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RODRIGO GURGEL CRÍTICA, LITERATURA E NARRATOFOBIA Prefácio de Flavio Morgenstern SUMÁRIO CAPA FOLHA DE ROSTO EPÍGRAFE PREFÁCIO: “Um crítico que é um crítico” — Flavio Morgenstern APRESENTAÇÃO I — O Crítico à procura de si mesmo Em busca do livro primordial Reminiscências do mundo onírico Dez livros que mudaram minha vida Re�exões no Império dos Filisteus Narratofobia — ou o pavor de narrar II — A Tradição Universal Narrador malicioso — Thomas Bernhard Zen e melancolia — Yasunari Kawabata Perfeição corrosiva — Saki Amizade entre luz e trevas — Tahar Ben Jelloun Perene inconstância — Hans Jacob Christoffel Von Grimmelshausen Submetido ao desespero — James Joyce Antes do silêncio — Carmen Laforet Tímido acerto de contas — Jean-Marie Gustave Le Clézio Onde está o bardo? — William Shakespeare O silêncio impossível — Antonio di Benedetto Heroísmo anônimo e perfeição — Arthur Miller Literatura e populismo — Kiran Desai A adúltera e a contradição — Gustave Flaubert O preço de ser um herói — Santiago Roncagliolo Muito além da morte — Claudio Magris A navalha do narrador — William Somerset Maugham Nossa herança comum — Liev Tolstói Efêmera felicidade — Mario Benedetti Sofrimento e dignidade — Joseph Roth Tarde demais — Henry James A vítima de pandora — Philip Roth Pela fresta da porta — Isaac Bashevis Singer À procura dos deuses — John Banville III — Entreato Chesterton O que falta ao nosso tempo A missão dos náufragos Redescobrir o romance IV — O toque do Shofar Pecados de Wilson Martins Álvaro Lins: O crítico para os dias de hoje Centelhas de verdade — Chamfort, Kraus, Lichtenberg, La Rochefoucauld O jugo da utopia — Lauro Machado Coelho Palavras inatingíveis — Stuart Kelly Como defender a democracia? — Alexis de Tocqueville Memória e Lágrimas — Daniel Mendelsohn Diálogos com a civilização — Philip Roth Grandiosa epopéia — Felipe Fernández-Armesto Miragens de Kafka — Calasso, Lemaire, Crumb e Günther Anders Trágica ingenuidade — Frederic Amory Crimes incomensuráveis — Ivo Patarra A Ética da liberdade contra o autoritarismo — Ralf Dahrendorf Pessimismo, contradições e apatia — Emil Cioran Ao encontro de Nelson Rodrigues Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho V — Pouca fortuna Atalhos de sonho — Julián Fuks Só para lacanianos — Wesley Peres Incoerências e cacofonia — Livia Garcia-Roza Boas e más escolhas — Roberto Drummond Açucarados chavões — Ana Miranda Narrativa feita de haicais — Adriana Lisboa Liberdade para contar uma boa história — Igor Gielow Um sabor a fel — Ivone C. Benedetti A pequena alegria de Fabrício Corsaletti Num pântano de escárnio — Eduardo Alves da Costa Torturante labirinto — José Luiz Passos Primos muito distantes Bordados sem risco — Autran Dourado Romance aliciador — Alberto Mussa A cópia monótona da realidade — André Sant’anna Seguro no ofício de narrar — Luis S. Krausz Romance e pan�etarismo — Oscar Nakasato e Ana Maria Machado O narrador doutrinário — Rodrigo Lacerda Apuro estilístico e perversidade — Otto Lara Resende No limiar da anti-�cção — Carola Saavedra Desesperança e poesia — José Luís Peixoto CRÉDITOS SOBRE O AUTOR Tenho lido ultimamente, em vários artigos de jornal, e até em livros, em autores diversos — uns, por sinal, não tendo nada a ver com a literatura —, a opinião de que a crítica não deve ser a�rmativa, mas displicente, não deve ser julgadora, mas apenas comentarista. Pensam assim, em geral, aqueles que não obtiveram da crítica mais do que censura ou silêncio; também se inclinam para este ponto de vista os que não puderam realizar a crítica integral. Opinião extravagante e absurda, porque nenhum verdadeiro crítico aceitaria o desempenho de um tão secundário papel como seja o de falar de livros e autores sem os julgar, sem se de�nir diante de uns e outros. Seria fazer do crítico um corneteiro da fama dos autores; um empregado para atirar �ores sobre cabeças mais ou menos gloriosas; um fabricante de elogios e adjetivos para engordar vaidades e orgulhos. Bem sei que se faz isso na vida literária; que existem os pro�ssionais do elogio e da frase feita; que há os que escrevem sobre livros somente com este �m sem grandeza. Mas não será possível tolerar que se queira oferecer como teoria da crítica, como destino da crítica, aquilo que é a sua descaracterização, a sua caricatura. Álvaro Lins, “O Ato de Julgar”, 13 de fevereiro de 1943 UM CRÍTICO QUE É UM CRÍTICO DIZER QUE RODRIGO GURGEL é hoje o maior crítico literário do Brasil carrega um deboche exagerado no dissabor: dos críticos literários atuais, talvez Rodrigo Gurgel seja o único que é, de fato, um crítico. No país do homem cordial, do relativismo e do coitadismo, alguém ter uma opinião pouco airosa sobre algo soa, à nossa intelectualidade, o equivalente a defender a Inquisição. Neste país, um caso, visto apenas nas últimas páginas deste livro, tornou Gurgel célebre: até a 53ª edição do Prêmio Jabuti, as notas, como nas escolas de samba, variavam só de 8 a 10, permitindo apenas encômios e adulação aos escritores. Já na 54ª, a nota foi de 0 a 10. Ainda assim, os jurados preferiram se manter na margem de elogios. Gurgel deu nota alta ao romance Nihonjin , de Oscar Nakasato, e notas bem baixas aos demais. Resultado: matematicamente, seu voto foi o único relevante, já que os outros jurados, quando davam notas baixas, ainda �cavam perto de 8. O romance logrou-se vencedor, Gurgel se tornou um polemista conhecido do público leitor e o Jabuti, claro, voltou a fechar-se na margem de erro elogiosa. Foi um caso arquetípico para as letras nacionais. Sob auspícios de um sentimentalismo infantil, toda crítica verdadeira é tratada como intolerância, e o trabalho do crítico literário é reduzido a macaquear bordões sobre os escritores que seus mestres consideravam dignos, sem possibilidade de se fugir a um círculo de cães farejando as próprias intimidades, cuidadosamente elaborado para sua auto- manutenção por gerações – e sem outro propósito senão a troca de glori�cações. Tal cenário torna-se ainda mais hórrido quando se lembra que tais intelectuais arrogam-se os maiores “questionadores” de tradições e tabus, nunca olhando para si próprios para perceber que são os mais irritadiços mantenedores de uma formalidade oca e de mera troca de afagos. Criticar um livro, neste cenatório – sobretudo um livro ou autor tido por inquestionável pelos vanguardistas empacados – exige coragem, num mundo de subserviência em que só se pode desgostar de um livro se for escrito por Paulo Coelho ou Adolf Hitler. Coragem quase física: a força dos escritos de Rodrigo Gurgel é tonitruante, demonstrando que a atividade intelectual exige um preparo da alma que parece transparecer no mundo físico. Se soa hiperbólico, experimente-se dizer em voz alta curtas frases deste livro a um professor de literatura, como “A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula”, comentar “os limites do autor” de O Guarani , ou admitir o tédio da última quebra de paradigmas destes escritores “presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a cada amanhecer” – se exemplos faltarem, que tal o apotegma “Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de Alencar”? Valeria uma cena de um romance: e mostra como é precisar tirar uma faixa preta e quebrar tijolos com as mãos antes de escrever um artigo de jornal. A literatura (a brasileira em especial) está querendo chocar e ser moderna com preceitos mais antigos do que nossa bisavó. A resposta que não quer do crítico é a que dá Rodrigo Gurgel: merecidos bocejos. Tido por exigente, é apenas o erudito que qualquer adolescente adoraria ter conhecido na escola. Por que, a�nal, a literatura precisaria ser tão chata, quando todos nós temos uma necessidade vital de boas histórias? Bem ao contrário do que sonha nossa vã Academia, na crítica que aqui é lida não há geniosidade irascível nem intolerância. Trata-se apenas de técnica. É a intelligentsia que possui uma técnica falha (abusando-se da hipérbole), não nosso Rodrigo Gurgel. Este está vacinadocontra a verborragia das torres de mar�m, formalmente divorciadas da realidade da nossa vidinha rés-do-chão. E sua técnica, embebida em Aristóteles ou Michitaro Tada, é a complexa e simples arte de esperar da literatura algo sobre a vida. Não apenas entretenimento, nem muito menos a estúrdia auto-referente do pedantismo vanguardista, de escritores que espatifam a sintaxe apenas para que seus cupinchas acadêmicos realoquem os caquinhos, com esgares de sabedoria arcana. O que se lê nas páginas que seguem são as re�exões de um leitor especializado, mas não é a dinamitação niilista de quem acordou de mau humor. É exatamente o elogio às grandes obras, através dos olhos de um erudito, que extrai dos livros mais do que nós, pobres mortais, podemos sonhar. E sua verve move-se contra o que chama de “narratofobia”, o mal daqueles que “escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos”. Parece que ninguém mais tem uma história interessante a narrar – civilizações foram criadas através de narrativas, mas o estado das artes prefere o umbigocentrismo e falar de si próprio. Gurgel esmiúça símbolos, temas e elementos literários como os estudiosos de mitos, buscando no sonho e verdade não-racional, que só cabe na poesia e na consciência elevada, seus paradigmas, como os símbolos analisados nos primeiros ensaios deste livro. Uma história, uma narrativa �ccional ou histórica, deve conter algo que inquiete nossa alma, que nos tire de nosso conforto. A grande literatura é o oposto da auto-ajuda e do vitimismo social, hoje a grande régua a medir o mundo pela Academia. É incômoda, trágica, satírica, muitas vezes melancólica. Não é para formar heroísmo de bordões e agitadores pan�etários. Este estado desolado, eliotiano, não se construiu por acaso. Os intelectuais, na Academia, no jornalismo, na massa falante – o palpitariado – se escoraram em teorias que pretendem espremer toda a realidade numa ótica simplista, justamente quando crêem fanaticamente que descobriram um novo método para atingir uma verdade universal por debaixo do que nós, viventes, conhecemos. Diz o nosso crítico: “Assim funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo – e a maioria só consegue papagueá-lo”. É comum na análise literária no Brasil a busca da correlação entre literatura e sociedade, tão dominante, por exemplo, na USP. Por mais importante que tal relação seja, ela não é a única a explicar a literatura: Gurgel mostra aqui a relação entre literatura e individualidade , sem deixar de lado a história, o país, a cultura, os acontecimentos sociais. Mas é no âmago da alma individual que a literatura tem seu poder de nos tocar, mesmo em romances sociais. Minguada à sociologia de botequim, a literatura, então mera coadjuvante, só consegue papaguear modinhas políticas sem nada de verdadeiro ou relevante, para se tornar mera ferramenta de agitação partidária. Não é sem razão que a literatura brasileira esteja hoje encolhida a falar sobre a ditadura militar, que terminou há mais tempo do que durou, do que dizendo qualquer coisa sobre viver no Brasil atual, com as oscilações que vemos na prática e nos jornais – que Gurgel garante não ler há anos, “exatamente para me proteger da idéia de que a realidade do país é irreversível”. Outra modinha que Gurgel demole, à luz dos melhores romances e críticos, é o estruturalismo, mais arraigado ao nosso fazer didático do que o pessimismo a Thomas Bernhard. Crendo estar atingindo uma estrutura de poder velada aos pobres mortais, maquiavelicamente plantada por alguma mente obscurantista, foi o principal cabresto mundial para que as letras apenas arranhassem a superfície e a forma do fruto literário, sem nunca lhe transpassar a casca. Tal técnica foi escorada ainda pela Escola de Frankfurt e a futura “teoria crítica”, gênese do moderno politicamente correto que deu ares de ciência arcana para o chilique e o coletivismo plani�cante, graças ao pedantismo e ao estilo rebuscadíssimo de seus autores – confundido com conhecimento rigoroso por alunos embasbacados, que nunca percebem que apenas estão falando difícil a mesma análise super�cial de quando eram adolescentes. Síndrome do “eterno vanguardismo”. Para completar esse caldo de revitalizações do marxismo, já brega até na União Soviética stalinista, que precisava ser disfarçado por uma linguagem mais chiquetosa, junta-se a psicanálise, do freudismo à lacanagem, com suas misti�cações de lingüística e semiótica, prontas a “analisar” e dizer aos nossos olhos que o beijo de uma criança em sua mãe não é inocência, mas – olhe bem para o que você não vê – o desejo de assassinar o pai para fazer sexo com a progenitora. Se a literatura hoje não tem mais verossimilhança, alguma verdade interna que permanece inalterada tanto num conto em que se ensina um gato a falar quanto no Henrique VIII de Shakespeare, tal se dá a tais tapeações humanitárias. Sem apelo em consultórios, a psicanálise migrou para o departamento de Letras, onde sua simpli�cação da realidade serve de explicação do todo do real – vide o grande ensaio deste livro sobre Le Clézio. Tempere essa análise “crítica” da realidade com a “desconstrução” de Jacques Derrida e a “dissolução” de Michel Foucault, e teremos a literatura e a crítica literária modernosas, tão prontas a nos ofender e melindrar com sua quebra de paradigmas e destruição de tabus, e tão e�cientes em nos curar a insônia, que preferimos ter a alma assombrada pelos fantasmas de Henry James ou da épica e das tragédias gregas. No Brasil, ainda temos também o revanchismo histórico, a vitimização da nossa miséria por culpa estranha a nós mesmos e a idealização da periferia. Diz Gurgel: “A grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra- se no centro do nosso coração”. E o que resta dos temas universais e eternos do existir humano, tranca�ados no porão literário nunca visitado pela crítica moderna? O amor, tema tão próximo do ser que não consegue ser destruído nem sob totalitarismos, é trans�gurado em mera frustração sexual, o grande tema da literatura “anti-tabu” (com sua antítese no sexo mecânico e promíscuo). A amizade, suas dúvidas e suas crises, é mera maquinação ou concordância temporária para �ns de poder. Como se “desconstrói” o amor, que fez até Derrida intuir os limites de sua brincadeira, ou como compreender os valores da cultura, do sentido da vida (aquele que Viktor Frankl resgatou até num campo de concentração), da família e do eterno sob a análise psicanalítica? Se esta literatura não consegue mais espelhar a realidade ou a verossimilhança do nosso existir, o que obras mitológicas com deuses e dragões conseguem à perfeição, ao menos conseguem tornar algumas pessoas (e, mais infelizmente ainda, alguns escritores) em um bando de histéricos estampando suas frustrações e falta de amores publicamente, como concretização non plus ultra de sua suposta libertação, inconscientes de sua miséria. Reduzidos os homens às suas funções primárias, com a alimentação tratada como propaganda para políticas distributivistas e a reprodução como insatisfação sexual que logo eclode na luta histérica revolucionária, não coube a tais literatos muito além de criar livros que recebam a última função primária. São os “universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras”. A alma dividida, tema romântico por excelência, é vista por Gurgel no Marrocos ou no sopé do Himalaia. O homem morti�cado entre o dever e o prazer, tema de Homero a Ortega y Gasset, entre a eternidade e as contingências do presente, é-nos mostrado tanto sob as luzes barrocas, eivadas de contradições, de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen e seu personagem desnudando-se da inocência e tomando parte em uma vida cheia de obrigações e vocações, quanto nos tortuosos sentimentosde Gustave Flaubert ao escrever sua icônica Madame Bovary . Escreve nosso crítico: “Sem o duelo permanente que ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos incautos como o melhor realismo”. É esta dúvida interior, este dilacerante processo de mentir para si próprio, este presente atormentado por terrorismo, insurreições políticas, dramas familiares e paixões fulminantes na paz, tão contrastantes com o amor quando visto no caos, que tanto interessa a Gurgel, e que tão pouco é visto numa literatura que se pretende marcante e séria. Ainda menos nos “temas comezinhos da literatura brasileira”. E tal combate interno é comum tanto aos clássicos os mais antigos, dos primórdios de nossa e de outras civilizações, quanto aos românticos, aos renascentistas, aos modernos. Nas duas obras que inauguram a civilização ocidental, a Bíblia pelo lado judaico, o conjunto da Ilíada e da Odisséia pelo outro, já �sgamos personagens atormentados pela incumbência de feitos aparentemente muito maiores do que suas capacidades, caminhos tortuosos e torturantes, cheios de armadilhas e cobrando-lhes o risco vital de se apartarem da existência. É o que Lionel Trilling chama de “imaginação moral”, duas palavras que, juntas, explicam como termos superavit literário. Aprendemos com Erich Auerbach que no relato do Antigo Testamento, por exemplo, tudo é feito em poucas palavras (até os nomes são simples), nada é narrado, apenas sabemos que Deus pede um sacrifício e, dali a dias, Abraão sobe a montanha com seu �lho, mantendo-nos em silêncio tão brumoso e tenebroso, análogo àquele experimentado por Abraão, sabendo que tem uma escolha entre sacri�car seu �lho querido ou desagradar ao Deus Todo-Poderoso, no último resquício de uma sociedade que imita o ritmo cíclico da vida através de sua visão cósmica de sacrifício. É enfrentando tal provação em silêncio – silêncio “narrado” pela própria violência cortante da frieza da ausência narrativa – que Abraão sela a aliança de Israel com Deus, inaugurando o “salto no ser”, no dizer de Eric Voegelin, que cria a primeira sociedade que vai buscar a verdade justamente no silêncio da alma individual, na verdade transcendente, e não no ciclo de repetições do mundo circundante, na primazia da transcendência sobre o presente de mortes e vida – presente este que é sintoma e causa de uma literatura tão doente e fraca para tanto aquietar quanto provocar nossa alma. A tortura de Abraão até o monte, depois de amarrar Isaac e estar prestes a cometer o sacrifício, é revivida pelo leitor, que se apieda e se integra no todo daquela sociedade e de todo o drama interno humano – não penas um caso arquetípico de literatura de identi�cação e participação, mas também anagógico, nos termos de Northrop Frye, quando todo o cosmo é reaprendido e vislumbrado por uma literatura profética e participativa. Já na Ilíada de Homero, a dúvida de Aquiles é entre ele próprio morrer jovem, mas com glória (numa sociedade em que isto representa muito mais do que aplausos acadêmicos) ou velho, mas apartado de seu povo por não tomar parte na Guerra de Tróia. Aqui, tudo é narrado, tudo é detalhado, tudo é esmiuçado – o que reduz a participação da alma do leitor na perturbação do personagem, mas não sem que entendamos como a literatura é crise, em sentido grego: cisão, divisão, a dura conquista �nal que exige antes tantas escolhas, cada uma vindicando uma perda. Já na literatura moderna, a boa literatura, se começa a trabalhar temas cada vez mais perturbadores e sutis, como �uxos de consciência (leia-se Gurgel ao analisar Joyce), a de�nição da individualidade, a participação no passado coletivo, a insatisfação globalizada com o sentimento de pertencimento a uma cultura opressora e que nada nos diz, mas sem que consigamos pertencer a outra – todos temas analisados de forma emocionante por nosso crítico nestas páginas. Quantos personagens emocionantes realmente conhecemos? Tomando mais um pouco tal lição, podemos acompanhar o trabalho genial de Rodrigo Gurgel, apresentando-nos as grandes questões que passam despercebidas por uma leitura pouco diligenciada, tanto nos processos rituais da vida, aqueles cíclicos e que se repetem em cada história individual ou comunitária, imitando os ritmos da natureza (seja no Peru sob a ditadura de Fujimori ou naquele Israel sempre profético da humanidade), e também os dialéticos, palavra tão escangalhada pela Academia, quando vemos homens cujos sonhos estão em con�ito com a realidade, o que aproxima tantos personagens da poesia – e do diálogo interior que quase nunca podemos expressar. É essa tomada de posição, de responsabilidade e de saber seu lugar no mundo, e o que se pode comunicar pela �cção ao outro, que Gurgel nos apresenta, deixando- nos com água na boca para desfrutar tantas grandes obras, e preparados para entender o que está em jogo quando se terça armas sobre cartas de escritores, traduções e visões críticas – não sobrando mera bajulação, é claro, nem mesmo para os maiores nomes de seus ramos. Tal falta de tomada de responsabilidade é comum tanto à literatura ruim quanto à crítica ruim, ambas com síndrome de puer aeternus e deixando seu simbolismo, seu sentimentalismo e seus valores na cultura, na mentalidade geral, no imaginário coletivo e nos acontecimentos históricos recentes. No entanto, acompanhados de nosso crítico, sentimo-nos mais familiarizados com os livros realmente apaixonantes, mesmo em suas minudências mais sutis ou nas complexidades mais cabeludas. Em poucas páginas, sabemos que os únicos a temer um crítico que é crítico são os maus escritores, maus professores ou os maus críticos. Todos mendigando aplausos, cobrando tanto de nosso precioso tempo, e oferecendo apenas as platitudes das explicações fáceis. É É responsabilidade a mais exigente e grati�cante cuidar de apresentar este grande intelectual a um público tão importante quanto os leitores de �cção – e também tarefa pavimentada de hesitações, medos e aventuras perigosas, por não se querer tomar as rédeas do leitor e conduzi-lo por impressões outras, desejando por �m ser esquecido para que o leitor saboreie as palavras do verdadeiro autor. É buscando uma integração no todo – zen , como nos ensina Rodrigo Gurgel a ler Yasunari Kawabata –, longe de estruturalismos e outras frescuras acadêmicas, que deixo a faina de reintegrar tais impressões no objeto e no sujeito ao poder poético e de difícil assimilação por esquematismos racionais à própria leitura literária – pois alguém da grandeza de Rodrigo Gurgel, ao fazer crítica literária, também faz literatura a mais brilhante. Flavio Morgenstern APRESENTAÇÃO Reúno neste volume textos publicados na última década. A maior parte, no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo . Outros, nas revistas Sibila e Dicta & Contradicta , em meu próprio site ou como entrevistas e prefácios. Ao preparar este livro, tentei criar um conjunto homogêneo, que expressasse minha visão da literatura e do papel da crítica literária. Só não foi possível ampliar, como gostaria, os textos escritos para a Folha — mas a essência dos julgamentos respira neles com igual força, com igual sinceridade. Agosto de 2015 I — O crítico à procura de si mesmo EM BUSCA DO LIVRO PRIMORDIAL RECORDAR NOSSO PASSADO não pode ser um exercício de idealização. O diálogo com o “eu” que nos observa e, ao mesmo tempo, envolto pela neblina do tempo, nos dá as costas e caminha de volta à infância, precisa estar impregnado daquela tensão que ressurge sempre que nos debruçamos sobre o poço da verdade. É o homem de carne e osso que busco quando olho sobre meus ombros na direção da juventude, da infância. Mas não se trata de revisitar um horizonte ensolarado. Trata-se, ao contrário, de repetir as caminhadas de Miguel de Unamuno pelo claustro do Monastério de Santo Estevão, em Salamanca, debruçar-se sobre o poço, no Pátio das Cisternas, e gritar “Eu… eu… eu!”, para que o eco do passado, ao repetir o pronome, rea�rme minha existência. Um de meus sonhos recorrentes está impregnadodesse “eu” sempre à minha espera, em algum ponto do emaranhado de reminiscências. No sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave pendurada no batente, num prego, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Sinto, imediatamente, o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar pegajoso que vem do ambiente escuro. O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor. A seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que permanece escuro. Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca — e o encontro certo — não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a — e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão. Sei o que venho buscar: o livro superior a todos os livros, um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, o guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas o conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana. Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que �z centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de seu �lho, meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos — e a língua ferina quando fala dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro- chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de achar o que procuro, tamanha é minha certeza. E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de pequenos e irregulares círculos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre o fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos. Estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la — mas acordo. Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Nesse primeiro momento da vigília — ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume —, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. O sonho é impressionante por vários motivos, mas deixo aos psicanalistas a tarefa de compor, mais que a análise, suas �cções. O que me interessa é reencontrar esse objeto que se tornou uma das poucas constâncias em minha vida. Há, claro, um conjunto de fatos, de circunstâncias que formam uma personalidade, mas, no meu caso, os livros têm papel primordial. Às camadas do meu ser correspondem livros. Nasci e fui educado entre três bibliotecas: a de meu pai, composta, basicamente, de obras de �loso�a e da área jurídica, mas onde descobri as sisudas capas negras do Tesouro da Juventude — com a velha ortogra�a, em que eu podia saborear a beleza excêntrica de palavras como ophthalmologia , columna e aucthor — e o Lello Universal ; a de minha avó, pequeníssima, mas com livros indispensáveis, como As mil e uma noites e Madame Bovary ; e a do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa. Cada uma me ofereceu o que tinha de melhor, mas a do Gabinete fez o principal, pois a bibliotecária da noite, Dona Odete, deixava que eu transpusesse o balcão de madeira escura e, penetrando no acervo, percorresse as estantes livremente. Ali, então, descobri o mundo. Mas o que forma um leitor é, antes de tudo, o exemplo de outros leitores. E não se trata apenas da imagem de meu pai sentado à velha escrivaninha, que antes pertencera a meu avô, compulsando suas coleções de jurisprudência. Antes, vejo-o de pijama, aos domingos, lendo religiosamente os jornais e obrigando-me a ler editoriais e artigos que considerava interessantes ou bem escritos, cuja argumentação o impressionava. O tempo que passei na universidade também não foi de todo perdido, principalmente porque, na PUC de São Paulo, tive duas professoras brilhantes: Samira Chalhub, de Teoria Literária, e Anna Maria Marques Cintra, de Língua Portuguesa. Mas foram Ivanira Dadalt e Paulo Vieira, no colégio, que me mostraram a literatura e a língua sob perspectivas que, comparadas à dos livros didáticos atuais, fazem-me pensar que cumpri, antes de tudo, o mestrado. Ivanira, delicada como uma gueixa, apresentava cada movimento literário inserido num contexto cultural e político maior. Músicas, pinturas, revoluções: tudo interpenetrava a literatura. E quando, certa manhã, no corredor repleto de algazarra, com O Guarani nas mãos, des�ei um rosário de reclamações sobre o livro, ela, com sua eterna paciência, con�rmou-me os limites do autor, sem deixar de insistir para que eu chegasse ao �m do volume. “É preciso conhecer tudo”, disse-me. Com Paulo Vieira não foi diferente. Que professor atual recomendaria a seus alunos que lessem Thomas Merton? Paulo o fez — e, passados quarenta anos, minha gratidão só cresce. Ao corrigir uma de minhas redações, deu-me um 9. Não havia nenhum erro, mas uma frase estava marcada em vermelho e, ao lado, a observação: “Fale comigo depois da aula”. Procurei-o e ele me explicou que eu usara um espanholismo, que aquela construção não pertencia à língua portuguesa, deu-me exemplos, mostrou-me como seria o correto em português. Um purista, dirão os modernosos. Um sábio, a�rmo. Mais tarde, pude conviver com Nelson Foot, professor autodidata, respeitável lingüista que, aposentado, passava as tardes brincando com poesias em sua biblioteca: escolhia um poema de Cecília Meireles e traduzia-o para o romeno, depois para o latim, a seguir o francês, �nalmente o inglês. Gosto de imaginá-lo brincando com os textos como se fossem animais de estimação. Havia um rasgo de orgulho e independência no adolescente de quinze anos que pegava o Cometa e, semanalmente, vinha de Jundiaí para percorrer sebos e livrarias do Centro de São Paulo, tornava-se amigo dos livreiros e voltava, muitas vezes, carregado de antigos volumes, díspares como uma biogra�a de Savonarola, um dicionário de locais históricos da Grécia e uma primeira edição de Murilo Mendes ou Guilherme de Almeida. Mas há outro sonho envolvendo o porão da casa de minha bisavó. Desta vez, os livros não estão presentes. E não há recorrência. Sonhei esta pequena história uma só vez, em setembro de 2007. O céu da manhã está encoberto. A primeira percepção é de que não há sol. Vejo-me, ainda criança, no quintal da casa de minha bisavó, à procura de algo. Ela, no seu imutável vestido negro, altiva, pronta a educar-me nas mínimas oportunidades, me observa, de pé no alto da escada que leva à cozinha. A cena tem tantos detalhes — o tanque em desuso à direita;o canteiro circular no centro, com as roseiras; o corredor lateral que leva à entrada —, tantas recordações miúdas, observadas enquanto vejo a criança brincar, que imediatamente penso se não seria esse o melhor início para um livro de memórias. Há um único gesto surpreendente, no �nal: arranco, de sob a soleira da porta do porão, um ramo seco, semelhante a uma forquilha. Experimento júbilo incontrolável, pois se trata de um tesouro, sem dúvida, cujos poderes não posso conceber. Ergo o galho de pontas retas, compridas e pálidas, balanço a descoberta no ar, pleno de satisfação — e minha bisavó sorri, não de qualquer jeito, mas tenho certeza que pensa: “Ele encontrou, �nalmente. Agora tudo está bem”. O galho bifurcado é apenas o substituto do livro. Formas diversas para a mesma fascinação. Se o tempo me fez mais seletivo, se a ânsia adolescente de ter todos os livros foi substituída por uma serenidade que diminuiu o número de compras mas não tornou possível ler tudo o que desejo, isso não muda o anseio das visões oníricas, de que, algum dia, aquele menino que penetra no porão me permita ler ao menos o título, talvez a primeira linha do livro que sintetiza a vida. REMINISCÊNCIAS DO MUNDO ONÍRICO Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país? O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de desvendarmos nosso eu. Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças — às vezes fragmentadas — como se formassem o mapa de uma aventura que clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em vigília, pode oferecer o tesouro — quem sabe inominável segredo — escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar durante o dia — e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê- lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já se esvai — as mesmas etapas noturnas, como o menino que, encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto, tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra, que ele só consegue alcançar com grande esforço. Noites atrás, depois de longa conversa com minha mulher sobre o processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante o sono, para meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança: um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer minha di�culdade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de uma opção prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à superfície, exemplares — animados e inanimados — de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me �car ali, esquecido das aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de completude que acordei. Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá- lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas idéias, não sei quais associações �zeram-me lembrar do poema de Eugenio Montale: Talvez uma manhã andando num ar de vidro, voltando-me, verei cumprir-se o milagre: o nada às minhas costas, detrás de mim o vazio, como um terror de bêbedo. Depois como numa tela, acamparão de um jato árvores casas colinas para a ilusão costumeira. Mas será tarde já; e eu partirei calado entre os homens que não se voltam, com o meu segredo. Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas �las de carteiras paralelas e professores, a maioria deles incapaz de me mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável necessidade de buscar outro caminho de�agraram a certeza de que eu não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É certo: a verdade, sempre a encontrei em outro lugar, oposto àquele apontado pela escola. Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância deixou-me descon�ado. E a repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de conhecer o ignorado. Certamente não era à toa que as vestes da religiosa — notei bem enquanto ela me falava — refulgiam num branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado, e que depois se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no “ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz insólita e, em breve, com um novo olhar. A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres, a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta- nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência. O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma inesgotável. Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda não estão nomeados, quando ainda não foram classi�cados e diminuídos pelo homem. Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo está por ser descoberto.E sentia-me — espectador e personagem do meu sonho — como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória e buscar o que, por acaso, houvesse perdido. Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o real — para ele, o vazio, o nada —, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da realidade. Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele, a partir daquele sonho — e em todas as manhãs, esforçando-me para repetir o ritual onírico de maneira consciente — eu devesse calar-me “entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem olhar, e carregar comigo “o meu segredo”. A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado, esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de observação a cada momento, a �m de reencontrar, sob a mesmice do cotidiano, o caráter inusitado do real. Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é habitual — resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela trágica ou pueril, inocente ou terrível. De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os sonhos que carrego comigo — um patrimônio que cabe à lucidez decifrar —, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insu�a em minha consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver solitária entre os homens, carregando seu segredo? Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema — e não o silêncio —, então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda. Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a “ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela maioria. DEZ LIVROS QUE MUDARAM MINHA VIDA 1. De Euclides da Cunha, Os Sertões foi o primeiro livro que estudei com olhar de leitor malicioso — não no sentido de “má índole”, o mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”, “sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de português no velho Instituto de Educação, em Jundiaí. Quando comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível — o livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao meu lado. Foi, aos dezessete anos, o primeiro lampejo de que as melhores obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê no seu contato super�cial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir a musicalidade que a linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro estava além dos meus conhecimentos — tudo me impulsionava a ir adiante, a perseverar. 2. Descobri John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de aula na universidade. E a primeira aula do primeiro dia. Meu professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio, tirou o maço de Continental sem �ltro do bolso rasgado da camisa, acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e, olhando para o vazio, agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina, começou: A thing of beauty is a joy for ever… Quando terminou, o feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me vincular à terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que pudessem existir no meu espírito. Desde aquele dia, não passa um semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro poema de Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por Homero: era como se eu tivesse descoberto um novo planeta. 3. Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para Drummond. Em algum momento daquele primeiro semestre, interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio, e começou a declamar “Campo de �ores”. Comprei Claro enigma depois da aula. E descobri “Tarde de maio”, “Remissão” — nada resta do que escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o �m sem a injustiça dos prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”. 4. O início de A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte”. Eu não sabia que a visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe do que qualquer outro romance. Com Hermann Broch descobri que a �cção não precisava estar presa aos temas comezinhos da literatura brasileira, às historinhas pér�das, a permanentes universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras. 5 e 6. Lorde Jim e A fera na selva con�rmaram Broch. A grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos incautos como o melhor realismo. 7. Em algum momento da década de 1970 comprei Raízes da Criação Literária , de Edmund Wilson. Foi meu primeiro contato com uma crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao contrário, a erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram colocadas de forma clara — e o autor realmente dialogava com os livros. Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me, percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo e a semiótica. Wilson foi o �ltro que impediu minha contaminação completa. Na faculdade, forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland Barthes, eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada. 8. A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em A orgia perpétua , con�rmou o que eu intuíra ao ler Edmund Wilson: na análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase cientí�co, mas sem matar a obra, sem transformá-la num esquema, numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a linguagem, sem desvincular a obra da realidade. Vargas Llosa ensinou-me ainda mais: mostrou-me que o hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era um engodo. E por um simples motivo: o bom escritor carrega a ira de Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira, muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o vírus negativo que é o segredo da sua acessibilidade: para que um romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”. 9 e 10. Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de Carvalho me vacinou contra o marxismo e a intelectualidade materialista, hedonista e cética que ponti�ca na mídia e na universidade brasileiras. Depois de ler O imbecil coletivo ainda militei anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo permanecia — desculpem-me o chavão — uma ilha de lucidez. Fazia com Olavo deCarvalho o que o diretor do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da ditadura militar: guardava-o num armário bem fechado, em algum ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus próprios pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho seguirem destituídos de sentido. Ao mesmo tempo, percebia a tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos “companheiros” e sua prática cínica, aética. O imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a Isaiah Berlin — e então livrei-me do coscorão esquerdista. Olavo e Berlin foram meus guias no processo de rompimento de�nitivo não apenas com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver. Ambos são intelectuais completos. Minha leitura de Berlin começou por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em Pensadores russos , aula de crítica literária e cultural. Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que sempre estiveram à mão, obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é que justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda. Aliás, a esquerda tem se notabilizado na história exatamente por, chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais. Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se resume a desacreditar do marxismo. Seria muito pouco para dois pensadores excepcionais. Eles me fazem re�etir, como os outros livros que mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição humana — e cada página deles acrescenta algo à minha Weltanschauung . REFLEXÕES NO IMPÉRIO DOS FILISTEUS Respeito ao leitor Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece. Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certas políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros. Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer chegar ao ponto �nal do texto sem saber o que, exatamente, o articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a respeitar o leitor. Forma de hipocrisia Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo , Karl Erik Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa a�nidade e essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas palavras, �quei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, �cam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia. Papel da crítica Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização. Um subterfúgio verbal Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra “dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os críticos di�cultariam a renovação e a inovação na literatura. Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal, pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo “critérios estabelecidos”. A questão, na verdade, é outra. Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham no sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária, seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças, para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade, evitando adulações e idéias preconcebidas. E ambos devem agir, principalmente, com independência. Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica, certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e escritores cumprirem suas funções. “Verniz onírico” A crítica precisa reencontrar o caminho que possa salvá-la do discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão monista da obra literária e da própria realidade. É inacreditável que grande parte da crítica e da produção acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando publica Critique de la critique . Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o Todorov de Poétique de la prose , que foi publicado em 1971… Assim funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo — e a maioria só consegue papagueá-lo. À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como bem de�niu Thomas Pavel em A miragem lingüística , infelizmente pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas sua lição, no delicioso A literatura em perigo , é atualíssima: “Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”. Dupla desorientação O problema, entretanto, começa muito antes da universidade. Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã , de Graça Aranha, ou Bom Crioulo , de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um disparate. Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura. Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens lêem péssimos autores antigos como se fossem gênios —e péssimos autores contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura. Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que um jovem de quinze ou dezesseis anos não lê, por exemplo, Homero na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro; além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de Alencar... Mas é a escola que temos: claudicante como todas as instituições do país. Império de filisteus No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da idéia de que a realidade do país é irreversível. Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset completou seu trabalho de contaminação nas últimas décadas. A pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para �car. O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos �listeus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio �listeísmo”. Por isso mesmo não podemos �car em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio. Uma só resposta Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que, demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e, prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu próprio eu — e só então expressa suas idéias, seus sentimentos. É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser não só uma re�exão, mas de apontar caminhos, soluções, regras, quando não verdades. Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para as �ores das margens, numera as linhas — e fecha a página do caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O esquematismo refulge a cada linha. Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica literária. Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem branca, apressados e super�ciais. Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”. De quem o medíocre gosta? O relativismo, que hoje impera em todos nichos da cultura, chama de intolerante a quem possui certezas. Os fracos, temendo serem julgados, agem como preconizou Ernest Hello: acrescentam a cada frase uma perífrase açucarada: ‘parece que’, ‘ousaria dizer que’, ‘se é permitido expressar-se assim’. Hello, hoje desgraçadamente esquecido, está certo: “Ao medíocre agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre nenhum tema, que nada a�rmam e que tratam com respeito todas as opiniões contraditórias. Toda a�rmação lhe parece insolente, pois exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento das transições e dos matizes”. Competição de coxos Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis. À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos — o que apenas o tempo poderá dizer —, quando, depois de ler certa obra, vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja movido por uma pulsão sádica. E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada, protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer ou não fazer inimigos. Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, �cam satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a literatura, a vida intelectual. De minha parte, se considero um livro ruim, a�rmo claramente o que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de coxos, o primeiro que chega ao �nal continua sendo coxo, apesar de tudo”. Os dançarinos Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os incapazes, a �m de deixar mais espaço no salão para os bons dançarinos. Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para poucos dançarinos. Quem faz crítica literária aqui deveria trocar idéias, de maneira didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim. O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”. Polidez O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale. É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer. Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser uma estrutura coerente? Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o interlocutor, deixar a conversa �uir sem a prévia preocupação de provar este ou aquele ponto de vista. Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos já falaram. Então, por polidez, escuto até o �m seus argumentos. Mas o autor, ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas idéias e da forma como as expôs, já julgou a si próprio. O chavão da vanguarda O �ccionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de narratofobia . Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve abandonar o clichê, o lugar-comum. Quando digo clichê, não me re�ro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês vanguardistas. Um jovem de vinte anos que escreve algo parecido com “beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições de igualdadecom a melhor vanguarda. E há críticos e professores que dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar- comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na forma e no conteúdo, tremendo chavão. Patologias Mas há outros problemas na nossa �cção. Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática (muitos escritores, inclusive, justi�cam seu desconhecimento e sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as patologias atuais. Crítica e patrulhamento Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao a�rmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘— O racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis �lhos que escutam reggae e rock and roll o dia inteiro [...]”. O ensaísta terminava a a�rmação salientando o fato de que, caso tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com certeza, grande parte do valor. Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda �cariam felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo, se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para imigrantes desempregados. A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia. David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio “Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, a�rmou, sem receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”. O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia �el do real, é, no mínimo, insípida. Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta tais maneirismos. Buscando um “meio-termo justo entre os excessos de requinte e de simplicidade”, ele a�rma, no entanto, “ser difícil, senão impossível, explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais ‘perigoso’”. Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual. Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parem de escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”. No atoleiro moral Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a maldade”. A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal. Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar interesse? O problema da re�exão de Anne Rice é que ela só exprime o senso comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais interessante que a maldade. A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados — do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do que a maldade. Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a �gura do egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na �cção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia, também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do século XX elevou à categoria de deus. Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente cultua o mal — inquieta, perturba, estimula. Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido, propagandeado. A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no atoleiro moral — e não querem que ele saia daí. Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que pretendem aprisioná-lo. Fracasso, vileza e perversidade Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça. Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea — relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só valorizam acrobacias lingüísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia . Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade. NARRATOFOBIA — OU O PAVOR DE NARRAR Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos. Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche. A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista, mas pedante e arti�cial, além de subserviente: nasce para agradar a uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis. Mas serei didático. Vamos a um exemplo que tornará mais compreensíveis os parágrafos acima. A vida, muitas vezes, parece um indistinguível conjunto de ausências. Ao rememorarmos, no �nal do dia, tudo o que �zemos, percebemos como a reconstituição �dedigna dos nossos atos é impossível. Algo nos escapa; às vezes, um detalhe importante. E, ao tentarmos realizar o balanço do que restou em nossa memória, descobrimos que a fatia de realidade à qual procuramos acrescentar nossa marca — a ín�ma seqüência do real que, revisitada, gostaríamos de vislumbrar e concluir,com absoluta certeza: “Passei por aqui, toquei este objeto, comuniquei-me com este ser” —, essa parcela de verdade praticamente inexiste, como se a vida não fosse mais que um vôo rasteiro, capaz apenas de tatear super�cialmente o existir. Uma citação dos diários de Liev Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897, utilizada por Viktor Borisovich Chklovski em seu ensaio “A arte como procedimento”, pode elucidar a sensação de desconforto que é inseparável do nosso cotidiano: Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes, não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido. Entre os inúmeros comentários de Chklovski a este trecho, especialmente um chama a atenção, pelo teor de verdade que o estudioso russo concentra em uma única frase: “A automatização engole os objetos”. O desejo daqueles que possuem um mínimo de autoconsciência é, sem dúvida, de que todos os atos só se concretizassem depois de uma re�exão prévia, cuja intensidade fosse su�ciente para revelar as mais secretas intenções: a gama de condicionamentos ocultos, sorrateiramente, sob a aparência de naturalidade que forra o viver. E, acrescento, não bastaria que conhecêssemos as razões que nos impulsionam, mas seria imprescindível concentrar a atenção em cada uma de nossas decisões, no exato momento em que agimos, além de prever as possíveis conseqüências de nossos atos. Se tal irrestrita consciência fosse possível, cada insigni�cante gesto nasceria apartado de toda banalidade. Sabemos, contudo, que não é assim. E estamos cientes de que o estranhamento de Tolstói é um sintoma que experimentamos com relativa freqüência. A arte, no entanto, pode nos ajudar no sentido de superarmos esse distanciamento em relação à vida. Ela detém o poder de lacerar a banalidade ou, no que se refere à literatura, criar uma realidade paralela de tal maneira envolvente que, ao despertar em nós o que costuma ser condenado à letargia (por nossa limitada capacidade de percepção), romper o automatismo do cotidiano e conceder signi�cação, muitas vezes inusitada, ao real. Chklovski fala exatamente sobre isso, ao comentar o trecho de Tolstói: E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a di�culdade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um �m em si mesmo, e deve ser prolongado [...]. As a�rmações de Chklovski são conhecidas. Suas idéias foram disseminadas no bojo das correntes estéticas que, de um modo ou de outro, se inspiraram no formalismo russo ou se �liaram a seus princípios. No entanto, foi graças a tal disseminação que essa teoria — utilizada, no caso acima, para explicitar as qualidades de Tolstói — tornou-se regra absoluta. E, como todas as regras, reduziu a riqueza das propostas de Chklovski a um só ponto: “O procedimento da arte é o procedimento de aumentar a di�culdade e a duração da percepção”. Não bastasse tal reducionismo, os reprodutores do pensamento de Chklovski desprezaram o fato de que os exemplos citados no ensaio, extraídos da �cção de Tolstói, não apresentavam uma leitura penosa, árdua ou cheia de obstáculos. Esses repetidores cegos preferiram entender “di�culdade” como “di�cultar a leitura a qualquer custo” — e esmeraram-se no sentido de esquecer, por exemplo, a ponderação que Chklovski faz: “[...] A liberação do objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios; neste artigo, quero indicar um destes meios do qual quase que constantemente se serviu Tolstói [...]”. À evidência de que Chklovski não tem a pretensão de expor uma receita sobre como escrever textos literários — ele não só enaltece o estilo claro, plenamente inteligível do autor de Anna Kariênina , como insiste em dizer que seu objetivo é apresentar apenas “um” dos meios utilizados — devemos acrescentar a péssima leitura que alguns escritores, críticos e acadêmicos �zeram do ensaio: entenderam, repito, o termo “di�culdade” de forma extremamente simplista; submeteram o trabalho do teórico a um raciocínio esquemático; e a minuciosa análise do texto tolstoiano foi colocada de lado, certamente para que não maculasse a excelência do novo mandamento. Essa simpli�cação é prática comum, não só em teoria literária. Dilui-se a complexidade para se adquirir uma certeza, a receita infalível sobre quais procedimentos devem ser seguidos — neste caso, para se criar obras realmente “modernas”. A maioria dos mestres mostra-se pródiga nesse sentido, e a repetição constante gera, é claro, resultados medíocres, desalentadores. No caso especí�co da literatura, tal regra tem servido a uma perigosa misti�cação: a de que a verdadeira obra de arte é difícil de ser compreendida. Essa mentira resultou — e continua a resultar — em escritores que, para cumprir o dogma, especializam-se em erigir a linguagem à condição de protagonista da obra. A obediência cega à suposta lei gerou — e continua a gerar — obras sem enredo e sem personagens, ou narrativas nas quais enredo, personagens, �uxo de tempo, con�guração do espaço, etc. amontoam-se num verdadeiro caos. Dessa forma, parte da produção literária distanciou-se radicalmente do receptor da mensagem — o leitor —, transformando-o em um ser incapacitado para decodi�car o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com di�culdades sobre di�culdades. A falsi�cação da teoria de Chklovski foi transformada em uma espécie de tormento, nova técnica de tortura, cujo objetivo é impedir que o leitor cumpra seu papel de co-autor. Sem dúvida, quando a linguagem serve apenas à reinvenção de si mesma, esquecendo-se do ato de narrar, a leitura — o exercício de recriar a obra — torna-se impossível. No afã de corresponder à mentira disseminada em nome de Chklovski, inúmeros escritores se concentram em elaborar a linguagem de tal modo que, ao término de seus esforços, são compreendidos apenas por si próprios ou, quiçá, por um seleto grupo de iluminados. Obedecendo a um atavismo desolador, esses escritores repetem o que Antonio Candido detectou inclusive nos primórdios da nossa literatura: a situação arti�cial em que os próprios escritores são “ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio”. Fechados em si mesmos, presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a cada amanhecer, bajulando-se em suas seitas particulares, tais escritores parecem buscar o que Gustave Flaubert expressou certa vez: “O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a Terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.” Inebriante devaneio, sem dúvida. Mas apenas devaneio. Partindo do afã de di�cultar, a qualquer custo, a recepção da obra literária, e passando por centenas de outras simpli�cações, semelhantes à quimera �aubertiana e repetidas ad nauseam , chegamos ao que diagnostico como narratofobia — o pavor, a paúra de narrar —, reforçada, em inúmeros casos, por evidente insegurança no uso da linguagem. (É risível, aliás, o caradurismo de alguns escritores, que justi�cam seu desconhecimentoe sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas. Seria bom lembrá- los de que esses argumentos caíram em desuso quando soaram as últimas patacoadas da Semana de 22.) Os resultados de tal fobia são sempre nocivos para o leitor, abandonado diante da página impressa, condenado ao deserto no qual a imaginação, por mais que se esforce, não consegue dar conta de construir o que seria tarefa do escritor. As conseqüências desse tipo de literatura, no entanto, não se esgotam na leitura obscura, forçosamente a�itiva. Nossos poucos leitores, ávidos por uma literatura que os conduza para longe da mesmice e da banalidade, encontram, nas livrarias, as seções de literatura brasileira abarrotadas de textos herméticos. É fatal, portanto, que sejam raptados para o mundo da subliteratura, tornando-se reféns dos romancinhos kardecistas e de outras tantas panacéias na forma de brochura. Quando os escritores se submetem aos falsos mandamentos do “bem escrever”, quando se fecham na permanente recriação de um dialeto exclusivo, quando optam pelo purismo doentio, não apresentam apenas graves sintomas de narratofobia, mas certamente contribuem para manter os leitores presos ao cotidiano inconsciente, capturados pelo estranhamento e pelo automatismo que Liev Tolstói descreveu com perfeição. II — A tradição universal NARRADOR MALICIOSO — THOMAS BERNHARD EM , AO DISCURSAR DURANTE A CERIMÔNIA em que recebeu um prêmio de incentivo do governo austríaco, Thomas Bernhard expressou-se de maneira categórica: “Os séculos são pobres de espírito, o demoníaco em nós é a prisão perpétua da terra dos pais, onde os componentes da tolice e da brutalidade mais intransigente tornaram-se necessidades cotidianas. O Estado é uma estrutura condenada permanentemente ao fracasso; o povo, uma estrutura condenada sem cessar à infâmia e à fraqueza de espírito”. E prosseguiu, sem deixar qualquer margem de dúvida em relação ao seu pensamento: “Somos austríacos, somos apáticos; somos a vida, a vida como indiferença à vida, vulgarmente compartilhada; somos, no processo da natureza, a loucura das grandezas, o sentido da loucura de grandeza como porvir. Não temos nada que dizer, exceto que somos lamentáveis […]”. Ao �nal do discurso, num clima de absoluto mal-estar, o ministro da Educação e os responsáveis pelo prêmio retiraram-se do local. O incidente, um marco na biogra�a do autor, é emblemático no sentido de revelar não só o lado corrosivo de uma personalidade, mas também a veemência que toda a obra de Bernhard expressa. Não por outra razão, se iniciarmos a leitura de Origem pelo relato “A causa” (publicado em 1975), deixando para o �m o capítulo “Uma criança” (publicado em 1982) — ou seja, se seguirmos a ordem original em que os textos foram divulgados pelo autor e não a proposta pela edição brasileira —, veremos que o primeiro intuito da narração é radiografar, a seu modo, a realidade daqueles anos entre 1943 e 1945, durante os quais Bernhard estudou em um internato para meninos — “cárcere projetado com re�namento”, diz ele —, sob o comando de um o�cial-modelo do exército hitlerista e da SA, a temida milícia paramilitar do Partido Nacional-Socialista. Naquela Áustria anexada à Alemanha, na Salzburgo “nazista até os ossos”, nasce o país apático que Bernhard condenaria, décadas mais tarde, não só em discursos e entrevistas, mas em todos os livros, até sua morte, em fevereiro de 1989. Hipocrisia e provincianismo Para compreendermos, parcialmente, o que movia Bernhard — e termos uma visão mais ampla do universo focalizado em Origem — é importante recuperarmos os fatos históricos centrais daquele período. Com o nascimento da República — depois da renúncia de Carlos I, o último imperador austro-húngaro, em 1918 —, a Áustria foi reduzida a um território diminuto, de economia frágil, e que passaria a experimentar crises cada vez mais graves, até o assassinato pelos nazistas, em 1934, de Engelbert Dollfuss, substituído na chancelaria por Kurt von Schuschnigg, que, isolado pelos países do Eixo, renunciaria em 1938, permitindo a entrada triunfal de Hitler e a anexação da Áustria à Alemanha, rati�cada por um plebiscito no qual os nazistas obtiveram 99% dos votos. É exatamente nesse período que têm início os anos de formação de Bernhard. Ele conhecerá não só o despotismo nazista, mas, posteriormente, as humilhações sob as tropas aliadas e os difíceis anos de reconstrução do país, com sucessivas crises econômicas, até que a Áustria começasse a se recuperar, entre o �nal da década de 1950 e início dos anos 60, quando o escritor, adulto, já respondera a seu primeiro processo por difamação (1955), em conseqüência de um artigo contra o teatro de Salzburgo, e migrava do mundo da música (Bernhard foi aluno de canto, encenação e arte dramática no Mozarteum de Salzburgo) para a literatura e a dramaturgia (seu primeiro romance, Gelo , data de 1963). Na verdade, o apoio incondicional ao nazismo permaneceu como uma nódoa na história da Áustria majoritariamente católica. E é sob esse manto de hipócrita consensualidade que as forças políticas presentes nas décadas de 30 e 40 continuarão a atuar, agora sob novos disfarces. Em 1986, por exemplo, eleito presidente da Áustria pelo Partido Popular, Kurt Waldheim foi acusado de participação em crimes de guerra nazistas, mas permaneceu teimosamente no poder até 1992, condenando o país a seis anos de isolamento internacional. Some-se a este panorama o provincianismo desalentador criticado por inúmeros intelectuais e teremos completado o cenário em que Bernhard gerou toda a sua obra — uma Áustria que parecia ter esquecido Albert Schnitzler, Hermann Broch e Robert Musil, para �carmos apenas entre os escritores. Narrador perverso À parte o cenário histórico, os relatos presentes em Origem inspiram a descon�ança inicial que toda narrativa autobiográ�ca desperta, pois, à medida que a leitura avança, torna-se claro que nos deparamos com a voz de um narrador cuja preocupação central não é contar a vida do autor. Essa suspeita transforma-se em certeza quando, depois de lermos os quatro relatos �nais do livro (os primeiros a serem publicados na Áustria), passamos à leitura de “Uma criança”. Neste, surge uma voz coloquial cujo objetivo é, aí sim, principalmente relatar os fatos em um célere �uxo de acontecimentos, como se, �nalmente, Bernhard se dispusesse a escrever sua autobiogra�a. O melhor nos aguarda, contudo, em “A causa”, “O porão”, “A respiração” e “O frio”, quando nos deparamos com um discurso prolixo, no qual há deliberada intenção de ampli�car os fatos por meio do estilo persuasivo, hiperbólico, marcado de contínuos incrementos que somam, linha a linha, novas camadas de signi�cados ao mesmo fato, como se o narrador construísse uma espiral ascendente, acrescentando, a cada nova curva, uma série de sinônimos e de imprevisíveis acumulações. O leitor vê-se, assim, enredado por sucessivos acréscimos de ênfases, conglomeradas nessa espiral audaciosa que busca, página a página, criar um clima de estranhamento e miti�cação. Torna-se evidente, no transcorrer dos blocos monolíticos em que os relatos se organizam, o objetivo perverso do narrador. O texto, impregnado de disfemismo, numa tensão incansável, atribui, de maneira exaustiva, características exageradas e negativas aos acontecimentos e aos estados de ânimo. Amplia-se o drama do “eu” protagonista, de forma a se expressar uma condenação absoluta. A questão é que não se encontra em pauta a exposição da verdade. O narrador tem consciência de que “toda história sempre foi falsi�cada e passada adiante como tal”, e caracteriza a si mesmo como parcial e provocador: Minha tarefa só pode ser a de comunicar minhas percepções, tenham elas o efeito que tiverem, relatar sempre as percepções que me pareçam dignas de comunicar aos outros, aquilo que estou vendo ou aquilo que ainda hoje trago na memória, quando, como agora, volto os olhos para trinta anos atrás; se muita coisa já não me é clara, outras se revelam com demasiada nitidez, comose tivessem acontecido ontem. A �m de se salvar, os interlocutores não acreditam, e com freqüência descrêem do que há de mais óbvio. As pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser […]. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Em um longo trecho entre as páginas 242 e 244, o narrador enfoca claramente o problema da verdade e da mentira, tratando-as como conceitos indignos de con�ança: A verdade, só a conhece quem foi afetado por ela, penso eu; e se desejar comunicá-la aos outros, será de pronto transformado num mentiroso. […] Escrever sobre uma época, um período da existência […], é coletar centenas, milhares, milhões de falsidades e falsi�cações conhecidas daquele que escreve como verdades, e nada além de verdades. […] O descrito clari�ca algo que decerto corresponde ao desejo de verdade daquele que descreve, mas não à verdade em si, porque essa não é possível comunicar. Mais à frente, ele concluirá, asseverando a supremacia da narração em si mesma, desvinculada do que poderia ser ou não avaliado como verdadeiro: “A razão já me proibiu há muito tempo de dizer e escrever a verdade, porque fazê-lo é apenas dizer e escrever uma mentira, mas, para mim, escrever é necessidade vital, e é por isso mesmo, por esse motivo, que escrevo, ainda que tudo que escreva nada mais seja do que mentira que, por meu intermédio, é transmitida como verdade.” Ora, esse narrador, para quem “apenas o desavergonhado é capaz de escrever, […] só o desavergonhado supremo é autêntico”, guarda consigo a consciência de que até mesmo “a língua é inútil, quando se trata de falar a verdade”, pois ela “permite àquele que escreve apenas uma aproximação sempre e somente desesperada — e, por isso mesmo, duvidosa — aproximação em relação ao objeto, só re�etindo o autêntico falseado, o terrivelmente distorcido”. Mas, apesar de sua justi�cada descon�ança, ele nos oferece, em sua insistência pessimista e dramática, por meio de reiterações as�xiantes, contaminadas de ceticismo, páginas capazes de nos libertar da escravidão do senso comum, alertando-nos de que só “a desesperança” nos traz “clareza sobre as pessoas, as coisas, as relações, o passado, o futuro […]”. Há trechos inesquecíveis, seja por sua crueza, seja pelo lirismo consternado, pleno de mágoa e de lucidez cortante: o menino que exercita o violino entre as estantes lotadas de sapatos suados e que pensa apenas em suicidar-se; o encontro com a mão decepada de uma criança, em meio aos prédios destruídos por um bombardeio aéreo; a permanente repugnância pela escola; o retorno ao internato nacional- socialista, depois do �nal da guerra, agora transformado em escola católica, na qual ele encontra a mesma realidade do período nazista, mas sob um cenário diferente (“onde antes estivera pendurado o retrato de Hitler, dali pendia uma grande cruz”); o contraditório relacionamento com a mãe; o amor absoluto pelo avô, �gura magní�ca do livro; as cenas terrivelmente depressivas na casa de repouso de Grossgmain e no sanatório de Grafenhof; a descoberta de Dostoiévski, ao ler Os demônios . Trechos nos quais ele nos hipnotiza com sua mórbida retórica. Dessas páginas, nas quais o narrador exercita até o paroxismo o método que propõe a si mesmo — “decompor, desmontar e desagregar os objetos de minha contemplação” —, não emerge a verdade certamente almejada por alguns leitores, que devem buscá-la na biogra�a escrita pelo tradutor espanhol de Bernhard, o premiadíssimo Miguel Sáenz. Esse narrador despojado de qualquer inocência nos previne de que “somos tudo e nada”, e que “no exato meio-termo entre uma coisa e outra, sucumbimos cedo ou tarde”. Ele disseca a vida com esmero e frieza, convidando-nos a olhar, sem temor, para o caos e a escuridão que se escondem nas dobras da existência — e também dentro de nós. ZEN E MELANCOLIA — YASUNARI KAWABATA A citação de certa obra dedicada à gestualidade japonesa pode expor uma das características desse povo que, apesar de todos os esforços do Ocidente, preserva sua face adoravelmente enigmática: “O que é particular ao Japão é que se as mulheres exibem sua beleza, deixam de ser belas”. A frase pertence ao antropólogo e crítico literário Michitaro Tada, cuja obra — A cultura gestual japonesa — ganha ainda maior signi�cação graças a Francisco Calvo Serraller, que explica os interstícios do substantivo “gesto” para um japonês: “Movimento corporal controlado e, em particular, marcado pela suavidade”. Tais citações, se transplantadas à literatura, lembram a obra de Yasunari Kawabata, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1968. Seu estilo despojado, sem arroubos, no qual a contenção se repete a cada parágrafo, deu vida a inúmeras narrativas, como os romances Mil tsurus e Kyoto . No caso de Kawabata, a aparente economia de recursos esconde, entretanto, séculos de elaboração �losó�ca, literária e espiritual, em relação aos quais o escritor não esconde manter orgulhosa dívida, como explica no discurso pronunciado durante a cerimônia do Nobel, quando empreende uma viagem às tradições que o formaram, em cuja base encontramos o zen-budismo — ou simplesmente zen. As duas primeiras citações do discurso, utilizadas para exempli�car como o autor vê e entende o povo japonês, pertencem a monges budistas. Entre eles, Dogen, religioso do século XIII, fundador de uma das vertentes do zen, a Soto Zen: Na primavera, �ores de cerejeira. No verão, o cuco. No outono, a lua. E no inverno, a neve fria e transparente. Para Kawabata, nesse poema “as imagens mais comuns e também as palavras mais comuns estão enlaçadas umas nas outras sem vacilação, e transmitem, assim, a verdadeira essência do Japão”. Ao ocidental que desconhece a história desse país e os princípios do zen, o poema soará, segundo advertência do próprio Kawabata, como “um encadeamento descuidado, vulgar, medíocre, uma forma sumamente tosca de apresentar imagens de paisagens naturais características das quatro estações”. No entanto, o leitor aberto à percepção dessa desconcertante seqüência de imagens verá o que Kawabata distingue: “Ao contemplar a beleza da neve, da lua cheia, das cerejeiras em �or, isto é, quando despertamos ante as belezas das quatro estações e entramos em contato com elas, quando sentimos a felicidade de nos termos encontrado com a beleza, é quando mais pensamos em quem amamos, e desejamos compartilhar com eles essa felicidade.” Além de todos esses sentimentos, os versos retratam o que poderíamos chamar — talvez erroneamente — de a essência do zen, caminho para o reencontro das alternâncias que são indissociáveis do movimento da vida e do cosmo; e a tentativa, tão própria do zen, de recuperar a unidade primeva, há muito perdida. Outro poema, também citado por Kawabata, pode esclarecer a questão: Se meu coração puro brilha, a lua pensa que essa luz lhe pertence. Escrito pelo monge Myoe (1173-1232), esta delicada jóia resume o que o zen busca: superar a dicotomia entre sujeito e objeto, um estado de iluminação interior no qual toda lógica é rompida, alcançando-se o satori , “súbito relâmpago da consciência de uma nova verdade jamais sonhada”, de acordo com Daisetz Teitaro Suzuki. Ou, como nos explica Kawabata: “Vendo a lua, o poeta se converte na lua; a lua, vista pelo poeta, chega a ser o poeta. Ao submergir-se na natureza, forma um todo com ela. Assim, a luz do coração puro do monge, enquanto este medita no Pavilhão durante a escuridão que precede o amanhecer, transforma-se, para a lua do amanhecer, em sua própria luz.” Esses poemas passaram por processo semelhante ao dos escritos pelos místicos e santos espanhóis Teresa de Ávila e João da Cruz: compostos para expressar uma busca essencialmente espiritual, acabaram sendo incorporados à tradição literária de seus países. Assim, se um católico contemporâneo lê os poemas de São João daCruz para colocar-se em estado de predisposição à via mística que esse reformador da Ordem Carmelita chamou de Subida do Monte Carmelo, os versos de Dogen e Myoe despertam, nos que se iniciam na trilha do zen, a sede dessa verdade cujo fulcro se encontra nas rachaduras do efêmero. No caso especí�co dos poemas citados por Kawabata, eles não ocultam uma fórmula mágica ou algum ensinamento a ser transmitido de maneira velada, pois, como diz o escritor, “a iluminação não provém do ensinamento, mas da visão interior. A verdade está na ‘escritura não escrita’, está ‘fora das palavras’”. A ponte de um sonho As raízes da arte de Yasunari Kawabata encontram-se também estreitamente ligadas ao Genji Monogatari ( A história de Genji ), primeiro romance da literatura mundial, escrito no princípio do século XI por Shikibu Murasaki, dama da corte do imperador. O escritor não mede elogios à obra: A história de Genji “marca o ponto mais alto alcançado pelo romance japonês. Não existe obra literária comparável a essa, nem entre as antigas nem entre as atuais. [...] Foi, penso que por sua índole, o livro do qual mais se embebeu meu coração.” Kawabata descobriu no romance o “esplendor da cultura cortesã”, quando “aqueles dias gloriosos” da Era Heian (794-1185) estavam começando a entrar em decadência. O livro ocupou um papel marcante em sua vida, inclusive nos meses �nais da Segunda Grande Guerra, período no qual ele lia diariamente o Genji , compelido a um exercício que servisse não apenas como escape, mas lhe concedesse a certeza de que o Japão, ao inquirir o passado, encontraria formas de superar os bombardeios, as mortes e a provável derrota. Essa obra inspirou os principais escritores do Japão, como Junichiro Tanizaki, que a traduziu para a língua japonesa moderna. No caso de Kawabata, exerceu evidente in�uência na formação do autor, acrescentando ao sentimento de impermanência transmitido pelos poemas zen uma atmosfera em que a dor predomina sobre o prazer, pois o clima de tristeza perpassa todo o romance, e o Genji é a evocação de um mundo que nunca existiu exatamente da forma que Murasaki o descreve, como a�rma Donald Keene, um dos principais estudiosos da literatura japonesa: Dentro do tempo que o romance abarca, encontramos um tom cada vez mais pessimista, e quando morre o herói, o singular Genji, seus sucessores são apenas uns jovens não mais que agradáveis [...]