigam matando. Mas também sabe que não lhe cabe
encontrar resposta para essa pergunta. As sociedades seguem dando suas próprias
respostas e não se preocupam muito com sua opinião.
Desorientado, sentindo-se perdido, mas assim mesmo avançando
em suas investigações, Chacaltana é o bufão que se transforma em
herói trágico.
Tendo como parte do cenário as comemorações da Semana Santa e
a religiosidade peruana, com seus mitos e crendices nascidos da
aculturação entre espanhóis e quíchuas, Abril vermelho trata,
basicamente, da irracionalidade subjacente a todo poder abusivo, que
transforma inocentes em culpados — a irracionalidade que acaba
sempre erigindo o Estado como o único grande inocente.
Esse poder se manifesta no texto não só por meio dos horrendos
assassinatos, mas também na linguagem: contrapondo-se aos
relatórios de Chacaltana, há uma outra voz que se manifesta, mas
pronta a cometer erros de ortogra�a e utilizar uma sintaxe confusa. A
comparação entre esses dois discursos, no entanto, não pode ser feita
aqui, sob pena de, ao realizá-la, desvendar-se a autoria dos crimes.
Vale, contudo, chamar a atenção dos leitores para essa voz que chega
ao desvario, numa clara contraposição à racionalidade do texto legal.
Um outro interessante recurso de linguagem refere-se à mudança de
comportamento de Chacaltana, pois sua gradual tomada de
consciência será acompanhada de modi�cações substanciais em seu
discurso. Ele passa a falar com ironia e, nas entrelinhas do código
burocrático de seus relatórios, deixa que a verdade transpareça.
Ainda que em Abril vermelho estejam todos os ingredientes de um
thriller prazeroso — incluindo os estereótipos da mocinha inocente
que pode ser culpada, do militar sádico e extrema-direita, do juiz
�ngido e do médico-legista debochado, que come chocolates a ponto
de se lambuzar sobre os cadáveres —, trata-se de um romance que não
se propõe a ser apenas um ótimo passatempo. Além do cuidadoso
trabalho de linguagem, o irônico narrador nos oferece a saga de Félix
Chacaltana Saldívar, na qual nenhuma dobra da realidade
permanecerá sem explicação, incluindo as memórias familiares do
protagonista, seu obscuro sentimento de culpa e suas angustiantes
neuroses. A cada página, o leitor será convidado a lembrar a lição das
melhores tragédias: todo homem paga um alto preço para se tornar
herói.
MUITO ALÉM DA MORTE — CLAUDIO MAGRIS
Diferente do que faz em Danúbio e Microcosmos — nos quais
�cção, ensaio e literatura de viagens se mesclam para dar vida a um
dos melhores textos europeus da atualidade —, desta vez Claudio
Magris nos apresenta o brevíssimo O senhor vai entender , publicado
na Itália em 2006.
A voz que narra O senhor vai entender é a da mitológica Eurídice,
mulher de Orfeu, con�nada ao mundo inferior, sob o poder de Hades,
a quem ela se dirige para relatar o que sucedeu durante a tentativa
frustrada de ser reconduzida, por seu esposo, à vida na superfície
terrestre.
Nesse mundo de pouca luz, cujos habitantes são sonhos que
deslizam e se perdem antes de serem reconhecidos, mundo onde todos
se assemelham — exatamente porque só a morte tem o poder de nos
tornar iguais —, Eurídice deleita-se em sua condição, regozijando-se
com as normas que impedem os mortais de ali penetrarem, e
recordando, com evidente desprazer, a vida terrena.
O outro lado do espelho
Para aqueles que conhecem o mito de Orfeu e Eurídice, no entanto,
essa mulher — que na versão tradicional da narrativa permanece
muda — surpreenderá ainda mais. Segundo o que relata, o amor e a
saudade de seu marido não vibram exatamente por ela, mas pelos
favores que lhe prestara, desbastando os poemas que ele escrevia,
tornando-os mais bem acabados. Em um discurso cambiante e irônico,Eurídice se revela não apenas musa, mas verdadeira autora da obra de
um Orfeu irresponsável, manipulador e adúltero.
Assim, não foi movido pelo amor que ele decidiu resgatá-la da terra
dos mortos, mas apenas por egoísmo. Foi ela quem o elevou à
condição de homem, ensinando-o “a olhar a escuridão e não se
importar com o pavor”. Eurídice canta a si mesma como guia, mestra
e libertadora desse Orfeu fraco e infantil. Ao mesmo tempo, contudo,
a certeza de ser superior não diminui seus sentimentos, não obscurece
sua consciência da paixão que nutre pelo esposo. Eurídice sabe o
quanto eles se completam. “O amor é este sono em que se continua e
se apaga docemente sem se apagar realmente nunca”, ela diz. E, se
decide �car em meio às sombras, é exatamente por amá-lo, para que
ele não conheça a verdade — o que espera o homem depois da morte
— e possa, assim, seguir escrevendo seus poemas, sonhando com
respostas ideais que em nada correspondem ao que Eurídice já
conhece: “Estamos do outro lado do espelho, que é também um
espelho”.
Sem idealizações
Narradora não só consciente do seu poder, mas devotada ao amado
e, ao mesmo tempo, vaidosa, cheia de vontades, por meio dessa
mulher nem um pouco romântica, mas sinceramente apaixonada,
Claudio Magris cumpre o ritual que garante a sobrevivência do mito
— e, ao fazê-lo, assegura a magia da contínua e renovada transmissão
literária, e também da própria literatura: a arte de contar sempre as
mesmas histórias, mas de maneira original.
Agradavelmente in�el ao mito tradicional, Magris recria nossa
herança narrativa, concedendo nova força à história quiçá desgastada
pela repetição. Recontar é, neste caso, revivescer o mito, permitindo
que Orfeu e Eurídice ganhem simbolismos inusitados para os leitores
do nosso tempo. Não é diferente, aliás, do que os próprios gregos
�zeram, pois ninguém jamais descobrirá, em meio às escassas fontes
arqueológicas, qual a narrativa verdadeiramente primeva, inspiradora
de todas as outras.
Claudio Magris desloca o relato da �gura do herói mítico — o
eleito, o que desa�a todos os limites e parte ao encontro do eterno, do
perigo, ou em busca de respostas e soluções — para a da mulher cujo
silêncio, na história original, lembrava certa tranqüila submissão. Ao
calar Orfeu, engrandece Eurídice e humaniza a narrativa,
aproximando-a da nossa própria realidade. O autor não deseja
reforçar o mito que pode sugerir preceitos morais — como o da
superação de todas as di�culdades em nome do amor — ou falsamente
estéticos — o da arte cujo poder vence a morte. Distante das
idealizações fúteis, Magris nos oferece uma Eurídice satisfeita com sua
própria sorte e um Orfeu impelido por motivos censuráveis.
Essa Eurídice identi�cada com seu destino assemelha-se, aliás, à de
Rainer Maria Rilke. Ainda que a de Magris não tenha a suavidade
proposta pelo poeta, ela se encontra igualmente centrada,
praticamente transmutada em outro ser, para o qual a volta ao mundo
dos vivos talvez não seja a melhor escolha:
[...]
Estava em si, de altas esperanças,
E não pensava no homem que lhe ia à frente
nem pensava no caminho que subia para a vida.
Estava em si. E ser-morta
a colmava de plenitude.
Qual fruto cheio de dulçor e treva,
sentia-se repleta da sua grande morte,
que lhe era nova e que ela não compreendia.
Ela entrara numa outra, uma inatingível
donzelice; seu sexo se fechara
como uma �or recente ao �m da tarde
e suas mãos se haviam desabituado tanto
do enlace que até mesmo o toque
in�nitamente suave do leve deus a conduzi-la
lhe doía como excessiva intimidade.
Ela não era mais aquela mulher loura
Que os cantos do poeta invocaram tantas vezes,
não mais o aroma e a ilha do espaçoso leito,
nem propriedade mais daquele homem.
Já estava solta como longa cabeleira
e outorgada como chuva sobrevinda
e repartida como cêntupla ração.
Ela era já raiz.
[...]
Desmistificar a arte
Adicionando novas camadas de sentido ao discurso da tradição,
Claudio Magris também questiona, de maneira oblíqua, se não
haveria algo de megalomaníaco em um poeta que con�a
exageradamente no poder da sua arte, a ponto de acreditá-la su�ciente
para domar os guardiões do reino de Hades e resgatar sua amada.
Não seria digno de riso o escritor que se mostra tão absolutamente
seguro do que pode fazer, chegando mesmo a desprezar os favores
divinos?
Desmisti�car a força da arte, mostrar que ela nada tem de
prodigioso, aproxima o Orfeu de Magris daquele sugerido por Platão
— no Banquete —, segundo o qual Hades não teria entregado ao
poeta a verdadeira Eurídice, mas apenas sua sombra. E por um só
motivo: Orfeu não passava de um homem fraco, destituído de
virtudes, sem coragem para se unir ao objeto do seu amor através da
única maneira possível, ou seja, aceitando morrer.
Para Claudio Magris, entretanto, Eurídice ama esse escritor
presunçoso. Conhece seus defeitos, mas quer, ainda uma vez, salvá-lo
de si mesmo. Ela o mantém, assim, na inconsciência, pois sabe —
agora que é uma sombra dentre milhares de outras — que a verdade
pode esmagar o homem.
A NAVALHA DO NARRADOR — 
WILLIAM SOMERSET MAUGHAM
Se considerássemos “genial” um sinônimo de “vanguardista”, erro
comum nos dias de hoje, William Somerset Maugham jamais poderia
receber o primeiro quali�cativo. Mas se pensarmos que o elogio serve
àquelas pessoas notáveis, cuja capacidade intelectual as coloca acima
da maioria das pessoas, então esse fecundo escritor inglês de fato
produziu alguns livros geniais.
Edmund Wilson, no entanto, não pensava assim. Para ele, a fama
de Maugham nos EUA era um sinal da decadência dos padrões
literários. Wilson chamava Maugham de “escritor de segunda linha”,
de�nia sua linguagem como “banal”, a�rmava que o escritor sequer
possuía um “ritmo interessante” e deixou um julgamento que se
pretende de�nitivo: trata-se de “romancista medíocre, que escreve
mal, mas que é lido com regularidade por leitores médios que não se
preocupam com a escrita”.
As observações de Wilson certamente causam mal-estar nos leitores
que apreciam Maugham mas não se sentem quali�cados para se
contrapor ao crítico ou deixam-se in�uenciar pela opinião de um
intelectual que, sem dúvida, merece deferência. A verdade é que,
depois de lermos Maugham, podemos até chegar a conclusões
semelhantes, mas duvido que um leitor consciencioso, que se disponha
a passar alguns minutos entretido, por exemplo, com “Chuva”, um
dos melhores contos da literatura universal, não julgue haver exagero
no veredicto de Wilson.
Erros e acertos
O mesmo elogio não pode ser feito, infelizmente, a O �o da
navalha — tradução de 1945 que vem ganhando sucessivas
reimpressões —, romance menor mas famoso, com duas versões
cinematográ�cas (a de 1946, com Tyrone Power, merece ser vista), que
não é o melhor de Maugham, mas, ainda assim, está muito acima de
uma literatura, digamos, de entretenimento.
O que me incomoda em O �o da navalha é o fato de Maugham
conceder ao personagem Lawrence Darrell uma importância que ele
não tem. Maugham tentou construir um romance que falasse das
desilusões, dos traumas e do vazio que se abatem sobre as pessoas em
tempo de guerra, principalmente sobre os soldados que, de volta a
seus lares, não se readaptam à vida em sociedade. Darrell — ou Larry,
como ele é chamado ao longo do romance — volta da Primeira
Guerra Mundial consternado pela morte do amigo que lhe salvara a
vida; e passa, então, a buscar sentido para a existência. Trata-se de
homem simples, herdeiro de pequena fortuna, que, movido por
inquietações metafísicas, percorre o mundo em busca de respostas.
Após experimentar diferentes religiões e empreender inúmeros
estudos, torna-se uma espécie de santo leigo, alguém que, como o
próprio narrador anuncia, “ao morrer não deixará vestígio de sua
passagem pela terra”. Mas Larry — enigmático até mesmo para o
narrador, que chega a ser repetitivo nas descrições, como se não
conseguisse perscrutar o personagem — acaba se transformando num
ser apático, destituído de grandes emoções, místico às vezes irritante.
Esse falso protagonista surge de maneiraintermitente no romance — e
Maugham se esforça para, por meio dele, unir as peças de sua trama.
Traído por seu protagonista, o escritor perdeu a oportunidade de
escrever um clássico, o que aconteceria se tivesse centrado sua atenção
no esnobe Elliott Templeton, o melhor personagem do romance:
norte-americano que vive em Paris, bon vivant , frívolo e pedante, de
passado suspeito, que, graças ao comércio de arte, enriqueceu durante
a Primeira Guerra. Fofoqueiro, tio solteirão, aparentemente
homossexual, com tino para organizar festas ou recepções, ele transita
na alta burguesia e na nobreza européias com facilidade. Mas é
também homem generoso, que sai inabalado do crash da Bolsa, em
1929, não por ser um escroque, mas apenas pelo fato de possuir as
fontes certas. Apegado aos valores de classe social que o acolheu — e
como poderia ser diferente? —, Elliott se escandaliza, por exemplo,
quando, de volta temporariamente aos EUA, um motorista de táxi o
chama de “amigo” e não de “senhor”. Por meio dele, o narrador
radiografa a vida e os valores das classes altas, mas, o que é um
mérito, sem fazer julgamentos ideológicos, sem descair para o
achincalhe ou, pior, para a exaltação dos pobres como bem-
aventurados e puros de coração. Esse tipo de demagogia, nunca
encontraremos em Maugham. Ao contrário, ele nos seduz com a
“requintada ironia” de Elliott — há diálogos repletos de falas ferinas,
inteligentes, plenas daquele tipo de esgrima social que presenciamos
com facilidade nos grupos que sabem unir elegância, verve e rapidez
de pensamento. Esses diálogos permitem que visualizemos até
pequenas rugas de humor nas expressões dos personagens; e nosso
autor jamais se rende à literatura de tese.
Seguimos parte da vida de Elliott e, depois, sua decadência física,
seu crescente medo da solidão; e o vemos se transformar num homem
digno de piedade, apegando-se com todas as forças, apesar da doença,
ao frenesi de uma vida glamorosa. Um dos mais perfeitos trechos do
romance é o que descreve sua agonia e morte, bem como a preparação
do cadáver. Cena triste, com uma ponta de humor negro, pois Elliott
deixara ordens expressas para ser vestido de uma maneira que, sob o
olhar do narrador, transforma o dândi num “corista de uma ópera de
Verdi”. Acompanhamos a humilhação que a morte impinge — o
quanto ela pode nos tornar ridículos — e, ao mesmo tempo, sofremos,
pois nos acostumamos a gostar desse requintado bufão, ironista que
ascendeu socialmente, sabe-se lá a que preço.
Larry não tem um terço da complexidade de Elliott ou de Isabel
Bradley, de quem se torna noivo por um breve período. Sobrinha de
Elliott, Isabel é o exemplo de uma das melhores qualidades de
Maugham: retratar personagens femininos. Ela evolui no transcorrer
do romance, física e psicologicamente, e seu longo diálogo com Larry,
quando rompem o noivado, mostra uma mulher realista, diante de
quem Larry se transforma numa insigni�cante caricatura, sem
respostas, que apela à ironia vulgar e covarde quando se sente sob
pressão. Frente à lógica de Isabel, ele não passa de um idealista
exacerbado — e como todos os sonhadores, um egoísta a quem os
próprios ideais bastam. A frieza dessa mulher, contudo, se lhe dá
forças para sobreviver quando o marido, Gray Maturin, perde tudo na
crise de 29, também a leva a cometer um delito que comprometerá a
vida de outra personagem, Sophie MacDonald. De encantadora
colegial a rainha perversa, Isabel reúne todos os matizes femininos.
É uma pena que a tradução seja muito antiga e não tenha sido
revisada. Isabel, por exemplo, toma refresco usando uma “palhinha” e
não um canudo; um personagem “dá uma perobinha” com outro,
talvez uma gíria da década de 1940 no Brasil, mas da qual não
consegui encontrar o signi�cado; as mulheres têm “pestanas” e não
cílios; outro personagem, cheio de vivacidade, é “um azougue”; e,
numa festa, todos se divertem “à grande”. Mas isso não estraga a
narrativa. Aqui e ali, às vezes encontramos lugares-comuns ou
descrições que chegam a ser bobas — e imediatamente lembramos de
Edmund Wilson —, mas Maugham também nos oferece, além dos
diálogos espirituosos, sólidas descrições dos personagens e trechos que
são boas descobertas, como ao dizer que os mortos se assemelham a
“fantoches de uma companhia falida” ou, apenas outro exemplo,
quando comenta sobre a Avenue de Clichy, ao amanhecer: “Sórdida à
noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada,
abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça”.
O único homem livre
Em seu romance O destino de um homem , Maugham apresenta
longa e precisa de�nição sobre os escritores, da qual sempre gosto de
me lembrar, principalmente por suas últimas linhas:
É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a
indiferença do mundo; depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se
submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está à mercê
de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de
diretores de revistas que o atormentam pedindo matéria, de cobradores de impostos que
o atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam
para almoçar; de secretários de instituições que o convidam para fazer conferências; de
mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de
jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem
um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos
matrimoniais; de rapazes graves que querem sua opinião sobre suas composições; de
agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência.
Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma
re�exão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o
orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, en�m,
qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco,
usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de
todo. Ele é o único homem livre.
Não poderia haver melhor de�nição do próprio William Somerset
Maugham. E um autor com tamanha autoconsciência deve ser
perdoado por sua obra irregular.
No que concerne a O �o da navalha , o narrador que desmente a si
mesmo desde a primeira página e faz exatamente o oposto do que
pensávamos ser uma decisão irrevogável; o narrador que escreve com
a mesma paixão sobre a natureza, a beleza das mulheres e Racine —
chegando à discutível e polêmica idéia de que “a arte triunfa quando
consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio”; o
narrador que consegue extrair drama da classe social que o senso
comum e a esquerda julgam erroneamente viver em meio a futilidades
e devaneios; um narrador assim, que conclui, falando sobre seu
protagonista, ter faltado a Lawrence Darrell “aquela pequena nota de
crueldade que mesmo os santos precisam ter para conseguir sua
auréola”, certamente merece não apenas nossa atenção, mas também
o nosso respeito.
NOSSA HERANÇA COMUM — LIEV TOLSTÓI
Liev Tolstói demorou quatro anos para escrever Anna Kariênina ,
entre 1873 e 1877. Passara sete anos trabalhando em Guerra e Paz ,
publicado no ano de 1869. Dois feitos notáveis se considerarmos, de
um lado, as energias que obras de tal dimensão consomem, e de outro,
o resultado, vastos panoramas que expõem, detalhadamente, não só a
vida da aristocracia russa e de suas relações sociais, mas o
pensamento, as angústias, os amores, as decepções, as alegrias e as
dúvidas de um amplo e diversi�cado leque de personagens, com os
quais, apesar de todas as diferenças, de alguma forma nos
identi�camos.
No que se refere, especi�camente, ao romance Anna Kariênina , é
impossível não sentirmos certo desconforto ao iniciarmos sua leitura.
Na verdade, um desagradável desconforto, nascido desse período de
mais de um século entre a edição princeps e a primeira tradução
brasileira feita diretamente do russo,por Rubens Figueiredo. Cerca de
120 anos representam a medida do nosso atraso cultural e da
distância interposta entre nós e essa mulher magní�ca, embriagada
com a “admiração entusiástica” que provoca em homens e mulheres,
graças ao seu magnetismo e ao destemor de ir além do que a moral e a
hipocrisia de sua época poderiam permitir. Mais de um século,
infelizmente, ocupado por uma tradução indireta, feita a partir do
francês, o que eleva ao quadrado a traição inevitável de todas as
traduções.
Mas nosso distanciamento em relação a Tolstói é ainda maior. Boris
Schnaiderman a�rma, em Tolstói, antiarte e rebeldia , que, após a
conclusão de Anna Kariênina , o escritor passou por uma crise
profunda, durante a qual colocou em xeque suas crenças religiosas e
sua concepção de mundo, tentando conciliar idéias estéticas, fé, moral
e as contradições nascidas do embate entre seu anseio por mudanças
sociais e sua origem aristocrática. Uma crise jamais resolvida,
analisada com brilhantismo por Isaiah Berlin no ensaio “O porco-
espinho e a raposa”, no qual conclui: “Ao mesmo tempo insanamente
orgulhoso e cheio de ódio por si mesmo, onisciente e duvidando de
tudo, frio e violentamente apaixonado, desdenhoso e pronto a se
humilhar, atormentado e desapegado, rodeado por uma família que o
adorava, por seguidores dedicados, pela admiração de todo o mundo
civilizado e, ainda assim, quase totalmente isolado, ele é o mais
trágico entre os grandes escritores, um velho desesperado, além do
auxílio humano, perambulando semicego por Colona.”