. Nesse e em muitos outros aspectos, o romance descobre uma obsessão com a idéia de tempo, obsessão análoga à que se pode observar em grande parte da poesia japonesa. O esplendor e a beleza que caracterizaram cada aspecto da carreira do príncipe Genji se dissipam. Até mesmo ao contemplar alguma graciosa bailarina ou as �ores que caem de uma bela árvore há sempre a consciência quase penosa de que tudo tem de acabar. [...] Ainda quando o romance mostra-se pleno de humor e de encanto, a impressão dominante é de tristeza, por causa, em grande parte, dessa insistência sobre o correr inexorável do tempo. Outro estudioso do romance, Antonio Cabezas, experiente tradutor de literatura japonesa em língua espanhola, diz que “o último capítulo se intitula ‘A ponte de um sonho’, e esta ponte não é outra coisa que a vida”. Um �nal cujo desgosto é ampliado pela morte prematura de Murasaki, que não conseguiu terminar a obra. A irrealidade branca Alguns aspectos da vida de Yasunari Kawabata certamente foram responsáveis por predispô-lo a tais in�uências, moldando essa personalidade que nunca conseguiu superar a propensão aos estados depressivos. O escritor nasceu em 1899. Logo após, em 1900, perdeu o pai e, no ano seguinte, a mãe. Ele e sua única irmã, quatro anos mais velha, passam, então, a ser criados por parentes: Kawabata, pelos avós maternos. Sua irmã também morrerá pouco tempo depois; e, logo a seguir, com a idade de sete anos, o menino perderá a avó, restando-lhe acompanhar, no período da adolescência, a lenta derrocada do avô, atingido pela cegueira. Em seu prefácio à coletânea das cartas trocadas entre Yukio Mishima e Kawabata, Diane de Margerie a�rma que “preso entre o vazio dos seres desaparecidos e uma agudeza matemática para a observação, Kawabata vê-se submerso em uma irrealidade branca, uma bruma que ele trata de penetrar para sobreviver, uma necessidade aguda de ver, de captar, de contemplar, para remediar a ausência da memória e a mutilação do olhar”. Em seu estudo sobre o escritor — Concepção estética de Kawabata Yasunari em ‘Tanagokoro no Shosetsu’ —, a professora e tradutora Meiko Shimon reforça a tese de Margerie, a�rmando que Kawabata jamais conheceu o semblante da mãe, de quem não restara nenhuma fotogra�a. Ora, se somarmos todos esses diferentes aspectos talvez possamos começar a entender que caminhos levaram o escritor a se tornar, no Japão do século XX, quem melhor retratou o “mundo �utuante” — expressão cara aos japoneses e aos estudiosos dessa cultura —, mundo de ilusões, de aparências, onde a consternação se alterna com o gozo, o transitório impera e o belo é marcado de fugacidade. Mundo ao qual Yasunari Kawabata concedeu um traço particular de melancolia, ainda que buscasse criar, com sua escritura de parágrafos breves e orações predominantemente coordenadas, a iluminação de um haicai, o traço rápido da pintura sumi-ê, que brota da mente vazia de vontades do pintor, ou um estado búdico de contemplação. A cerimônia do chá Em Mil tsurus , o autor descreve um Japão dividido entre suas tradições e a ocidentalização do pós-guerra. Kikuji, o jovem protagonista, é a �gura do homem perplexo, imaturo e tímido, que não consegue abandonar a infância. Aos oito ou nove anos, levado pelo pai à casa de uma de suas amantes, presencia o que jamais esquecerá: Chikako, a amante, com o seio à mostra, corta, sobre uma folha de jornal, os pêlos da mancha escuro-arroxeada, do tamanho de uma palma da mão aberta, que lhe recobre metade do seio esquerdo e se estende até a boca do estômago. Enquanto os pêlos caem sobre o jornal estendido no chão, o menino escuta os ratos que correm no sótão e vê, ao fundo, o único elemento de beleza: na varanda interna, uma cerejeira em �or, símbolo de pureza e também de perenidade da existência. Essa dicotomia, repetindo-se em diferentes momentos, fará a narrativa oscilar entre bem e mal, entre o Japão pré-guerra e a vulgarização dos costumes provocada pela abertura sem controle ao Ocidente. A história começa, no entanto, com Kikuji já adulto, lembrando o pai falecido e dirigindo-se ao templo Engakuji para participar, a convite de Chikako, de uma cerimônia do chá. Antes de entrar no salão reservado à cerimônia, o narrador mostra a bagunça e o barulho que maculam o ambiente. Logo depois, o timbre de voz indiscreto de Chikako e sua incontrolável maledicência completam a cena. O leitor ocidental, contudo, só compreenderá o papel desses elementos antagônicos se conhecer o signi�cado da cerimônia, indissociável do zen-budismo, exatamente como tantos outros aspectos da cultura japonesa: “Na cerimônia do chá, o chá é mais um coadjuvante neste universo que almeja, através do exercício de cada movimento, chegar à perfeição do esquecimento de si, ao se pôr a serviço do homenageado, de se tornar magia o tempo que escorre em movimentos de ângulos precisos, uma oferenda de paz num mundo- fora-do-mundo”, explica Madalena Hashimoto (em Pintura e escritura do mundo �utuante ). Assim, ao descrever a cerimônia que é transformada por Chikako apenas em um motivo a mais para rir, falar alto e mexericar, Kawabata denuncia o Japão que parece esquecer de si mesmo ao abraçar, cegamente, novos valores. Durante a cerimônia, Kikuji conhecerá outra amante do pai, a viúva Ota, de 45 anos, que se torna sua amante e o desperta para formas inesperadas de prazer: “Nunca tinha imaginado que uma mulher pudesse ser tão suavemente receptiva. Uma submissão sedutora, uma obediência sem deixar de instigar, uma receptividade que o sufocava em cálido aroma”. O erotismo de Kawabata é sempre diáfano. Neste caso, ele descreve, mais que a experiênciaviolenta da paixão, um processo de amadurecimento. Às vezes, as descrições aproximam-se do desejável repouso no ventre materno: “Ele não sabia que o prazer de uma mulher podia ser assim incessante, como a suave ondulação das águas do oceano”. Chikako, no entanto, intromete-se em tudo, destilando seu veneno e tornando-se o ponto de desequilíbrio do enredo, sombra sempre à espreita, com sua mancha recoberta de pêlos a denunciar a pureza perdida de um Japão que luta para reencontrar seu caminho. Ao mesmo tempo, Kikuji é o jovem apartado das tradições e da memória paterna, tentando inutilmente negar o pai — um especialista na cerimônia do chá — ou, ao menos, superá-lo. Depois da morte da viúva, que se suicida, Fumiko, sua �lha, também se torna amante de Kikuji. Virgem de gesticulação contida e adorável submissão, aspecto frágil e nítido pendor para o trágico, ela se transforma na �gura do Japão que o protagonista hesita em redescobrir. Paralelamente, uma quarta mulher cruza o caminho de Kikuji: Iukiko, com seu lenço de tsurus (grous), ave símbolo da longevidade e da felicidade, a atestar, com sua delicadeza, o caráter perene das tradições e do amor. A obra está permeada de referências às cerâmicas utilizadas na cerimônia do chá, quase sempre peças artesanais seculares. Kawabata concede-lhes vida, torna-as receptivas às emoções. As lágrimas da viúva Ota escorrem sobre elas, reacendendo a memória dos amores passados. As cores dos utensílios se repetem na �sionomia dos personagens ou na natureza, formando, em diversos trechos, cenários de colorido mágico. Assediado constantemente pela imagem da mancha de Chikako, enredando-se nas dissimulações dessa mulher grosseira, Kikuji tateia a realidade em busca de uma saída, de uma solução. Entre o desprezo às suas raízes, a visão da morte e a formidável atemporalidade das cerâmicas — a obra humana que sobrevive ao próprio homem, a arte que sobrevive à destruição do Japão tradicional — ele se liberta ao desvirginar Fumiko, que o conduz a “um abismo de encantamento e torpor”. O �nal, contudo, desconcertante como todos os �nais de Kawabata, contribui para rea�rmar a intenção do autor: “É errôneo considerar meu romance Mil tsurus como uma evocação da beleza formal e espiritual da cerimônia do chá. É uma obra crítica, uma expressão de dúvida e uma advertência frente à vulgaridade em que caiu a cerimônia.” Kawabata constrói suas narrativas por meio de pequenos quadros que se sucedem, encerrando os parágrafos quase sempre num instante de suspensão da realidade: “Kikuji passou por detrás dela, com o intuito de abrir a porta de vidro que dava para o quintal. Veio-lhe o suave aroma das peônias brancas dispostas no vaso sobre a mesa. A moça curvou-se de leve como se lhe desse passagem.” John Lewell, estudioso do escritor, citado por Meiko Shimon, diz que Kawabata “raramente estruturou seus romances com um começo, um meio e um �m, preferindo desenvolver uma rica textura linear, algo como versos encadeados”. Mas há outro aspecto que chama a atenção: a imaterialidade de inúmeros trechos cria um universo de emoções, fatos e comportamentos que seguimos, inebriados, apenas para, no �m, saber muito pouco. Esse caráter insubstancial também se deve à voz do narrador: ou ele nos esconde algo ou encontra-se “limitado pelas ignorâncias, dúvidas e erros dos personagens”, ou apenas — jamais saberemos — trata-se de “um observador igualmente imperfeito”, comenta Antonio Cabezas. Assim, enquanto os elementos do romance levitam diante de nós, somos reconduzidos ao sentimento de impermanência e à sensação de que o vazio se encontra no âmago de todas as coisas. A continuidade do viver A história de Kyoto transcorre no período imediatamente posterior à retirada das tropas de ocupação norte-americanas. A jovem Chieko, abandonada quando ainda bebê, é criada como �lha por Takichiro Sada e sua esposa, proprietários de uma pequena loja de quimonos. Sada é um artista frustrado e assiste, devido à ocidentalização do país, à decadência de seu comércio. Chieko, “na plenitude da mocidade”, conhece, por acaso, sua irmã gêmea, Naeko, de quem estava separada desde o nascimento. Apesar de os pais adotivos não terem escondido que Chieko havia sido abandonada, ela sempre alimentou dúvidas em relação à sua verdadeira origem. Depois que conhece Naeko, alegra-se e, ao mesmo tempo, sofre por saber que seus verdadeiros pais eram pobres e estão mortos. Deseja aproximar-se da irmã, mas as diferenças de classe e o complexo de inferioridade de Naeko di�cultam o relacionamento. Shin’ichi, companheiro de passeios de Chieko, ao partilhar das dúvidas de sua amiga, expressa a imagem que melhor caracteriza a dor dos principais personagens de Kawabata: “Nascer neste mundo signi�ca ser abandonado por Deus”. As páginas iniciais do romance são exemplos da delicada escritura de Kawabata. Com suas frases curtas e objetivas, ele adiciona, sem qualquer pressa, camada após camada, novos elementos à descrição da primavera, introduzindo-nos em um cenário no qual Chieko e a natureza acabam por se fundir numa fascinante empatia. Se em Mil tsurus a ocidentalização é enfocada de maneira oblíqua, em Kyoto o escritor torna-se implacável. Logo após a saída dos ianques, todos os aspectos da vida estão deteriorados: dos motivos que enfeitam os quimonos à organização da economia, passando pelos costumes. No templo Nenbutsuji, entre centenas de lápides de pedra, erguidas em memória dos mortos desconhecidos, fazem-se sessões de fotogra�as, nas quais “as mulheres utilizam estranhos vestidos semitransparentes”; antigas tecelagens familiares, responsáveis pela confecção de tecidos que são exemplos de esmero artesanal e intuição artística, acabam substituídas por teares mecanizados, cujos produtos, feitos em série, de baixa qualidade, seguem os padrões ocidentais de beleza; no templo Nin’naji, “nos caminhos entre as cerejeiras do bosque havia tablados, e as pessoas promoviam festança de bebedeira e cantoria. Era uma desordem total. Velhotas interioranas dançavam alegremente, e bêbados roncavam alto, alguns deles chegando a rolar e cair do banco em que se deitaram”. A contraposição às mudanças é feita não apenas por meio do olhar amargo de Takichiro Sada, mas descrevendo-se a diversidade da �ora e as variações da natureza, estação a estação, ou detalhando os festivais e comemorações seculares de Kyoto. Há também descrições dos quimonos e dos obis — com suas cores e desenhos que, desligados da preocupação de obedecer à moda ditada pelo mercado, expressam traços da personalidade de quem os veste —, além da gestualidade contida e harmoniosa de homens e mulheres, essencial à etiqueta japonesa, que se revela no ato de prender ou soltar o cabelo, nas manifestações de carinho entre as irmãs, na reverência de um subalterno diante do patrão, ou no simples movimento de puxar as portas corrediças da casa, fechando-as à noite. São indícios da sobrevivência do verdadeiro Japão, capaz de confrontar, mesmo que furtivamente, os hábitos nefastos que invadiram o país. Ao �nal, nada se resolve, e o leitor permanece incerto quanto ao futuro das irmãs. Contudo, é exatamente esse o objetivo de Kawabata, pois ele não almeja uma solução para os dramas pessoais, e tampouco se preocupa com a suposta necessidade de um clímax. Para desespero de alguns leitores, o escritor pretende apenas insinuar o prosseguimento da vida, a continuidade do �uxo da existência. Podemos concordar com a a�rmação de Antonio Cabezas — “Sem jamais �losofar de um modo explícito, Kawabata expõe genialmente a sua fé na força da realidade: o que existiu uma vez, existiu para sempre” —, mas apenas parcialmente, pois há uma sugestão implícita nos �nais do escritor: podemos acompanhar seus personagens nessa trilha cujo único objetivo louvável seria a proposta básica do zen, ou seja, a reintegração ao todo, pois dores e decepções não podem ser superadas de outra forma. O êxtase do nada Em sua carta recomendando Yasunari Kawabata ao Nobel de Literatura, Yukio Mishima revela a “obsessão”perseguida, desde os primeiros escritos, por seu mestre e amigo: “O contraste entre a solidão fundamental do homem e a inalterável beleza que se apreende intermitentemente nas fulgurações do amor, como um raio que subitamente pudesse revelar, no coração da noite, os ramos de uma árvore em plena �oração.” O raio de que fala Mishima lembra o impacto do satori na consciência, o “súbito relâmpago”, o “olhar intuitivo no âmago das coisas”, �guras usadas por Daisetz Teitaro Suzuki para explicar o zen aos ocidentais. De fato, a �cção de Kawabata pretende repetir o caminho em direção ao satori, semelhante às tradicionais artes japonesas, nas quais se incluem a disciplina dos samurais ou o manejo da espada ( iai ) e do arco e �echa ( kyudo ). Kawabata buscou elaborar uma literatura do comedimento, que dissesse menos, mas, utilizando sutilezas que só a cultura japonesa possui, ganhasse nova força expressiva. Ele almejou que a experiência da leitura de sua obra produzisse um efeito semelhante ao do exemplo de certo mestre zen: “Antes que um homem estude o zen, as montanhas são para ele montanhas e as águas são águas. Mas quando ele vislumbra a verdade, as montanhas não são mais montanhas, nem as águas são águas. Mais tarde, quando atinge o satori, as montanhas são novamente montanhas e as águas são águas.” Ou seja, que seus leitores pudessem vislumbrar a realidade de maneira clara, despida do véu de ilusão com que nossas ânsias e desejos a recobrem. Ler os romances de Yasunari Kawabata — e também suas cartas, nas quais se revela inseguro e procrastinador — é entender o que ele disse em seus escritos da juventude: “Pai e mãe, que �zeram de mim o �lho de meu avô [...]. Ninguém no mundo, mais que vocês, deu-me o dom de submergir-me no êxtase do nada”. Mas o “nada” do qual sua obra está embebida não é ocidental. Completamente diverso do niilismo, trata-se do esvaziamento que pretende conduzir quem o experimenta a um estágio de consciência acima do bem e do mal, da pureza e da impureza — o estado da mente livre de todas as antíteses, de todas as injunções. PERFEIÇÃO CORROSIVA — SAKI Só em raras oportunidades encontramos uma obra arrebatadora. Passado algum tempo, talvez anos, quando a revisitamos e o mesmo encantamento se repete, podemos ter certeza de que o primeiro júbilo não surgiu de uma falsa impressão, mas foi nossa resposta aos escritos de um gênio. É o que sinto sempre que volto a Hector Hugh Munro, mais conhecido pelo pseudônimo de Saki. De acordo com minhas informações, que podem estar incompletas, Saki nunca foi traduzido no Brasil. A Editora Hedra, contudo, preencheu essa deplorável lacuna: lançou uma pequena, preciosa coletânea de contos desse inglês nascido na Birmânia. Claro que o ideal seria repetirmos o que ocorreu na Argentina: não satisfeita com as cinco coletâneas da Editorial Claridad, a Alpha Decay publicou, em 2005, os Cuentos completos , de Saki; e, em 2009, o Alicia en Westminster , conjunto de catorze textos que parafraseiam o clássico Alice no País das Maravilhas , de Lewis Carroll. Mas esse passo civilizador, ao que parece, ainda demorará muito. Voltando ao volume Um gato indiscreto e outros contos , da Hedra, ele serve como ótima introdução à obra desse escritor malé�co, sarcástico, impiedoso e bem-humorado, que desacredita, a cada página, da espécie humana, mas está sempre disposto a oferecer aos homens uma segunda chance, ainda que eles, reiteradamente, a menosprezem. Talvez venha daí — de encontrarmos nele um espelho zombeteiro das nossas miseráveis existências — a verdadeira compulsão que nos assalta quando começamos a ler Saki: um conto só é pouco; dois não bastam; no terceiro, rindo a valer, imaginamos o que ele ainda nos reserva; quando terminamos o quarto, à beira de um ataque apoplético, alguns talvez ainda duvidem que as coisas possam piorar; e ao �nal do quinto, pobres de nós, somos seus escravos — e encontramos prazer nessa estranha devoção. As espirituosas e às vezes macabras histórias de Saki transcorrem no chamado período eduardiano, no Reino Unido ou nas colônias inglesas. E a vivacidade desses textos talvez nasça não só da experiência de Munro como correspondente do The Morning Post na Rússia, em Paris, nos Bálcãs e em Varsóvia, de 1902 a 1908, mas também da nítida in�uência que ele sofre de Oscar Wilde. De qualquer forma, Saki nos seduz com a crueldade de seus contos escarnecedores. Suas sátiras são aulas sobre como as inconveniências sociais subjazem ao verniz vitoriano — e sobre como elas podem emergir de repente, graças a fatos corriqueiros. Todas as expectativas que temos em relação aos comportamentos mais adequados à vida social são destruídas por esse escritor que, ao substituir o decoro por situações vexaminosas, cria personagens que se espojam no prazer de ludibriar seus semelhantes ou de viver segundo as regras do próprio egoísmo, doa a quem doer. No entanto, enquanto rimos, a voz de nossa consciência parece repetir o que o escritor, ensaísta e crítico V. S. Pritchett a�rmou: “Saki escreve como um inimigo. A sociedade o entediava a ponto de um assassinato. Nosso riso é apenas uma nota ou duas menor que um grito de medo”. Reino dos animais De fato, seu desprezo pela sociedade era tão fundo, que ele reservou aos animais os papéis dignos, inocentes ou justiceiros. No conto “Um gato indiscreto”, por exemplo, o estudioso Cornelius Appin ensina o gato Tobermory a falar; e este se torna o acusador das hipocrisias que latejam no grupo de supostos amigos de Lady Blemley. O �m de Tobermory será triste, mas ele não sofrerá a injustiça de morrer nas mãos de um espécime da raça humana. Seu professor, ao contrário, ainda que imbuído de nobre missão, terá a pena que os humanos merecem. Um pobre ratinho condenará Theodoric Voler — no conto “O camundongo” — às mais estúpidas humilhações, provando que o homem despreparado para os transtornos inevitáveis da realidade pode sofrer muito. Em “Esmé”, uma inocente hiena provocará verdadeira tragédia, transformada, contudo, num fato corriqueiro pela leviandade da Baronesa, mulher egoísta e fútil. Na história “O tigre de Mrs. Packletide”, o velho e indefeso felino permitirá à subalterna, Miss Mebbin, um saboroso e lucrativo golpe. Em “Os intrusos”, uma antiga disputa de limites, entre famílias que alimentaram ódios durante gerações, acaba resolvida pelas forças da natureza: os invasores, humanos, transformam-se em vítimas dos verdadeiros donos das propriedades, aos quais de nada adiantará implorar clemência. Quando o fantástico surge, por meio de um personagem que habita a nebulosa fronteira entre o humano e o animal — em “Gabriel-Ernest” —, o simplório Van Cheele será a testemunha derrotada por forças irracionais. O escritor satírico Tom Sharpe está certo, portanto, nos comentários que faz às narrativas de seu mestre: “Nos contos de Saki a civilização foi derrubada e substituída por uma estranha supernatureza. Nesse mundo, o animal que triunfa é a inteligência e existe a permanente suspeita de que, se os seres humanos se comportassem como animais, o mundo se organizaria de um modo muito mais harmônico.” Saki reserva à sua espécie, quase sempre, um papel derrisório. Dois dos melhores contos da coletânea — “A cura do desassossego” e “O método Schartz-Metterklume” — apresentam humanos cujo maior prazer é perturbar a vida de seus semelhantes. E o fazem com hilariante perfeição, digna de ser aprendida e imitada. Já em “A omelete bizantina”, a dissimulada Sophie Chattel-Monkheim, “socialista por convicção e Chattel-Monkheim por casamento”, terá seus discursos contra o capitalismo colocados à prova pela numerosa criadagem; levada a uma crise de nervos após inesperada greve, concretiza-se o que o narrador, irônico, havia anunciado: “É um dos consolos dos reformistas de meia-idade que o bem que inculcarem, se há de existir, deve existir depois deles”. Técnica exemplar Há, em todos esses contos, apenas um ser verdadeiramente bom: o menino Conradin, de “Sredni Vashtar”. Sufocado pela doença e pela tirania da velhaprima, esse garoto de dez anos elege para si, no pequeno mundo que lhe resta, um deus particular: o furão ao qual dá o nome que intitula a narrativa. A partir desse momento, um tipo especial de religiosidade nasce. O galpão abandonado, onde o animal permanece preso, transforma-se num templo, sede de inocentes rituais. No início, Conradin nada pede, não faz promessas, apenas adora a criatura que lhe parece representar “o lado impaciente e terrível do mundo”. Saki reúne, no mesmo espaço, a a�ição da criança torturada, o sexo e a emergência do sagrado como forma de sublimação. O instinto religioso transforma-se, lentamente, numa experiência negativa, malé�ca, não porque Conradin seja mal, mas porque é impossível não reagir, de algum modo, à prima mesquinha e opressora; a�nal, o que pode a criança contra o adulto, a não ser que tenha proteção divina? Sredni Vashtar ouvirá as preces do menino, comprovando, mais do que a força do mal, que a maldade surge principalmente quando não somos amados. História soberba, “Sredni Vashtar” é um exemplo do domínio técnico de Saki, que constrói narrativas perfeitas, “orbes cerrados, tematicamente rígidos” — para lembrar a feliz de�nição de Mario Lancelotti em seu sintético mas brilhante De Poe a Kafka (para una teoría del cuento) —, submetidos ao “império irreversível do fato, do acontecimento, [...] requisito tão simples quanto fecundo, de que deriva, forçosamente, o resto de suas exigências clássicas: unidade, originalidade, intensidade, estilo depurado”. Saki condensa no primeiro parágrafo da narrativa todo o drama do protagonista. E a partir daí a história converge para um único ponto, resolvido páginas depois. Nada desvia a atenção do narrador, que investe sobre seu tema como um símio furioso, mas sem jamais descartar a sutileza: em pleno clímax, o leitor tem diante do olhar somente indícios, sinais, sugestões — e ainda assim pode assistir à terrível crueza da vingança. Trata-se de um escritor que trabalha a estrutura e as nuanças das frases a ponto de transformá-las em pequenas jóias de asteísmo. No início de “Um gato indiscreto”, por exemplo, o narrador descreve o cenário — “Era uma tarde fria e chuvosa de �m de agosto, aquela estação inde�nida...” — e temos a impressão de ingressar em um texto leve, de imagens débeis. Mas logo a seguir ele desmantela nossa certeza, completando, de maneira inusitada: “…quando as perdizes ainda estão em segurança, ou refrigeradas, e não há nada para caçar [...]”. Os dois segmentos se antagonizam na exata medida para despertar a nossa surpresa, alertando o leitor sobre o instável universo em que ele começa a penetrar. Mais à frente, Saki não pode apenas dizer que um personagem é feio. Ele revoluteia sua ácida retórica e cria uma descrição indireta da feiúra, que aguilhoa não só o objeto da descrição, mas também suas observadoras: “Seu exterior [...] não sugeria o tipo de homem a quem as mulheres se dispõem a perdoar uma generosa dose de de�ciência mental”. Some-se a tais habilidades um universo de personagens incomuns — o capelão burocrata de “O sanjaque perdido”; a deliciosamente sádica e imaginosa sobrinha de “A janela aberta”; o rapaz sem nome de “O contador de histórias”, e Bertha, a menina das medalhas por bom comportamento, pontualidade e obediência que protagoniza a história dentro do conto — e será inevitável lembrarmos Edgar Allan Poe e suas famosas resenhas ao Twice-Told Tales , de Nathanael Hawthorne: “Se nos pedissem para designar a classe de composição que, ao lado do poema, pudesse melhor satisfazer as exigências de grande genialidade, que pudesse oferecer a esta o mais vantajoso campo para o seu exercício, deveríamos falar, sem hesitação, do conto em prosa”. Declaração que Hector Hugh Munro, conhecendo-a ou não, realizou plenamente. AMIZADE ENTRE LUZ E TREVAS — TAHAR BEN JELLOUN “Sem a amizade a vida seria um erro”, escreveu Aristóteles. Conclusão de�nitiva, mas que, isolada, sem dúvida necessita de algumas justi�cativas, possíveis de serem encontradas no romance O último amigo , do marroquino Tahar Ben Jelloun. O livro, no entanto, não nos oferece uma resposta fácil e não tem qualquer compromisso no sentido de demonstrar a veracidade dessa proposição. Ao contrário, mergulhando nas vias sinuosas de uma amizade estreitamente ligada às oscilações políticas e sociais do Marrocos, o autor nos oferece o primado da dúvida, alertando-nos para a suspeita de que a conclusão de Aristóteles talvez não corresponda à verdade. A assertiva aristotélica, presente, pelo que me lembro, na Ética a Nicômaco, coloca a amizade acima de todas as outras formas de relacionamento, concedendo a esse tipo tão raro de amor — raridade que a vida contemporânea, marcada, entre outras mazelas, pelo super�cialismo das relações, só faz aumentar — a condição de algo essencial. Tal status não será contestado, certamente, pelas raríssimas pessoas que já o experimentaram, mas mesmo em relação a elas é possível questionarmos se o que viveram foi, de fato, uma amizade, e não uma experiência unilateral, maquiada pelo idealismo ou, ainda pior, exagerada por uma imaginação refém de certas carências afetivas. Esse é o questionamento que se intromete, sem qualquer trégua, em todas as páginas de O último amigo : a idéia de que o Outro, o nosso semelhante, longe de nos completar, apenas nos esgota, nos exaure. O animal humano só seria realmente inteiro, ou seja, pleno, ao assumir o gregarismo que a natureza incutiu em nossas células? Ben Jelloun constrói o enredo desse romance, publicado na França, em 2004 — pois o autor, apesar de nascido no Marrocos, escreve em francês —, de maneira a nos deixar incertos sobre qual seria a melhor resposta, ou a mais correta, conduzindo-nos por uma trama cuja conclusão nos leva a duvidar se todas as formas de comunicação, incluindo as mais sutis ou complexas, como a amizade, são verdadeiramente possíveis. Página após página, constatamos que o Outro quase sempre responde mal aos nossos estímulos e às nossas investidas, não passando de uma decepção. Mamed e Ali, os personagens centrais do romance, dão a impressão de caminhar na mão oposta à idéia de que nascemos para o encontro com nossos próximos. A verdade, assim, pode ser outra, diversa do que pensou Aristóteles, pois talvez não haja encontro algum, na verdade mal toquemos em nossos semelhantes, e quando o fazemos, se prestarmos atenção, veremos desequilibrar-se em sua face — e também na nossa — a persona que escolhemos usar naquela manhã, a mentira que a polidez destila em nome da boa convivência social. Nada mais. Olhares dessemelhantes Mamed e Ali falam um do outro, separadamente, em duas longas rememorações que formam o eixo do livro. E ambos vêem a si mesmos e ao outro de maneiras sutilmente opostas. Quem, a�nal, fala a verdade? Qual dos dois é o mais idôneo, o mais con�ável? Quem conhece a si próprio ou fala de si mesmo com sinceridade? E qual deles soube compreender e amar o outro? As perguntas se sucedem e vemos ganhar vida homens aparentemente incompatíveis, mas que se acreditam amigos. Ali, de tez clara, nasceu em Fez, cidade tradicional do Marrocos, onde se instalaram judeus e muçulmanos fugidos da Guerra da Reconquista, na Península Ibérica. Mamed é pardo e sempre viveu em Tânger, cidade cosmopolita que, a partir de 1912, quando o Marrocos se torna protetorado francês, é declarada zona internacional e passa a ser administrada por vários países europeus. Ali é politizado, mas prefere ler poesia, incluindo o su� andaluz Ibn Arabi. Mamed é um leitor voraz de Lênin e Marx. Ali se masturba pensando em Ava Gardner; Mamed o faz sem grandes vôos de imaginação, lembrando- se de uma colega da escola. Quando ambos começam a namorar, descobrem caminhos opostos para satisfazer a libido naquela sociedade em que a virgindade da mulher era um tabu insuperável. Onde um se apaixona, o outro se mantém frio. Onde um demonstra equilíbrio, o outro se revela um teimoso contumaz. Tudo parece, do começo ao �m, separá-los. E, no entanto, eles permanecem unidos, �éis,ainda que, em diferentes ocasiões, não sejam con�dentes. Eles perscrutam a amizade como se esta fosse palpável, viva, pulsando entre os dois. Mas o fazem com olhares dessemelhantes, cada um prendendo-se às suas próprias necessidades, aos seus próprios sentimentos. “Era difícil saber qual de nós dois tinha mais ascendência sobre o outro. Nós nos completávamos, precisávamos um do outro. Isso nos dizíamos e �cávamos quase orgulhosos”, lembra Ali. Mas as recordações de Mamed, ainda que pareçam seguir na mesma direção, possuem nuanças reveladoras: “Ali [...] tinha uma capacidade de entrar na minha vida, no meu mundo e no meu imaginário que me fascinava e me inquietava ao mesmo tempo. Essa forma superior de inteligência é temível. Eu o invejava. Com o tempo, aquele aspecto intuitivo se tornava preocupante. Éramos dois livros abertos face a face. Tornáramo-nos transparentes um para o outro. No fundo, eu não queria aquilo.” O relacionamento, para Ali, estava vincado de um ideal quase romântico. Contudo, a percepção de Mamed, mais fria, elabora uma rememoração aguda, na qual os pormenores formam um discurso angustiado. E depois que o drama, anunciado desde a primeira página, instala-se na narrativa, Ali conclui, longe do �nal do livro, ao assistir O falso culpado , de Alfred Hitchcock: “A verdade se mantinha em um �o esticado entre a luz e as trevas. A vida cotidiana parecia simples ali, enquanto era muito complexa; basta que uma aparência se confunda com um sentimento para que nos encontremos no centro de uma conjuração de forças ocultas e invisíveis em que tudo pode se desequilibrar em direção ao horror.” Re�exão formulada a duras penas, e que ele produz não apenas em relação à sua amizade com Mamed, mas de maneira a sintetizar toda a sua vida. A perda da esperança O Marrocos que serve de cenário à narrativa de Tahar Ben Jelloun é, inicialmente, um país em transição política. As lembranças dos dois amigos remontam à década de 1950, período conturbado na história marroquina, quando a derrota dos franceses na Indochina (maio de 1954) e a insurreição na Argélia (novembro do mesmo ano), somadas aos atos de terror que ocorrem no Marrocos, praticados por partidários da independência, acabam forçando a França a concordar com o retorno de Muhammad V do exílio, em 1955. A independência, ainda que apenas de fachada, viria no ano seguinte, seguida de crises e cisões partidárias que acabam levando à ascensão, em 1959, de Hassan II (�lho de Muhammad V) ao trono. A partir desse ponto, as esperanças de democratização desaparecem. E será sob um regime despótico que os dois protagonistas viverão, experimentando os anos de violenta repressão política da década de 1960, quando, em 1965, o general Muhammad Oufkir se torna o homem de con�ança da monarquia, intensi�cando as prisões, as torturas e os desaparecimentos de presos políticos. Ali e Mamed serão presos, torturados e mantidos incomunicáveis durante longos meses, a �m de, “reeducados”, servirem dignamente à pátria. Sofrerão medo e terror — “medo difuso, sem nome, sem cor”, diz Ali —, seguidos da dissolução de todos os seus sonhos, quando viver não será mais a busca de um ideal, mas somente a conformação dos desejos às possibilidades estreitas que o Estado corrupto e submetido aos interesses estrangeiros lhes oferece. Os amigos que, na adolescência, desobedeciam às regras severas do Ramadã, alicerçando a cumplicidade que os unia, acabarão por se separar. Mamed, formado em medicina, parte para a Suécia, enquanto Ali, tendo abandonado a faculdade de cinema no Canadá, resigna-se a uma licenciatura na área de Letras, sem abandonar o Marrocos. Ben Jelloun utiliza essa separação com habilidade, servindo-se dela não só para salientar as diferenças entre os dois amigos, mas também com o intuito de revelar os antagonismos sociais que colocam a Suécia e o Marrocos em posições absolutamente opostas na ordem mundial. O poder massacrante de um Estado absoluto vem acompanhado da desagregação de todas as esperanças. Ficam para trás os anos de juventude, com as tardes passadas no hamman , essa verdadeira instituição do Maghreb, lugar de banhos ritualísticos, erotismo e sociabilidade. Os amigos que tra�cavam kif , um tipo de marijuana plantada nas montanhas do Rif, ao norte do Marrocos, afastam-se. Não acontecem mais os namoros ao som de Dalida, a bela cantora nascida no Egito e que, radicada na França, tornou-se mundialmente famosa interpretando Bambino e Parole, parole . Desaparecem as atormentadas visitas aos prostíbulos. A leitura do Jardim perfumado , do xeque Omar Ibn Nefzaui, uma espécie de Kama Sutra árabe, já não desperta qualquer alegria. E quanto a Frantz Fanon, um dos principais ideólogos anticolonialistas, que Mamed e Ali estudavam com voracidade no colégio, deste restou apenas uma vaga lembrança. À sombra da morte A realidade, os dramas familiares, os casamentos, os �lhos, a resignação ou o inconformismo, a busca de uma fuga do sistema opressor por meio da sexualidade, a submissão à doença, a indignação crescente contra o Marrocos que, comparado à Suécia, torna-se um país de poeira, mentiras, corrupção e nepotismo, tudo contribui para a manutenção dessa amizade que subsiste apesar da distância. E Ben Jelloun tece a narrativa de maneira a prender o leitor em uma suspensão permanente. Seu texto não arrebata, mas seduz, levando- nos de adiamento a adiamento, por vezes resvalando a verdade, mas acabando sempre por adiá-la. A palavra �nal, nesse romance forjado de sutilezas, em que a dúvida persiste até a última página, pertence a Mamed. E quem foi ele, a�nal? O mais amigo? Seria ele o derradeiro amigo? E por que, depois dele, qualquer amizade seria impossível, estaria condenada ao fracasso? Outro �lósofo, Nietzsche, em seu A gaia ciência , de�niu a amizade como “uma espécie de continuação do amor”, a “elevada sede conjunta de um ideal”, colocada acima da “cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra”. Entretanto, ele também encerra seu raciocínio com duas interrogações: “Mas quem conheceu tal amor? Quem o experimentou?”. Em O último amigo , a expectativa de uma carta, cujo único intuito é, presume-se, a destruição, perpassa todo o romance. Será sob esse signo, e sob a sombra nem um pouco acolhedora da morte, que Ali e Mamed se reencontrarão a última vez. Nesse reencontro, quando todas as diferenças e semelhanças avultam, nesse reencontro do qual restará apenas uma carta, reside a resposta de todas perguntas, esconde-se a verdade não apenas sobre os sentimentos que uniram Mamed e Ali, mas sobre a esperança, sempre renovada, de que a amizade, a amizade ideal de Aristóteles ou de Nietzsche, seja realmente possível. PERENE INCONSTÂNCIA — HANS JACOB CHRISTOFFEL VON GRIMMELSHAUSEN O mais grato — e infelizmente raro — prazer do crítico literário é quali�car um livro de genial. Pouco importa que ele não seja o primeiro a reconhecer o valor da obra, admirada por todos que amam e estudam a literatura do Ocidente, pois basta-lhe a satisfação de a�rmar a seus poucos leitores: leiam, é genial — O Aventuroso Simplicissimu s, de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen lhes concederá exatamente o que promete em sua epígrafe: “Afastar-se da loucura e viver onde a paz mora”. Guardadas as devidas proporções, Grimmelshausen representa, para o barroco alemão, o que Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um sargento de Milícia s signi�cam para o romantismo brasileiro: arejamento, limpeza dos entulhos retóricos, do exagero exótico, da adjetivação excessiva; e predileção pela ironia. Para um tempo rico em poetas — e que teve grandes nomes, como o jesuíta Friedrich Spee, Paul Gerhardt (cujos versos foram musicados por Bach), Angelus Silesius e Andreas Gryphius (que também foi dramaturgo) —, é notável a escolha de Grimmelshausen pela prosa. Anônimo, esse empobrecido descendente de aristocratas tinha perfeita consciência de que seu trabalho ia na contramão da época. Movido por uma inesgotável sofreguidão de narrar, ele desprezou os falsos eruditos, os pretensiososque produziam versos fúteis, ocos, e pôde, vivendo longe da in�uência deles, entregar-se ao romance, gênero que consolidou. Primeiro grande romancista da literatura alemã, Grimmelshausen viveu num dos períodos mais conturbados da história, o da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), con�ito iniciado pelo choque, no centro do Sacro Império Romano Germânico, entre os partidários da Reforma e da Contra-Reforma. A intervenção gradativa de vários países no combate transformou um problema localizado em uma guerra na qual as potências já não se preocupavam com a defesa de questões religiosas, mas com a luta pela hegemonia na Europa Central. Para se ter uma idéia da grandiosidade do con�ito, quando a guerra terminou, a população masculina da Alemanha estava reduzida à metade. O exército sueco, por exemplo, um dos mais sanguinários da história, destruiu, só na Alemanha, quase vinte mil povoados. Maurício Mendonça Cardozo, no elucidativo posfácio de O Aventuroso Simplicissimus , conta que a cidade de Grimmelshausen, Gelnhause, foi invadida pelos espanhóis em 1634, por ocasião da Batalha de Nördlingen, quando as tropas forçaram a população a se esconder nas �orestas próximas. O escritor tinha treze anos. Acabou sendo preso, depois tornou-se ajudante de regimento, a seguir soldado e, salvo por saber ler e escrever, escrivão de regimento; mais tarde, secretário de chancelaria. Terminada a guerra, instalou-se na cidadezinha de Gaisbach, onde viveu da administração dos bens de algumas famílias e do comércio de vinhos. Lutando para conseguir uma situação estável, acabou nomeado prefeito de Renchen, na região da Floresta Negra, cargo que ocupou até morrer, aos 55 anos. A lei do viver Desconhecido, assinando seus livros com vários pseudônimos — anagramas de seu verdadeiro nome —, Grimmelshausen escreveu uma obra que não é apenas exemplo da conhecida dualidade barroca, das tensões antitéticas nas quais o homem se vê dividido entre suas paixões e Deus, entre o pecado e a virtude, a fugacidade do presente e a ânsia pela salvação. Sim, tais antíteses fazem parte do drama de Simplicissimus — e sua luta interior, as divisões de sua personalidade, as alternâncias de humor e de objetivo, bem como a insegurança e as mudanças abruptas provocadas pela guerra, conformam o quadro tipicamente barroco, em que a realidade parece se contorcer sobre si mesma, transformando a vida do protagonista numa in�ndável sucessão de alterações de curso. Há um brilho especial na inconstância, no verdadeiro caos, nas volutas de equívoco que engolfam o protagonista. Ele pode oscilar entre alegria e tristeza, compenetração e arroubo guerreiro, luxúria e isolamento, liberdade e prisão, amor e misoginia, busca da santidade e pilhagem, mas está sempre imbuído de sinceridade, de certa leveza e de propósitos que, bons ou maus, nos seduzem. Ao mesmo tempo grave e sutil, Simplicissimus é um pícaro perspicaz, de �níssimo humor, dissimulado, encantador, que jamais se nega à auto-análise, à introspecção. Ele nos fascina a cada página, pois seus dramas não o derrotam, mas servem para impulsioná-lo a novas aventuras, agarrado à vida, sem jamais conceder às dúvidas e aos temores aquela propriedade da angústia quase absoluta que domina os heróis da literatura moderna. Trata-se de um homem que alcança a mais re�nada forma de sabedoria: consegue rir dos acontecimentos e, principalmente, de si mesmo. Essa densa obra, parcialmente autobiográ�ca, na qual a sátira está embebida de lirismo, inspira-se nos romances picarescos espanhóis — Grimmelshausen deve ter lido o Lazarillo de Tormes , traduzido para o alemão em 1617 — e funda o Bildungsroman . Pastor de cabras e ovelhas, �lho adotivo de camponeses, Simplicissimus lentamente evolui: toma consciência de sua própria ignorância; aprende a arte da malícia; torna-se hábil esgrimista, soldado invejado pela coragem e astúcia; especializa-se na artilharia e na construção de fortalezas; inventa aparelhos curiosos e fantásticos; domina a técnica da composição musical e aprende a tocar vários instrumentos; alcança a fama como ladrão e ator; desvenda segredos da alquimia; estuda astrologia, matemática, astronomia, cabala, teologia; viaja pelo mundo; e é disputado como amante. Narrando suas aventuras e desventuras, Simplicissimus muitas vezes olha a própria história em retrospecto, e pode avaliar seu passado com os olhos de um homem sábio, culto. E, se demonstra desilusão, ela é passageira, pois viver exige presteza, diligência. Matreiro e, ao mesmo tempo, justo, há uma ética subjacente a todos os seus atos. Espirituoso, sempre com respostas e perguntas na ponta da língua — o tradutor, Mario Luiz Frungillo, teve o cuidado de elaborar notas que explicam os divertidíssimos trocadilhos —, ele tem a virtude de conceder à pregação moral um papel menor em seu discurso, pois seu principal desejo é o de que conheçamos um tipo humano peculiar, ele próprio, síntese de todos os homens, que pretende nos ensinar a lei que, em sua opinião, rege o viver: Oh singular agir! Oh estar tão inconstante! Quem pensa em se �rmar, logo é impelido adiante. Oh condição fugaz, cuja queda segura Vem antes da suposta paz, certeira e dura Como a morte. Do que esta instável existência Fez comigo se pode aqui tomar ciência, E comprovar por �m que a inconstância apenas É constante, ela só, na alegria e nas penas. Engenhosidade Otto Maria Carpeaux diz, com acerto, em sua História da Literatura Ocidental , que Grimmelshausen “aspirava a um cristianismo além das con�ssões dogmáticas”, mas discordo dele quando a�rma, no Literatura alemã , que o �m de Simplicissimus é a conversão. Primeiro, porque no �nal do Livro V (a tradução brasileira engloba os seis livros que formam o corpo principal das aventuras simplicianas), quando o protagonista se despede do mundo, ele apenas retorna à vida de eremita (que já experimentara no início da obra) e consuma o despojamento que, gradativamente, vinha realizando, sem adotar qualquer religião em especial. E, segundo, porque ainda que o Livro VI termine com o herói recusando-se a voltar à civilização, depois de viver anos numa ilha deserta à qual fora lançado durante um naufrágio, sabemos que Grimmelshausen deu seqüência às aventuras de seu personagem com mais quatro livros, publicados entre 1670 e 1675. Neles, segundo Walter Muschg, em História trágica da literatura , “Simplicissimus volta à Alemanha transformado em um curandeiro milagroso, invocador de espíritos e descobridor de tesouros; ganha a vida escrevendo trovas [...] e como vendedor ambulante de um médico com quem percorre novamente metade da Europa. Agora ele é ‘uma raposa velha, que viu, ouviu, aprendeu, leu e experimentou muito durante a vida’”. Rea�rmando o lado �nório da personalidade de seu protagonista, Grimmelshausen, ainda segundo Muschg, transforma a charlatanice em parábola poética: “Simplicissimus está construído totalmente sobre o tema do ilusório, e a maneira como seu autor segue reelaborando-o só pode ser explicada pelo prazer do jogo hermético, que ele leva no coração como todos os gênios do cômico.” Mas Grimmelshausen também faz uma radiogra�a da severa estrati�cação social daquele período e da desordem criminosa provocada pela guerra, analisa a organização dos Estados, coloca na boca de um louco duras críticas aos governantes, escreve literatura de viagem, cria sonhos que são parábolas e apólogos, e produz acontecimentos de pura fantasia, nos quais Simplicissimus é transportado a um sabá, visita certo mundo subaquático, no qual vivem estranhas e geniais criaturas, domina as artes da magia e chega a dialogar com a folha de um caderno in-oitavo : antes de lhe servir como papel higiênico, ela reclama da fugacidade de sua vida e solicita, em nome dos inúmeros serviços prestados, que não seja utilizada para um �m tão desonroso; o que, evidentemente, lhe é negado. Dono de fantástica engenhosidade, Grimmelshausen jamais teme mostrar os vícios, os defeitos de seus personagens. Sem idealizar a humanidade, lutando para sobreviver num tempohostil e precário, o escritor consegue arrancar da imaginação a síntese buscada não só pela literatura barroca: à única regra invariável da existência, a inconstância, o homem não deve responder com lamentos, mas, sim, tomar distância dos fatos; não sem antes emitir uma sonora gargalhada. SUBMETIDO AO DESESPERO — JAMES JOYCE James Joyce passou a vida em busca de epifanias. Não a manifestação divina, mas pequenas ou grandiosas iluminações que, ele acreditava, escondiam-se sob os fatos e seriam capazes de arrancá-lo do presente repleto de mesmice e angústia — luta, em grande parte decepcionante, para libertar-se da Irlanda, das in�uências e lembranças familiares, do catolicismo e de sua própria fragilidade. Herdada do cristianismo, essa tentativa de compreender a realidade a partir de uma perspectiva transcendental refuta as interpretações comuns do tempo, da ordem dos fatos. Para Joyce, a história não pode ser uma continuidade corruptível, que tem começo, meio e �m, mas, como dizia Gregório de Nissa, deve ir “de começos em começos por começos que não têm mais �m”. Ou, nas palavras de Agostinho de Hipona, em suas Con�ssões , “não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras”. Os motivos do escritor irlandês, contudo, não eram religiosos ou teológicos, ele não estava preocupado em sublimar a imanência ou distinguir, de forma profética, o destino �nal do homem e do mundo. O que Joyce transformou em técnica literária, o registro do que ele acreditava serem revelações, nasce do desespero para perpetuar o presente, do temor de que tudo lhe escape a cada novo instante. Ele tenta reter a essência dos acontecimentos — para que o tempo não passe, não se desdobre. Como a�rma Harry Levin no clássico James Joyce: A Critical Introduction , “o afã de toda a vida de Joyce foi escapar do pesadelo da história, conceber a totalidade das experiências humanas num plano simultâneo, sincronizar passado, presente e futuro”. Dois livros mostram aspectos do desespero joyceano: se Epifanias apresenta alguns dos resultados que o autor alcançou na tentativa de revelar mistérios para os quais a maioria dos homens está cega, em Cartas a Nora (correspondência enviada à esposa, Nora Barnacle) conhecemos a a�ição no seu estado mais cru, livre das regras que o autor se impunha ao escrever literatura. Epifanias é um livro desigual, provoca reações opostas. Para o editor e crítico literário John Gross, esses pequenos textos são “obstinadamente exânimes”, “carentes de drama”, “amorfos e insubstanciais”. Na opinião de Harry Levin, podem ser lidos “como exemplos de um gênero único e delicado, manifestações concretas da quidditas [essência] escolástica ou do porquê das coisas”. Ambos estão certos, a depender do trecho escolhido. O leitor que enfrenta a primeira epifania pensará como Gross. Trata-se de um diálogo que só adquire sentido ao ser redescoberto no início de Retrato do artista quando jovem . Mas se não empreendemos esse exercício detetivesco ou não procuramos o auxílio de um guia seguro, as poucas linhas transformam-se numa cena desprovida de sentido — e podem despertar a culpa no leitor inexperiente, que se perguntará por qual motivo não percebe a singularidade de um texto assinado pelo autor de Ulysses . Não há erro nenhum, no entanto, pois esses fragmentos são apenas exercícios de estilo, excertos de diálogos, rápidas cenas urbanas, visões do mundo onírico, amostras do que ele desenvolveria nos contos e romances. As epifanias mostram a distância que há, quando se dispõe apenas de palavras, entre pretender desvelar um episódio fortuito e atingir realmente o objetivo, a ponto de produzir algo semelhante a um arrebatamento. Convidam o leitor a se manter eqüidistante da veneração e do menosprezo; só assim não se comportará como alguns obsessivos estudiosos, que poderiam descobrir literariedade até mesmo numa lista de compras, se encontrassem alguma escrita por Joyce. Mas há passagens extraordinárias, como a Epifania 33, na qual a primeira impressão, fotográ�ca, prolonga-se num quadro noturno povoado de prostitutas melancólicas e carentes. Ele a utilizará anos mais tarde, no Ulysses , mas antes transcreve o trecho, com variações, numa carta pungente que envia a Nora, em 29 de agosto de 1904. Só depois de lermos tal peça autobiográ�ca começamos a entender esse homem dilacerado pelo remorso e pelo anseio de ser famoso. É curioso que, num espaço de três décadas, esta seja a segunda edição brasileira das cartas de Joyce a Nora — a primeira, de 1982, foi lançada por Massao Ohno & Roswitha Kempf, com tradução de Mary Pedrosa. Nossos editores parecem dar preferência às con�ssões íntimas do escritor, desprezando, na ampla epistologra�a que deixou, as cartas, por exemplo, a Ezra Pound ou Sylvia Beach, sua benfeitora. De qualquer forma, a correspondência revela muito mais que o escritor fetichista. Nora não foi apenas a epifania carnal de Joyce — veja-se, na carta de 21 de agosto de 1909, a descrição próxima de um êxtase místico: “Teu amor me atravessou e agora sinto que a minha alma é algo assim como uma opala, isto é, cheia de matizes e de cores estranhamente variáveis” —, mas tornou-se, para o escritor apóstata, a substituta profana da Virgem Maria: “Minha mãezinha, me ponha no escuro santuário do teu útero. Proteja-me, querida, do mal! Sou muito criançola e impulsivo para viver só. Me ajude, querida, ore por mim!” (24 de dezembro de 1909). Esse trecho e outros, repletos de lamentos tediosos, escritos por um menino inseguro e desprotegido, não passam de degradações, na forma e no conteúdo, das epifanias 7 e 34, em que brilha o tema do amor maternal. À parte os clichês melosos e as súplicas infantis, o desespero de Joyce se irradia por todas as direções. Exige que Nora recorde os locais onde se encontraram e, segundo ele, foram felizes. Ela passa cinco dias sem lhe enviar uma carta e ele a acusa de ter esquecido “os belos dias do nosso amor”. Reconhece que tal cobrança é algo monstruoso — mas volta a fazê-la na mesma carta (12 de julho de 1912). Quando está em Dublin, visita repetidamente esses lugares, incluindo os que ela habitou; e sua desesperadora insistência em recordar está longe do sereno “presente respeitante às coisas passadas” de Agostinho: “Vejo-te... vejo-te... vejo-te...”, repisa ele a 25 de outubro de 1909, buscando epifanias que façam renascer o passado tirânico. Há igual sentimento em relação ao futuro. Reconhece que as “ambições desmedidas” são as “forças dominantes” de sua vida (27 de outubro de 1909) e a promessa de alcançar a fama, o sonho de Stephen Dedalus, seu alter ego , de um tempo ulterior em que suas epifanias serão enviadas a “todas as grandes bibliotecas do mundo, incluindo a de Alexandria” (em Ulysses ), ecoa pelas cartas. Nada muda quando se trata do “presente respeitante às coisas presentes”. O Joyce perfeccionista, capaz de ordenar detalhes no vestuário de Nora, é o mesmo que visitava amigos para anotar trechos de seus diálogos e apreender, nas conversas banais, o indício de algo único, revelador. Ele reconhece, a 22 de agosto de 1912, sua compulsão: depois de perguntas e recomendações que descem a detalhes da higiene pessoal de Nora, exclama, num paroxismo, “Pobre Jim! Sempre planejando e planejando!”