Essa crise permanente, essa dicotomia devastadora, encontra-se
detalhada nos diários de Tolstói, catorze volumes dos noventa que
compõem suas Obras completas , e dos quais não existe, em
português, sequer uma condensação. Trata-se de um vazio que
di�culta o conhecimento do homem e obscurece a apreensão do seu
processo criativo, certeza reforçada pelas palavras do crítico e escritor
Dimitri Sergueïevitch Merejkovski, citado por Thomas Mann no
ensaio “Goethe e Tolstói, fragmentos sobre o problema da
humanidade”, para quem “as obras artísticas de L. Tolstói não são, no
fundo, nada mais que um diário poderoso, escrito durante cinqüenta
anos de vida, uma con�ssão in�nita, minuciosa. [...] Na literatura de
todas as nações, não se acha um segundo escritor que revele, com uma
franqueza magnânima como Tolstói, a sua vida particular,
freqüentemente os lados mais íntimos desta”.
De fato, é conhecida, em Anna Kariênina , a semelhança de idéias
entre o autor e o personagem Konstantin Liévin, cuja permanente crise
existencial revelaria muitas das angústias do próprio Tolstói. Mas os
aspectos autobiográ�cos presentes no romance se resumiriam às
características de Liévin? E quais seriam eles? Provavelmente, as
páginas dos diários poderiam oferecer uma resposta. Mas a pesquisa
em outras fontes nos presenteia com uma pequena descoberta, por
meio da qual ensaiamos alguns tímidos passos no conhecimento de
como vida e obra são — e não apenas no caso de Tolstói —
indissociáveis.
No ensaio “A arte como procedimento”, de Victor Borisovitch
Chklovski, no qual o autor analisa o que ele chama de
“singularização” ou “liberação do automatismo perceptivo” em
Tolstói, encontramos uma citação dos diários do romancista, de 28 de
fevereiro de 1897:
Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me
lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes,
não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci,
isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém
conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu
ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola
inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido.
Ora, vinte anos depois de ter escrito Anna Kariênina , Tolstói grava
em seu diário tais impressões, certamente experimentadas naquele dia.
Contudo, a leitura do romance nos revela tratarem-se de sensações
conhecidas do autor, por alguma razão intensi�cadas naquele 28 de
fevereiro, mas utilizadas no passado para compor a derradeira crise de
Anna:
Olhou para o relógio. Haviam passado doze minutos. ‘Agora, ele já recebeu o bilhete e
vai voltar. Não demora, mais dez minutos... Porém, e se ele não vier? Não, isso é
impossível. Não posso deixar que me veja com os olhos chorosos. Vou me lavar. Sim,
sim, será que eu me penteei?’, perguntou-se. E não conseguiu lembrar. Apalpou a cabeça,
com a mão. ‘Sim, estou penteada, mas não me lembro de forma alguma quando me
penteei.’ Chegou a não acreditar na própria mão e aproximou-se do espelho de um
aparador, a �m de veri�car se estava penteada, de fato. Estava penteada e não conseguia
lembrar quando �zera isso. ‘Quem é?’, pensou, olhando no espelho para um rosto
in�amado, com olhos que brilhavam de modo estranho e �tavam-na, assustados. ‘Ora,
sou eu’, compreendeu de repente [...].
O mesmo estranhamento dos diários lateja na aguda neurastenia de
Anna, mostrando-nos que Tolstói, talvez mais do que Flaubert,
poderia ter a�rmado: — Anna Kariênina sou eu.
Ficção e moralismo
O vazio que há entre nós e Tolstói não se restringe ao
desconhecimento dos aspectos biográ�cos que podem estar ou não
presentes em sua obra, ou às traduções indiretas, ou à impossibilidade
de os leitores que dominam apenas a língua portuguesa adentrarem a
constelação de fatos e idéias que ele relata em seus diários. Conhecer
Tolstói pelas bordas signi�ca também correr o risco de menosprezar
parte de Anna Kariênina , pois se é difícil situar-se em meio aos
hábitos da aristocracia russa do século XIX, será um exercício
igualmente intrincado entender sua moral. Na verdade, uma leitura
proveitosa do romance exige que abdiquemos temporariamente do
nosso modo de pensar e dos nossos valores, sob pena de, não agindo
dessa forma, deixarmos escapar parcela signi�cativa do substrato
atemporal da obra.
Mesmo para uma leitora russa, de profunda sensibilidade, Anna
Kariênina guarda questões inaceitáveis. Em meio à crônica do curioso
encontro de Isaiah Berlin com a poeta Anna Akhmatova, ocorrido em
novembro de 1945, relatado por Berlin no ensaio “Conversa com
Akhmatova e Pasternak”, encontramos a surpreendente crítica da
poetisa:
Por que Tolstói fez com que ela se suicidasse? Assim que ela deixa Kariênin, tudo muda.
Ela se transforma de repente numa mulher caída, numa traviata, numa prostituta. Quem
pune Anna? Deus? Não, não é Deus — mas a sociedade cujas hipocrisias Tolstói está
constantemente denunciando. Por �m, ele nos diz que Anna repugna até a Vrónski.
Tolstói está mentindo. Ele tinha mais entendimento que isso. A moralidade de Anna
Kariênina é a moralidade das tias de Tolstói em Moscou, das convenções �listéias. Está
tudo ligado a suas vicissitudes pessoais. Quando Tolstói estava casado e feliz, ele
escreveu Guerra e paz, que celebra a família. Depois que começou a odiar Sophia
Andreevna [sua esposa], mas sem poder se divorciar, porque o divórcio é condenado
pela sociedade, e talvez também pelos camponeses, ele escreveu Anna Kariênina e puniu
Anna por deixar o marido.
À parte as questões de ordem pessoal, que devem ter contaminado
de algum modo os romances — mas, certamente, não da maneira
automática e simplista colocada por Akhmatova —, trata-se de grave
contra-senso exigir de um nobre do século XIX que escreva com os
critérios de alguém que, vivendo sob o stalinismo, experimentava as
mudanças radicais impostas pela Revolução de 1917.
Se há, em Anna Kariênina , moralismos incompreensíveis, também
é verdade que Tolstói não se cansa de criticar sua própria classe,
apresentada como super�cial e hipócrita, ávida por censurar os
escândalos, mas deliciando-se com eles, chafurdando num pântano de
futilidade, mexericos e misticismo, in�uenciada por todo tipo de
charlatão. Tolstói não deixa, inclusive, de descrever o comportamento
machista e irresponsável de Stiepan Arcáditch Oblónski, irmão de
Anna, igualmenteadúltero, além de perdulário e leviano, que consome
a herança pertencente à esposa, Dária Aleksandrova (Dolly), enquanto
esta, obrigada a viver em uma propriedade rural desprovida de
conforto, para economizar se submete a vestir, a si mesma e aos �lhos,
com roupas reformadas. As atitudes de Oblónski são relevadas pela
sociedade, pois caracterizam o comportamento-padrão dos homens
daquela classe senhorial, mas Tolstói não deixa de conceder a Dolly
uma consciência clara acerca de sua condição e do lugar restrito
atribuído às mulheres. Num diálogo com Liévin, que está apaixonado
por sua irmã, ela diz: “— [...] Os senhores fazem o pedido quando o
seu amor amadureceu ou quando, entre duas mulheres, concluíram
pela superioridade de uma. Mas à moça, nada se pergunta. Querem
que ela escolha por si mesma, mas não pode escolher, pode apenas
responder: sim e não”. Tolstói não abandona seus personagens a uma
vida destituída de raciocínio e complexidade de sentimentos. Assim,
mesmo que Dolly, pressionada por sua condição social, veja-se
obrigada a sofrer em silêncio e permanecer submissa, ela jamais perde
a clareza em relação ao seu estado e às traições cometidas pelo
marido.
Quanto ao caso especí�co de Anna Kariênina, ela não é “punida”
por seu adultério ou pelo fato de amar Vrónski e desprezar o marido,
Aleksei Kariênin, comportamento que Tolstói descreve como rotineiro
naquela aristocracia. A “punição” de Anna decorre de ela querer
ardentemente “provar a liberdade do amor”, ou seja, não ser
hipócrita, abandonar o marido e viver uma nova relação com seu
amante. Depois de revelar a verdade ao marido, o que ela deseja é
de�nir sua situação de uma vez por todas, atitude inaceitável para a
época. Tolstói permite a sua heroína superar inclusive o medo da
desonra, mas ela tem consciência da reação que virá: “Depois de parar
e olhar de relance para o topo dos álamos que oscilavam no vento,
com as folhas lavadas que brilhavam radiantes sob o sol frio, Anna
compreendeu que não lhe perdoariam, que tudo e todos seriam agora
impiedosos com ela, como aquele céu, como aquela vegetação. E de
novo sentiu que sua alma começava a duplicar-se”.
Assim, a um passo do delírio, ela desaba em prantos, não por se
sentir culpada, mas por buscar, sem qualquer possibilidade de sucesso,
o que a sociedade à qual pertencia encontrava-se incapacitada de lhe
conceder: “Chorava porque seu sonho de um esclarecimento, de uma
de�nição para a situação em que estava, fora destruído para sempre.
Ela sabia de antemão que tudo havia de permanecer como antes, e até
in�nitamente pior do que antes”. E mesmo mais tarde, depois de ter
abandonado Kariênin e o �lho para viver com Vrónski, será esse
estado inde�nido — dependente da boa vontade do marido para lhe
conceder o divórcio, o que nunca ocorrerá, isolada por sua classe e
dependente do amor de Vrónski, mas sem qualquer segurança, a não
ser a dos seus próprios sentimentos — que condenará Anna a uma
insuportável fragilidade.
O romance, portanto, foi construído sobre uma sólida coerência
interna. E o fato de a obra e a realidade social daquela época estarem
eminentemente ligadas atesta o que poderíamos de�nir como uma
realidade inescapável. Dessa forma, é compreensível que não haja
nenhuma cena de amor envolvendo Anna e Vrónski. E quando a
libido �nalmente se satisfaz, a narrativa enfatiza apenas o sentimento
de humilhação da mulher. Quanto ao homem, “ele sentia o que deve
sentir um assassino quando vê o corpo do qual tomou a vida”. Um
exagero, sem dúvida, se lermos o livro sem nos despojarmos da moral
ocidental do século XXI. O primeiro beijo do casal será descrito
apenas várias páginas depois, e a única cena de intensa paixão, Tolstói
a con�na nas últimas páginas da Parte 4, quando Vrónski, entrando
abruptamente na casa dos Kariênin, “sem pensar em nada, sem
veri�car se havia ou não alguém no quarto, abraçou-a e começou a
cobrir de beijos o seu rosto, as suas mãos e o seu pescoço”.
Entretanto, se o moralismo de Tolstói permanece atado aos
costumes de sua classe e de seu tempo, ele também não pode ser
dissociado da crise insuperável sobre a qual falamos acima, do
“amargo con�ito interior entre sua experiência real e suas crenças,
entre sua visão da vida e sua teoria do que essa vida e ele próprio
deveriam ser, se a�nal tivesse de sustentar tal visão”, como nos explica
Berlin. Um permanente antagonismo que, se não comprometeu a
qualidade de sua �cção, causou danos à sua capacidade de julgar a
arte e seus contemporâneos.
No ensaio “Engajamento artístico — um legado russo”, Isaiah
Berlin cita, por exemplo, as críticas de Tolstói a Flaubert: “[...] Tolstói
se pergunta se Flaubert — o Flaubert que descreve são Juliano, o
hospitalário, a abraçar os leprosos, que eram o Cristo — teria se
comportado da mesma maneira em situação semelhante; esta dúvida
mina sua con�ança no escritor, sua crença em sua autenticidade, a
qual, para ele, era a base de toda arte verdadeira”. A exigência dessa
coerência extrema, ou seja, vincular de tal modo criador e
personagem, cobrando do primeiro que se comporte como o segundo,
aproximar-se-ia perigosamente da demência se não soubéssemos,
como o próprio Berlin a�rma, que Tolstói é movido por uma
incontrolável ironia. Irônico ou não, no entanto, o pensamento do
escritor estava impregnado desse estranho moralismo, como o ensaio
de Berlin explica minuciosamente.
A conhecida crise de Tolstói, no entanto, prevaleceria sobre tais
idéias, fazendo com que, para o bem de sua �cção, ele se mantivesse
incoerente por toda a vida. Para Berlin, ele “foi uma vítima notória do
seu gênio artístico e sua consciência social”. E apesar de “sua
condenação de toda arte, que, como vaidade e corrupção, não ajuda a
curar as feridas morais dos homens — seu impulso artístico não se
destruiu. Quando, mais tarde, tendo ele escrito Khadji-Murat , alguém
lhe perguntou como chegara àquilo — qual era a mensagem moral ou
espiritual da obra? —, respondeu, muito friamente, que mantinha seu
trabalho artístico separado da exortação moral”.
O período de elaboração da novela Khadji-Murat concentra-se,
segundo Boris Schnaiderman, entre 1896 e 1904, mas em Anna
Kariênina já é possível perceber como a mão do romancista parece
refrear o moralismo do narrador, apesar de, em alguns raros
momentos, perder o controle. Há uma evidente misoginia em
determinados trechos e ao menos uma análise nitidamente
preconceituosa, quando o narrador deprecia o comportamento de
Anna em um encontro social e generaliza de maneira decepcionante:
“Esse jogo de palavras, esses segredos dissimulados tinham um grande
atrativo para Anna, como para todas as mulheres. Não era a
necessidade de dissimular, tampouco a �nalidade da dissimulação, mas
sim o próprio processo de dissimulação que a empolgava”.
O que poderia ser um pequeno tropeço, contudo, permanece
ofuscado, por exemplo, pela cena do jantar na casa de Oblónski, onde
se encontram Liévin, Aleksei Kariênin, amigos do an�trião e
intelectuais. Em seguidas páginas discute-se o tema da emancipação
feminina, e vemos des�larem diante de nós todas as limitações da
época, mas por meio de um diálogo no qual apenas os personagens
expõem seus pensamentos, sem a intromissão impertinente ou
inadequada do narrador.
Estados de consciência
A discussão sobre os dilemas que morti�caram Tolstói ao longo de
sua vida é importante, inclusive, para compreendermos as razões que
o afastaram da �cção durante vários anos. Quanto a Anna Kariênina ,
a obra não se resume à tragédia pessoal de uma adúltera ou à história
de uma classe social, com seus preconceitos e vícios, mas mergulha
nos dramas humanos, presentes em todas as pessoas que guardam um
mínimo de autoconsciência. “Toda a diversidade, todo o encanto, toda
a beleza da vida é feita de sombra e luz”, diz Tolstói. E ele nos mostra
como essa alternância de estados pode marcar as existências,
enquanto nos leva a perseguir Anna Kariênina, fazendo-nos
compreender a cada página o que Vrónski havia pensado ao encontrá-
la a primeira vez: “O excesso de algumacoisa inundava seu ser”.
Ao voltar de Moscou para São Petersburgo, depois da famosa cena
do baile, onde conquista Vrónski, Anna encontra-se no trem,
esforçando-se para se concentrar na leitura de um romance, cujas
páginas ela separa com uma espátula, sonhando partir com o herói do
livro para sua propriedade rural. Ela raciocina sobre os sentimentos
experimentados no baile e se divide entre a vergonha e a coragem de
assumir seu desejo. Quando, en�m, a vaidade derrota a censura e ela
se alegra por ter despertado a paixão em Vrónski, tudo se conturba e
Anna não é mais dona de si:
Sorriu com desdém e pegou de novo o livro, mas, positivamente, já não conseguia
compreender o que lia. Deslizou a espátula pelo vidro da janela, depois encostou a
superfície lisa e fria contra a face e por pouco não riu em voz alta, com a alegria que,
sem motivo, se apoderou dela. Anna sentiu que seus nervos, como cordas, se punham
cada vez mais tensos, puxados por uma cravelha que apertava. Sentia que seus olhos se
abriam mais e mais, que os dedos das mãos e dos pés se remexiam nervosos, que algo
dentro dela comprimia sua respiração e que todos os sons e imagens, nessa penumbra
trêmula, a impressionavam com uma clareza incomum. De forma ininterrupta, lhe
vinham momentos de dúvida, se o vagão seguia para frente ou para trás, ou se estava
completamente parado.
Tolstói tem a capacidade mágica de exprimir os mais diversos
estados de ânimo. Nesse trecho, ele faz a atenção de Anna migrar dos
barulhos e movimentos iniciais do trem para a leitura, desta para sua
empregada, Ánuchka, que cochila, e de novo para a leitura, e do
enredo do romance para as lembranças do baile, seguindo,
gradativamente, a um estado em que todas as sensações se avivam,
dominando-a a ponto de seu contato com a realidade esgarçar-se de
tal maneira, que ela não sabe mais onde está ou se não teria se
transformado em outra pessoa.
O surpreendente, no entanto, é que Tolstói consegue descrever
todas essas mudanças sem se distanciar do trem, dos elementos
concretos que rodeiam Anna. E esse é exatamente o aspecto genial
dessas descrições, pois elas jamais se desvinculam completamente do
que as circunda: há sempre um barulho, a visão de uma luva rasgada,
um facho de luz, uma sensação tátil — elementos que funcionam
como frágeis liames, cuja utilidade reside em manter as personagens
presas à vida, e sem os quais elas não conseguiriam retornar desse
mundo onde vagam suspensas em uma nuvem de sonho ou de
arrebatamento.
Se há inúmeras qualidades no texto de Tolstói — seus diálogos
entrecortados pelas interferências da vida que urge ao redor dos
personagens, suas extasiadas e minuciosas descrições da natureza e a
maneira como ele consegue revelar os verdadeiros interesses ou os
preconceitos escondidos sob um raciocínio aparentemente justo ou
honesto —, a que sobressai é sua capacidade para revelar as variações
de humor e a maneira como a euforia, a excitação ou um pensamento
mórbido podem dominar completamente o raciocínio e os atos de
alguém.
O melhor exemplo talvez seja a crise �nal de Anna. A forma como
ela repisa os fatos, remoendo cada um deles sem extrair qualquer
elemento novo, enovelando-se cada vez mais em um labirinto
emocional confuso e obscuro, é cruciante. Passo a passo, vemos Anna
perder o controle sobre seus pensamentos, refém do desespero,
confundindo a realidade, rendendo-se a um ciúme injusti�cado e a
uma dolorosa ciclotimia. Enquanto a imaginação de Anna galopa, a
vida segue seu ritmo banal, e lentamente cresce nela uma hostilidade
incontrolável, um asco descomedido. Tudo se torna repulsivo, cada
elemento da realidade ressalta envolvido por uma aura de nojo e
horror, de maneira que o suicídio surge como a solução para se livrar
não só dos outros, mas também de si mesma.
O que impressiona nessas páginas é a clareza com que Tolstói nos
oferece cada mínimo detalhe, não só dos pensamentos de Anna, mas
de tudo que a rodeia, sem qualquer exagero, com equilíbrio,
permitindo que visualizemos todos os elementos, todos os gestos,
todas as in�exões, todo o desespero. Nem mesmo dos lampejos da
memória ele descuida. E apesar da profusão de pormenores, as cenas
correm na velocidade da carruagem na qual Anna atravessa a cidade
ou com o ímpeto das rodas do trem em que ela �xa sua sofrida
atenção e sob as quais liberta-se do “livro repleto de a�ições, ilusões,
desgraças e maldades” que havia lido sofregamente até aquele
momento.
Quando Anna cruza o limite entre sua dor e os trilhos da ferrovia,
não há mais moralismos, a dicotomia tolstoiana �nalmente encontra
sua solução, não na morte, mas, antes, no gesto que re�ete uma
escolha decisiva. Então, qualquer possibilidade de ironia ou de dúvida
se desintegra; e, além dos trilhos onde jaz o corpo de Anna, vemos o
semblante envelhecido de Tolstói, fugindo de Iásnaia Poliana para
morrer na estação ferroviária de Astápovo.
O �nal reservado a Liévin — aparentemente seguro em seu
casamento e em sua propriedade — é tão infeliz quanto o de Anna.
Ele não tem coragem para alterar o curso de sua existência, e
permanecerá apegado a conclusões ingênuas, mas percebendo que
nada mudará e que “continuará a existir um muro” entre o que
considera sagrado e as pessoas.