. A realidade se encarregou de atormentar o autor de Finnegans Wake com anti-epifanias. E apesar do permanente remordimento da consciência — o agenbite of inwit que ele inocula no personagem Leopold Bloom, de Ulysses —, Joyce conseguiu extrair beleza do desespero. Os “cascos que brilham no meio da pesada noite como diamantes, apressando-se para além do gris” (Epifania 27), ou os olhos de Nora, “�ores silvestres azuis crescendo em alguma sebe emaranhada e molhada de chuva”, na carta escrita a 19 de novembro de 1909, são comoventes.Mas a “besta ártica”, que o escritor fustiga com a bengala na Epifania 16, avulta de forma perturbadora: ela é o próprio James Joyce, contorcendo-se sobre si mesmo e murmurando palavras numa língua incompreensível. ANTES DO SILÊNCIO — CARMEN LAFORET Carmen Laforet pertence àquele grupo de escritores notabilizados por uma única obra, que alcançou sucesso graças à con�uência de vários fatores, incluindo-se o literário. No caso especí�co dessa catalã, é curioso que, depois do seu primeiro e famoso romance, Nada , a crítica tenha deixado de se empolgar com os poucos trabalhos que ela publicou — e há certa estranheza na maneira como Laforet acaba enveredando por uma senda de progressivo isolamento. Nem mesmo seu terceiro livro, La mujer nueva , narrativa de sua angustiada reconversão ao catolicismo — que lhe valeu o Prêmio Menorca, o Prêmio Nacional de Literatura e alguns problemas com a censura eclesiástica que vigorava na Espanha franquista —, demonstrou ter força su�ciente para não apenas impor-se no quadro da literatura espanhola, mas, principalmente, convencer a escritora do seu próprio valor. Em 1963 surgiria um novo romance, La insolación , mas a partir desse ponto a voz de Laforet murcha até alcançar completo silêncio, sem cumprir o plano da trilogia intitulada Tres pasos fuera del tiempo , da qual La insolación seria o primeiro volume. O segundo, Al volver la esquina , surgirá postumamente, em 2004. Assim, chega a ser desolador que o furacão provocado por Nada não tenha se repetido. Depois de vencer a primeira edição do Prêmio Nadal, o romance, publicado em 1945, ganhou reimpressões quase que imediatas. Mais tarde, em 1948, a Real Academia Espanhola distingue Laforet com o Prêmio Fastenrath, o que assegura ao livro um êxito que repercutiria nas décadas de 1950 e 1960, conquistando, até hoje, leitores e o respeito da crítica. Sem diminuir o valor da obra, essa reação, quando analisada passado mais de meio século, pode ser facilmente compreendida: na Espanha em que o ódio entre franquistas e republicanos permanecia latente, com algumas das melhores vozes literárias exiladas, mortas ou silenciadas pela censura, parece natural que a jovem Carmen Laforet e sua personagem/narradora Andrea — ingênua, tímida e frágil, tentando se libertar de uma família moralmente devastada, e ao mesmo tempo ansiando por amizade, amor e segurança — arrebatassem o país. Elas se tornaram, sem dúvida, a metáfora de uma Espanha que, apesar da destruição e dos miasmas da guerra que também devastara a Europa, buscava renascer. Pássaros escuros O primeiro capítulo de Nada já nos mostra a desenvoltura de Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna, carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras impressões da cidade — intensas, marcadas por um poder de síntese que recupera odores, luzes, sons — e o clima de crescente expectativa, rompido abruptamente, logo no primeiro contato com os familiares, “�guras alongadas, quietas e tristes, como luzes de um velório de interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se transmuta em pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece povoado de �guras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas, coberta pela manta preta, assemelha-se a um ataúde. As ilusões se desfazem. A família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e escândalos. A violência entre irmãos impera. E o drama será levado ao extremo pela crescente pobreza, pela fome. Relacionando-se com desrespeito e cinismo, os parentes se apegam a seus mundinhos particulares, a certezas mesquinhas, afundando cada dia mais. Naquele apartamento se concentram os vícios humanos — e a narradora compara os moradores, acertadamente, aos personagens dos Caprichos , de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a sátira ou o grotesco das gravuras do pintor, mas é igualmente implacável. Angustias, a tia hipócrita e autoritária, é “uma daquelas últimas folhas de outono, mortas na árvore antes de serem arrancadas pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que eram como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que guarda alguma dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo quase arteriosclerótico, movendo-se pelo apartamento às escuras com “distinção espectral”. Orfandade A esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet contrapõe o mundo da universidade, com os amigos igualmente burgueses, mas abastados. Pouco saberemos dos estudos, das leituras de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que sente por causa dos sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade provocado pela pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe, mesmo que isso signi�que não ter dinheiro para comer. É a forma de Andrea mendigar atenção, amor. A jornada da protagonista oscila entre preservar sua individualidade e construir relações que possam libertá-la da família — e também de seus medos, da insegurança, de suas carências. Sem amor-próprio, porém, ela se torna uma presa fácil das armadilhas que se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um grupo de jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza — ao contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos, contaminados por um persistente sentimento de inadequação. Os dias mais felizes serão passados ao lado de Ena e seu namorado, Jaime. Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada; e, terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão. Há uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu desamparo é mais vasto, mais denso. E, para amadurecer, Andrea pagará alto preço, nada aviltante, é verdade, mas constituído por uma série de descobertas dolorosas. E ela só consegue vencer algumas de suas inseguranças e abandonar a família depois de agir exatamente como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante brevíssimo tempo. A solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de um convite inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente. Fica-se, portanto, com a impressão de que o processo de amadurecimento não se completou. Ela se despede de nós — e jamais saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim, diferente do que alguns dizem, Nada não é um clássico Bildungsroman , pois enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela que ultrapassamos para garantir o direito de entrar na vida adulta. Nômade Fernando Valls, professor de literatura espanhola contemporânea da Universidade Autônoma de Barcelona, questiona-se sobre o misterioso silêncio de Carmen Laforet, do qual falamos no início. Na opinião de Valls, “tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as obras que tinham como fundo as vicissitudes de sua própria biogra�a, ela não foi capaz de obter os mesmos sucessos com a invenção de outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com absoluta razão, o caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a “exigência incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual aspirava com tamanho afã”. Faltam-me elementos para avançar nessas re�exões. Mas tenho a viva impressão de que Laforet passou sua vida em permanente crise, sem jamais encontrar a resposta que pudesse satisfazê-la plenamente. Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela renunciaria ao catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar sem rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que tudo segue, desbota, estraga, enquanto a vida continua. Que não existe �nal na nossa história até que chega a morte e o corpo se desfaz...”. Não por outro motivo, seu principal romance chama-se Nada . Mas é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de vazio tenham dominado sua existência. Viver imersa em uma atmosfera soturna teria sido um peso excessivo, injusto, para essa mulhercuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa na cisão e no ódio. TÍMIDO ACERTO DE CONTAS — JEAN-MARIE GUSTAVE LE CLÉZIO No prefácio à segunda edição de A interpretação dos sonhos , Sigmund Freud faz um longo comentário a respeito da elaboração dessa obra que se tornou marco revolucionário do estudo sobre os mecanismos da psique: “[...] Este livro tem para mim, pessoalmente, [...] uma importância que só apreendi após tê-lo concluído. Ele foi, como veri�quei, parte de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai — isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem”. À parte as considerações de cunho estritamente psicanalítico que continuam sendo tecidas a partir dessa observação; e à parte, principalmente, as simpli�cações, tão ao gosto popular — tal referência à perda do pai transformou-se num repetido aforismo —, o importante, para nosso objetivo, é o fato de A interpretação dos sonhos ter nascido, inclusive, como resposta de um homem à necessidade de assimilar o luto causado pela morte paterna. Morte, aliás, ainda segundo a psicanálise, desejada na infância. Luto, portanto, que, ao ser superado, representaria a libertação de uma culpa — e, supõe-se, o nascimento do homem pleno. Nem todos, contudo, têm o privilégio de possuir a capacidade para empreender, sozinhos, esse doloroso processo. Alguns, agindo de maneira solitária e intuitiva, alcançam certo êxito. Mas a grande maioria, inconsciente de tantas outras questões, restringe-se a cumprir seu doloroso fado. No caso do escritor Jean-Marie Gustave Le Clézio, ele também optou por escrever um livro, O africano . Regras coercivas Médico do governo britânico na África, o pai de Le Clézio passaria nesse continente a maior parte de sua vida. Separados pela Segunda Guerra Mundial, pai e �lho se reencontrariam em solo africano logo após a derrota alemã, a �m de vivenciarem o desencontro inevitável entre o garoto mimado pela mãe e pelos avós maternos — se não satisfaziam seus desejos, ele passava a jogar objetos e móveis pela janela do apartamento, até ser atendido — e o pai precocemente envelhecido, facilmente irritável, disciplinador e autoritário. Para chegar ao pai, Le Clézio retoma sua própria infância na África. Não se trata, no entanto, de uma recuperação minuciosa. Num tom intimista, o narrador discorre super�cialmente sobre corpos, rostos, cicatrizes, rituais, a falta de pudor “magní�ca”, a liberdade experimentada nas grandes extensões da savana — repetidas vezes comparada a imagens marinhas, oceânicas —, a natureza exuberante, os insetos que se reproduzem em profusão, o calor. “A África [...] dava-me um corpo dolorido e febril, esse corpo que a França me ocultara na doçura anemiante da casa de minha avó, sem instinto, sem liberdade”, diz Le Clézio, compondo uma �gura simpli�cadora. Sua vida na África, o que o autor chama de “ingresso na antecâmara do mundo adulto”, seria marcada, no entanto, pela excessiva autoridade paterna. Vivendo sob um sistema de regras coercivas — algumas, de fato, necessárias, outras totalmente absurdas —, ele conhece a submissão ao homem que, além de lhe arrebatar a mãe, tolhe sua personalidade. A cada página, aguardamos que Le Clézio enfrente o que de fato sentia em relação ao pai — quantas vezes o odiou? Quantas vezes desejou insultá-lo? Quantas noites sonhou com sua morte? —, mas a narrativa super�cial se impõe, os detalhes são escamoteados, a verdade jamais chega a emergir. Em nenhum momento o narrador se permite uma auto-análise severa — e a cada novo parágrafo temos a crescente certeza de que a intenção de esconder os fatos, dissimulada no texto, obedece à falta de coragem ou, talvez, a uma estranha necessidade de autopreservação. A tarefa de se enganar Apesar do super�cialismo, a grande tarefa que Le Clézio se impõe é a de resgatar seu pai. E ele a empreende repetidas vezes, enfocando certos assuntos, inclusive, de forma cíclica. Mas sem nunca ir ao fundo das questões. O pai foge do primeiro emprego como médico — e o narrador conclui, apressadamente, que ele o fez “para escapar da mediocridade da vida inglesa, e também pelo pendor à aventura”. O leitor se surpreende com a conclusão rápida, incisiva, sem qualquer embasamento; mas logo depois passa a compreender a lógica que move esse narrador sempre pronto a se iludir, pois, para ele, o único pai possível, o único pai aceitável é a �gura quixotesca do herói que desprezou o colonialismo — “os donos de plantações e seus ares de grandeza”, o “conformismo da sociedade inglesa”, o “mundo colonial e sua presunçosa injustiça”, com “suas amantes de ébano prostituídas aos quinze anos, introduzidas pelas portas dos fundos, e as esposas o�ciais bufando de calor e projetando nos serviçais [...] o rancor que tinham” —, isolando-se na miséria africana, lendo insistentemente A imitação de Cristo e dedicando-se, mais do que à medicina, à tentativa de, por meio da medicina, purgar-se das próprias frustrações. Além de super�cialidade, há também idealização. Um exemplo são os comentários sobre certa fotogra�a: um rio como qualquer outro rio, uma paisagem desolada, pobre e comum, tendo uma casinhola à margem. Mas o narrador vê “selvageria e mistério”. O conhecimento de que foi ali que seu pai se instalou certa vez, que essa casinha serve como exemplo de tantas outras habitações passageiras utilizadas pelo pai, basta para criar a atmosfera engrandecedora. Um psicanalista talvez possa dizer por que o pai despótico precisa ser substituído pelo pai heróico — mas, para nós, é su�ciente sabermos que a tentativa de substituição não convence. A incrível disparidade que há entre fotos e texto repete-se na descrição do rei Banso, cuja fotogra�a também ilustra o livro, levando-nos a pensar que o narrador está irremediavelmente preso às suas fantasias, tentando, a qualquer preço, dar uma nova roupagem ao frágil legado paterno. Em determinado trecho, ele diz que pode “sentir a emoção que possui” o pai “quando ele atravessa as chapadas e as planícies herbosas, quando cavalga pelas trilhas que serpenteiam por �ancos de montanhas, descobrindo a cada instante novos panoramas [...]” — mas não nos fala que emoção é essa. E não verbaliza porque não sabe, porque o pai será eternamente uma incógnita. Mas ele se dá conta dessa impossibilidade? E, principalmente, se dá conta dessa idealização pueril? Temos a impressão de que, a cada página, Le Clézio leva adiante a consoladora tarefa de se enganar. Indulgência Esse narrador pusilânime passa ao largo dos dramas que poderia esmiuçar e, quem sabe, esclarecer. Não nos explica os motivos da grave crise que dividiu e dispersou a família paterna, formada por ingleses radicados nas Ilhas Maurício. E sua visão da África está repleta dos lugares-comuns que culpam os colonizadores pela miséria do continente — mundo no qual, com exceção de seus pais, todos os brancos são impuros e não merecem con�ança. Aliás, no que se refere ao casal que o gerou, o narrador alcança o ápice da idealização: no meio de um verdadeiro inferno, vivendo expatriados de tudo que a civilização ocidental conquistou, os pais de Le Clézio são seres perfeitos — Adão e Eva expulsos da hipócrita sociedade européia e convocados a recriar o novo paraíso em solo africano. Tímido acerto de contas com o passado, O africano é o livro de um adolescente sexagenário — indulgente consigo mesmo, indulgente com a África, indulgente em relação ao pai. Como Enéias nas profundezas do Hades, Le Clézio tenta abraçar Anquises repetidas vezes, mas sempre em vão, pois a sombra paterna lhe foge de maneira irremediável. ONDE ESTÁ O BARDO? — WILLIAM SHAKESPEARE Jamais esquecerei o primeiro encontro com Shakespeare. Há quase cinqüenta anos, meu colégio organizou uma excursão a São Paulo, para que assistíssemos a Ricardo III , no Teatro Municipal. Diferente dos outros alunos, eu sabia do que a peça tratava. Não cheguei a ler Ricardo III naquela época, mas meu pai gastou um bom tempo falando-me de Ricardo, duque de Gloucester, e da Guerradas Rosas. Numa noite fria, sentamos, duas ou três turmas, lá em cima, no an�teatro — mas um fato extraordinário ocorreu. Por alguma razão, o reinado de horror transformou-se em comédia. Tudo era motivo de riso: do cortejo fúnebre de Henrique VI até os combates �nais, passando pelo assassinato dos príncipes. Um riso espontâneo, apenas aqui e ali motivado pela encenação. Eu me contorcia na cadeira, sem rir, acompanhando cada lance do drama, enquanto a platéia, às gargalhadas, refutava os con�itos, imatura para entender o patético. Saí do teatro em silêncio, devastado pelo estranhamento. Havia algo de errado em tudo aquilo — e eu me transformara num estrangeiro. Sensações semelhantes repetiram-se enquanto lia algumas das peças do Teatro completo de Shakespeare, na tradução de Carlos Alberto da Costa Nunes, publicada pela Editora Agir. Essa tradução sofre, dentre outros problemas, de um anacronismo que muitos chamam de erudição. A variada cultura de Nunes é incontestável, e raros tradutores conseguem se dedicar, com igual empenho, a originais gregos, latinos e ingleses, o que esse médico maranhense fez durante grande parte do seu quase um século de existência. Mas, neste caso, seu trabalho é carregado de cultismo, há um excesso de re�namento, e Nunes esquece que o Bardo concebeu suas peças, antes de tudo, para serem representadas. Representadas não exclusivamente à nobreza, mas principalmente no Globe Theatre, onde se reuniam bêbados, prostitutas, comerciantes, intelectuais — e também nobres. Assim, a tradução que deveria buscar a simplicidade ganha características tortuosas, como se todo clássico fosse, necessariamente, complicado, difícil. Mesmo o argumento de que a tradução de Nunes é exclusivamente para leitura não justi�ca suas escolhas, pois não há dois Shakespeares — um para o leitor solitário, outro para o palco. O dramaturgo que eletrizava as platéias do Globe — na acertada opinião de Samuel Johnson, ele “aproxima o distante e torna familiar o extraordinário” — deixou seus preciosismos para os sonetos, acreditando que eles, sim, o fariam alcançar a imortalidade; e preferindo, nas peças, dialogar com o público. Entretanto, há outras questões que merecem atenção no trabalho de Carlos Alberto Nunes. Maquinações políticas No drama Henrique VIII , por exemplo, Shakespeare abre a peça com o diálogo de Buckingham e Norfolk, duques da corte, que comentam sobre o encontro entre os reis da Inglaterra e da França, a �m de estabelecer um tratado. Criticam o excesso de luxo do evento, que durou vários dias, argumentando que tudo não passou de cenogra�a inútil, pois a França continuava a desrespeitar os termos do acordo. Buckingham, que não pôde estar presente, pergunta a Norfolk quem foi o responsável por organizar a reunião — e só depois de insistir ouve a resposta: “Alguém, decerto, / que inclinação nenhuma demonstrara / para um negócio desses”. A fala, que alude ao cardeal Wolsey, lorde chanceler de Henrique VIII, homem de sua total con�ança, soa estranhíssima, ilógica, pois a especialidade de Wolsey é, como descobrimos no transcorrer da peça, exatamente dar às super�cialidades o ar da grandeza, montar estratagemas, ser ardiloso, perseguir seus inimigos e enganar o próprio rei. Nossa tese se con�rma quando consultamos a tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, na Obra completa de Shakespeare, publicada pela Editora Nova Aguilar. Eis a resposta sucinta de Norfolk: “Alguém que, certamente, não é noviço nesta classe de negócios”. Ou seja, o oposto do que Nunes propõe. Logo a seguir, em uma fala de Buckingham, a escolha de Nunes, de se prender à versi�cação, cobra seu preço na forma de um cacófato e da sintaxe confusa, sem transparência: “[...] Ele mesmo / a lista preparou dos gentis-homens, / de maneira geral só escolhendo / os a que ele pretende impor um fardo / muito grande para honra secundária”. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes (que a partir de agora chamaremos de CM e OM), abdicando do verso, fazem melhor: “Ele mesmo fez a lista dos gentis-homens, escolhendo aqueles a quem deseja impor um pesado encargo, a troco de pequenas mercês”. Em dado momento, outro nobre, Abergavenny, comentando sobre parentes que se endividaram para participar do encontro entre os reis, a�rma: “de tal modo esgotaram seus haveres, / que jamais poderão voltar ao prístino / bem-estar da família”. CM e OM usam apenas “nunca mais voltarão ao antigo estado de conforto”, não ousando inserir um arcaísmo como “prístino”, que na década de 1950, data da primeira edição deste trabalho de Carlos Alberto da Costa Nunes, já era usado somente nos piores exemplos da oratória tupiniquim. As rubricas também apresentam problemas. Vejamos: “Entra o cardeal Wolsey; a bolsa é trazida na sua frente; alguns guardas e dois secretários com papéis o seguem”. Ora, o leitor de Nunes �ca se perguntando sobre essa estranha bolsa, mas não encontrará resposta, a não ser que leia uma das notas de CM e OM, quando será informado de que a bolsa, carregada por alguém do séquito, contém o grande selo, símbolo do rei, que confere autoridade a Wolsey. Quando Norfolk tenta acalmar Buckingham, usando alusões tipicamente shakespearianas, ele diz, segundo CM e OM: “Sede prudente, não acendais para nosso inimigo uma fornalha tão quente que sirva para chamuscar-vos [...]. Não sabeis que o fogo que empurra o líquido até fazê-lo transbordar, parecendo que o aumenta, faz que ele diminua?”. Em Nunes, a confusa organização do pensamento e a escolha de utilizar “licor” na rara acepção de “qualquer líquido” exaurem a fala: “Como o sabeis, a chama que o licor / faz subir na vasilha e derramar-se, / parecendo aumentá-lo, o esgota apenas”. As colocações dos pronomes também massacram o leitor. Agradecendo a Wolsey, o rei (Ato I, Cena 2), diz: “[...] Eu me encontrava / na iminência de ser estraçalhado / pela de�agração de uma conjura. / Mas frustraste-la; muito agradecido”. CM e OM, menos formais, novamente resolvem melhor: “Eu me achava debaixo da ameaça de uma conspiração prestes a estalar e agradeço porque a �zestes fracassar”. Cacófatos e exercícios de tortura com a língua são freqüentes em Nunes. Ouvindo as falsas acusações contra Buckingham, Henrique VIII interrompe a testemunha e comenta: “Lembro-me ainda / desse fato: sendo ele do meu feudo, / entre os vassalos dele o pôs o duque”. CM e OM, ao contrário, não maltratam o português (e muito menos o leitor): “Estou lembrando desse dia... Embora estivesse ele obrigado a servir-me, o duque o reteve a seu serviço...”. Drama da maturidade de Shakespeare, Henrique VIII é uma história de maquinações políticas — na qual a lei obedece a planos furtivos, à sede de poder, e não ao direito, à justiça. Mesmo que Wolsey acabe por ser denunciado, a sensação �nal, com a queda da rainha Catarina e o casamento de Henrique e Ana Bolena, é a da prevalência do mais ardiloso, daquele que consegue torcer a lei em seu benefício, mediante inúmeros artifícios. Como sempre, Shakespeare nos oferece um panorama da humanidade. Ou, segundo o que ensina Samuel Johnson no seu Prefácio a Shakespeare , suas peças não são, no sentido exato e crítico, nem tragédias nem comédias, e sim composições de uma espécie diferente, mostrando a condição real da natureza sublunar, que abrange o bem e o mal, a alegria e a tristeza, misturados em uma proporção in�nitamente variável e combinados de inúmeras maneiras, re�etindo o curso do mundo, onde a perda de um é o benefício de outro; onde, ao mesmo tempo, o libertino está correndo para o seu vinho e o pesaroso enterrando seu amigo; onde a maldade de um é às vezes derrotada pela galhofa de outro, e muitos malefícios e muitos benefícios são feitos e impedidos sem nenhum motivo. Em meio às intrigas da corte, por exemplo, dois lordes (Ato I, Cena 2) criticam as modas importadas dos franceses e, assim, reforçam a velha rivalidade entre França e Inglaterra — um diálogo que deveria fazer a platéia do Globe vir abaixo de tanto rir. Na Cena 4 do Ato I, o duplo sentidodas palavras confere lubricidade ao diálogo dos nobres. E quando as mulheres sentam-se à mesa, as falas prosseguem, levemente licenciosas, reforçando a sugestão do adultério que o rei está prestes a cometer. Logo a seguir, na primeira cena do Ato II, a contraposição é perfeita: graças à conversa de dois desconhecidos, sabemos que, enquanto Henrique e a corte se divertiam, Buckingham era condenado pelos juízes, apesar de os testemunhos terem sido forjados por Wolsey. Temos, então, a despedida de Buckingham, nobre, plena de dignidade, criando um terrível contraste em relação à cena passada. Durante seu discurso, o duque fala de si mesmo na terceira pessoa, como se �zesse referência a alguém que já não existe, o que amplia a dramaticidade. Aqui, na tradução de CM e OM: “Ó vós, seres raros que me estimais e ousais chorar por Buckingham; vós, seres nobres, amigos e companheiros, cujo adeus é para ele a única amargura, a única morte, acompanhai-o como amigos bons, até seu �m; e, quando o longo divórcio do aço cair sobre mim, fazei de vossas orações um inefável sacrifício e levai minha alma para o céu [...]”. Até o �nal, não menos digno, profundamente amargurado (na tradução de Nunes): “Quando algo triste relatar quiserdes, / contai como eu caí”. As escolhas de Shakespeare em relação a Henrique e Ana Bolena são curiosas. Ana parece estar longe de ser uma sedutora, mas dúvidas sobre suas intenções são despertadas no leitor por uma dama de companhia (Ato II, Cena 3). A velha irônica, que aguilhoa Ana com perguntas, coloca a nova escolhida de Henrique numa situação desconfortável. No que se refere ao rei, seu divórcio de Catarina é justi�cado utilizando-se um problema de consciência — e não o seu caráter voluptuoso, ou a necessidade de ter um herdeiro. Nesse sentido, o drama às vezes assemelha-se a uma patriotice. Os editores, infelizmente, não tiveram o cuidado de traduzir expressões ou frases que o tradutor preferiu deixar na forma original. Assim, em vários trechos, o leitor monolíngüe se perderá. Em Henrique VIII , a hipocrisia de Wolsey está concentrada na frase em latim que ele usa para tentar convencer Catarina de sua honestidade. CM e OM traduziram a fala melí�ua: “Tão grande é a integridade de nossa mente em relação a ti, sereníssima rainha...” Catarina, por sua vez, mantém-se altiva. Shakespeare constrói uma rainha inteligente, capaz de jogos verbais instigantes, como este, ao se referir aos dois cardeais que lhe oferecem, falsamente, amizade: “Eu pensava que fôsseis santos homens, por minha alma! Duas reverendas virtudes cardeais! Mas, temo que sejais dois pecados cardeais, dois corações hipócritas” (na tradução de CM e OM). Quando Wolsey começa a perder prestígio, Shakespeare rege as expectativas do público: na Cena 2 do Ato III, sabemos que o monarca conhece as intenções do cardeal — e, para nosso maior prazer, também sabemos que Wolsey não tem consciência disso, sentindo-se plenamente seguro. O vilão está em maus lençóis, mas só nós e o autor estamos cientes de sua derrocada, o que aumenta nosso prazer. Os monólogos de Wolsey, quando se vê perdido, não têm a dignidade das falas de Buckingham ou de Catarina. Seu passado não permite que tenhamos piedade dele — e seus discursos se assemelham a lamentos de uma velha raposa. Mas não deixa de ser gracioso vê-lo reconhecer que cairá “como brilhante meteoro ao entardecer” (Nunes traduz, estranhamente, “como lúcido meteoro”) ou — exemplo de sua invencível egolatria — imaginá-lo comparando-se a um anjo caído: “Oh! Como é miserável o pobre homem que depende do favor dos príncipes! Há entre o sorriso ao qual aspira, o doce olhar dos príncipes e a própria desgraça, mais tormentos e temores do que os causados pela guerra ou aqueles sofridos pelas mulheres. E quando cai, cai como Lúcifer, desesperado para sempre!” (CM e OM). Será Catarina, numa de suas falas mais brilhantes, próxima da morte, quem dará ao leitor a síntese da personalidade de Wolsey (Ato III, Cena 2): “Era incapaz de mostrar piedade, a não ser com aqueles de quem projetava a ruína. Suas promessas eram o que ele então era: magní�cas; mas o cumprimento delas era o que ele hoje é: nada” (CM e OM). Pouco antes do �nal, Shakespeare desloca nossa atenção para o povo que se espreme nos portões do palácio, acotovelando-se para ver o cortejo que leva Elizabeth, �lha de Henrique e Ana Bolena, à cerimônia de batismo. A confusa tradução — e a ausência de notas — matam o caráter malicioso da fala do porteiro, que reclama do empurra-empurra. Ele diz, respondendo ao lacaio que lhe pergunta o que deve fazer (segundo Nunes): “Que tereis de fazer, senão derrubá- los / às dúzias? Acaso isto aqui é Moor�elds, para fazerem / uma parada? Ou terá chegado a esta corte alguma / índia do estrangeiro, com uma grande cauda, para / que as mulheres nos venham sitiar dessa maneira? / Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está / acontecendo atrás das portas!”