Infelicidade e mesmice
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à
sua maneira”, escreve Tolstói no início de Anna Kariênina , pois ele
pressente que, por uma desconcertante razão, apenas a infelicidade
nos arranca da mesmice. Em sua luta para descobrir o motivo de
sermos eternamente infelizes, ele criou Anna e Liévin, frações de uma
mesma personalidade, desse ego que se duplica e, seguindo rumos
paralelos, tenta satisfazer sua insaciável busca de um sentido para a
vida. Os anos posteriores ao romance mostram-nos que ele não
conseguiu a resposta de�nitiva. Mas o nobre desgastado por dúvidas
muitas vezes intoleráveis, e que viveu dividido entre ser escritor,
profeta ou moralista, deixou-nos esse romance escrito naquela Rússia
praticamente feudal, pois a servidão havia sido extinta em 1861,
tratando de um tema simples, o adultério. Um exemplo, contudo, de
como a arte pode permanecer fora do domínio do tempo; uma obra
com a qual Tolstói nos mostrou não existirem barreiras para a dor que
resume a experiência de viver, pois essa dor — sentida e expressada de
maneiras as mais diferentes, nascida do custoso enfrentamento do
cotidiano — é a verdadeira herança comum da humanidade.
EFÊMERA FELICIDADE — MARIO BENEDETTI
Em 1921, viajando de Paris à Itália, Edmund Wilson escreve em seu
diário: “O que há de melancólico na felicidade não é ela não existir, e
sim ela não durar (em resposta ao ‘Diálogo de Torquato Tasso’, de
Leopardi)”. Na verdade, o texto de Giacomo Leopardi que ele
comenta intitula-se “Diálogo de Torquato Tasso e seu Gênio
Particular” e faz parte dos Opúsculos morais . Aparentemente,
Torquato encontra-se no mosteiro de Ferrara, onde de fato
permaneceu internado durante meses, vítima dos delírios persecutórios
que o levariam à loucura. Ali, em sua cela, recorda-se da mulher que
ama em segredo, Eleonora, irmã do duque Alfonso II d’Este. A
lembrança é o mote para um diálogo sobre o prazer, o sofrimento e a
fruição da vida, “composta e tecida”, segundo o Gênio, “em parte de
dor e em parte de tédio”, só encontrando descanso “quando cai de
uma paixão em outra”.
A escolha da leitura e o comentário de Edmund Wilson são
compreensíveis. Ele acabara de rever, em Paris, a poeta Edna Saint
Vincent Millay, grande paixão de sua vida, de quem se lembraria, anos
depois, como a que “ligou a ignição de duas coisas dentro de mim,
minha paixão intelectual e meu insatisfeito desejo, que explodiram
juntos numa chama de êxtase que permanece como um dos pontos
altos de minha vida”. O reencontro em Paris, contudo, fora sombrio.
Edna, que além de bissexual era promíscua, já se tornara amante de
George Slocombe, e Wilson não se dispôs a reviver o ménage à trois
que havia experimentado com ela e o poeta John Peale Bishop. Em
carta a Bishop, na qualrelata o encontro, ele diz: “Ela não consegue
mais me intoxicar com sua beleza nem jogar bombas em minha alma;
quando olhei para ela, foi como se olhasse para dentro da cratera de
um vulcão extinto. Ela me entristeceu; curiosamente, entristeceu-me
constatar que eu a amara tanto e agora não a amava mais”.
Distanciando-se de Paris, Wilson não resiste, no entanto, ao
comentário amargo e deprimido sobre o fato de a felicidade não durar
— um sentimento desalentador, sempre importuno, mas renitente; e
sofrido, com certeza, por todos nós, tenhamos ou não vivenciado
intensa paixão.
A última chance
É exatamente esse caráter transitório da felicidade a principal
marca do romance A trégua , de Mario Benedetti. Martín Santomé, o
narrador da história, escreve um diário cujo tema inicial concentra-se
na espera de sua aposentadoria e numa curiosa visão da existência.
Aos 49 anos, prestes a completar cinqüenta, viúvo, a seis meses e
alguns dias de se aposentar, ele se sente indeciso quanto ao futuro, e
também ingênuo e imaturo, como que preso à juventude, mas só aos
defeitos dela. Trata-se de um homem detalhista, capaz de analisar as
pequenas curvas de sua letra e, num exercício de incipiente grafologia,
os estados de ânimo que, em sua opinião, elas revelam. Ama a rotina
do trabalho — ele é um burocrata do comércio, cuja mesa, voltada
para a parede, oferece-lhe apenas a visão de uma folhinha —,
principalmente porque ela lhe permite pensar ou sonhar. Durante o
expediente, divide-se em dois: um que trabalha de forma mecânica e
outro, “sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito
triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria”.
Ainda que seja um crítico arguto das pessoas, da sociedade e de si
mesmo, ele nunca se revolta: “Já aprendi que meus estados de pré-
explosão nem sempre conduzem à explosão. Às vezes terminam numa
humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e
de suas diversas e agravantes pressões”. De uma ironia deliciosa, bem-
humorada, capaz de elaborar descrições sutilmente ferinas dos
médicos, dos jornais, da corrupção, da política em geral e da cidade de
Montevidéu, Santomé possui, ao mesmo tempo, penetrante senso
ético, que o faz criticar o comportamento dos outros, mas sem
arrogância, ciente de que ele não é melhor ou superior. Em relação a
Deus, pondera, com jocoso ceticismo, que Ele “talvez tenha uma face
de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho
quando dá preto, e vice-versa”.
Sofrendo a contradição que todo ser humano minimamente
consciente experimenta — a de se saber (ou de se acreditar) superior
ao seu destino —, ele se reconhece, entretanto, como um
procrastinador: “A segurança de me saber capaz para algo melhor me
deu o controle da postergação, que no �m das contas é uma arma
terrível e suicida. [...] Postergar: esse é o meu vício, aliás incurável”.
Sua capacidade de autoconhecimento permite-lhe distinguir, inclusive,
o processo de insensibilização pelo qual a vida o obrigou a passar, e
lembra-se, sem qualquer pudor, do que lhe disse uma de suas eventuais
amantes: “Você faz amor com cara de empregado”. Ou das palavras
da �lha, Blanca: “Acho que você se resignou a ser opaco, e isso me
parece horrível, porque eu sei que você não é opaco”.
Em meio aos encontros e divergências da vida familiar, na qual se
revela às vezes um cinqüentão controlador, às vezes incompreendido
pelos �lhos, e quase sempre um pai que não tem certeza sobre qual a
melhor palavra a ser dita ou o gesto mais apropriado, Martín Santomé
anseia apenas pelo ócio que a aposentadoria lhe concederá, e guarda a
esperança de que ela o liberte para a derradeira chance de encontrar a
si mesmo.
Clarão instantâneo
A forma do diário permite a Mario Benedetti criar um
protagonista-narrador que jamais teme a auto-análise, a
autoconsciência. Há temas, portanto, recorrentes, frutos dessa
honestidade em esmiuçar as verdadeiras causas — e também as
conseqüências — de suas escolhas. Santomé não poupa nem mesmo o
passado, recuperando as lembranças de sua falecida esposa, Isabel,
com incrível coragem. Em momento algum — o que realmente seria
um recurso fácil — ele idealiza o casamento, mas repensa, um a um,
todos os limites, todos os problemas, chegando a confessar sua
incapacidade para reconstituir a imagem de Isabel. Lembra-se, isto
sim, da textura e do calor de sua pele, do relevo de seu corpo. “Por
que as palmas das minhas mãos têm uma memória mais �el do que a
minha memória?”, ele se pergunta, somente para constatar que seu
sentimento não é saudade, mas, antes, a certeza de estar preso ao
desejo que, abruptamente interrompido pela morte, não pôde se
consumir.
Ele reencontrará o amor — e a libertação do tédio e da indiferença
— em Laura Avellaneda, jovem de 24 anos contratada para ser sua
subalterna. A princípio, ao analisá-la, ele demonstra certa misoginia
— apesar das relações sexuais apressadas e ocasionais que mantém
com desconhecidas —, mas sua avaliação muda gradativamente. A
lenta aproximação de Laura — ou apenas Avellaneda, como ele
apreciará chamá-la — e a forma com que o narrador descreve esse
processo, são outras das inúmeras qualidades de A trégua . Não há
saltos ou situações arti�ciais, mas um vagaroso apaixonar-se, que
evolui do olhar observador às pernas da jovem, passando por uma
difusa atração, até chegar à consciência, no feriado de 1º de maio, da
saudade daquela “�gurinha triste, concentrada, indefesa”. No dia
seguinte, quando a reencontra, seu amor é confuso: “Sinto-me nervoso
como um adolescente, é verdade, mas quando vejo minha pele que
começa a se afrouxar, quando vejo estas rugas dos meus olhos, estas
varizes dos meus tornozelos, quando sinto de manhã minha tosse de
velho, absolutamente necessária para que meus brônquios iniciem sua
jornada, então já não me sinto adolescente, mas ridículo.”
A partir desse trecho, a dolorosa percepção que Santomé demonstra
do próprio envelhecimento chega a ser comovente.
Assim, apesar de, passo a passo, tudo se tornar um deleite —
“Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que
isso é a vida”, escreve Martín Santomé —, esse amor outonal também
terá sua cota de angústia, nascida daquela clara noção que o narrador
possui da diferença de idade entre ele e Avellaneda, o que o fará
mover-se impulsionado pela urgência, permanecendo alerta, temeroso
de que a felicidade lhe escape. A paixão é submetida, dessa forma, a
um duro senso de realidade, mas que nunca impede o desfrute do
prazer ou o ímpeto de sonhar.
Enquanto experimenta todas as formas de amar e vive a emoção de
ter alcançado Avellaneda, de tê-la tornado realmente parte de si,
Santomé jamais abdica de duas certezas — a solidão o espreita e a
felicidade está acorrentada à fruição do momento:
Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e
estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por
alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento,
aquela fatia de cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca
havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de
que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O
ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um
segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações.
Quando a tragédia ocupa o lugar da redescoberta da ternura, a
angustiosa constatação de Edmund Wilson e Giacomo Leopardi — a
verdade da qual Martín Santomé sempre suspeitou — instala-se de
maneira irremediável: o momento de felicidade não dura, é impossível
conservá-lo. O silêncio de Avellaneda, a partida sem despedidas,
interrompe bruscamente os esforços do narrador para “gastar a
plenitude [...] sem nenhuma reserva”. E é perfeito que ela parta
silenciosamente, ainda que muitos dos leitores de Benedetti tenham lhe
pedido o adeus da personagem. Anos depois, ele o escreveria naforma
de um poema — “Ultima noción de Laura” — dedicado a sua amiga,
a atriz Ana Maria Picchio, que interpretou Laura no �lme A trégua ,
dirigido por Sergio Renán.
O enredo do romance, contudo, fecha-se apenas depois de um
inesperado diálogo, cujo conteúdo integral não será revelado ao leitor.
Para nós, condenados a não saber tudo, restará apenas partilhar da
verdade: uma só trégua, um único momento de felicidade, que se nega
a perdurar, é muito pouco para a vida inteira de desapontamentos,
vazios e interrogações sem resposta.
SOFRIMENTO E DIGNIDADE — JOSEPH ROTH
O título Jó — romance de um homem simples conduz o leitor a
uma analogia tão imediata quanto falsa. Mais que a história bíblica
reescrita sob aparência moderna, essa narrativa, publicada em 1930
pelo judeu-austríaco Joseph Roth, é profunda tentativa de diálogo
com o livro tradicional. O protagonista, a princípio crédulo inocente,
revolta-se diante dos desígnios de Javé. Ele se angustia buscando o
motivo de suas provações, mas não luta para ser readmitido à graça
divina. E se a mensagem oferecida pela história original é a de que o
homem deve persistir em sua fé a qualquer custo, a lição do romance
vai além da perseverança: Mendel Singer, o protagonista, evolui de sua
fé infantil a um estado de silenciosa e sofrida dignidade, tipo incomum
de sabedoria.
Mendel é um humilde professor. No único cômodo de sua casa,
onde reside com a esposa, Débora, e três �lhos — Jonas, Schemariah e
Miriam —, ele transmite ensinamentos bíblicos a poucos alunos. Esse
homem simples vê sua vida repetir-se todos os dias, “incessante e
persistente como um pequeno e pobre riacho entre margens áridas”.
Mas ele está preso a essa “roda de labutas e tormentos” por uma fé
inquebrantável — como se Abraão re�zesse, dia após dia, a subida
para o sacrifício de Isaac.
Débora espera o quarto �lho. Mas à alegria do nascimento logo
sucede a tristeza: o menino, Menuhim, tem sérios problemas de saúde,
aparentemente irreversíveis. Será o primeiro elo em uma sucessão de
dramas, a primeira de várias provas para Mendel, um obcecado pela
fé. A criança doente inocula a dúvida no casal: os �lhos pagam pelos
pecados dos pais? A única resposta possível se divide entre amar o
menino, desdobrar-se para cuidar dele, e crer que, em algum
momento, o plano divino se esclarecerá: “Ao rezar, ela [Débora]
mantinha o rosto enterrado nas mãos mais demoradamente que de
hábito, como se criasse sua própria noite, para nela enterrar o medo, e
suas próprias trevas, para nelas encontrar a graça. Acreditava,
conforme está escrito, que a luz de Deus resplandece nos crepúsculos,
e que sua bondade clareia o negrume.”
Amplificação
Para introduzir o leitor nessa família de judeus pobres — que vivem
na cidadezinha russa de Zuchnow em algum momento depois da
Guerra Russo-Japonesa — e acompanhá-los até o �m da Primeira
Guerra Mundial, Joseph Roth faz com que sua narrativa se desdobre,
tentando abarcar toda a realidade, mas sem jamais se precipitar.
Escreve de forma meticulosa, delicada, mesmo ao descrever momentos
dramáticos ou cenas em que a tensão — nascida da miséria, da
angústia ou do desamor — se espraia lentamente pelo texto,
obedecendo a um narrador insatisfeito, que busca sempre mais,
semelhante a um compositor que acrescentasse novas e incansáveis
camadas de sentido a certa melodia. Sua ânsia é esgotar o que tem a
dizer, mas um ou dois detalhes não o satisfazem. Sem as
circunvoluções desmesuradas do barroco, Roth molda seu texto
acrescentando elementos que acumulam sentido. Não se trata da mera
repetição de sinonímias, mas de uma acumulação que, enquanto
pormenoriza, concede concretude à história. Nesses trechos, o
pensamento se ampli�ca, alargando o tecido narrativo; há um
verdadeiro desdobramento de idéias, dando vida a quadros cuja
complexidade corresponde perfeitamente à vida. Os elementos são
decompostos não apenas para satisfazer a necessidade, digamos, de
enumeração, mas antes para que o narrador argumente com perfeita
clareza.
A viagem de Débora, com o objetivo de levar o bebê para ser
abençoado por um famoso rabino, pode servir como exemplo do
estilo de Roth:
Certo dia, uma semana antes das grandes festas (o verão transformara-se em chuva e a
chuva queria fazer-se neve), Débora pegou o cesto de vime com o �lho, envolveu-o num
cobertor de lã, acomodou-o na carroça do cocheiro Sameschkin e viajou para Kluczysk,
onde morava o rabino. A tábua que servia de assento �cava solta sobre a palha e
deslizava a cada movimento do carro. Débora continha-a apenas com o peso de seu
corpo. Era como se a tábua estivesse viva e quisesse saltar. Lama prateada cobria a
estrada estreita e tortuosa em que afundavam as longas botas dos caminhantes, assim
como metade das rodas da carroça. A chuva encobria os campos, pulverizava vapor
sobre as cabanas esparsas, moía com �na e in�nita paciência tudo de sólido que
encontrava: a pedra calcária que, aqui e ali, crescia da terra negra como um dente
branco; os troncos serrados nas margens da estrada; as pranchas de madeira
perfumadas, empilhadas umas sobre as outras, em frente à entrada da serraria; o lenço
sobre a cabeça de Débora e as cobertas de lã sob as quais Menuhim jazia enterrado.
Nenhuma gotinha deveria borrifar sobre ele. Débora calculava que tivessem ainda
quatro horas de viagem. Se a chuva não passasse, precisaria parar numa hospedaria e
secar as cobertas, tomar um chá e comer as rosquinhas que trouxera, já amolecidas. Isso
podia custar-lhe cinco copeques. Cinco copeques que não devia gastar de forma leviana.
Mas Deus mostrou compreensão e a chuva parou. Um sol diluído branqueou os farrapos
apressados de nuvens por menos de uma hora; depois, submergiu de�nitivamente em
nova e ainda mais profunda penumbra.
Narradores contemporâneos desprezariam, com certeza, as
informações sobre a tábua que serve de assento, argumentando que
nada adicionam à história, e resumiriam drasticamente as linhas
dedicadas à chuva, satisfazendo-se, talvez, com a frase que antecede os
dois-pontos. Preferindo sugerir a descrever, não condenariam seus
leitores à cegueira, mas a ver em meio à neblina, o que se torna um
recurso interessante nas mãos de raros escritores — e uma falha
nascida da preguiça ou da incompetência, no que se refere à maioria.
Outro exemplo seria o longo trecho da chegada de Débora a
Kluczysk — “[...] As carroças espalhadas pela praça lembravam os
destroços de um naufrágio” —, que se estende até a manhã do dia
seguinte; ou quando ela acorda e, lentamente, toma consciência de seu
envelhecimento. A cena começa por um despertar inocente em certa
manhã de verão. A cada gesto, contudo, a mulher percebe a
deterioração do corpo, até ser surpreendida pelo olho do marido que
ainda dorme, cuja pálpebra abre involuntariamente, como se
comandada por um músculo liso. A visão inesperada desse olho —
“um lago congelado com um ponto negro no centro” —, enquanto o
amanhecer segue seu percurso imutável, perturba Débora, contamina
seus pensamentos, seus gestos. Ainda que nada aconteça, o trecho
descreve uma tomada de consciência, na qual os elementos se
desdobram e se acumulam para dar complexidade à trama. A partir
dessa manhã, a relação do casal sofrerá uma ruptura. Continuarão
juntos, mas sem qualquer atração física.
Crueza e síntese
Esse trecho, aliás, apresenta outro mérito de Roth: ele não permite
que idealizações religiosas se imiscuam no drama. Mais tarde, a forma
como Mendel passa a olhar para Débora, sentindo o desejo sexual
fenecer, é narrada sem meios-tons: “De uma mulher a quem alguém se
une apenas na penumbra, ela se convertera, por assim dizer, em uma
doença à qual se está ligado dia e noite, que nos pertence por inteiro,
que não é necessário partilhar com o mundo e em cuja �el amizade se
sucumbe”. E a voz do narrador sentencia, referindo-se a Mendel: “A
vergonha estivera no início de seu prazer, e ali estava ela de novo, no
�m”.
Se Joseph Roth não evita tratar com crueza o casamento
massacrado pelo cotidiano e pelo envelhecimento, também não foge
daspiores pulsões humanas. O olho de Deus e a culpa se fazem
presentes depois que os irmãos tentam matar o caçula, mas, durante a
cena do afogamento, as crianças são movidas por uma “alegre e atroz
expectativa”.
Com o passar do tempo, a família se desintegra, física e
moralmente. Jonas se alista no exército, Schemariah migra para os
EUA e Miriam passa a dar seu corpo aos soldados russos. A cena em
que Mendel descobre a verdade sobre a �lha é outro exemplo do
poder descritivo de Roth. Neste caso, a economia de recursos
surpreende — e transmite, com perfeição, o impacto da vergonha. Pai
e �lha haviam saído de casa juntos. Miriam, envolta em seu xale
amarelo, para um encontro secreto; Mendel, rumo à sinagoga. Horas
depois, caminhando de volta para casa, Mendel ouve sons estranhos
ao passar por um trigal. Esconde-se, então, temendo algum perigo:
[...] Quando as espigas se repartiram, o homem destacou-se primeiro. Um homem de
uniforme, um soldado usando quepe azul-escuro, botas de couro e esporas cujo metal
reluzia e tilintava levemente. Atrás dele, um xale amarelo iluminou-se, um xale amarelo,
um xale amarelo! Uma voz ressoou, era a voz da jovem mulher. O soldado virou-se,
abraçou-a, o xale se abriu, o soldado atrás dela, as mãos no seio, ela caminhava
encaixada nele.
Mendel fechou os olhos e deixou que o infortúnio passasse por ele em meio à escuridão.
Com um simples recurso, a repetição pleonástica de “xale
amarelo”, o narrador nos revela o espanto do pai. Depois de
questionar a esposa sobre o paradeiro da �lha, Mendel volta à
sinagoga, para rezar. O narrador transpõe, então, a cor do xale de
Miriam para a oração desesperada de Mendel, intensi�cando a dor
paterna: “No banco junto da estufa, dormia um judeu sem moradia.
Sua respiração marcava o ritmo do canto monótono de Mendel Singer,
que era como um canto ardente no deserto amarelo, perdido e íntimo
da morte”.