. Mas do que Shakespeare está falando? Índia com uma grande cauda? CM e OM esclarecem: “Que quero que tu faças? Que os derrubes às dúzias. Isto aqui é Moor�elds para que se reúnam aqui? Ou acaba de chegar à corte algum estranho índio com um grande instrumento, para que as mulheres nos assediem desta maneira? Deus me abençoe! Que fervedouro de fornicações há na porta!”. Completam o trecho, na edição da Nova Aguilar, duas notas: uma salienta o sentido obsceno de great tool ; enquanto a outra nos explica o porquê da referência a Moor�elds: tratava-se de um campo usado para passeios. Indulgente com a falta de escrúpulos de Henrique VIII, um personagem menor na peça, Shakespeare decepciona quando chega ao �nal, fechando o espetáculo com uma profecia sobre os grandes feitos da menina que se tornará Elizabeth I. Moral nefasta Dentre as tragédias de Shakespeare, a de abertura mais inusitada talvez seja Macbeth , principalmente para quem teve a chance de assistir no teatro. Quanto ao leitor, vê-se obrigado a imaginar, entre trovões e relâmpagos, as três bruxas que praguejam em um local deserto. As falas rápidas se sucedem, e Carlos Alberto Nunes, infelizmente, não recria o tom incisivo das imprecações. Parte da força se perde, inclusive, por ele não traduzir “Graymalkin” e “Paddock”, expressões que se referem, nas conjuras das feiticeiras, ao “Gato Cinza” e ao “Sapo”, os conhecidos animais de todas as histórias de bruxaria. Nesse começo enfraquecido, a fala que elas pronunciam em coro, antes de desaparecer — e que resume o clima da peça — também soa debilitada: “São iguais o belo e o feio; / andemos da névoa em meio”. Mas há outras traduções, melhores. CM e OM dizem: “O belo é feio e o feio é belo! Pairemos entre a névoa e o ar impuro!”; enquanto Manuel Bandeira prefere: “O Bem, o Mal! / — É tudo igual. / Depressa, na névoa, no ar sujo sumamos!”. Os leitores de Macbeth estão condenados a pairar “entre a névoa e o ar impuro”, vendo o belo ser desprezado como feio — e o feio enaltecido como belo, pois o que ressalta nessa tragédia é a corrupção transformada em motor da história. Aqui, o mal está destituído de qualquer banalidade, ganha vida própria e passa a justi�car todos os comportamentos. O corte da Cena 1 para a Cena 2, nesse primeiro ato, nos leva ao campo de batalha. O rei, Duncan, e outros nobres encontram um o�cial ferido e o questionam sobre os combates. Mas a resposta do soldado, que enaltece Macbeth por ter derrotado o rebelde Macdonwald com atos de bravura, soa parcialmente incompreensível aos leitores de Nunes. Em certo trecho, ele diz: “O impiedoso Macdonwald [...] suprimentos / das ilhas do oeste recebeu de quernes / e galowglasses ; e a fortuna, rindo / para sua querela amaldiçoada, / mostrou-se prostituta de um rebelde”. Quem seriam esses quernes e galowglasses ?, pergunta-se o leitor. Vejamos como cuidaram do trecho outros tradutores. CM e OM dizem: “O implacável Macdonwald [...] recebera das ilhas do oeste um reforço de kerns e de gallowglasses e a Fortuna, sorrindo-lhe para a maldita causa, parecia prostituir-se ao traidor”. O textocomeça a �car mais claro, e uma nota se encarregará de elucidar nossa principal dúvida: “ kerns eram soldados de infantaria, [...] geralmente usados na antiga Irlanda. Os gallowglasses eram mercenários estrangeiros armados com machados [...]”. Mas há outra solução possível, que Bandeira nos oferece, mais simples, certamente ideal para o palco: “O implacável Macdonwald [...] das ilhas do oeste recebeu reforço / De tropas irlandesas, e a Fortuna / Sorria-lhe à diabólica empreitada / Como rameira de soldado”. Ainda na Cena 2, Duncan se regozija ao saber da vitória de Macbeth e decide premiá-lo com o título que pertencia ao inimigo: thane de Cawdor. O rei termina sua ordem desta forma: Duncan — Jamais de novo há de trair o thane / de Cawdor nosso afeto. Sem delongas / o condenais à morte e com seu título / saudai Macbeth. Ross — A mim tomo esse encargo. Duncan — Folga Macbeth com o que para ele é amargo. O “ele” dessa última fala refere-se ao traidor, mas a intercalação das palavras de Ross e as frases sinuosas nos deixam em dúvida. Além disso, a acepção do verbo “folgar”, neste caso, é completamente anacrônica para o português falado no Brasil. Ninguém mais utiliza “folgar” no sentido de “ter prazer” ou “alegrar-se”. Aliás, tal uso já não era comum na década de 1950. CM e OM suavizam o caminho do leitor, optando por uma solução extremamente simples — e perfeita: “O que ele perdeu, Macbeth conquistou”. Na Cena 3 desse primeiro ato, as bruxas retornam. Macbeth e Banquo (outro comandante que luta a favor de Duncan), retornando da batalha, ainda sem saber da decisão real, serão avisados, pelas sibilas, das glórias que o futuro trará. Macbeth será, inclusive, rei. E Banquo (que mais tarde morre por ordem de Macbeth), pai de reis. A confusão dos sentidos ressurge nesse trecho. Macbeth comenta jamais ter visto dia assim, tão feio e, ao mesmo tempo, tão belo. E, segundos depois, Banquo interroga as bruxas: “Mulheres deveis ser, embora as vossas / Barbas me impeçam crer que sois mulheres” (Manuel Bandeira). Dessa forma, a própria realidade escapa a um julgamento certo, renovando os indícios de que a luta pelo poder instaurará um período de grave relativismo moral, em que a dissimulação e o crime se tornarão lei. As profecias das bruxas acendem a ambição de Macbeth, e ele percebe o quanto a fantasia se apodera de sua consciência: “Meu pensamento, onde o assassínio é ainda / Projeto apenas, move de tal sorte / A minha simples condição humana, / Que as faculdades se me paralisam / E nada existe mais senão aquilo / Que não existe” (Manuel Bandeira). O futuro enquanto potência se apropria da vontade de Macbeth, desencadeia sua cupidez — e ele se encarregará de converter o improvável vaticínio em realidade. As predições das feiticeiras não são, portanto, prognósticos certos, mas apenas liberam o mal que Macbeth já traz dentro de si. E ele tem consciência disso, pois, em outro trecho, quando se encontra diante do rei, dirá, à parte: “[...] Estrelas, escondei vossos fulgores para que a luz não veja meus negros e profundos desejos! Que os olhos se fechem diante de minha mão e, entretanto, que se cumpra o que os olhos não ousariam olhar, quando tudo estiver pronto para ser realizado!” (CM e OM). Trecho, aliás, que a tradução de Nunes descaracteriza, inclusive sob o peso de rimas paupérrimas: “Estrelas, escondei a luz jucunda, / para que a escuridão não veja funda / de meus negros anseios! Que na frente / da mão o olho se feche prontamente; / mas que se concretize o que, acabado, / faça o olho estremecer de horrorizado”. Lady Macbeth se incumbirá de empurrar o marido no escuro precipício que ele corteja. Ela não hesita nos momentos-chave e se revela mais inescrupulosa do que Macbeth. À medida que a trama avança, no entanto, o sangue se torna insuportável, e ela constata: “Nada se ganha, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos. Mais vale ser a vítima do que viver com o crime numa alegria cheia de inquietudes!” (CM e OM). A moral de Macbeth não é apenas nefasta, mas também curiosa. Para ele, se o mal praticado fosse punido somente post-mortem , não haveria qualquer problema. A questão toda se concentra no fato de que, ainda nesta vida, o mal se volta contra seu próprio agente. Esse raciocínio é um dos momentos fundamentais da peça: “Se o assassinato atirasse a rede sobre todas as conseqüências e capturasse ao mesmo tempo o sucesso; se o golpe fosse tudo e terminasse tudo aqui embaixo, no banco de areia e no baixio deste mundo, arriscaríamos a vida futura... Mas, nestes casos, somos julgados aqui mesmo; damos simplesmente lições sangrentas que, aprendidas, viram- se para atormentar o inventor.” (CM e OM) E por que, então, ele prossegue? Consciente de que o mal se voltará contra ele, por que ele continua a agir? Esta é, sem dúvida, a mais intrigante característica do homem: dar-se conta do erro — e persistir nele. Freud, referindo-se à sua própria incapacidade para abandonar os charutos, apesar de todos os males que o vício lhe causava, avaliou esse comportamento, segundo Peter Gay, como “uma disposição extremamente humana, que ele chamou de saber-e-não-saber, um estado de apreensão racional que não resulta numa ação compatível”. Nesse sentido, Macbeth não é um monstro, mas humano, demasiado humano. Ao saber da morte da esposa, a fala de Macbeth — que se tornou clássica — impressiona não tanto pela famosa conclusão de que “a vida é uma história repleta de som e fúria, contada por um idiota”, mas, principalmente, pela visão da inexorável passagem do tempo — e sua completa esterilidade: “O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em pequenos passos, de dia para dia, até a última sílaba da recordação e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos o caminho da poeira da morte”. Pensamentos, aliás, tão angustiantes quanto os de Henry ‘Hotspur’ Percy ao morrer (em Rei Henrique IV , Primeira Parte): “O pensamento é o escravo da vida e a vida é o bufão do tempo, e o tempo, que domina todo o Universo, deve ele mesmo se deter...” (traduções de CM e OM). Todas as mais esdrúxulas profecias se cumprem: a �oresta de Birnam se move — e Macbeth é morto por alguém que não nasceu de um ventre de mulher. Para esse homem cegado pela ambição, corruptor de todos os valores, nada mais justo que, no �nal, até a natureza dê a impressão de se revoltar contra ele. Quando a cabeça de Macbeth entra em cena, carregada por Macduff, o círculo se fecha — o sangue do assassino estanca o sangue das vítimas. Gigantesco bibelô Uma questão se impõe, ao �nal destes comentários: não bastasse o fato de o Teatro completo ser composto por três volumes pesados, de leitura extremamente desconfortável, qual o sentido de se reeditar uma tradução datada, que sequer foi corrigida em seus erros ou deslizes, que não oferece notas indispensáveis e cujas introduções estão superadas, em vários pontos, pela crítica contemporânea? Fariam bem as editoras se seguissem o conselho de Marcia A. P. Martins, da PUC do Rio de Janeiro, em uma das introduções a O conto de inverno , peça de Shakespeare traduzida por José Roberto O’Shea: precisamos de traduções que permitam “ao público brasileiro apreciar o verso, a verve e a riqueza imagística shakespeariana sem recorrer a pirotecnias estilísticas, que criam um efeito de intimidação e conseqüente distanciamento, ou estratégias banalizadoras, que simpli�cam a linguagem e privilegiam o enredo [...]”. Num mercado editorial caracterizado, cada vez mais, pelo pro�ssionalismo, em que ótimas traduções são oferecidas, o Teatro completo — gigantesco bibelô — caminha na contramão, colaborando para frustrar os leitores e afastá-los de Shakespeare e de sua magní�ca dramaturgia. O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL — ANTONIO DI BENEDETTO O processo impregnado de complexidade, ao qual se sobrepõem idéias de avanço ou expansão intensamente ideologizadas, e que convencionamos chamar pelo nome de progresso , tem, dentre outros, um atributo característico: tornar a organização da vida cada vez mais tortuosa, ao invésde simpli�cá-la. Progredir é, em certos casos, um sinônimo adequado de complicar. Os aparelhos, os sinais, as linguagens e os sons gradativamente incorporados à vida consomem nossa atenção, nossos gestos, nossa capacidade de entender. Além disso, do manual de instruções de um aparelho eletrônico à numeração das linhas de ônibus, passando pelo desenho das vias urbanas, pelos impostos que escorcham e pelas regras que somos obrigados a obedecer — inclusive nos atos mais simples, como o de andar a pé ou de carro —, há uma evidente arbitrariedade que se insinua no cotidiano, às vezes melí�ua, às vezes violenta. Não há espaço melhor para averiguarmos as a�rmações acima do que os principais centros urbanos. Na opinião do geógrafo Milton Santos, um marxista romântico, “a cidade é o lugar em que o Mundo se move mais; e os homens também. A co-presença ensina aos homens a diferença. Por isso, a cidade é o lugar da educação e da reeducação. Quanto maior a cidade, mais numeroso e signi�cativo o movimento, mais vasta e densa a co-presença e também maiores as lições e o aprendizado”. Essa linha de pensamento, contudo, não é seguida por nós, os realistas, entre os quais se inclui o narrador de O silencieiro , escrito pelo argentino Antonio Di Benedetto. Para nós, o progresso transformou as cidades em confusas aglomerações, nas quais a opressão e o abuso vicejam. Revolta e impotência Mais do que os comportamentos expressos pelo su�xo eiro , o narrador-personagem do romance de Di Benedetto anseia desesperadamente pelo silêncio. E não se trata de uma aspiração, mas, sim, de uma febre cuja intensidade aumenta na exata medida em que o nível dos ruídos cresce. Os barulhos, elementos inextricáveis da cidade, intrometem-se no cotidiano desse homem, ganhando, pouco a pouco, existência própria. Deixam de ser meras conseqüências do aprimoramento tecnológico e se transformam em entidades possuidoras de uma teimosia que não só perturba a vida, mas a altera profundamente. Recolhido ao quarto, o narrador ouve, por exemplo, os sons a�itivos da o�cina mecânica instalada no imóvel vizinho. Eles invadem o aposento; e a percepção do ruído é tão intensa, que não se trata de apenas ouvi-lo, mas de vivenciá-lo tal qual uma pena, um sofrimento: “Não o vejo, simplesmente o padeço”. Em outro trecho, ele dirá que o ruído chega ao “dorso” do dormitório, criando uma metáfora — repetida no transcorrer da obra — que não deixa dúvidas sobre a força do barulho, capaz de atingir o quarto como se este fosse parte do corpo do protagonista. Os ruídos indesejados arrombam a privacidade, obrigando os personagens a participarem do que não lhes interessa: um churrasco para comemorar a inauguração da o�cina; os bailes no salão aberto do outro lado da rua; o programa de rádio que o proprietário da venda próxima escuta no último volume. Página a página, os rumores circundam e acossam o narrador, obrigando-o a ser o que não deseja, a agir em desacordo com sua índole. Violentado, ele busca refúgio na lei, mas o estudo do Código Civil mostra-lhe as dubiedades do texto: uma defesa do cidadão, mas também perigosa teia, na qual o reclamante pode se tornar réu. Não há segurança, portanto. E a própria espera do barulho, sua antevisão, a certeza de que ele se repetirá, despedaça o narrador. O barulho, então, migra da o�cina para o âmago do personagem, transformando-o num hospedeiro revoltado, mas impotente: Volto ao lar. No caminho, a cidade que desce pela minha rua apaga suas vitrines, baixa persianas: desmantela seus andaimes de trabalho. Até amanhã. Mas resta um lugar onde a atividade prossegue: no dorso da minha casa. A luz cinge-se ao canto onde está o torno, esse torno que pulsa conseqüente, como descubro que começa a pulsar, na minha cabeça, uma veia que bombeia algo mais sacri�cada que as outras, e dói um pouco. Lentamente, os ruídos — cuja “sina é avançar” — o levam a pequenas distrações, pequenos erros, falhas sem importância. E à medida que o barulho deixa de ser exceção para se tornar a norma irrevogável, todas as soluções possíveis fracassam e as polaridades do real se alternam. A partir desse ponto, o drama envereda rumo à loucura, cumprindo as etapas do estresse, da doença e, �nalmente, do delírio. Mas seria ingênuo tratar esse narrador-personagem sem nome como um caso patológico. Na verdade, são os ruídos que lhe subtraem essência e existência, até levá-lo à despersonalização extrema, ao desejo da morte como promessa de um silêncio absoluto: “Penso no Além e imagino um silêncio incorruptível”. Gênese e estilo Enquanto o personagem esquadrinha a cidade em sua busca por silêncio, também sonha escrever um livro, cujo tema central seria o desamparo. Mas é exatamente essa a obra que se faz enquanto ele investiga a origem dos barulhos, livro no qual ele se encontra, cada vez mais privado do que lhe é indispensável, escrito, contudo, por outra pessoa, alguém chamado Antonio Di Benedetto. O autor, inclusive, revela — em entrevista concedida a Günter W. Lorenz — a gênese do romance, num relato que, guardadas as devidas proporções, assemelha-se à trajetória de seu personagem: [...] Digo que em El silenciero discuto o ruído físico e metafísico. Os dois me perturbam, como pessoa comum e como romancista, desde certa época penosa de minha vida. Tinha o tema, mas não conseguia nem tramar a narração nem ver e de�nir os personagens. Ainda que o protagonista fosse eu mesmo! Quando tive acesso à Europa, convenci-me de que em Paris — cidade que supunha mais ruidosa e atormentadora —, com mais seres atormentados pelas duas classes de ruídos, me envolveriam os elementos necessários para os argumentos. Puro engano. Não vi nem soube observar, ou melhor, não ouvi nem soube escutar, nem em Paris, nem em Bordéus, nem em Amsterdã, nem em Londres. Regressei à Argentina. Fiz-me todo ouvidos. Bem, é um exagero, pois na verdade não precisava me empenhar, os ruídos bloqueavam-me novamente, morti�cantes e destruidores. Observei, estudei, o problema se encarnou em personagens que começaram a dar forma ao romance. Nasceu El silenciero : psicologias, comportamentos, neuroses, metafísica de homens de cidade, talvez de qualquer cidade moderna, industrial ou pré-industrial; todavia, captadas, aprendidas, aprofundadas em meu milieu . Di Benedetto constrói sua história por meio de um estilo tenso, de frases enxutas, objetivas: uma prosa antibarroca, que dá vida à voz cortante do narrador descon�ado, prestes a explodir, andando pelas ruas como se os barulhos o tocaiassem a cada esquina. Narrada em primeira pessoa, a saga desesperante apresenta um homem indefeso, ciente de seus direitos, mas constatando a cada passo que o Estado, as pessoas e a tecnologia trabalham contra ele. Os verbos ressaltam dos períodos, formando um cortejo de sons ruidosos — bater, pregar, rebitar, fender, limar, acelerar, acionar, acometer, esfregar, morder, triturar — que acabam por engolfar o leitor. De fato, a precisão das palavras torna �agrante a materialidade dos ruídos e os diferentes estados de ânimo que o narrador observa ou experimenta. Por exemplo, ao se referir à mãe, com quem vive, ele a�rma: “Andava crivada a buzinaços”. E quando o delírio sobrevém, a confusão mental é evidente: “Na esquina bebe — ou esteve bebendo — uma grossa serpente que se arrasta pela rua. O bombeiro que cuida dela nesta ponta me tira a apreensão: não se trata do meu lar”. A vida imposta No período de tempo em que �nalizo esta análise, o fragor das ruas invade mais uma vez o apartamento. Uma serra circular guincha com estridência em algum ponto; da quadra da escola, situada no quarteirão em frente, sobe insistente microfonia e a voz melancólica do funcionário que testa o ampli�cador dezenas de vezes; ônibus e carros aceleram, freiam, buzinam; um operário arranca a marteladas a estrutura de ferro que, presa à marquise do prédio, sustentava um letreiro. É sábado, início da manhã, o inferno da cidade apenas começa — e não sou o protagonista de O silencieiro . Ou talvez seja, talvez tenha sido sempre, semsaber. A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da tecnologia fugiram, há muito, do nosso controle. Entre a elaboração da ciência e os resultados que ela provoca — em termos de técnicas, instrumentos, modos de vida e variações de comportamento —, existe um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O silencieiro se diz um mártir, “mártir da pretensão de viver minha vida e não a vida alheia, a vida imposta”. Como resposta, ouve de um político, ex-jornalista, a acusação de ser “inimigo do progresso”, ou seja, nada mais que o velho recurso dos cínicos, o lugar-comum que serve para manter as coisas exatamente onde estão. Assim, vivendo sob a arbitrariedade, o narrador-personagem descobre, com amargura, que a lógica e a ética não servem à vida real. Os fatos se colocam apenas; são o que são. Os ruídos produzem loucos que, por sua vez, buscam novos ruídos — ou uma solução excêntrica, semelhante à experimentada pelo silencieiro, mas de conseqüências injustas e implacáveis. HEROÍSMO ANÔNIMO E PERFEIÇÃO — ARTHUR MILLER A contística de Arthur Miller, reunida em Eu não preciso mais de você , não pode ser equiparada à sua dramaturgia, mas se impõe como exemplo de �cção madura e persuasiva. Bastaria, para elogiar Miller, a consciência, exposta no Prefácio, do que os gêneros literários exigem, o dever de “seduzir, ameaçar ou domar” o público. “Mais perto ou mais longe do terrível calor do centro do palco”, o dramaturgo também sabe que, além de exigir o “tom adequado”, nenhum gênero sozinho “é capaz de fazer tudo direito”. Certa mescla de sobriedade e delicadeza con�gura grande parte das narrativas, como “Monte de Sant’Angelo” — em que a busca pelas raízes familiares contagia um amigo insensível —, “Por favor, não mate nada” — singelo hino de louvor à vida, destituído dos nossos conhecidos e maçantes discursos politicamente corretos — e “Moça do lar, uma vida”, na qual insegurança e dúvidas perturbam a protagonista sem vencê-la, sem condená-la ao tédio ou à alienação. O herói clássico ressurge em “A noite do serralheiro”. Tony Calabrese é o homem simples, �lho de imigrantes, marcado por diversas fraturas morais, vítima, na juventude, da manipulação familiar. A chance de redenção chega em uma noite invernal — mais uma em que ele �nge trabalhar. Calabrese afasta, ainda que de forma temporária, os planos mesquinhos, a preguiça e os ressentimentos para se debruçar sobre a escuridão, vencer o medo e os limites físicos e cumprir seu dever. Poder de descrição, técnica para intercalar planos narrativos e aguda psicologia dão vida a esse personagem complexo e cativante. O mesmo heroísmo anônimo marca “A profecia”, em que a protagonista, reconciliada consigo mesma, chega ao �nal livre para se sentir “enlevada pelo coração daqueles cujas portas resistem aos ventos do mundo”. A narrativa que dá título ao livro lembra Pelos olhos de Maisie , de Henry James, mas com a concentração, a tensão que só o gênero breve permite. A história do garoto problemático, febril e fantasioso termina numa doce epifania — e rea�rma a metáfora de Cortázar ao de�nir o conto: “Um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência”. Há também um Miller capaz de não se submeter ao senso comum da esquerda norte-americana que apoiou Stálin mesmo depois do Pacto Molotov-Ribbentrop — em “Moça do lar, uma vida” — ou se empanturrou de freudismo e utopia apenas para apaziguar sentimentos de culpa — em “O engenho de terebintina”. Esse olhar crítico, deliciosamente irônico, aprimora o que transpira perfeição. LITERATURA E POPULISMO — KIRAN DESAI Aos pés do Kanchenjunga, no sopé da cordilheira do Himalaia, “onde a Índia se dissolve no Butão e no Sikkim”, diz o narrador de O legado da perda , transcorre grande parte da história escrita por Kiran Desai, a ganhadora do Booker Prize de 2006. Em uma velha propriedade, cercada de árvores antiqüíssimas e distante de Darjiling e Kalimpong, os centros urbanos mais próximos, tudo está em decadência: além da escuridão e da umidade, escorpiões, besouros, ratos e cupins dividem a casa com um cozinheiro senil, uma cachorra medrosa, Mutt, o misantropo juiz Jemubhai Patel, aposentado do Supremo Tribunal, e sua neta, Sai, jovem de dezessete anos que perdeu os pais repentinamente e, obrigada a abandonar o colégio interno, foi acolhida pelo avô. Descendo a colina onde se localiza a residência do juiz, a meio caminho das cidades, um pequeno grupo de ingleses, vivendo na Índia há décadas, forma o microuniverso que cultua as tradições britânicas: tio Potty, as irmãs Noni e Lola, e o padre Booty. Na periferia de Kalimpong mora Gyan, contratado para dar aulas de matemática e física a Sai, por quem se apaixonará. E a milhares de quilômetros dali, em Nova York, encontra-se o ingênuo Biju, jovem �lho do cozinheiro de Jemubhai Patel, saltando de emprego a emprego com uma única ambição: conseguir o green card . Em torno desses personagens, Kiran Desai organiza sua trama, usando um narrador nem um pouco ingênuo, atento às diferenças sociais, às injustiças e ao conjunto de mazelas presente na história da humanidade, e não só no mundo globalizado: pobreza, doenças, ignorância. Para o narrador, a lógica da subserviência foi interiorizada, graças em parte ao sistema de castas, pelos serviçais indianos; os preconceitos se manifestam nos atos e nos pensamentos de ricos e pobres, indiferentemente; e as desigualdades sociais imperam, formando a regra geral da humanidade, onde não há espaço para o exercício de compreender o semelhante. Oferecendo como pano de fundo os dramas dos personagens — a solidão, o cinismo e os ódios do magistrado; a insegurança e a sinceridade de