A condição de Jó
A saída para preservar a honra de Miriam é a emigração. Mas o
�lho doente tem de �car, sob os cuidados de amigos. Em Nova York,
contudo, a derrocada da família e a dor de Mendel só aumentam. A
América, o novo, invade a consciência do protagonista desde a
chegada, alucinando-o; ele percebe a inevitável crise de identidade dos
que o circundam, além de sofrer pelo �lho deixado para trás e pelo
abandono das tradições. A idéia da volta à Rússia passa a estar
sempre presente. Mendel espera. Repete o mesmo ritual, os mesmos
gestos todos os dias — uma serena resignação, uma espera na fé. Ele
acompanha o desenrolar do tempo na certeza de que todas as
promessas se realizarão; observa o tempo como se este fosse uma
transcorrência natural da misericórdia divina.
Quando eclode a Primeira Guerra, à dor por Jonas, o �lho que não
dá notícias, e por Menuhim, o caçula abandonado, somam-se as
mortes de Schemariah e Débora, e a loucura de Miriam. A tragédia se
instala. Joseph Roth despreza qualquer proselitismo. Tudo está morto.
Mendel Singer é um herói trágico, ainda que passivo. Mudo diante do
que não tem sentido, ele se revolta contra Javé e torna-se uma velha
sombra, dependente dos favores alheios. Mas, em meio à dor
inexplicável, Mendel preserva sua dignidade — como dizia
Montaigne, ele “sabe pertencer a si mesmo”.
Deus não abandonará Mendel, mas enquanto a hora da pesah não
chega, o protagonista assume a condição de Jó. Este, quando se vê
abandonado e coberto de chagas, apanha “um casco de cerâmica para
se coçar” e, impassível diante de suas provações, “senta-se no meio
das cinzas”. Sua mulher, então, lhe diz: “— Persistes ainda em tua
integridade? Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!”. Ao que Jó
responde: “— Falas como uma idiota: se recebemos de Deus os bens,
não deveríamos receber também os males?” (Jó 2, 8-10).
Em seus comentários sobre esses versículos, Harold Bloom diz, em
Onde encontrar a sabedoria? , que “o Livro de Jó encerra uma
estrutura dotada de crescente autoconsciência”, um livro “que não
confere conforto algum, na aceitação de tal sabedoria”. Mendel Singer
seguirá por essa via. As dores, as perdas e as humilhações o
conduzirão a um estado de perfeita integridade, no qual descobrirá o
quanto o homem pode se manter digno, apesar de todo sofrimento.
Uma dignidade solitária, �eumática — “uma sabedoria severa,
suspensa entre a ironia e a tragédia”, diz Bloom —, na qual nem a
religião nem Deus ocuparão qualquer espaço, mas que servirá para
rea�rmar o Gênesis : se o homem foi moldado à semelhança de Javé,
por que haveria de se vergar, mesmo diante do mais atroz
padecimento?
Referindo-se às di�culdades de sua própria vida, Bloom a�rma ter
encontrado conforto, desde a infância, na sabedoria talmúdica que se
concentra no Pirkei Avot , “uma suplementação tardia do extenso
Mishná ”. E cita, dentre outros trechos, as questões atribuídas a um
dos mestres mais reverenciados da tradição judaica, o rabino Hillel:
“Se eu não for por mim, quem então? E, sendo por mim, o que sou? E
se não for agora, quando será?”. Enquanto a esperança de Mendel
não renasce, enquanto o milagre não se manifesta, ele fará de seus dias
uma resposta silenciosa a essas três perguntas.
TARDE DEMAIS — HENRY JAMES
Uma das principais características de Henry James é revelar o
inusitado que se esconde sob o cotidiano. O que pode ser
extraordinário em uma vida aparentemente banal? Haveria carga
dramática su�ciente em uma existência destituída de arroubos, gestos
de heroísmo ou decisões capazes de alterar o curso de outras vidas? E
como escrever sobre uma vida comum, quase estúpida, sem incorrer
no erro fatal de utilizar uma linguagem medíocre ou um narrador que
seja somente o decepcionante espelho dos fatos, capaz apenas de
repetir, sem qualquer viço, perspicácia, inteligência ou ironia o
cotidiano dos personagens? As respostas a todas essas perguntas
encontram-se na novela A fera na selva .
Esse delicado — e ao mesmo tempo terrível — estudo sobre a vida
do irresoluto John Marcher e sua reticente amizade por May Bartram
guarda uma história de silencioso sucesso no Brasil. Não, o livro não
se tornou um best-seller , mas é promissor, em meio à barafunda de
romancinhos kardecistas, livrecos de auto-ajuda e narrativas que se
resumem a conversas de botequim ou do meretrício, que uma novela
tão intrigante, plena de sutilezas, cujos temas abarcam expectativas
que não se cumprem, a cegueira de um homem em relação ao seu
destino particular e um triste amor, que se realiza unilateralmente,
tenha conseguido a façanha de merecer duas traduções — feitas por
Fernando Sabino e José Geraldo Couto.
A explicação para isso talvez resida no fato de Henry James ter,
entre nós, um público �el, apesar de diminuto, seduzido pela escrita
tão cerebral quanto impressionista, capaz de profundas e
embriagantes alusões, com alto poder evocativo e dotada de rara
capacidade para analisar minuciosamente os processos emocionais que
não só caracterizam os diferentes comportamentos humanos, mas
direcionam ou intensi�cam cada uma das nossas atitudes, cada uma
das nossas decisões. O que, convenhamos, não é pouco. Mesmo o
Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, quem melhor analisa as
motivações humanas entre nossos escritores, se comparado a Henry
James, transforma-se em um amador — com uma pitada a mais de
ironia e ceticismo, é verdade, mas sem o abissal aparato psicológico
jamesiano.
Ao escrever sobre as bases necessárias à arte da �cção, Henry
James, que também foi crítico e teórico da literatura, legou às novas
gerações a descrição da sua maneira peculiar de ver a realidade. E ela
certamente explica, em parte, seu poder de extrair beleza e verdade de
pormenores quase sempre desprezados pelos escritores:
A experiência nunca é limitada e nunca é completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma
espécie de vasta teia de aranha, da mais �na seda, suspensa no quarto de nossa
consciência, apanhando qualquer partícula do ar em seu tecido. É a própria atmosfera
da mente; e quando a mente é imaginativa — muito mais quando acontece de ela ser a
mente de um gênio — ela leva para si mesma os mais tênuesvestígios de vida, ela
converte as próprias pulsações do ar em revelações.
Prova de amor
De fato, ler Henry James signi�ca enredar-se na “teia de aranha” da
consciência de narradores argutos e, ao acompanhá-los, descobrir
“revelações” em “tênues vestígios de vida”. No caso especí�co de A
fera na selva , o narrador nos apresenta John Marcher, homem
sensível, apreciador de poesia e história, em sua hesitante trajetória,
iniciada ao reencontrar, inesperadamente, May Bartram, a quem ele
con�denciara, dez anos antes, seu mais importante segredo. O
reencontro tem seu glamour , mas está impregnado da emoção
daquele dia distante, quando se viram a primeira vez: “Olhavam um
para o outro com o sentimento de uma ocasião perdida; a atual
poderia ter sido muito melhor se a outra, tão remota no passado,
numa terra estrangeira, não tivesse sito tão absurdamente escassa”.
Quando May lembra que ele lhe con�ou seu segredo, o interesse de
Marcher por sua interlocutora cresce, fornecendo ao leitor o primeiro
indício de egoísmo, a marcante característica desse homem anódino.
Em alguns momentos, Marcher quase se predispõe a, efetivamente,
conhecer e compreender May, mas acabará sempre dominado por sua
apreensão — o seu segredo —, aguardando “a fera que saltará da
selva” para mudar radicalmente sua vida. Pouco importa que os
encontros dos dois tornem-se cada vez mais freqüentes: Marcher
jamais deixará de ser o cavalheiro de “descoloridas” boas maneiras,
ou de tratar May apenas como leal con�dente. Em determinado
momento, chega a pensar num matrimônio, mas com o único objetivo
de ter alguém para partilhar amiúde suas preocupações. Trata-se de
acabado egoísta, cuja primeira regra na vida social resume-se à
dissimulação.
Marcher também é leviano, cego em relação aos sentimentos de
May, pronto a conceder migalhas de atenção à amiga, frio —
acreditando-se generoso —, incapaz de qualquer gesto arrebatador, de
qualquer mínimo ato de coragem, e aferrado às próprias idéias,
especialmente ao mórbido segredo partilhado com May. Nem mesmo
quando ela adoece gravemente Marcher demonstra desvelo, ainda que
se angustie, mas principalmente ao antever a possibilidade de �car sem
a con�dente. Próxima do �m, a própria May o adverte, num tom de
leve ironia: “Você con�a plenamente nas suas ‘sensações’”.
Depois da morte da amiga, Marcher viverá longo processo de auto-
análise, ainda hesitante, preso às conjecturas que controlam sua vida.
O homem que não conseguiu amar, a não ser a si mesmo, pagará alto
preço: a fera escondida na selva se manifestará com a violência que ele
sempre esperou, mas permitindo-lhe, antes, a visão do que não pôde
concretizar, do que perdeu.
Contrapondo-se a Marcher, temos May Bartram, uma das mais
instigantes personagens femininas do universo jamesiano. Lúcida,
serena, amando John Marcher incondicionalmente, ela manifesta seu
inacreditável respeito pelos limites desse homem infeliz. Em pelo
menos três oportunidades, inclusive quando já se encontra devastada
pela doença, tomará a iniciativa de se aproximar dele, de tentar
acordá-lo para a realidade. Na verdade, May Bartram devotou sua
vida a proteger Marcher dele mesmo. Foi sua prova de amor.
Amizade e estilos
Muito já se disse sobre o estilo de Henry James, elíptico e de
contrastes às vezes imperceptíveis, com longos parágrafos,
meticulosamente compostos, nos quais todos os elementos são
indispensáveis. Um dos melhores comentários, no entanto, coube ao
escritor Robert Louis Stevenson, com quem James trocou cartas entre
1884 e 1894. Logo na primeira resposta, a 8 de dezembro de 1884,
Stevenson escreve, compondo uma imagem em negativo, de re�nado
humor:
[...] Não sou tolo a ponto de lhe pedir que abandone seu estilo, mas você não poderia,
em um romance, para ganhar o agradecimento de um sincero admirador, não poderia
fundir seus personagens em um molde um pouco mais abstrato e acadêmico [...], e a�nar
os incidentes, não digo em uma tonalidade mais forte, mas ligeiramente mais enérgica,
como se fosse um episódio de um dos velhos romances chamados de aventuras? Temo
que você não o fará, e suponho que devo admitir, suspirando, que você tem razão.
Os comentários de Stevenson revelam o que muitos sentem diante
do texto de James. No entanto, onde, para alguns, talvez falte energia,
para outros, com absoluta certeza, jamais falta agudeza de espírito. E
o próprio Stevenson, na mesma carta, admite: “Cada um de nós
prefere seu próprio objetivo, e eu pre�ro o meu; mas quando
passamos a falar de execução, reconheço que sou, comparado a você,
um grosseiro e um descuidado de primeira ordem.”
As cartas de James e Stevenson merecem análise à parte, não só
pelas questões literárias de que tratam, mas por representarem
magní�co exemplo de civilidade, algo tão em falta nos dias de hoje.
Há uma sincera relação cordial nessa correspondência. Os dois
escritores falam o que sentem, mas não pretendem provar coisa
alguma. Ao contrário, são movidos pelo desejo do diálogo sincero,
pelo prazer de se comunicar e de fruir uma relação amigável que
independe de se conhecer quem é o melhor ou quem está certo. Estão
acima dessas questões fúteis.
Desencontro
Voltando à novela, a recompensa da leitura brilha a cada página
dessa história de amor cujo tema central é o desencontro — ou seja,
uma história de amor composta na forma de dilacerante antítese. John
Marcher passou a vida cumprindo o destino da maioria das pessoas,
ou seja, sem perceber o mais importante, o essencial. E no �m, quando
consegue abandonar o que Henry James chama de “o centro do seu
deserto”, acorda a tempo de, tão-somente, descobrir que é tarde
demais.
A VÍTIMA DE PANDORA — PHILIP ROTH
Das entrevistas de Philip Roth que tenho arquivadas, uma frase
sempre me aguilhoa, golpeando-me como um bordão inconveniente:
“Nenhum ser humano está preparado para o que deve enfrentar em
sua vida”. De uma verdade irretocável, esse pequeno conjunto de
palavras poderia ser a divisa do brasão ou do ex-libris de um cético,
para quem o homem vive em permanente mal-estar, perturbado pelos
acontecimentos da existência na qual o destino ou a divindade o jogou
sem lhe dar qualquer direito de escolha — ou, antes, de se recusar a
nascer.
Mas o pensamento de Roth permite uma re�exão mais angustiante:
ainda que se disponha a seguir vivendo, o ser humano permanecerá de
alguma forma imaturo, defrontando-se com incidentes que não
conseguirá entender, diante dos quais um possível gesto de revolta
talvez produza meros arranhões na roda da fortuna; certamente nem
isso. E, pior, toda a sua dolorosa experiência resultará inútil para seus
semelhantes e às gerações que o sucederem, pois, ainda que esbraveje,
denuncie ou gaste a maior parte de seus dias gravando nas folhas em
branco suas vicissitudes, os que o sucederem na face da Terra pouco
aproveitarão de seus esforços, pois, no fundo, toda experiência é
intransmissível.
Se, de fato, “nenhum ser humano está preparado para o que deve
enfrentar em sua vida”, resta ao homem apenas a resignação diante
dos fatos, submeter-se à miséria em que vive sem jamais procurar
entendê-la, sem jamais ter a ousadia de lhe conferir sentido. Haveria,
assim, um único direito assegurado ao ser humano: o de espernear.
Âncora no vazio
Marcus Messner, o protagonista da novela Indignação , de Philip
Roth, experimenta, de maneira dramática, o axioma do seu criador.
Em sua passagem à vida adulta acontece o que reiteradamente ocorre
a todos: o abandono das certezas da infância e dos sonhos da
adolescência para ingressar na árdua e penosa tarefa de viver. Também
para ele, Pandora abre sua caixa, deixando que o mal se interponha
entre sua maneira de ver o mundo, suas frágeis certezas, seus valores,
e a realidade, em relação à qual o que ele pensa ou deixa de pensar
resulta insigni�cante.
Hesíodo, na Teogonia , não deixa dúvidas: ao abrir sua caixa (ou
verter o conteúdo de sua ânfora), Pandora obedece aos desígnios de
Zeus: fazer da desgraça um presente para os homens, dispersar pelo
mundo tristes inquietações, cobrir aterra de males. Também
obedecendo a Zeus, Pandora fecha o recipiente antes que dele escape a
Esperança, o que, concluo, implica duplo sortilégio: além dos
malefícios, condenar o homem a sonhos que não passam de quimeras
ou aporias, pois a esperança, presa para sempre no escuro do
receptáculo, não passa de uma âncora a oscilar no vazio.
No caso de Marcus Messner, todos esses males serão
potencializados por sua própria personalidade. Jactanciando-se de seu
“pendor para a frieza dos lógicos”, que o “transformara no esteio da
equipe de debate do colégio”, ele descobrirá que, ao �m e ao cabo, a
lógica não tem serventia alguma no mundo, pois a realidade é
visceralmente irracional.
A curta jornada desse personagem chega a ser tragicômica — ainda
que, em certos trechos, o leitor seja tomado por uma a�itiva sensação
de impotência. Messner é um �lho dedicado, mas seu amor pelo pai —
açougueiro kosher sem estudos, que lhe ensinou uma lição básica: “A
gente faz o que tem de fazer” —, seu senso de dever — além de
estudar na universidade, onde consegue notas máximas, trabalha
como garçom nas noites de sexta e sábado, suportando humilhações e
gestos de anti-semitismo —, sua ânsia de sempre fazer tudo certo e sua
luta para manter-se coerente a qualquer custo apenas acarretarão
desastres.
O pai, vítima de um medo infundado, passa a atormentar a vida do
jovem. Diante da vigilância insuportável, ele muda de universidade e
de estado, em busca de paz para os estudos, mas encontrará somente
antagonistas. Do colega de quarto que não respeita suas horas de sono
ao diretor da universidade, um fanático religioso que só consegue
ouvir os próprios argumentos, passando pela jovem por quem se
apaixona, cada uma das pessoas de seu convívio levará Marcus
Messner a, gradualmente, sucumbir à insanidade que comanda as
relações humanas.
Obstinado racionalista
Mas uma ponderação deve ser feita. Que racionalista é esse, que
busca desesperadamente, a qualquer custo, a congruência de seus atos
e dos de outrem? Olívia, a mulher que o enlouquece, lhe diz: “Você é
tão intenso. Relaxe”. Mas ele responde: “Não sei como relaxar”; e
re�ete: “Embora o dissesse em tom jocoso e encabulado, era a mais
pura verdade. Estava sempre exigindo algo de mim. Sempre querendo
atingir um objetivo”.
Há um quê de irracionalidade nesse jovem tenso, ateu,
despreparado para a vida a ponto de não conhecer um buquê de rosas.
Ardoroso leitor de Bertrand Russell, o imaturo Messner enlouquece
com a primeira e inesperada felação, apegando-se à namoradinha
como se fosse a única mulher existente, naufragando diante do
irresistível apelo dos sentidos. Em sua crença absoluta e infantil na
razão, ele desconhece o quanto o corpo e seus hormônios podem se
rebelar contra as idéias. E durante um desentendimento com o diretor
da faculdade, será engolfado pela ira que, apesar de justa, o fará
perder o controle sobre palavras e gestos.
Philip Roth parece, às vezes, sorrir desse obstinado racionalista,
atordoado frente ao comportamento inconstante de Olívia, perplexo
diante das imposições doutrinárias e do gregarismo arti�cial da
universidade, pronto a fugir dos colegas desrespeitosos e da aparente
loucura de seu pai. Jovem que, apesar de seu comportamento e
raciocínio rigorosos, só encontra cada vez mais loucura, cada vez mais
desagregação social.
A narrativa tem como pano de fundo a Guerra da Coréia, o que
amplia o drama pessoal de Messner, que luta para não ser convocado.
Mas o encadeamento vertiginoso dos fatos — que a mimese de Roth
cria admiravelmente — mostra-se implacável: nenhuma das
qualidades do jovem serve para evitar sua convocação; ao contrário,
elas o levam à guerra. E essa é a formidável ironia de Roth: neste
mundo, as grandes qualidades são desnecessárias. Ou melhor: a
maioria medíocre as considera acintosas, impertinentes, quase
obscenas.
Philip Roth não chega a defender a ataraxia, mas as perguntas que
nos coloca �cam no ar: se uma inocente guerra de bolas de neve pode
descair para gestos tresloucados de violência — o escritor usa bem
essa imagem nas páginas �nais do livro —, o que mais podemos
esperar? Se uma brincadeira inocente conduz o homem à insanidade,
então nada tem sentido — e todas as nossas atitudes são, na verdade,
levianas.
O “triunfo” da razão
Desencontro após desencontro, enfrentando diferentes formas de
intolerância, Messner deveria ter aprendido que a primeira importante
lição da maturidade é não se levar a sério demais, pois “nossas
escolhas banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados” não
apenas “desproporcionais” — como a�rma o narrador que se
incumbe de contar o �nal da história —, mas loucos, violentos,
capazes de produzir uma guerra e condenar milhares de inocentes ao
sofrimento e à morte.
Isaiah Berlin, que sempre fugiu da idéia mentirosa de que a razão
triunfará de�nitivamente em algum momento da história, dizia que
estamos condenados a viver em um “equilíbrio difícil”, precário, que
deve ser reconstruído a cada manhã; e ensinava, com sabedoria: “Um
mundo sem con�itos de valores incompatíveis é um mundo
completamente além de nosso conhecimento”. Foi essa a lição que
Marcus Messner não aprendeu, talvez por lhe faltar savoir-vivre ,
�euma e uma boa pitada de humour . Racionalista radical, foi
destruído pela ignorância dos que o circundavam e pela própria
imaturidade, condenado a interrogar no vazio, sem encontrar
respostas. Mais uma das incontáveis vítimas de Pandora.
PELA FRESTA DA PORTA — 
ISAAC BASHEVIS SINGER
No livro Entre nós — um escritor e seus colegas falam de trabalho ,
Philip Roth pergunta a Isaac Bashevis Singer se, quando migrou da
Polônia para os EUA, teve medo de perder contato com o material que
alimentava sua �cção. Num primeiro momento, Singer diz que sim;
mas, logo a seguir, pondera:
Quando morre uma pessoa que é próxima a você, nas primeiras semanas depois da
morte essa pessoa �ca tão distante de você quanto é possível se estar; é só com o passar
dos anos que ela se torna mais próxima, e aí chega um momento em que você está quase
vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia, a vida judaica na Polônia, está
mais próxima de mim agora do que estava naquela época.
É desse milagre da memória, e do talento para dar vida ao mundo
destruído pelos nazistas, que nasce No tribunal de meu pai , conjunto
de relatos autobiográ�cos publicados pelo escritor no jornal Jewish
Daily Forward sob o pseudônimo de Isaac Warshawsky. Reunidos em
livro no ano de 1966, esses textos evocam, principalmente, o bairro
judeu de Varsóvia antes e durante a Primeira Guerra Mundial,
concentrando-se nos personagens da rua Krochmalna, onde o menino
Singer viveu com seus pais e irmãos. (Mais tarde, em 1984, o autor
publicaria um livro de memórias, Amor e exílio .)
Ao resgatar as in�uências que o marcaram, o escritor nos apresenta
histórias que poderiam ser transmitidas de geração a geração,
exatamente como as parábolas, novelas e anedotas que compõem a
literatura produzida pelo hassidismo, corrente religiosa à qual seus
pais pertenciam. Ambos descendentes de famílias nas quais se
destacavam famosos rabinos e estudiosos da Cabala e da Torá, com
personalidades díspares — a mãe, crítica e racionalista; o pai, místico,
alheio à realidade, sempre dedicado ao estudo e à leitura —, eles terão
papel preponderante na formação do menino que, apesar de sofrer
inúmeras outras in�uências, jamais esquecerá sua educação kosher ,
segundo a qual “o próprio mundo era tref [impuro]”:
Embora minha mãe e meu pai não se parecessem muito um com o outro, a ambos
revoltavam a vulgaridade, a ostentação, as intrigas e a bajulação. Havia em nossa
família o entendimento de que a derrota era preferível ao vício, de que as conquistas que
a pessoa obtinha na vida deviam ser alcançadas com honestidade. Éramos os herdeiros
de um código heróico até então não descrito na literatura iídiche, cuja essência era a
capacidade de suportar o sofrimento em benefício da pureza espiritual.
Ao hassidismo se acrescentarão as concepções panteístas de seupai,
homem embriagado pela mística judaica, que ensinava haver “uma
partícula do divino em todas as coisas. Até mesmo a lama da sarjeta
contém centelhas divinas, pois sem elas nada poderia continuar a
existir”.
Quando Singer, já adolescente, acompanhado pela mãe e por dois
irmãos, escapa da fome que a�igia a Varsóvia da Primeira Grande
Guerra, então sob domínio da Alemanha, e parte para a cidade de
Bilgoray, sob poder austríaco, a �m de viver com tios e primos
maternos, a relação com as tradições judaicas se aprofunda:
O iídiche que eu ouvia ali e o tipo de comportamento e costumes judaicos que eu
observava eram sobrevivências de um período muito anterior. [...] Nesse mundo de
judaísmo antigo, encontrei um tesouro de relíquias espirituais. Tive a oportunidade de
ver nosso passado como ele realmente foi. O tempo parecia andar para trás. Eu vivi a
história judaica.
Leitura, drama e delírio
Na verdade, a formação de Isaac Bashevis Singer corrobora o que
George Steiner diz, na longa entrevista concedida a Ramin
Jahanbegloo (em George Steiner: à luz de si mesmo ), sobre o vínculo
entre erudição e judaísmo: “A religião judaica é a única para a qual o
sábio é uma bênção”. Naquele paupérrimo apartamento do nº 10 da
rua Krochmalna, o pequeno Singer não se dedicava apenas ao estudo
prazeroso das tradições hassídicas, mas, atormentado por inesgotáveis
questionamentos, lia tudo que estivesse à mão, incluindo Crime e
castigo , de Dostoiévski: “Parecia um livro de histórias, mas era outra
coisa. Estranho e elevado, lembrava-me a Cabala . Quem escrevia
livros assim? Quem era capaz de entendê- los? Aqui e ali, uma
passagem se elucidava, eu entendia um episódio, e me entusiasmava
com a beleza de uma nova compreensão”. Poucos anos depois,
movido pela compulsão de saber, aprende hebraico, lê poesia iídiche e
devora Strindberg, Turguêniev, Tolstói, Maupassant, Tchekhov.
Apaixona-se por Sherlock Holmes, estuda Hillel Zeitlin e Spinoza —
mas também se debruça sobre um compêndio de física. Tragado por
um turbilhão de idéias, ele é a materialização do judeu descrito por
Steiner:
[...] é aquele que lê um livro com um lápis na mão [...]. É também aquele que corrige os
erros mesmo ao ler um jornal. [...] Eu não falo em termos de gênio, porém designo uma
sede incessante de conhecimento, de transcendência e de pensamento puro. Creio que o
judeu é aquele que, até na soleira de uma câmara de gás, ainda corrigia um texto. Os
rabinos o �zeram. Corrigir um texto é interpelar Deus dizendo-Lhe que se é �el a esse
câncer do pensamento, a essa patologia do absoluto que Ele colocou em nós, sem que
saibamos por que, é dizer-Lhe o que isso nos custou.
Aos quinze anos, residindo em Bilgoray, Singer continua lendo com
sofreguidão — e certo amigo lhe traz, às escondidas, um novo autor
“gentio” a cada dia.
Durante a infância, no entanto, será na tumultuada rua
Krochmalna, acompanhando as demandas apresentadas ao Bet Din
(“uma mistura de tribunal de justiça, sinagoga, casa de estudos e, se
quiserem, consultório psicanalítico”, explica Singer), que o menino
receberá as primeiras lições sobre a natureza humana e seus dramas.
Dono de uma curiosidade singular, ele muitas vezes é proibido de
assistir aos diálogos de seu pai com os querelantes, mas coloca-se atrás
da porta e... ouve. Ou acompanha tudo através de uma fresta, deixada
de propósito ao sair da sala.
É, com certeza, o embrião do escritor, ávido de se apossar das
tragédias alheias, que move esse menino atento a cada pormenor,
sensível, de uma perspicácia inata, pronto a se deixar absorver pelas
mais sutis variações de humor ou por terríveis tragédias. Que lugar
poderia ser mais útil à formação do escritor do que um tribunal onde
se julgam miudezas do cotidiano, pequenas vilanias, mas também
crimes inconfessáveis, traições repulsivas? Onde mais o espírito
humano se mostra despojado de todo verniz? Para o católico, seria
como esconder-se, dia após dia, à sombra de um confessionário.
Em No tribunal de meu pai , Singer narra alguns dos fatos que
presenciou, compondo uma galeria inesquecível de personagens e
situações às vezes cômicos, às vezes dramáticos, mas sempre
edi�cantes. No capítulo “Por que grasnavam os gansos”, a atmosfera
de terror é substituída pelo confronto surdo entre o racionalismo de
sua mãe e a religiosidade paterna. “Um noivado desfeito” nos oferece
as pequenas injunções que podem impedir a concretização do amor.
Na crônica “Uma pergunta horripilante”, o pavor nasce não das
esferas sobrenaturais, mas da desgraça, da pobreza, das humilhações a
que, muitas vezes, o homem é submetido. A dignidade e a virtude —
ou, como a�rma Singer, “o vigor da honestidade e do dever” — estão
concentradas em “A lavadeira”. “Rumo à Terra de Israel” apresenta-
nos Moshe Blecher, mística e singela �gura, homem à espera de um
sinal divino, quando, na verdade, ele próprio é o sinal. E há mais: o
livreiro que refaz interminavelmente seu testamento, movido por um
estranho perfeccionismo; o homem que desejava vender sua parte na
vida eterna; a melancolia saudosista de Reb Chayim Gorshkover; a
doce loucura de Traitl; e inúmeras outras histórias, contadas sob o
olhar de um menino curioso e impressionável, por vezes confuso entre
a realidade e o que descobre nos livros, pronto a aventurar-se pelas
ruas de Varsóvia e deliciosamente imaginativo.
Mas, no caso de Singer, referimo-nos a um tipo especial de
imaginação, que pode beirar o delírio — ou o êxtase. Certo dia,
perturbado pelos ensinamentos panteístas do pai, ao descer a escada
que leva ao porão, pára e fecha os olhos:
Lembrei-me [...] das palavras de meu pai sobre os segredos da Torá: somos todos �lhos
de Deus. Em cada um de nós habita uma alma que veio do Trono de Glória. Há
centelhas divinas até na lama... [...] Cheguei realmente a sentir que havia um espírito
santo dentro de mim, uma partícula da Divindade. Na escuridão, divisei uma �or
chamejante, reluzindo como ouro, luminosa como o sol. Ela se abriu como um cálice e
de seu interior saltaram cores vivas: amarelo, azul, púrpura — cores e formas como as
que vemos somente nos sonhos.
Em outro momento, agora sob in�uência do irmão mais velho,
ávido leitor de Darwin e Newton, politizado e com idéias heréticas, o
garoto Singer vive experiência semelhante:
Tudo o que ele dizia �cava gravado na minha cabeça. Ao fechar os olhos, eu via �guras e
cores que nunca tinha visto antes, as quais assumiam continuamente novos feitios e
formas. Às vezes, divisava um olho afogueado, mais luminoso que o sol e com uma
pupila estranhíssima. Até hoje consigo, com algum esforço, ver esse olho radiante.
Minha lembrança daqueles dias é repleta de �ores e gemas visionárias. Porém, na época
as visões eram tão numerosas que eu às vezes não conseguia me libertar delas.
Sem dúvida, trata-se do escritor em formação. Um menino que,
antes mesmo de ler, já se pergunta sobre “os paradoxos do tempo, do
espaço e do in�nito” só não abraçará a re�exão e a escrita se for
impedido. O que, para nossa felicidade, não ocorreu. Ao contrário,
Singer era incentivado. O pai, acreditando que ele será um novo
comentarista do Talmude , ensina-lhe: “Apresente um raciocínio claro
e evite argumentos casuístas. Nunca houve entre os grandes eruditos
quem torturasse o texto. Se é verdade que iam fundo em suas
perquirições, jamais transformavam cupinzeiros em montanhas”.
Dividindo-se entre o estudo da Guemará e a leitura de Dostoiévski,
o mundo dos livros passa a ser, lentamente, sua principal referência.
Depois de um primeiro passeio pelo campo — no capítulo “Rumo às
vacas selvagens” —, onde tudo o impressiona vivamente, conclui: “No
�m das contas, então, os livros de histórias não mentiam. O mundo
estava realmente cheio de maravilhas. Bastava a pessoa atravessar a
Muranow e mais uma rua para ver-se no meio de coisas prodigiosas”.
Anos depois, no trem a caminho de Bilgoray, a imaginação exaltada
pela leitura ressurge:
Meus pensamentos se aceleravam com as rodas, estimulados por cada árvore, arbusto e
nuvem. Vi lebres e esquilos.A redolência das folhas dos pinheiros mesclava-se com
outras fragrâncias a um só tempo exóticas e reconhecíveis, embora eu não soubesse de
onde vinham. Acometia-me o desejo de, à maneira dos heróis dos livros de histórias,
saltar do trem em movimento e perder-me no meio daquelas coisas verdes.
O umbral da verdade
Há, contudo, uma ponta de melancolia que perpassa esses relatos.
Ela nasce não apenas do fato de que a maior parte dos familiares de
Singer foi morta pelos nazistas na Segunda Grande Guerra, mas
também daquela certeza infelizmente tão viva para o povo judeu, e
que a mãe do escritor declara sem titubear: “Os gentios sempre
tiveram ódio aos judeus. Mesmo que use uma cartola, o judeu será
odiado, pois é um guardião da verdade”.
Ler No tribunal de meu pai é pôr os pés no limiar dessa verdade.
Próximos do que fazia o menino Singer, olhamos pela fresta da porta
não só porque somos curiosos, mas porque estamos sedentos de ética,
decididos a recuperar um pouco da inocência primeva — e, sobretudo,
conhecer aqueles que podem nos tornar melhores do que somos.
À PROCURA DOS DEUSES — JOHN BANVILLE
Em um conhecido poema de William Butler Yeats, “Sailing to
Byzancium” (“Rumo a Bizâncio”), um pássaro quer se unir à
eternidade, libertar-se da natureza e do seu corpo condenado a morrer,
para, forjado em ouro, cantar o que é passado, o que passa e o que
virá. Ele recusa o �m certo e se apega ao sonho de viver acima do
tempo e, portanto, acima da morte.
Max Morden — o narrador de O mar , do irlandês John Banville,
vencedor do Booker Prize de 2005 —, diletante estudioso da história
da arte, é impulsionado pelo mesmo desejo. Apesar de, semelhante ao
pássaro de Yeats, saber que “tudo quanto se engendra, nasce e
morre”, seu coração suplica, “doente de desejo e atado a um animal
agonizante”, para ser unido ao “artifício da eternidade”.
Perdido entre o passado, o presente e o futuro, acossado pela morte
e pela saudade, ele, contudo, não encontra meios para se libertar do
tempo, de suas lembranças e de tudo que o transcorrer da vida lhe
roubou. Empreendendo um visceral exercício de resgate da memória,
Morden apenas descobre, em meio aos vestígios da infância, o
passado pronto a esmagá-lo com sua força.
Essa tentativa de retorno no tempo não se restringe, no entanto, a
uma forma de escape. Não. Como se estivesse colocado entre dois
espelhos, ele pode olhar para si mesmo e encontrar, num plano
posterior, o que normalmente não conseguiria ver: facetas talvez
desconhecidas e a criança de certo verão longínquo — tendo
consciência, ao mesmo tempo, de quem ele é no presente e de quem
desejou ser no passado.
Morden almeja recuperar aqueles dias de veraneio no litoral —
onde, aliás, se encontra enquanto narra; e a visão das distantes
semanas de felicidade traz consigo não só o desapontamento, mas os
sonhos de futuro que ele alimentava, nos quais percebe “uma
representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode-
se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas,
antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, uma vez
que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha
passado”.
Assim, o futuro, visto a partir de um retorno à infância, torna-se,
por um lado, mais suportável do que o próprio presente. Por outro,
entretanto, nada pode arrancar Morden da opacidade à qual está
preso, de suas insatisfações e de suas dúvidas: “Será que era mesmo
pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além
dele?”.
Às vezes, sem querer, ele conseguiu se aproximar do sonho
almejado pelo pássaro de Yeats:
[...] Sentado diante da minha escrivaninha, imerso em palavras, [...] senti que rompia a
membrana da simples consciência e penetrava num outro estado, num estado sem nome,
onde as leis comuns não funcionavam, onde o tempo se movia de um modo diferente, se
é que se movia, onde eu não estava nem vivo nem qualquer outra coisa, e, contudo, me
sentia mais presente do que jamais pude me sentir nisso que chamamos, já que é preciso
lhe dar uma denominação, mundo real.
Mas, logo a seguir, a sombra da morte volta a intimidá-lo, e
exatamente quando parece se encontrar a um passo de descobrir a
fórmula que o libertará do tempo, percebe que “talvez a vida toda não
passe de uma longa preparação para o momento em que devemos
deixá-la...”.
Em outros trechos, a ruptura desse inexorável encadeamento se dá
por meio de uma duplicação da personalidade: “Vejo o navio negro ao
longe, assomando imperceptivelmente, aproximando-se cada vez mais.
Lá estou eu. Posso ouvir o som da sua sirene. Lá estou eu, quase
chegando”. Mas o duplo que ele imagina enxergar não é nada mais
que o seu próprio eu dilacerado.
O magnetismo do pretérito possui tal força que Morden chega
mesmo a substituir a presença corpórea da amada Chloe, realmente
impossível, por sua presença imaginada, de maneira que a existência
dela torna-se algo independente do tempo:
[...] Como é que ela podia estar comigo num momento e no outro não? Como podia
estar em qualquer outro lugar, de forma tão absoluta? Era isso que eu não conseguia
entender; era isso que eu não conseguia aceitar e continuo não conseguindo. Uma vez
afastada da minha presença, ela deveria ter se tornado imediatamente pura �cção, uma
recordação minha, um sonho meu; mas todas as evidências me diziam que, mesmo
longe, ela permanecia ela mesma, de um jeito sólido, obstinado, incompreensível. E, no
entanto, as pessoas vão embora, desaparecem. Esse era o maior mistério, o maior de
todos.
No entanto, todas as recordações acabam sendo assaltadas pela
realidade, que o faz resvalar do seu mundo onírico, acordando para
um presente no qual não há certeza alguma: “Tive uma sensação
quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente,
se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o
formato que bem quis”.
E quando seus pensamentos se confundem e ele não sabe mais
discernir entre a reconstrução do passado (maculada pelo olhar de um
homem envelhecido) e a inatingível recuperação do que experimentou
quando criança, Morden se obriga a concluir, melancolicamente: “Se é
que é a própria Memória quem está em ação aqui, e não alguma outra
musa, mais imaginativa”.
Natureza e morte
Esse narrador acorrentado às suas lembranças gera uma
comparação quase que automática com o narrador de Em busca do
tempo perdido , de Marcel Proust. Mas precisamos ser cuidadosos,
pois o retorno ao passado não é patrimônio exclusivo de Proust. Idas
e vindas no tempo, buscando dar sentido não só ao pretérito, mas
também ao presente e ao futuro, utilizando-se de diferentes focos
narrativos, estão espalhadas pela literatura. E, numa rápida
lembrança, poderíamos citar Nostromo , de Joseph Conrad, e Fim de
caso , de Graham Greene — romances que não se encontram sob a
esfera da in�uência proustiana.
Max Morden recua, sim, no tempo. E se a memória o prende ao
passado, ele também se encontra acorrentado ao presente, lugar a
partir do qual narra o hoje e o ontem, lembrando-se, como mostramos
acima, do que, imaginava, seria o seu futuro — uma expectativa não
realizada. Assim, há a decepção por não reter o passado — e, no
entanto, estar atado a ele, às múltiplas e inebriantes sensações que ele
lhe proporcionou e que Morden tenta desesperadamente recuperar —
e a de, estando no presente, não encontrar nem o futuro imaginado na
infância nem a felicidade parcial que acreditava ter construído durante
o passar dos anos.
Trata-se de um narrador esmagado por uma tripla experiência de
morte: a da esposa, Anna, morta há poucas semanas; a do passado
distante — vivido nos arredores da casa chamada Os Cedros e cuja
sensualidade foi a experiência mais crucial de sua vida —, perdido
irremediavelmente; e a da sensação de inutilidade nascida do decorrer
do tempo, da própria vida, com todas as frustrações que, enquanto ele
narra, o fazem se antecipar à sua ruína.
De onde Morden está, não se vê qualquer futuro, mas apenas
decepção. Sempre que o passado retorna, ele surge, inicialmente,na
forma de um enlevo pleno de sensualidade, mas logo depois tudo se
corrompe. Não há iterações. O narrador não consegue restaurar o
passado, por mais que se esforce. Mesmo Os Cedros parece mudada:
alguns cômodos surgem completamente diferentes do que ele lembra e
há poucos vestígios capazes de ajudá-lo. Na há madeleines em John
Banville. Ao contrário do que ocorre no romance de Proust, não existe
tempo reencontrado ou redescoberto em O mar , mas apenas a
destruição de tudo que é humano, sabendo, numa convicção ainda
mais angustiante, que a natureza — cuja força e encanto conformam a
única certeza desse narrador — permanecerá: vibrante, luxuriosa,
iluminada. E sempre pronta a desdenhar dos homens, magní�ca mas
indiferente.
Figuras inusitadas
Se, contudo, insistirmos em comparar o texto de Banville a outras
experiências literárias, talvez um estudo acurado possa nos mostrar o
diálogo que ele mantém com a própria literatura irlandesa —
pensemos, por exemplo, em O mar, o mar , de Íris Murdoch — ou
com um de seus poetas preferidos, Wallace Stevens, o Bardo de
Hartford, e os dez cantos que compõem o poema “The auroras of
autumn” (“As auroras boreais do outono”). A fulgurante natureza do
Canto VI, por exemplo, está desdobrada em todo o livro, assediando
o leitor com sua lascívia e aturdindo-o desde a primeira página: “As
aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo
espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma
bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente.”
Essas imagens arrebatadoras se repetem, não num exercício fútil de
estilo, mas dilatando, até muito além do suportável, a impassibilidade
da natureza:
Um raio de sol desceu de viés sobre a praia, deixando a areia da orla branquíssima, e um
pássaro branco, ofuscante contra o pano de fundo da muralha de nuvens, se ergueu no
céu com as asas como foices, e, virando-se com um estalido inaudível, mergulhou no
dorso do mar feito um “v” bem fechado.
Era um suntuoso, isso mesmo, um suntuoso dia de outono, com todos aqueles cobres e
ouros bizantinos sob um céu de Tiepolo, de um azul-esmaltado. O campo estava parado
e com uma aparência vítrea, mais parecendo o seu próprio re�exo na superfície calma de
um lago. Era o tipo do dia em que, ultimamente, o sol tem me parecido o olho
empapuçado do mundo, observando tudo com o maior prazer, enquanto eu �co aqui me
contorcendo na minha infelicidade.
Quando a luz foi se tornando mais rala por entre as árvores, e a sombra do prédio em
frente começou a baixar sobre o jardim como o alçapão de uma armadilha [...].
E há também comparações incomuns, instantâneos do artista que
não teme a busca da imagem mais adequada, da �gura precisa para o
que realmente deseja expressar. Um escritor vacinado contra aquele
mal — infelizmente tão comum entre alguns autores contemporâneos
— que denomino de narratofobia:
A luminosidade do verão, espessa como mel [...].
[...] e nadávamos à noite, quando a água passava por cima dos nossos braços como
ondulações de cetim negro.
Um silêncio profundo, onírico, foi se acumulando ao nosso redor, brando e denso, como
o lodo.
O céu estava todo nublado e não havia um vento sequer para agitar a superfície do mar
em cujas margens as ondas miúdas se quebravam numa linha um tanto apática, fazendo
sempre o mesmo movimento, como uma bainha incessantemente dobrada por uma
costureira sonolenta.
Para John Banville, “os romancistas são os historiadores não
reconhecidos do mundo”. Em O mar , Max Morden é o historiador
de si mesmo, devassando sua memória em busca dos deuses que
partiram. Não um memorialista frio, mas alguém que vasculha o
passado numa incessante procura, certo de não ansiar por juízes do
comportamento alheio, seres mitológicos ou, muito menos,
atormentados que se �agelam e se deixam abater, mas buscando
ardorosamente os deuses que ele nunca cansou de amar.
III — Entreato Chesterton
O QUE FALTA AO NOSSO TEMPO
QUANDO GILBERT KEITH CHESTERTON PUBLICOU, em 1910, O que há de
errado com o mundo , talvez não imaginasse que demoraria mais de
uma década para se converter à Igreja Católica Apostólica Romana.
Há incrível distância, portanto, entre suas idéias — ele publicara
Hereges em 1905 e Ortodoxia em 1908 — e a decisão que o
transformou num dos mais respeitáveis convertidos do século XX.
Mas distância, neste caso, não signi�ca incoerência. Ao contrário, a
vida de Chesterton foi — até seu batizado, a 30 de julho de 1922, no
simples salão de baile do Railway Hotel, em Beacons�eld,
transformado provisoriamente numa capela, pois a cidade não
dispunha de templo católico — um exemplo, segundo Joseph Pearce,
de “catolicismo latente”.
Assim, se voltarmos às circunstâncias pessoais em que surge O que
há de errado com o mundo , não causa surpresa o bem-humorado
epitá�o composto pelo escritor Edward Verrall Lucas em 1910, de
maneira a sintetizar a personalidade famosa por seu “dogmatismo”:
O pobre Chesterton morreu;
Deus, por �m, a verdade conheceu.
Nosso escritor, entretanto, estava distante de ser um crédulo
exagerado ou o cego defensor de uma doutrina religiosa. Ao
contrário, o que acalentava no coração era demonstrado na singeleza
dos desenhos oferecidos centenas de vezes a crianças, nos quais
retratava seus respectivos santos patronos; ou na transcendência de
in�uenciar amigos e conhecidos — como fez em relação ao poeta,
historiador e crítico literário Theodore Maynard, cuja conversão
ocorreu logo depois de ler Ortodoxia ; ou, ainda, numa
desconfortável dose de angústia, fartamente demonstrada por seus
biógrafos.
Um exemplo revelador da fé de Chesterton dá-se em janeiro de
1909, quando, depois de aceitar o convite da modernista e marxista
Church Socialist Quarterly , publica nesse periódico o artigo “O
sentimentalismo, a cabeça e o coração”, no qual contrapõe sua visão
tradicionalista às idéias que já haviam sido condenadas por Pio X, em
1907, na famosa encíclica Pascendi Dominici Grecis . Usando de sua
excepcional qualidade para trabalhar com metáforas, Chesterton cria
a famosa �loso�a da árvore e da nuvem:
[...] A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modi�ca é apenas o
cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os
mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser
centrais. Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende
de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força
a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o
progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas
quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto.
Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como
numa árvore; objetivam a modi�cação total e absoluta de cada parte a cada minuto,
como a transformação que sofrem as nuvens.
Mas se adotarmos como �loso�a uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma
evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado, e a
civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive
amanhã mesmo. Pois bem, eu não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas
um caos perpétuo; creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a
natureza de cada coisa. Penso, por conseguinte, que não pode evoluir a civilização que
não esteja razoavelmente completa, e a nossa, tão cientí�ca, avançada e progressista,
está irracionalmente incompleta.
Para termos uma idéia da repercussão desse artigo, seria o mesmo
que, mutatis mutandis , certo autor ortodoxo publicasse texto
semelhante numa revista dirigida, atualmente, pela Teologia da
Libertação. O que só poderia acontecer, convenhamos, graças a um
tremendo descuido do editor.
O artigo de Chesterton recebeu virulenta resposta do esquerdista
Robert Dell, um tipo especial de católico, muito comum nos dias de
hoje, cujo esforço foi o de provarque “o despertar da consciência
social e a difusão do sentimento de compaixão não eram conquistas
da Igreja, mas, sim, da Revolução Francesa”, que a “Igreja Católica
era a principal força reacionária em todos os países da Europa” e,
�nalmente, depois de atacar Pio X, que a “Igreja papista” deveria ser
destruída.
Antes que Dell abandonasse o catolicismo — para transformar-se
em agnóstico e revolucionário socialista —, coube ao anglicano
Chesterton defender Roma. Na tréplica “A podridão do
modernismo”, nosso escritor a�rma, dentre outras verdades: “O
dogma da Igreja limita o pensamento da mesma maneira que o
axioma de Euclides sobre o sistema solar limita a ciência física: não
detém o pensamento, mas lhe proporciona uma base fértil e um
estímulo constante”. Resposta que o trocista Edward Verrall Lucas
certamente não leu.
Chesterton mantinha, de forma repetida, essas polêmicas. No mês
da resposta a Dell, pediram-lhe também a contestação, no Hibbert
Journal , de um artigo assinado por certo “Mr. Roberts”. O texto
negava a divindade de Jesus Cristo — e Chesterton optou por replicar
com sua característica ironia, dizendo, logo no início, que o título do
artigo — “Jesus ou Cristo?” — o atingia como se estivesse lendo algo
semelhante a “Napoleão ou Bonaparte?”.
Chesterton aproveitaria sua experiência nesses debates para
escrever A esfera e a cruz , publicado no �nal de 1909. Com deliciosas
pinceladas de nonsense e humor, a novela apresenta dois
protagonistas, um católico e um ateu. Eles passam a história tentando
realizar seu duelo intelectual — a respeito das verdades do
cristianismo —, sempre interrompidos pela polícia, que os considera
perigosos à ordem pública. De fuga em fuga, os dois acabam por se
tornar amigos num cenário semelhante ao Juízo Final. Uma história
que, somada ao clássico de Cervantes, com certeza inspirou Graham
Greene a escrever Monsenhor Quixote .
Incansável polígrafo, em maio de 1910 Chesterton publicaria novo
artigo, no Daily News — uma aula de teologia e estilística:
Não utilizem um substantivo e depois um adjetivo que contradiga o substantivo. O
adjetivo quali�ca, não contradiz. Não digam “dêem-me um patriotismo livre de
fronteiras”, porque é como se dissessem “dêem-me um pastel de carne sem carne”. Não
digam “anseio por uma religião mais ampla, na qual não existam dogmas especiais”,
porque seria como dizer “quero um quadrúpede maior que não tenha patas”.
Quadrúpede signi�ca algo com quatro patas e religião signi�ca aquilo que compromete
o homem com uma doutrina universal. Não deixem que o dócil substantivo seja
assassinado por um adjetivo exuberante e jubiloso...
Contra o senso comum
O que há de errado com o mundo surge nesse momento da vida
intelectual de Chesterton, livro mal recebido por alguns, se nos
basearmos na crítica publicada pelo jornal Evening Standard : “Não
temos nem a mais remota idéia do que está mal no mundo; e depois de
ler o livro do Sr. Chesterton, [...] sentimos chegar à conclusão de que
ele tampouco sabe”. Segundo Joseph Pearce, a recepção negativa da
obra se deve, em parte, aos editores. Estes, convencidos de que um
pouco de agressividade favoreceria as vendas, acrescentaram ao título
original, O que há de errado , a expressão com o mundo , passando,
de certa forma, a impressão de um autor arrogante, único detentor da
verdade.
No entanto, O que há de errado com o mundo realmente não foi
escrito para agradar. Essa era a última preocupação de Chesterton
naquela Inglaterra sacudida por dois grandes movimentos políticos. A
�liação aos sindicatos crescia de forma expressiva — de 2,5 milhões
de trabalhadores em 1901 para 4 milhões em 1913 — e estes, lutando
por representação parlamentar, �zeram com que o Labour Party,
fundado em 1900, pulasse de dois deputados, em 1901, para
cinqüenta em 1906. Aproveitando a onda trabalhista, que tinha apoio
dos Whigs — liberais e anticatólicos —, a esquerda, com socialistas e
anarquistas, ganhou força, a ponto de, em 1911, quando Jorge V
assume o trono, a Câmara dos Lordes ser praticamente forçada — sob
a pressão do primeiro-ministro liberal, Herbert Henry Asquith — a
votar a limitação dos seus próprios poderes. Pari passu , o movimento
sufragista — fundador do feminismo contemporâneo —, que vinha
crescendo lentamente desde a década de 1830, ganha força, em 1903,
com a fundação do Women’s Social and Political Union (WSPU),
facção violenta da National Union of Women’s Suffrage Societies
(NUWSS). Nos anos seguintes, o WSPU tornou-se um aglomerado de
agitadoras pro�ssionais, responsável por depredações, tumultos e
outras formas de violência, mas soube capitalizar a opinião pública
utilizando-se do recurso da greve de fome, dentro ou fora das prisões.
Diante de tal conjuntura, a visão desapaixonada, lúcida e
profundamente católica de Chesterton só poderia agradar a pequena
parcela de leitores. Em meio à balbúrdia, ao populismo e à agitação
social arti�ciosa, a sensatez chestertoniana transpirava verdades
incômodas que ninguém queria ouvir. Nosso escritor tinha plena
consciência disso, inclusive do papel camaleônico e dissimulado dos
jornais, exatamente como os diferentes setores da mídia agem na
atualidade:
Se você empreender hoje uma discussão com um jornal moderno cuja posição política é
oposta à sua, descobrirá que não se admite meio-termo entre a violência e a fuga; você
não receberá senão jargões ou silêncio. Um editor moderno não deve ter o ouvido atento
que acompanha a língua honesta. Pode ser surdo-mudo — a isso chamam “dignidade”.
Ou pode ser surdo-barulhento — a isso chamam “jornalismo mordaz”.
Numa sociedade em visível processo de desagregação, Chesterton se
propõe a compor um diagnóstico que em nada agradará ao doente
completamente cego para seus próprios problemas: “[...]
Concordamos que a Inglaterra está insalubre, mas metade de nós seria
incapaz de ver saúde naquilo que a outra metade chama de ‘saúde
�orescente’. Os abusos públicos são tão patentes e pestilentos que
arrastam todas as pessoas generosas para uma espécie de unanimidade
�ctícia”.
Semelhante ao Brasil de hoje, na Inglaterra do início do século XX
a “política são ovos podres” e “no embrião de tudo penetra o
veneno”. Desvinculado de sua verdadeira vocação, que é divina, o
homem preso aos limites humanos, vendo apenas o horizonte estreito
da vida material, perde também o sentido da ética. Chesterton
alertava: “A única forma de falar do mal social é ir direto ao ideal
social. Todos temos consciência da loucura nacional, mas o que é a
sanidade nacional? Chamei este livro de O que há de errado com o
mundo , mas esse título algo indômito conduz a um só lugar: errado é
não solicitarmos o que é certo”.
No centro do que Modris Eksteins chamou de “sentimento
eduardiano da crise, estimulado pela atividade das sufragistas, pela
inquietação trabalhista, pela oposição ao papel da aristocracia no
processo legislativo”, Chesterton representava a Grã-Bretanha,
“principal potência conservadora do �n-de-siècle . Primeira nação
industrial, agente da Pax Britannica, símbolo de uma ética da
iniciativa e do progresso baseada no parlamento e na lei” — e que,
poucos anos depois de O que há de errado com o mundo ser
publicado, levantou-se contra a arrogância das Potências Centrais, na
Primeira Guerra Mundial.
Recusando o “oportunismo atordoado e desajeitado que se põe no
caminho de tudo”, típico da classe política, Chesterton introduz seus
pensamentos na contramão do senso comum:
Em nossa época, despontou uma fantasia singularíssima: a de que, quando as coisas vão
muito mal, precisamos de um homem prático. Seria bastante mais verdadeiro dizer que,
quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico. Um homem prático é
alguém acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam
normalmente. Quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do
homem com uma doutrina que explica por que elas não estão funcionando. Enquanto
Roma arde em chamas, é errado tocar violino; mas é correto estudar teoria hidráulica.
Nosso escritorera esse teórico, alguém disposto a buscar a origem
dos problemas, o “velho e distraído professor de cabeleira
desgrenhada e branca”, �gura de um dos seus imaginativos exemplos,
intelectual colocado muito acima da “e�ciência” — pois esta “só se
ocupa das ações depois de concluídas” —, pensador que “tem a cura
antes da doença”.
Chesterton refutava o conjunto de opiniões que pretendia se impor
como natural ou necessário. Um de seus primeiros cuidados em O que
há de errado com o mundo é denunciar o poder do “grande
preconceito impessoal” do mundo moderno, contrapondo-lhe “uma
sanidade mental de aço e uma �rme resolução de não dar ouvidos aos
modismos”. Contra o caráter efêmero das idéias que via espocar em
cada esquina, Chesterton retorquia com uma proposta até hoje
ousada, a de buscar a dignidade escondida no passado:
A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação de fadiga — não
isenta de terror — com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para
usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora
que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a
futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo
não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra
em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés �amejantes que
não podemos suportar; houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar;
empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na
busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um
refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as
gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta.
O texto chestertoniano está repleto de trechos assim, nos quais a
verdade é anunciada com eloqüência comovedora. Ele nos arrebata
porque, no fundo de nossas mentes corrompidas pelas ideologias,
sabemos o quanto seu pensamento está certo: “Os homens inventaram
novos ideais porque não se atrevem a buscar os antigos. Olham com
entusiasmo para a frente porque têm medo de olhar para trás”.
Esperanças baseadas em so�smas, as promessas dos ideólogos são
balões de ar que explodem em contato com a pressão da realidade. “O
futuro é uma parede branca na qual cada homem pode escrever seu
próprio nome tão grande quanto queira”, diz Chesterton, mas “o
passado já está abarrotado de rabiscos ilegíveis de nomes como
Platão, Isaías, Shakespeare, Michelangelo, Napoleão”.
O advento do homem narcísico, o amanhecer do neopelagianismo,
que pretende dispensar a graça divina e erigir o homem como dono
absoluto do seu próprio destino, é a esse duplo espetáculo que
Chesterton assiste, mas sem conivência. Ao contrário, denuncia a
lógica visceralmente errada dos esquerdistas. Suffragettes e socialistas
gritam: “Se algo foi derrotado, foi refutado”. Mas Chesterton retruca:
“[...] O que se dá é sem dúvida o contrário: as causas perdidas são
exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo”. E completa,
de maneira inquestionável, com um período cujo vigor nos contagia:
“Os grandes ideais do passado fracassaram não porque tenhamos
sobrevivido a eles, mas porque não foram vividos o bastante. A
humanidade não transpôs a Idade Média: fugiu dela em debandada. O
ideal cristão não foi julgado e considerado de�ciente: foi considerado
difícil e deixado injulgado”.
Às propostas dos socialistas, impregnadas de estatismo e quimérica
igualdade social, semelhantes às que cansamos de ouvir na última
década e meia — no Brasil e em vários países da América Latina —,
Chesterton contrapõe discurso incisivo. Ele denuncia o “oportunismo
aterrador”, a “morbidez moderna que insiste em tratar o Estado [...]
como uma espécie de recurso desesperado em tempos de pânico”.
Chama-a, com zombaria, de “passatempo da classe média alta”, e
mostra, por meio de uma série de vivos exemplos, como, ao
pretenderem enfraquecer a vida privada, os socialistas na verdade
roubam a liberdade pessoal e contribuem à destruição da família.
Seguindo os passos de seu grande amigo Hilaire Belloc, cuja
inspiração nascera, por sua vez, da encíclica Rerum novarum , de
Leão XIII, Chesterton se opõe ao socialismo e ao capitalismo, com
idêntica veemência, para defender a justiça social — e critica a
concentração da propriedade nas mãos do Estado ou de milionários.
“Muito capitalismo”, ele dirá anos mais tarde, em The uses of
diversity , de 1920, “não quer dizer muitos capitalistas, mas muitos
poucos capitalistas”. Ou, com extremo bom humor, em O que há de
errado com o mundo : “O duque de Sutherland possuir todas as
chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade,
assim como seria a negação do casamento se ele tivesse todas as
nossas esposas em um único harém”.
No que se refere às sufragistas — embrião do movimento que, hoje,
defende o aborto como “direito humano” —, Chesterton não receia
ganhar a antipatia feminina: “Elas não geram revolução, o que geram
é anarquia; e a diferença entre essas duas coisas não é uma questão de
violência, mas de fecundidade e �nalidade. A revolução, por sua
natureza, gera um governo; a anarquia só gera mais anarquia.”
Este é o cerne do pensamento anti-sufragista de Chesterton. E não
há nenhum exagero em dizer que ele prevê as conseqüências dessa
“primeira onda” do feminismo — para citar a classi�cação utilizada
por alguns estudiosos contemporâneos —, início de um movimento
maior, provocador da “segunda onda”, anti-família e anti-
maternidade, cuja tarefa foi levar as primeiras reivindicações, de
igualdade perante a lei, para o âmbito da vida íntima, chegando,
então, à “terceira onda”, experimentada hoje, com a ideologia de
gênero e a tentativa de ignorar a ordem biológica, de maneira a
transformar masculinidade e feminilidade em meras construções
culturais, além de promover a libertinagem e o aborto.
Para Dorothy Collins, secretária e, mais tarde, �lha adotiva dos
Chesterton, o escritor “sentia um respeito místico pelas mulheres”.
Talvez por esse motivo a�rme que “daria às mulheres não mais
direitos, mas mais privilégios”. Idealista ou não, intuía o toque da
graça de Deus na alma feminina; experimentou-o durante os longos
anos de convivência com sua amada Frances Blogg, e pôde se
antecipar a algumas das idéias que Gertrud von le Fort (em A mulher
eterna ) e Edith Stein (em Die Frau. Ihre Aufgabe nach Natur und
Gnade — A mulher. Sua tarefa segundo a natureza e a graça )
desenvolveriam a partir da década de 1930:
Houve um tempo em que eu, você e todos nós estávamos muito mais próximos de Deus;
tanto que, ainda hoje, a cor de um seixo (ou de uma pintura) e o cheiro de uma �or (ou
de fogos de artifício) tocam-nos o coração com uma espécie de autoridade e convicção,
como se fossem fragmentos de uma mensagem confusa ou traços de um rosto esquecido.
Incorporar essa ardente simplicidade à totalidade da vida é o único objetivo real da
educação. E quem está mais perto da criança é a mulher – ela compreende. Dizer
exatamente o que ela compreende está fora do meu alcance. Só posso garantir que não é
uma solenidade. É antes uma leveza altaneira, um amadorismo ruidoso do universo,
assim como o que sentíamos quando éramos pequenos, o que nos fazia cantar, cuidar do
jardim, pintar e correr. Arranhar as línguas dos homens e dos anjos, meter o nariz nas
terríveis ciências, fazer malabarismos com colunas e pirâmides, jogar bola com os
planetas, eis a audácia interior e a indiferença que a alma humana, como o ilusionista a
jogar suas laranjas, deve conservar para sempre. Eis aquela coisa insanamente frívola a
que chamamos sanidade mental. E a mulher elegante, deixando cair os anéis dos cabelos
por sobre suas aquarelas, sabia disso e agia levando-o em conta. Ela fazia malabarismos
com sóis frenéticos e �amejantes. Mantinha o arrojado equilíbrio das inferioridades que
é a mais misteriosa — e talvez a mais inacessível — das superioridades. Ela mantinha a
verdade primordialda mulher, da mãe universal: se uma coisa é digna de ser feita, é
digna de ser mal feita.
Chesterton sabia perfeitamente que “se as mulheres chegassem a ser
‘iguais’ aos homens, se envileceriam”, diz Joseph Pearce. É nossa
realidade hoje. Como a�rma Francisco José Contreras, “o tipo de
sexualidade (banalizada, de consumo rápido, desvinculada do amor,
do compromisso e da reprodução) [...] parece desenhada à medida das
necessidades e caprichos masculinos. As mulheres são as grandes
vítimas da revolução sexual [...]. Na sociedade hipersexualizada, a
mulher se converte com freqüência em objeto de usar e jogar fora. As
feministas conseguiram impor à mulher o modelo sexual masculino”.
E, em outro trecho, citando a jornalista e ensaísta Eugenia Rocella:
“O neofeminismo converte as mulheres em ‘machos falidos’”.
Não é preciso muito esforço para perceber que o mundo
contemporâneo se incumbe, dia após dia, de comprovar a dramática
atualidade das profecias de Chesterton, aqui ainda referindo-se ao
movimento sufragista: “A destruição é �nita ao passo que a obstrução
é in�nita. Enquanto a rebelião assume a forma de mera desordem (em
vez de a de uma tentativa de impor uma nova ordem), não há um �nal
lógico para ela; ela pode alimentar-se e renovar-se eternamente”.
O intelectual inspirado pela compreensão cristã do mundo sabe que
os ideólogos pretendem substituir o matrimônio pelo hedonismo
absoluto. Exatamente por essa razão, Chesterton faz sábia e vigorosa
defesa, como raras vezes encontramos atualmente, da família, esse
núcleo de segurança, amor, dedicação e estabilidade:
O princípio é este: em tudo que é digno de ter — mesmo nos prazeres todos — há uma
porção de dor ou tédio que deve ser preservada a �m de que o prazer possa renascer e
perdurar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler
Virgílio vem depois do enfado de tê-lo estudado; o entusiasmo do banhista vem depois
do choque inicial em face da gelada água do mar; e o sucesso do matrimônio vem depois
do fracasso da lua de mel. Todos os votos, leis e contratos humanos são maneiras de
sobreviver com sucesso a esse ponto de ruptura, a esse instante de rendição potencial.
Em tudo que vale a pena fazer há um estágio em que ninguém o faria, exceto por
necessidade ou por honra. É então que a Instituição sustém o homem e o ajuda a
prosseguir sobre um terreno mais �rme. Se este sólido fato da natureza humana é
su�ciente para justi�car a dedicação sublime do matrimônio cristão, isso já é outra
questão; importa saber que ele é plenamente su�ciente para justi�car a corrente
impressão dos homens de que o matrimônio é algo �xo e sua dissolução é uma falha ou,
no mínimo, uma ignomínia.
Selecionar e rejeitar
Há muito mais em O que há de errado com o mundo . E não direi
que o livro permanece atual pelo fato de o mundo seguir errado, pois
seria cometer não apenas uma obviedade, mas, principalmente,
repulsivo lugar-comum. A�rmo, porém, que Chesterton pode falar
com a mesma veracidade, com o mesmo poder de sedução, sobre
camaradagem e democracia, dogma e educação; rir e discordar de
Bernard Shaw — sem jamais perder sua amizade — ou elogiar e fazer
justiça ao, no Brasil, negligenciado Samuel Johnson; vergar-se à beleza
e ao mistério da Encarnação ou enaltecer os méritos do
parlamentarismo britânico, pois, na sua terra natal, “o primeiro
homem que você avistar pela janela, eis o rei da Inglaterra”. De�nir o
que é um diálogo perfeito, denunciar os perigos do cesarismo, zombar
das “imaturas e hipotéticas” �loso�as modernas: Chesterton abarca
tudo, pois, como a�rma o ensaísta Eduardo Mallea,
a fome de relação achava-se proporcionada a seu corpo físico. Quer isso dizer que sua
fome era gigantesca. Fome humana: fome de verdade; fome de verdade humana. Uma
fome que não saciavam os conceitos, uma fome que não saciavam as idéias, uma fome
que não saciavam as seitas, uma fome que não saciavam os axiomas, uma fome que não
saciavam as estruturas mentais. Uma fome que não parava. Uma fome que ia mais além
de tudo isso e que tinha a arquitetura do corpo humano: sua solidez, sua força, suas
necessidades, sua mobilidade. Uma fome que era um estado de plenitude solicitada,
contada, ou seja, um estado de poesia.
Nos dias que correm, quando o relativismo empreende luta aberta
para as�xiar a verdade, é de certa forma animador descobrir a velhice
dessa guerra, e a presença de soldados valorosos ao nosso lado, pois
Chesterton, há um século, demonstrava plena consciência da “tarefa
da cultura”, não “uma tarefa de expansão, mas muito decididamente
de seleção — e rejeição”. Certeza que devemos nos sentir moralmente
obrigados a colocar em prática.
Com seu raciocínio envolvente, construído por meio de analogias e
paradoxos inesperados, Chesterton dilui a camada de banalidade que
recobre as coisas comuns. Sua retórica ensolarada pisoteia, com a
alegria de um menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo,
principalmente no Brasil, onde a arrogância epistêmica se espalha,
renovando-se, a cada dia, por meio da sintaxe confusa e do jargão
intraduzível.
Há algo de agradavelmente hipnótico na sua escrita, correndo solta,
desimpedida, livre de exercícios tautológicos, um dos cacoetes
herdados da semiologia de inspiração barthesiana. Chesterton não se
refugia no vocabulário afetado ou hermético porque não dissimula,
não é um enfadonho esnobe, possui convicções e dá à linguagem o
tratamento merecido: o de honrosa ferramenta — e não o de uma
divindade. Movido por profundo respeito pelo leitor, seus textos
nascem da consciência de que, “para um católico, qualquer ato
cotidiano é uma dramática dedicação ao serviço do bem ou do mal”.
Alto, obeso, de riso tonitruante, seu volumoso corpo só foi
superado pela multifacetada abrangência de suas idéias. Era o que
mais falta ao nosso tempo: um sábio.
A MISSÃO DOS NÁUFRAGOS
Publicado duas semanas antes de Ortodoxia , em 1908,
Considerando tudo — no original, All Things Considered — é uma
seleção dos textos que G. K. Chesterton escreveu nos primeiros anos
de sua colaboração, que durou de 1905 a 1936, na Illustrated London
News .
Dale Ahlquist, presidente da American Chesterton Society, a�rma
que não há nenhuma razão para acreditar que essas crônicas, somadas
às outras trezentas que foram reunidas em diferentes livros, sejam,
necessariamente, as melhores contribuições dentre as 1.535 que
Chesterton assinou na Illustrated . E completa dizendo que o corpus
dessas colunas, quase integralmente publicado pela renomada Ignatius
Press, “permanece como uma mina de ouro, com grandes tesouros
esperando ser descobertos”.
Assombro
No capítulo anterior, encerrei minha análise ressaltando que a
retórica ensolarada de Chesterton pisoteia, com a alegria de um
menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo, inclusive no Brasil,
onde a arrogância epistêmica se espalha, renovando-se, a cada dia, por
meio da sintaxe confusa e do jargão intraduzível.
A imagem que surge em minha mente quando releio essas palavras
é a de um garoto a correr sob a chuva. Nesses minutos em que ele
experimenta liberdade, pisoteando a enxurrada que desce a ladeira, o
aguaceiro pára e o sol abre caminho por entre as nuvens, o que
redobra sua alegria, fazendo-o chutar a água em todas as direções. O
menino não sabe, mas essa tarde, esses minutos de imaculada
excitação, a brincadeira espontânea — tudo permanecerá nele para
sempre; serão as marcas da sua personalidade.
Esta imagem algo idílica surge não do meu sonho, mas ancorada na
realidade. A fé na inocência permaneceu como uma das notáveis
características de Chesterton, ainda que esse apego à infância tenha
sido ridicularizado por alguns de seus adversários, hoje esquecidos.
Ele realmente acreditava que a inocência é o princípio da sabedoria,
certeza inalterável, rea�rmada pouco antes de sua morte: “Nunca
perdi o sentimento de que a infância era minha vida real; o princípio
verdadeiro do que deve ser uma vida mais real; uma experiência
perdida na terra dos vivos”.
O leitor apressado poderia ver em taispalavras um sentimento
melancólico, um saudosismo mal resolvido. No entanto, Chesterton
lutou para jamais perder, frente à realidade, o olhar de assombro que
nasce das crianças a cada mínima descoberta. “O sentido do milagre
da Humanidade em si”, a�rma ele em Ortodoxia , “devia estar
sempre mais vivo em nós do que as maravilhas do poder, da
inteligência, da arte ou da civilização. O simples fato de o homem
andar sobre duas pernas devia nos comover mais do que qualquer
música, e nos impressionar mais do que qualquer caricatura.”
Considerando tudo guarda inúmeros exemplos desse empenho para
recuperar o assombro como ato de conhecimento. Em “Um ensaio de
duas cidades”, por exemplo, Chesterton defende que “o principal
objetivo da educação deveria ser restaurar a simplicidade”; ou, dito de
forma apaixonada, “o principal objetivo da educação não é aprender
coisas; não: o objetivo principal da educação é desaprender coisas. O
objetivo da educação é desaprender toda a fadiga e maldade do
mundo e retornar àquele estado de liberdade que todos
instintivamente celebramos quando preferimos escrever sobre crianças
e meninos”.
Tal proposta não permaneceu relegada ao mundo das idéias, mas
transformou-se numa das ferramentas estilísticas de Chesterton. Na
crônica “Pensamentos ao redor de Köpenick”, nosso escritor
abandona a visão óbvia das coisas e recria o espanto ao inverter a
lógica: soldados prontos para a guerra, obedientes a seus superiores,
estão longe de ser, como imagina o senso comum, “adoradores da
força”. Repudiando o militarismo, Chesterton nos mostra que “os
soldados, mais do que quaisquer outros homens, são sistemática e
severamente ensinados que ter força não é ter direito”. A cada linha
de sua argumentação, vemos o homem esmagado dentro de seu
uniforme, pronto a “obedecer a símbolos, coisas arbitrárias, faixas em
um braço, botões em um casaco, um título, uma bandeira”, mas, na
verdade, preso a um estímulo de ordem moral, a lealdade: “[...]
Enquanto alguém for leal a algo, nunca será um adorador da mera
força. Pois a mera força, a violência abstrata, é o inimigo de tudo o
que amamos. Amar alguma coisa é vê-la imediatamente sob céus
tormentosos de perigo. A lealdade implica lealdade no infortúnio; e
quando um soldado aceitou o uniforme de alguma nação, já aceitou
também sua derrota”.
Semelhante destreza de pensamento surge na crônica “Controvérsia
Zola”. Ao ironizar a discussão que ocorria na França — se os restos
mortais do romancista deveriam ou não ser colocados no Panthéon
—, Chesterton, que não escondia seu desprazer em relação ao
movimento naturalista, ironiza o debate e joga novamente com os
termos. Vejam a repentina analogia entre a tabuada e Shakespeare;
percebam como seu raciocínio migra da idéia de imortalidade à de
insu�ciência; a seguir, o elogio irônico à “questão viva” que Zola
representa; e, logo depois, o francês derrotado pelo enaltecimento
incontestável de Shakespeare:
Quando alguma coisa do intelecto se estabelece, não morre: antes, torna-se imortal. A
tabuada é imortal, assim como a fama de Shakespeare. Mas a fama de Zola não está
morta nem é imortal; está em crise, está na balança; e talvez seja insu�ciente. Os
franceses, portanto, estão absolutamente certos em considerá-la uma questão viva.
Ainda vive como questão, porque ainda não está resolvida. Mas Shakespeare não é uma
questão viva: é uma resposta viva.
Comparado a Shakespeare, Zola e sua obra tornam-se um conjunto
de ossos cujo destino é incerto. Quanto ao dramaturgo inglês, sua
posição na literatura mundial independe de estátuas ou homenagens:
“[...] ninguém poderia dizer que uma estátua de Shakespeare, mesmo
com cinqüenta pés de altura e colocada no topo da Catedral de St.
Paul, poderia de�nir sua posição. De�ne apenas a nossa posição com
relação a Shakespeare. Ele é que está �xo; nós é que somos instáveis.”
Chesterton é um mágico que escamoteia, diante da platéia
estupefata, os elementos do raciocínio. O coelho, há pouco preso na
sua mão direita, desaparece para ressurgir na cartola que se encontra
sobre a mesa. Será realmente o mesmo coelho? Não sabemos, mas o
olhar assustado do animal — pobre Zola! — e a mise-en-scène nos
convencem.
Paradoxos
Essa forma de argumentar servia ao intuito de Chesterton: por meio
do raciocínio que desorienta, obrigava os leitores a perceber aspectos
esquecidos ou menosprezados da realidade.
A própria escolha dos vocábulos, ainda que parecesse muitas vezes
excêntrica, era outra de suas preocupações. Na crônica “Espiritismo”,
ele a�rma ser “uma regra quase invariável que o homem de quem
discordo pense que estou me fazendo de bobo, e o homem com quem
concordo pense que o estou fazendo de bobo. Parece haver uma
espécie de idéia de que você não está tratando adequadamente de um
assunto se o elogia com termos fantásticos ou defende com exemplos
grotescos”.
E continua:
Penso seriamente, em geral, que quanto mais séria é a discussão, mais grotescos
deveriam ser os termos. Há para isso [...] uma razão evidente. Pois um assunto é
realmente solene e importante na medida em que se aplica a todo o cosmo, ou pelo
menos a grandes esferas e ciclos de experiência. Na medida em que uma coisa é
universal, é séria. E na medida em que algo é universal, está cheio de aspectos cômicos.
[...] Os germes são sérios, porque matam. Mas as estrelas são engraçadas, pois dão
origem à vida, e a vida dá origem à diversão. Se você tiver, digamos, uma teoria sobre a
humanidade, e só puder prová-la falando sobre Platão e George Washington, sua teoria
pode ser um bocado frívola. Mas se puder prová-la falando sobre o mordomo ou o
carteiro, então é séria, pois é universal. Longe de ser uma irreverência usar metáforas
tolas em questões sérias, é um dever usá-las nessas questões. É o teste da seriedade. É o
teste de uma teoria ou religião responsáveis veri�car se são capazes de tomar exemplos
de potes e panelas e botas e batedeiras de manteiga. O teste de uma boa �loso�a é se
pode ser defendida grotescamente. O teste de uma boa religião é se é possível fazer
piadas com ela.
Como vemos, são indissociáveis do seu estilo as justi�cativas
paradoxais — elas também, ao provocar estranheza, despertam a
inteligência à verdade. O desejo de Chesterton é libertar seu leitor da
invariabilidade do pensamento, dos chavões que obrigam a ver o real
sem nenhum relevo. As coisas podem se tornar novas se lembrarmos
como realmente são, despojadas da mesmice com que o senso comum
as camu�a todos os dias.
O paradoxo surge, assim, como a �gura de linguagem capaz de
questionar o que parece irrefutável, contribuindo à certeza de que o
mundo deve pasmar, pois ele é sempre mais do que aparenta ser. Com
palavras que lembram as de Cícero — “O que os gregos chamam de
paradoxo, nós chamamos de coisas que maravilham” —, Gabriel
Syme, o detetive de O homem que foi quinta-feira , diz: “O paradoxo
nos ajuda a recordar verdades esquecidas”.
“Fatigada e lamuriosa cultura”
Da mesma forma que seu contemporâneo, o jornalista Karl Kraus,
Chesterton repelia a corrupção da língua executada por modismos
literários e jornalísticos; repudiava a linguagem que, submetida à
ideologia, não apresenta as coisas como são, mas pretende referendar
um sistema de idéias sustentado por interesses de ordem política ou
econômica. Na crônica “O garoto”, Chesterton mostra, por meio de
um exemplo bem-humorado, como o jornalismo encobre a verdade ao
utilizar subterfúgios:
[...] todo o mundo moderno, ou pelo menos toda a imprensa moderna, tem um perpétuo
e esgotante terror da pura moral. Os homens sempre tentam evitar condenar algo apenas
por argumentos morais. Se eu espancar minha avó até a morte amanhã no meio de
Battersea Park, podem ter certeza de que as pessoas dirão tudo sobre isso exceto o fato
simples e bastante óbvio de que é algo errado. Alguns o chamarão de insanidade; isto é,
o acusarão de uma de�ciência de inteligência. Isto não é necessariamente verdade. Vocês
não poderiam dizer se foi um ato pouco inteligente ou não, a menos que conhecessem
minha avó.Alguns o chamarão de vulgar, repugnante, e coisas assim; isto é, o acusarão
de falta de educação. Talvez demonstre mesmo uma falta de educação; mas di�cilmente
é seu maior defeito. Outros falarão sobre o asqueroso espetáculo, e a cena revoltante;
isto é, o acusarão de uma falta de arte ou de beleza estética. Também isso depende das
circunstâncias: para ter certeza absoluta de que a aparência da velha senhora
de�nitivamente deteriorou-se no processo de ser espancada até a morte, é necessário que
o crítico �losó�co esteja bem certo de quão feia ela era antes. Outra escola de
pensadores dirá que o ato é pouco e�ciente: que é um desperdício pouco econômico de
uma boa avó. Mas isso só poderia depender do valor, que é novamente um assunto
individual. O único ponto real que vale a pena mencionar é que é um ato perverso, pois
sua avó tem o direito de não ser espancada até a morte. Porém, o jornalismo moderno
tem, dessa simples explicação moral, um persistente medo. Chamará a ação de qualquer
outra coisa – louca, bestial, vulgar, idiota, antes de chamá-la pecaminosa.
Ele também não titubeia ao expor as conseqüências da corrupção
da linguagem para a vida diária:
[...] Se o mundo moderno não insistir em ter uma lei moral clara e de�nida, capaz de
resistir às atrações contrárias da arte e do humor, será simplesmente entregue como
espólio a qualquer um que consiga fazer algo errado de uma forma simpática. Qualquer
assassino que consiga matar de forma interessante será autorizado a matar. Qualquer
ladrão que roube com gestos realmente humorísticos poderá roubar tanto quanto quiser.
A linguagem cambiante, inexata, que transforma meias mentiras em
supostas verdades, corrompe o próprio sistema escolar. Temos a
terrível impressão, ao ler a denúncia de Chesterton, de que ele se
refere ao nosso tempo:
Em nenhuma escola pública inglesa sequer se sugere, exceto por acidente, que é dever de
um homem dizer a verdade. O que se sugere é algo inteiramente diferente: que é dever de
um homem não mentir. Este engano embebe de forma tão completa toda a civilização
que muito raramente chegamos sequer a pensar na diferença entre as duas coisas.
Quando dizemos a uma criança: “Você deve dizer a verdade”, queremos simplesmente
dizer que deve abster-se de inexatidões verbais. Mas o que nunca chegamos a ensinar é o
dever geral de dizer a verdade, de dar uma imagem completa e clara de qualquer coisa
de que falemos, de não deturpar, não evadir, não suprimir, não usar argumentos
plausíveis que sabemos serem falsos, de não escolher inescrupulosamente provar uma
hipótese ex parte [...]. A única coisa que nunca é ensinada na atmosfera das escolas
públicas é exatamente isso – que há uma verdade nas coisas, e que ao conhecê-la e dizê-
la somos felizes.
Chesterton repete suas críticas, sempre de forma contundente, em
diversas crônicas. Elas nascem sob a forma de obstinada zombaria —
em “A adoração dos ricos” —, aliam-se à condenação de moralismos
frívolos — “Limeriques e conselhos de perfeição” — e tornam-se um
ataque direto a seus companheiros de pro�ssão: “[...] Pensamos ser
mais inteligentes do que as pessoas para quem escrevemos, quando, na
realidade, somos geralmente ainda mais estúpidos” (em “Sobre o
críptico e o elíptico”).
Mas é na crônica “A Donzela de Orléans” que Chesterton, ao
acrescentar incrível didática ao seu domínio da escrita, profetiza os
rumos decepcionantes da cultura ocidental. Sua avaliação dos estilos
de Anatole France e Ernest Renan ajusta-se ao que poderíamos dizer
sobre milhares de ensaístas: “A amabilidade fria, todo o desprotegido
pecado sentimental do literato moderno”; a arrogância de explicar e
de�nir as coisas como se elas pertencessem exclusivamente “ao seu
intricado e particular mundinho literário”; a covardia para
empreender um ataque frontal, preferindo a retórica melí�ua. A longa
paródia que ele constrói no terceiro parágrafo é uma aula sobre o
“método do cético reverente”, típico da petulância esnobe que a
esquerda acadêmica, quase sempre estruturalista, difunde com
sucesso, degradando ainda mais a monotonia, por exemplo, de
Roland Barthes, a ponto de transformá-la em bovinice. “Fatigada e
lamuriosa cultura”, conclui Chesterton, com acerto.
De volta à realidade
Mas nosso escritor não se entrega a lamentações. Chesterton possui
planos para ultrapassar o cinismo enfadonho e desencantado da
intelectualidade modernista, cujos textos pautam-se, também, por um
solipsismo patológico.
Aqueles que leram as crônicas reunidas em Tremendas trivialidades
certamente se recordam do Capítulo 16, “A avó do dragão”. O
inesperado e desagradável visitante de gravata verde e pescoço longo
entra na biblioteca no exato momento em que Chesterton acaba de
“examinar uma pilha de �cção”, novelas cujos títulos sintetizam, de
forma irônica, a estreita temática da literatura moderna: Processo
suburbano: um conto de psicologia ; Processo psicológico: um conto
dos subúrbios ; Trixy: um temperamento ; e Ódio ao homem: uma
monocromia. Entre essa tediosa leitura e a chegada da visita, o
escritor vê, sobre a escrivaninha, um volume dos Contos de Grimm e
reage com júbilo: “Aqui pelo menos, aqui en�m, era possível
encontrar um pouco de bom senso”. Na longa, paradoxal e divertida
explanação que se segue, na qual ele defende os contos de fadas,
encontramos a síntese da crítica chestertoniana à literatura narcisista,
incapaz de criar heróis, debilitada a ponto de renunciar ao épico:
Você não vê, disse-lhe, que os contos de fadas são em sua essência bastante sólidos e
diretos, mas que essa eterna �cção sobre a vida moderna é em sua natureza
essencialmente incrível? Folclore quer dizer que a alma é sã, mas o universo é selvagem e
cheio de maravilhas. Realismo quer dizer que o mundo é enfadonho e cheio de rotina,
mas que a alma está doente e gritando. O problema do conto de fadas é – o que um
homem saudável faria com um mundo fantástico? O problema do romance moderno é –
o que um louco faria com um mundo monótono? Nos contos de fadas o cosmo
enlouquece, mas o herói não. Nas novelas modernas o herói está louco antes de o livro
começar e sofre com a dura estabilidade e a cruel sanidade do cosmo. [...]
Acreditar que insatisfação, misantropia e indiferentismo são os
únicos sentimentos ou atitudes possíveis signi�ca conceder à demência
o papel de protagonista da literatura, conclui Chesterton, mostrando
que uma �cção dessa espécie é sinônimo de abatimento moral, acídia,
desânimo:
Um lunático não é surpreendente para si mesmo, porque é bastante sério; isso é o que
faz dele um lunático. Um homem que pense ser um pedaço de vidro é para si mesmo tão
sem graça quanto um pedaço de vidro. Um homem que pense ser uma galinha é para si
mesmo tão comum quanto uma galinha. Apenas a sanidade é que consegue ver até
mesmo uma poesia selvagem na insanidade. Assim, aqueles sábios contos antigos
�zeram o herói ordinário e o conto extraordinário. Mas vocês �zeram o herói
extraordinário e o conto ordinário — tão ordinário — oh, tão terrivelmente ordinário.
O que acontecia com Chesterton no início do século XX ocorre
hoje conosco: abrimos os romances e, na maioria das vezes, somos
invadidos pelo narrador em primeira pessoa cujo discurso não
consegue ir além de um vagalhão de frustrações e ressentimentos.
O tema do conto de fadas é um dos mais recorrentes na obra de
Chesterton; e o porquê dessa insistência está inextricavelmente ligado
à solução que ele oferece para a literatura escapar do labirinto de
pessimismo. Na crônica “Contos de fadas”, Chesterton salienta:
— A idéia de que a paz e a felicidade só podem existir com alguma condição. Esta idéia,
que é o cerne da ética, é também o cerne dos contos infantis. Toda a felicidade do país
das fadas está por um �o, um único �o. Cinderela pode ter um vestido tecido em teares
sobrenaturais e reluzente com um brilho que não é deste mundo; mas deve estar de volta
quando o relógio bater as doze horas. O rei pode convidar fadas para o batizado, mas
deve convidar todas, ou haverá conseqüências terríveis. Aesposa de Barba Azul pode
abrir todas as portas menos uma. Quebra-se uma promessa feita a um gato, e o mundo
todo desmorona. Quebra-se uma promessa a um anão amarelo, e o mundo todo
desmorona. Uma garota pode ser a esposa do Deus do Amor em pessoa se nunca tentar
vê-lo; ela o vê, e ele desaparece. Uma garota recebe uma caixa com a condição de não a
abrir; abre-a, e todos os males do mundo escapam para cima dela. Um homem e uma
mulher são colocados em um jardim com a condição de não comerem uma fruta;
comem-na, e perdem a alegria em todas as frutas da terra.
Esta grande idéia, portanto, é a espinha dorsal de todo o folclore — a idéia de que toda
a felicidade depende de um pequeno veto; toda a alegria positiva depende de uma única
negativa.
As narrativas que nos lançam “em um mundo simultaneamente de
maravilhas e de guerra” recriam o otimismo, o extraordinário e a
moralidade menosprezados pelos escritores contemporâneos. Mas não
só. Ao fazê-lo, recusam-se a acorrentar o leitor a seu mundo
fantasioso e o devolvem à realidade, obrigam-no a encarar o real, pois
a decisão ética das personagens — a decisão inescapável a que somos
chamados dia após dia — é o âmago da realidade. “O conto de fadas
é tão-somente a história do próprio homem, que é, ao mesmo tempo,
a mais fraca e a mais forte das criaturas”, a�rma Chesterton. Ou,
como salienta em Ortodoxia , “o País das Fadas não é outra coisa
senão o ensolarado país do bom senso”.
Ao introduzir a escolha moral e reapresentar a realidade, essas
narrativas nos obrigam a ver as coisas comuns sob uma nova luz, a
descobrir nelas a “possível plenitude” de que fala Ortega y Gasset:
Es frecuente en los cuadros de Rembrandt que un humilde lienzo blanco o gris, un
grosero utensilio de menaje se halle envuelto en una atmósfera lumínica e irradiante, que
otros pintores vierten sólo en torno a las testas de los santos. Y es como si nos dijera en
delicada amonestación: ¡Santi�cadas sean las cosas! ¡Amadlas, amadlas! Cada cosa es un
hada que reviste de miseria y vulgaridad sus tesoros interiores, y es una virgen que ha de
ser enamorada para hacerse fecunda.
Somente esse novo olhar, capaz de romper a crosta de “miséria e
vulgaridade” das coisas, só o olhar infantil pleno de assombro é que
pode devolver nossa humanidade. As narrativas povoadas de
encantamentos são o primeiro passo, um exercício para libertar nossa
percepção, pois esses mundos construídos às avessas, nos quais o
maravilhoso se impõe a cada página, preparam o espírito para
redescobrir e amar o real: “Esses contos nos dizem que as maçãs são
douradas unicamente para relembrarem o esquecido momento em que
veri�camos serem elas verdes. Eles fazem com que os rios sejam de
vinho unicamente para nos lembrar, durante um fugaz momento, que
neles corre água”.
Não é outra a tarefa que Chesterton impõe a si mesmo com seus
paradoxos e sua alegria tantas vezes infantil. Ele deseja que
recordemos nossa verdadeira identidade — e essa é, apesar de
esquecida, a mais honrosa função da literatura: “Tudo aquilo a que
chamamos espírito, arte e êxtase, signi�ca apenas que, durante um
atroz instante, nos lembramos de que esquecemos”.
Sempre que leio Chesterton, recordo-me do �nal de “A ética da
Terra dos Elfos”, capítulo medular de Ortodoxia . A imagem do
náufrago Robinson Crusoé lutando para salvar seus bens guarda a
chave da obra chestertoniana, do que esse incrível escritor nos
convoca a fazer diante da realidade: a força do mar e as limitações de
Crusoé o impedem de resgatar tudo — mas o pouco que consegue
garante-lhe a sobrevivência e, principalmente, recriar a civilização da
qual se encontra apartado.
REDESCOBRIR O ROMANCE
O renascimento brasileiro de G. K. Chesterton é um fenômeno que
comemoro todos os dias. Há três anos, novos livros chegam
semestralmente ao mercado — e neste 2014 acaba de chegar às
livrarias, em um único volume, a tradução de Mateus Leme para O
defensor e Tipos variados . Além disso, Wisdom and Innocence — A
Life of G. K. Chesterton , biogra�a escrita pelo crítico literário Joseph
Pearce, está sendo traduzida.
É claro que ainda falta muito para alcançar a totalidade da obra de
Chesterton — tarefa que a Ignatius Press realiza de forma
extremamente pro�ssional. Se quisermos ter uma idéia do que
representa o legado desse escritor, basta pensar que, na sua Collected
Works , foram necessários dez volumes, do 27º ao 37º, para reunir os
artigos semanais que ele publicou na The Illustrated London News .
Analisei, nos capítulos anteriores, algumas características do estilo
de Chesterton, incluindo a incrível habilidade para criar paradoxos,
mas quero falar também de sua teoria literária, especi�camente da
forma como ele vê o romance.
Este último lançamento permite que o leitor descubra como
Chesterton entendia a literatura, pois Tipos variado s reúne ensaios
que dedicou a Charlotte Brontë, Alfred Tennyson, Alexander Pope,
Elizabeth Barrett Browning, Walter Scott e Robert Louis Stevenson,
dentre outros. No mesmo volume, em O defensor , três artigos
enfocam diferentes aspectos da obra literária: “Em defesa do
absurdo”, “Em defesa das novelas de um centavo” e “Em defesa dos
romances policiais”.
O leitor ideal
Enquanto eu lia “A posição de Sir Walter Scott”, lembrei-me do que
Northrop Frye escreve, em The Secular Scripture , a respeito do autor
de Ivanhoé e Rob Roy .
Frye recupera parte de sua história como leitor de Scott, desde a
infância, quando se deliciou com o ciclo de Waverley , passando pelo
que chama de “idade da intolerância”, até chegar à maturidade e, sob
in�uência do amigo Richard Blackmur, libertar-se dos preconceitos da
crítica e “se deixar fascinar, mais uma vez, pelas técnicas que Scott
usava”.
A história de Frye é o percurso do leitor ideal: de forma paralela à
leitura dos seus autores prediletos, ele acompanha o que os críticos
dizem, pesa as conclusões e deixa, então, que as próprias obras falem,
mais uma vez, ao seu coração, ao seu intelecto. Ele não está em busca
de uma verdade de�nitiva, mas de um diálogo — com a literatura e a
crítica literária — que permita o seu próprio amadurecimento não
apenas como leitor, mas de forma integral, como homem.
A busca desse amadurecimento irrompe na ironia chestertoniana
que abre o segundo parágrafo de “A posição de Sir Walter Scott”:
“Diz-se que Scott foi abandonado pelos leitores modernos; se for
assim, o problema poderia ser descrito com mais propriedade dizendo-
se que os leitores modernos foram abandonados pela Providência.”
O que pode parecer apenas um chiste espirituoso, na verdade expõe
a base do pensamento de Chesterton em relação ao romance, um
gênero que, para ele, só será compreendido “quando o Tempo, o
Homem e a Eternidade também o forem”.
Contra o formalismo
Longe de ser uma generalização, esta a�rmativa de G. K.
Chesterton o coloca no ângulo exatamente oposto ao das teorias
formalistas e niilistas, hoje populares.
A teoria moderna inteira, diz ele, surge de um erro fundamental — a idéia de que o
romance é de alguma forma uma brincadeira com a natureza, uma invenção, um
convencionalismo, algo exterior. Nunca haverá nenhuma crítica genuína ao romance até
que nos demos conta do fato de que o romance não está do lado de fora da vida, mas
absolutamente em seu centro.
A mesma idéia renasce um século depois da publicação de Tipos
variados , quando Tzvetan Todorov, sem se referir a Chesterton, mas
fazendo críticas contundentes aos estruturalistas e a outras visões
reducionistas da literatura, lembra que “o conhecimento da literatura
não é um �m em si, mas uma das vias régias que conduzem à
realização pessoal de cada um” (em A literatura em perigo ).
Chesterton recusa a idéia de que “o romance ou a aventura” são
“coisas simplesmente materiais misturadas ao emaranhado de uma
trama”. Para ele, o romance é “um estado de espírito”, isto é, “não
consiste em experimentar aventuras”, mas “em estar pronto para
elas”.
Esse distanciamento dos aspectos formais da obra literária pode
parecer incompreensível aos que foram treinados peloestruturalismo,
mas é libertador, pois permite observar a �cção em sua completude —
impossível de ser dissociada da realidade — e não apenas como um
constructo feito exclusivamente de linguagem.
Crítica a certo realismo
Essa idéia perpassa o ensaio dedicado a Robert Louis Stevenson, em
que Chesterton refuta os críticos que confundem os narradores de
Stevenson com o próprio escritor e rea�rma a importância da
imaginação, presente, enquanto potência criadora, não só no leitor,
mas no que ele chama de “alma da história”.
Para Chesterton, o eixo da �cção de Stevenson encontra-se no
conceito de que “as idéias são os verdadeiros incidentes: que nossas
imaginações são nossas aventuras”. Ou, no seu estilo alegre, “pensar
em uma vaca com asas é essencialmente tê-la encontrado”. Assim, em
Stevenson, “a história era a alma, ou melhor, o signi�cado, da visão
do corpo”.
Essa análise traz, embutida, a crítica de Chesterton ao realismo
rasteiro, que acaba por diminuir a realidade para apregoar uma tese
ou uma ideologia. Censura que ele constrói ao defender a eloqüência
de Walter Scott, característica de sua “incapacidade para desprezar
qualquer” personagem: “Não escarnecia do mais revoltante canalha
como o realista de hoje freqüentemente escarnece de seu próprio
herói. Embora sua alma esteja em farrapos, todo homem de Scott
pode falar como se fosse um rei.”
Ao censurar os realistas que sacri�cam personagens e enredos para
enaltecer idéias, Chesterton elabora uma crítica que serve a grande
parte dos escritores brasileiros atuais:
Tome qualquer obra de �cção contemporânea e abra-a na cena em que o jovem
socialista denuncia o milionário, e então compare a afetada palestra sociológica dada
por aquele chato abnegado com a crescente festa de palavras com que Rob Roy se
declara, ou Athelstane desa�a De Bracy. Aquele antigo mar de paixão humana sobre o
qual as palavras elevadas e as grandes frases são a resplandecente espuma está neste
exato momento em maré baixa. Chegamos mesmo ao ponto de nos felicitarmos porque
conseguimos enxergar a lama e os monstros do fundo.
Posso discordar de Chesterton quanto à necessidade do discurso
altissonante, pois em nossa literatura ele quase sempre surge repleto
de lugares-comuns e adjetivação pegajosa. Mas concordo que, se
podemos elogiar o “delicado e fascinante discurso que se enterra cada
vez mais fundo como uma toupeira” — e ele cita, como exemplo,
Henry James —, então devemos estar abertos ao “discurso que se
eleva cada vez mais alto como uma onda e depois quebra-se em uma
arrasadora peroração”.
Estranho mas inspirador
Todas estas questões con�uem, no entanto, para o que apontei
acima, a idéia do romance necessariamente preso à vida. Para
Chesterton, a obra literária que busca apenas uma suposta perfeição
lingüística ou erige a linguagem como sua protagonista é, na verdade,
uma traição à literatura.
Também por esse motivo ele elogia o romance policial, gênero
considerado menor, mas que é capaz de expressar “de alguma forma a
poesia da vida moderna”, não no sentido de uma exaltação ao crime,
à violência ou à super�cialidade que a existência adquire nos grandes
centros urbanos, mas porque, “no meio de um burburinho de
pedantismo e preciosismo”, o romance policial se nega a “encarar o
presente como prosaico e o comum como lugar-comum”.
De fato, nada é banal para Chesterton. Todas as coisas merecem ser
amadas. E ele compõe um hino de louvor à realidade:
Os homens viveram entre poderosas montanhas e �orestas eternas por séculos antes de
que se apercebessem de que estas eram poéticas; pode-se inferir razoavelmente que
alguns de nossos descendentes poderão enxergar as chaminés com um matiz de púrpura
tão rico quanto o dos picos das montanhas, e pensar que os postes de luz são tão velhos
e naturais quanto as árvores. Com relação a essa percepção de uma grande cidade como
algo em si mesmo selvagem e óbvio, os romances policiais certamente são sua Ilíada .
Ninguém pode ter deixado de notar que nestas histórias o herói ou investigador cruza
Londres com algo da solidão e liberdade de um príncipe em um conto de fadas, que
durante aquela jornada incalculável o ônibus casual assume as cores primárias de um
navio de fantasia. As luzes da cidade começam a brilhar como os olhos de inumeráveis
duendes, já que são as guardiãs de algum segredo, talvez grotesco, que o escritor
conhece e o leitor, não. Cada curva da rua é como um dedo que aponta para isso; cada
fantástica linha de chaminés parece assinalar de forma fantástica e zombeteira o
signi�cado do mistério.
Para alguém que, como eu, vive em São Paulo, é impossível não
recusar o idealismo de Chesterton. Um idealismo que talvez fosse
aceitável se pensarmos na Londres do início do século XX. Mas ele
nos embriaga com seu estilo e somos forçados a distinguir, no caos de
hoje, alguma forma de beleza. Somos obrigados a ver o homem, a
encontrar nosso semelhante: ele é o centro do “mistério”, pois,
Chesterton está certo, o núcleo do romance policial é sempre uma
questão moral — “a mais obscura e ousada das conspirações”.
De qualquer forma, Chesterton não deseja que concordemos com
ele. Mas que percebamos a necessidade de uma literatura que jamais
perca contato com a imperfeição, com o mundo que ele encontrou em
Walter Scott: estranho, antigo, confuso — e exatamente por isso,
inspirador e saudável.
IV — O toque do shofar
PECADOS DE WILSON MARTINS
POR UMA DESSAS CASUALIDADES com que a vida nos golpeia, às vezes mal
tenhamos acabado de morrer, Wilson Martins faleceu em 30 de
janeiro de 2010, quando os jornais, as rádios, a tevê, a web e grande
parte dos intelectuais que detêm postos-chave na mídia ainda
derramavam lágrimas de sangue pela morte de J. D. Salinger. De certa
forma, foi uma casualidade positiva: graças ao intervalo de três dias (o
escritor norte-americano faleceu a 27 de janeiro), o crítico literário,
historiador e professor emérito da Universidade de Nova York
ganhou, aqui e ali, dez ou quinze linhas de atenção. Mas a sorte durou
pouco. Logo no dia 31, para consternação geral, outro ícone falecia —
e quando alguns poucos leitores esperavam por artigos mais
aprofundados sobre a obra do nosso intelectual, o noticiário foi
tomado por per�s, críticas, rememorações, encômios, listas de obras
publicadas e fotos do argentino Tomás Eloy Martínez. Entretanto,
devemos ser otimistas e, assumindo o comportamento apropriado ao
populismo que impera no país, fazer o jogo do contente: se Wilson
Martins tivesse falecido um dia depois de Salinger ou na mesma data
que Martínez, sequer receberia o favor de um breve necrológio.
Não discuto o valor da obra dos estrangeiros falecidos — e muito
menos a dor de suas viúvas brasileiras —, mas se o leitor me pergunta
sobre o porquê desse tratamento diferenciado, quiçá injusto, minha
resposta talvez não agrade, mas é a única que tenho: ainda somos um
país primitivo, uma colônia que se encanta facilmente com o ouropel
das cortes estrangeiras. No que se refere à teoria literária, por
exemplo, o estruturalismo é questionado na Europa desde a década de
1980 — e alguns de seus seguidores já lhe deram as costas, como
Todorov —, mas aqui ainda é objeto de culto nas universidades, onde
há quem leia Derrida e outros de joelhos, acreditando que certa
terminologia folclórica pode dar conta de analisar não só a literatura,
mas toda a realidade. Não importa se os estruturalistas e seus
continuadores criaram apenas — no irônico dizer de Thomas Pavel —
um “verniz onírico” ou, lembrando o ácido comentário de José
Guilherme Merquior, uma “teorréia, ou seja, teorização inconseqüente
sem qualquer referente estável”. Importa, sim, o prazer doentio de se
submeter ao que vem de fora, aceitando, sem críticas, qualquer teoria
fantasiosa.
Em segundo lugar, há outro motivo para o descaso em relação a
Wilson Martins: ele — pasmem! — não era de esquerda, não rezava
pelo catecismo marxista, não acreditava na irrefreável, fatal e
invencível revolução que, no galope leninista ou no trote gramsciano,
um dia levará o proletariado

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