Sai; as agruras sofridas por Biju —, o narrador coloca no centro do seu relato as contradições da história, intensi�cadas pela globalização, e as titubeantes reações dos homens, lutando para se impor sobre os demais ou, apenas, viver suas próprias vidas, seguindo suas escolhas particulares. A �m de alcançar esses objetivos, nenhum meio é desprezível: mentira, adulação, perfídia, força e, claro, �ngida submissão — armas que, quando menos se espera, podem ser úteis. Nada escapa à observação e aos comentários desse narrador. Os nepaleses radicados na Índia se revoltam, de�agram a guerrilha e isolam a região, acentuando as diferenças sociais e os preconceitos. Os pobres não sonham à noite com “símbolos freudianos [...], mas com códigos modernos, os dígitos de um telefone [...], uma televisão falsi�cada”, tamanho é o desejo de consumir. Em Kalimpong, diante de um laboratório de análises clínicas, a ameixeira é regada com sangue podre. Na �la para solicitar um visto de entrada nos EUA, os indianos se esforçam para “mostrar aos funcionários que eram um grupo pré-selecionado, numericamente restrito, perfeito para viajar ao estrangeiro, hábeis no uso de garfo e faca, não arrotavam alto, não trepavam no assento da privada para �car de cócoras como muitas mulheres da aldeia estavam fazendo nesse momento mesmo não tendo nunca visto uma privada antes, despejando água para limpar os traseiros e inundando o chão com pedaços de merda molhada”. E na comunidade de imigrantes que conseguem chegar aos EUA, ali também há vencidos e vencedores, exploradores e explorados, enquanto palpita no coração de todos o mesmo desejo: o green card . Também para esses o narrador reserva sua ironia: Para ir embora queria um green card . Era um absurdo. Como ele desejava a triunfal Volta ao Lar Pós-Green-Card , tinha sede disso, poder comprar uma passagem com um ar de alguém que podia voltar se quisesse, ou não, se não quisesse... Olhava os estrangeiros legalizados com inveja quando compravam nas lojas baratas de bagagem a miraculosa mala expansível do terceiro mundo, dobrada como uma sanfona, cheia de bolsos e zíperes para outras aberturas, a estrutura toda se abrindo num espaço gigantesco capaz de conter o su�ciente para uma vida inteira em outro país. Um narrador implacável, que aponta os erros e as culpas de todos, sem verdadesprontas, sem receitas politicamente corretas, corajoso o su�ciente para recusar as falsas soluções da esquerda ou da direita — mas nem sempre. Tropeços Em certos momentos, a in�exibilidade do narrador descamba para a crítica maniqueísta, demonstrando um esquerdismo às vezes dissimulado, às vezes ostensivo. Vejamos alguns exemplos. Para as inglesas Lola e Noni, certos sentimentos só devem ser mencionados entre pessoas socialmente iguais. Certo dia, Kesang, a criada, relata às patroas seu casamento com o leiteiro, a grande paixão de sua vida, e chega às lágrimas. Essa incontrolável emoção choca as irmãs. Na opinião de Lola, “os criados não experimentam o amor da mesma forma que gente como elas duas”. A seguir, Lola re�ete consigo mesma, concluindo que “nunca havia experimentado a coisa real”, essa “fé no mergulho da paixão”. Quanto a Noni, o narrador é taxativo: “Nunca amara de jeito nenhum. Nunca sentara em seu quarto silencioso e conversara sobre coisas capazes de fazer sua alma tremular como uma vela. [...] Nunca desfraldara sobre sua existência a breve bandeira gloriosa do romance”. Assim, Noni chega a “sentir inveja” de Kesang. Ora, a idéia de que somente os pobres podem ser capazes de um amor genuíno, sincero e profundo não é apenas melodramática, mas populista, demagógica. Esse exagero no enaltecimento dos pobres — sob o qual se esconde o objetivo de depreciar as remanescentes dos colonizadores britânicos — surge como uma saída excessivamente fácil e, portanto, inconvincente. Nossa con�ança no narrador se quebra quando ele não consegue manter uma distância respeitosa de sua história e decide intervir, fazendo críticas que vão muito além das digressões próprias de um narrador em terceira pessoa: “Said logo encontrou trabalho na Banana Republic, onde ia vender para os so�sticados urbanos a gola rolê preta da moda, uma loja cujo nome era sinônimo da exploração colonial e da rapina do terceiro mundo”. A conclusão não pertence a Said — aliás, um tipo engraçadíssimo, que não dá a mínima para a “exploração colonial” —, mas ao narrador onisciente. Este, perdendo o controle, abandona a necessária circunspecção e passa a exprimir julgamentos que remetem o leitor a uma autoridade colocada fora da trama. À medida que tal prática se repete, a verossimilhança se desintegra. O narrador também dedica o mais absoluto desprezo aos indianos que, vivendo fora de seu país, �zeram fortuna e se ocidentalizaram, abandonando os costumes tradicionais. Há sempre um olhar de crítica para eles, descrições que beiram o sarcasmo, como se enriquecer e adquirir novos hábitos fossem atos impuros, pecaminosos. Outro aspecto, ainda que menor, contribui para prejudicar a leitura: a autora abusa das onomatopéias, um recurso que, vez ou outra — na voz, por exemplo, de um personagem cômico ou de uma criança —, até pode ser sugestivo. Em O legado da perda , contudo, tais signos infantilizam a narrativa — “O tom abafado das rezas rolara pelas montanhas quando as mulas e cavalos passaram pocotó-pocotó saindo da névoa [...]” — ou, além de tornar infantil, surgem como elementos completamente desnecessários: “Ia subir e descer a montanha em dias de mercado, com enfeites dourados, deuses em cima do painel, uma buzina cômica, PÓpumPOM pó ou TUÍI-dii-dii DII-TUÍI-dii-dii”. Quem sabe híndi? A edição brasileira de O legado da perda oferece alguns obstáculos ao leitor. Há centenas de palavras, às vezes frases inteiras, escritas, aparentemente, em híndi, que não mereceram notas de rodapé É explicativas. É estranho que o editor tenha optado por traduzir ou tornar compreensíveis os títulos de canções e as expressões idiomáticas de língua inglesa, esquecendo do leitor brasileiro no que se refere ao híndi. Assim, aprendemos, por exemplo, que Let’s B Veg é uma “brincadeira lingüística com Let’s Be Vegetarian — Vamos ser vegetarianos”, mas jamais saberemos o que um motorista de táxi está dizendo ao perguntar: “ — Oi, koi hai? Khansama? Uth. Koi-hai? Uth. Khansama ?”. O que signi�ca laddus ? E puris ? E salwar kauriz ? E to sunao kahani ? E ghas phus , ekdum bekaar , bidis , kakas-kakis-masas- mais-phois-phuas ? Tais expressões pululam em quase todas as páginas, chegando, algumas vezes, a comprometer a leitura. Uma mulher pergunta pela esposa do juiz Patel e insiste: “— Não tem nenhuma história de purdah , espero?”. Na página seguinte, o problema se repete, aparentemente acentuado, na voz de outra mulher: “— O senhor tem uma swaraji bem debaixo do nariz”. A reação de Patel é de indignação e revolta contra a esposa, e até supomos, parcialmente, qual é o problema, mas as lacunas permanecem, insuperáveis. Os leitores até podem correr ao Google ou a dicionários em busca de um e outro signi�cado, mas tal quantidade de palavras merecia atenção especial. Se o editor optou por não encher as páginas com notas de rodapé — decisão, aliás, compreensível —, um glossário, colocado no �nal do volume, resolveria o problema. A verdade Se deixarmos de lado as irregularidades, o romance oferece bons momentos. Há ótimas descrições da cachorra Mutt, humanizada graças ao amor incondicional que o juiz lhe devota. O personagem Gyan cresce no transcorrer da narrativa, dividido entre a guerrilha — luta que lhe parece uma opção concreta diante de sua vida banal, sem possibilidades de mudança — e o amor por Sai, a jovem ocidentalizada e, exatamente por esse motivo, difícil de amar e compreender, já que ela parece ter assimilado os “vícios” dos colonizadores ingleses. E também os trechos em que o juiz mergulha no passado, a �m de reencontrar as razões de todos os seus ressentimentos: apesar de poucos, são notáveis. O melhor, no entanto, �ca para Sai, talvez o alter ego da escritora. Só ela encontra a redenção. Só ela descobre que, diante da covardia, do medo, dos costumes desumanos ou da mediocridade, o homem deve reinventar a vida acreditando em seus próprios valores. E que, para os espíritos realmente livres, a verdade está sempre à mão. A ADÚLTERA E A CONTRADIÇÃO — GUSTAVE FLAUBERT Gustave Flaubert escreveu Madame Bovary entre 1851 e 1856. Na verdade, “escrever”, neste caso, é um eufemismo. O verbo não dá conta de todos os estados emocionais experimentados durante a execução do projeto e, muito menos, do confronto ocorrido — não só naqueles anos — entre o escritor e as palavras. Mas podemos acompanhar os altos e baixos da relação autor–obra lendo a correspondência de Flaubert, da qual uma pequena parte foi traduzida no Brasil. No início de novembro de 1851, ele escreve à amante, Louise Colet: “[...] Avanço penosamente no meu livro. Eu gasto bastante papel. Quantas rasuras! A frase demora a vir. Que diabo de estilo escolhi! Que desgraça os temas simples!”. E conclui: “Eis-me comprometido por um ano pelo menos”. Poucas semanas mais tarde, em fevereiro de 1852, percebe que previu mal o futuro: “[...] Isso está tomando proporções formidáveis em termos de tempo. Com certeza, eu ainda não terei terminado até o início do próximo inverno”. E as di�culdades persistem: “Não escrevo mais que cinco ou seis páginas por semana”. Mal abril começou, ele está desesperado: Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem. [...] Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí? Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia; e qual o �m de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em que se amparar a não ser a ferocidade de uma fantasia indomável. Ainda escrevendo a Louise, sua privilegiada interlocutora, a 24 de abril ele experimenta sentimentos contraditórios: Eu completei [...] vinte e cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram duras de conseguir. [...] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no momento não vejo mais nada. [...] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria exterior e onde não tenho nada em que me apoiara não ser uma espécie de raiva permanente, que às vezes chora de impotência, mas que é contínua. Eu gosto do meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando, depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não �z nem uma frase, caio no meu divã e �co ali paralisado num pântano interior de tédio. Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da quimera. Um quarto de hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava, deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da satisfação de tê- la encontrado. Até o início de junho de 1856, as cartas oscilarão do júbilo ao cansaço, do desespero ao encontro repentino de forças para perseverar, da repugnância ao prazer de conseguir a palavra correta para o que ele deseja dizer. “Passo várias horas a procurar uma palavra”, a�rma em maio de 1852. No dia 23 do mesmo mês, sente-se “estéril como uma pedra”. Mas em 18 de julho, comemora: “Quinta à noite, às duas horas da manhã, eu me deitei tão animado com meu trabalho que às três me levantei e trabalhei até o meio-dia. [...] Eu ainda sinto o gosto dessas trinta e seis horas olímpicas e �quei contente, como na felicidade”. Entretanto, passados quatro dias, se diz pronto a “recopiar, corrigir e rasurar toda a primeira parte”, concluindo: “Que coisa desgraçada é a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre”. E logo depois, a 27 de julho, a constatação lapidar: “Ao escrever esse livro, eu sou como um homem que tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange”. No dia 26 de outubro, a�rma ter “vinte e sete páginas (quase prontas) que são o trabalho de dois grandes meses”. Em janeiro de 1853, diz ter conseguido 65 páginas em cinco meses. Em abril, contando a partir de janeiro, alcança a marca de 39 páginas. E em meio à “fadiga” e à “fetidez do tema”, que se alastram por todo o abril, ele lamenta: “Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos adiantado no �m do dia do que no começo”. Quando chega outubro, ele detesta o livro e a si mesmo: Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra mais forte, eu a empregaria) que eu �co às vezes doente �sicamente. Há três semanas que tenho com freqüência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às vezes sou tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que santa idéia maldita eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci, os pavores da Arte! No entanto, pouco antes do Natal, a 23 de dezembro, às duas da madrugada, Flaubert, apesar de “fatigado com a lentidão” e de temer “o despertar, as desilusões das páginas recopiadas”, é um homem seduzido pela escrita: [...] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa �oresta, por uma tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? Ou então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc! Mais tarde, em 18 de abril de 1854, ele reclamará novamente: “Quando é que virá o dia bem-aventurado em que escreverei a palavra �m ? Em setembro, vão fazer três anos que estou neste livro. É muito, três anos passados sobre a mesma idéia, a escrever com o mesmo estilo [...], a viver sempre com os mesmos personagens, no mesmo meio, com os �ancos de encontro à mesma ilusão”. No ano seguinte, 1855, em maio, escrevendo ao amigo Louis Bouilhet, diz temer que o �m do romance pareça “acanhado, pelo menos como dimensão material”. Quando setembro está prestes a terminar, trabalha “mediocremente e sem gosto ou talvez com desgosto” e se diz “verdadeiramente cansado”. Finalmente, a 1º de junho de 1856, revela a Bouilhet ter enviado o manuscrito ao editor — mas só depois de suprimir “cerca de trinta páginas, sem contar nisso aí muitas linhas subtraídas”, além de detalhar vários outros cortes. Método e paixão Se há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase in�nito de se escrever uma biogra�a. Esse período de 1851 a 1856 poderia ser visto sob diversos prismas, mas pre�ro pensar nesses anos torturados como uma seqüência de meses centrais na carreira do escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary , mas principalmente pelas centenas de páginas jogadas no lixo, pelo número inexprimível de palavras rasuradas e frases refeitas, pelas horas de angústia e pelo gozo, ainda que efêmero, de chegar a um resultado — uma infatigável luta com as palavras. Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele sabia que “todo talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a força” — diz a Louise Colet, a 22 de julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha, imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a emoção e a palavra. O narrador de Madame Bovary conclui em certo trecho que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas”. Ter a clara consciência da imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão, exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão terrível de seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato, em 22 de abril de 1853, ele escreve: “O único meio de viver em paz é colocar-se, de um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada em comum com ela, a não ser pelo olhar”. Se Flaubert agiu corretamente ao se transformar em um tipo especial de misantropo, isso podemos discutir em outro momento. O que interessa neste texto é que, pensando dessa forma e agindo como agiu, exatamente por esses motivos, deu vida a Emma Bovary. Em seu ensaio sobre Flaubert, Henry James chama nossa atenção para a personalidade de Emma: “[...] Ela mergulha cada vez mais fundo em duplicidade, dívidas, desespero, e encontra um �m trágico [...]. E faz tudo isso enquanto permanece absorvida pela visão e pela intenção românticas, e permanece absorvida pela visão e pela intenção românticas enquanto rola na lama”. Ora, a febre de Emma re�ete a febre de seu criador. Flaubert não escreve apenas, mas se espoja nos rascunhos da obra, cego a tudo que não seja o romance, reclamando do que o obriga a interromper seu trabalho e procrastinando o mais que pode os encontros com Louise Colet, dedicado exclusiva e apaixonadamente à literatura, escrevendo e devorando Rabelais, Cervantes e Montaigne — a vida que ele chamou de uma “orgia perpétua”. Fetichismo Mas para se viver em uma “orgia perpétua” faz-se necessário desejar não somente o clímax do prazer — esse gozo que se aproxima do estertor. Alguns amantes imaginam quea volúpia é feita também do amor aos detalhes; às vezes, do apego fetichista a este ou àquele pormenor. E Flaubert demonstra ser esse tipo doentio de amante. Uma cena, para ele, requer a evocação de tantas minúcias, que chegamos a nos perguntar se, de fato, tudo é imprescindível. Mas tudo é imprescindível. Um editor malevolente poderia suprimir algumas frases — e Madame Bovary continuaria genial. Perderíamos, entretanto, uma série de elementos que, combinados, não só forjam verossimilhança, mas seduzem, modelam o mundo do qual nos aproximamos como animais curiosos, sedentos de uma realidade que não seja a nossa. Quando Charles Bovary visita pela primeira vez a propriedade dos Bertaux, onde Emma vive com o pai, a quinta se revela para o leitor em meio à sonolência do médico. Amanhece, e não bastasse o vapor úmido que se eleva de uma grande estrumeira, “sob o telheiro havia duas grandes carroças e quatro charruas com seus chicotes, seus cabrestos, sua equipagem completa, entre os quais as peles de carneiro pintadas de azul sujavam-se com o pó �no que caía dos celeiros”. Ao penetrar na casa, Bovary vê o almoço dos criados fervendo ao redor do fogo, as roupas úmidas secando na lareira, e “a pá, as pinças e os foles, todos de proporções colossais”, que “brilhavam como aço polido”, e a “abundante bateria de cozinha onde se re�etiam de forma desigual a chama clara do fogão juntamente com os primeiros raios de sol que entravam pelas vidraças”. É a exaltação do detalhe. Mas não há um único elemento que, ao ser retirado, dele possamos dizer: — Realmente, era desnecessário. Nas seguidas visitas que Bovary faz aos Bertaux, Emma, ao se despedir, sempre o acompanhava até o primeiro degrau da escada externa. Enquanto não traziam seu cavalo, ela permanecia ali. Já se haviam despedido, não se falavam mais; o ar livre a rodeava, levantando em desordem os pequenos e loucos cabelos de sua nuca ou sacudindo em seus quadris os cordões do avental que se enroscavam como bandeirolas. Uma vez, num dia de degelo, a casca das árvores ressumava no pátio, a neve fundia nos telhados das construções. Ela estava na soleira da porta; foi procurar a sombrinha, abriu-a. A sombrinha de seda furta-cor que o sol atravessava iluminava com re�exos móveis a pele branca do seu rosto. Embaixo, ela sorria no calor tépido e ouviam-se as gotas d’água, uma a uma, que caíam sobre o chamalote esticado. O jogo de luzes, a brisa e a leve tensão da despedida, ampliada pelo silêncio de Emma e Charles. E as gotas d’água a entrecortar o silêncio, propagando ainda mais a tensão — Flaubert interliga os elementos, e semeia no leitor o desejo de estender a mão para conceder à cena o tato, o sentido que falta. Algum tempo depois do casamento, os Bovary são convidados ao castelo do marquês de Andervilliers. Emma penetra em uma galeria na qual se sucedem, “sobre a madeira escura do lambri”, as pinturas que retratam os antepassados da família. Ela tenta, em vão, captar todas as imagens, sorver cada detalhe, mas é impossível: Depois, mal se distinguiam os que vinham em seguida, pois a luz das lâmpadas, caindo sobre o tapete verde do bilhar, deixava �utuar uma certa sombra na sala. Escurecendo as telas horizontais, quebrava-se contra elas em �nas arestas seguindo as fendas do verniz; e, de todos aqueles quadrados negros debruados de ouro saíam, cá e lá, uma porção mais clara de pintura, uma fronte pálida, dois olhos que �xavam o observador, perucas que caíam sobre os ombros empoeirados dos trajes vermelhos, ou então a �vela de uma jarreteira no alto de uma panturrilha roliça. A miríade de pormenores, a volúpia por descrever, por chafurdar num oceano de cores, formas e perfumes, se repetirá sempre. Flaubert agoniza para dar conta de toda a realidade, e parece, a cada novo parágrafo, próximo do paroxismo ou do êxtase, o que con�gura uma sobrecarga emocional permanente. Quando Emma retorna do castelo, sofrendo pelo fato de abandonar aquele mundo ideal, fecha “piedosamente na cômoda seu belo vestido e até seus sapatos de cetim [...]”. Mas não só. Falta algo à frase. E então Flaubert nos oferece o complemento preciso: “[...] cuja sola amarelara-se com a cera deslizante do assoalho”. A busca do pormenor exato faz com que Flaubert escreva a um passo do esgotamento; mas ele se dispõe a pagar o preço, a �m de que nada escape ao leitor. Amor e ódio Esse extremo cuidado com os detalhes nos fornece indícios da personalidade de Emma desde as primeiras páginas do romance. Em uma das visitas de Bovary à quinta dos Bertaux, o futuro casal bebe licor. Depois de servir a si mesma uma dose pequena, Emma leva o copinho à boca: “Como estava quase vazio, ela inclinava-se para trás, para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da língua entre os dentes �nos, lambia aos poucos o fundo do copo”. A adúltera já não está toda nesses gestos? Sua luxúria não freme na ponta dessa língua serpeante? Flaubert descreve bem inclusive quando recusa pormenores ao leitor. Depois de reencontrar Léon Dupuis em Rouen, Emma iniciará seu segundo caso de adultério, agora com o jovem escrevente, que conhecera em Yonville. Quando saem da catedral e se fecham na carruagem que passa a trafegar por toda a cidade, nada mais sabemos. O escritor não precisa dizer o que ocorre por trás das cortinas — e também não precisamos ter, sob os olhos, um mapa de Rouen, a �m de acompanhar a sucessão de ruas. O in�ndável e tortuoso percurso alimenta num crescendo a nossa descon�ança e, ao mesmo tempo, explica tudo. À nossa imaginação bastam a mão nua que passa sob as cortinas e joga fora a carta de despedida que Emma havia escrito a Léon, agora transformada em pedacinhos de papel; e depois de horas fechados ali, a mulher que desce sozinha, “caminhando com o véu abaixado e sem virar a cabeça”. Minutos mais tarde, sabendo que o marido a aguarda em Yonville, o narrador arremata nossa certeza, dizendo que Emma sente “no coração aquela covarde docilidade que é, para muitas mulheres, ao mesmo tempo como o castigo e o preço do adultério”. O escritor nos faz amar e odiar Emma Bovary. Poucos homens não se encantariam ao ver a clara nudez dessa mulher contrastando com o carmim das cortinas de má qualidade e, a melhor parte, depois que não existem mais segredos, ela, tão experiente em dissimular e trair, agindo como uma menina envergonhada: “A cama era uma cama de casal de acaju em forma de barca. As cortinas de levantina vermelha que desciam do teto fechavam-se baixo demais, perto da cabeceira que se alargava; e nada havia no mundo de mais bonito do que sua cabeça morena e sua pele branca destacando-se sobre aquela cor púrpura quando, com um gesto de pudor, ela fechava os dois braços nus, escondendo o rosto nas mãos.” Nossa imaginação despreza as cenas chulas e o vocabulário mortalmente cru ao nos depararmos com uma descrição que oferece, melhor que as palavras grosseiras, o frenesi da entrega: “Despia-se brutalmente, arrancando o �no cordão do seu corpete que lhe sibilava ao redor das ancas como o escorregar de uma cobra. Ia na ponta dos pés nus ver ainda uma vez se a porta estava fechada; depois, com um único gesto, deixava cair, juntas, todas as suas roupas; — e, pálida, sem falar, séria, abatia-se contra seu peito, com um longo estremecimento.” Mas ela se entrega apenas quando ama. Chantageada, oprimida pela cobrança das dívidas e das promissórias, pelo processo e pela penhora dos bens, pode insinuar a Léon que ele deveria roubar para ajudá-la, mas não aceita ser seduzida pelo notário de Yonville. Revolta-se, tenta persuadir Rodolphe, o primeiro amante, a lhe dar dinheiro, e quando percebe que está perdida, manipula ainda uma última vez. Demonstrando a argúcia e a agilidade de re�exos que a tornam exuberante, manipula para poder se matar. E a mesma avidez daquela língua que buscava o fundo do copo de licor, reencontramos na mão que, arrancando a rolha do pote de veneno, mergulha para retornar cheia do pó branco que Emma sepõe a comer sofregamente. A dor das mulheres Numa carta de setembro de 1852, Flaubert escreve a Louise Colet sobre a dor das mulheres, de como se aproximou delas e as observou para escrever seu romance: “Eu conheci suas dores, pobres almas obscuras, úmidas de melancolia guardada, como estes pátios fundos das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo”. Pergunto- me o quanto esta a�rmativa é sincera. Quem escreve não é o homem que pretendia viver acima da humanidade, sem nada ter em comum com ela, “a não ser pelo olhar”? A contradição do escritor revela mais que a mera simpatia pelo drama alheio. O intenso desejo de perfeição, a busca febril dos detalhes e das palavras precisas — essas forças certamente dominam Flaubert. Mas no íntimo desse homem há lugar para a solidariedade que o aproxima de seus semelhantes. Caso não fosse assim, não teria criado uma personagem tão múltipla, em relação à qual não só ele, mas todos nós, com maior ou menor exatidão, podemos dizer: Madame Bovary c’est moi . O PREÇO DE SER UM HERÓI — SANTIAGO RONCAGLIOLO O romance Abril vermelho , do peruano Santiago Roncagliolo, vencedor do Prêmio Alfaguara de Romance 2006, é um thriller que reúne suspense, terrorismo, paixão, violência, neuroses familiares, política e humor. Todos esses elementos são arranjados por mão �rme, hábil em criar uma trama que — depois de enganar o leitor com pistas falsas — será resolvida apenas nas últimas páginas. Entre 9 de março e 3 de maio de 2000, nos estertores do governo Alberto Fujimori, o promotor distrital adjunto Félix Chacaltana Saldívar vê-se envolvido numa série de terríveis e inexplicáveis assassinatos. Decepcionado com o casamento, ele abandonara a capital, Lima, para viver em Ayacucho, a cidadezinha onde nasceu. E lá, ao contrário da tranqüilidade que busca, servindo a um Estado no qual os militares e o serviço de inteligência comandam a democracia de fachada, à sombra do Sendero Luminoso, Chacaltana terá de enfrentar inúmeras verdades. Ele é o burocrata de meticulosidade ímpar, um perfeccionista cuja compulsão não se restringe apenas ao apego às leis, mas abraça cada detalhe de sua vida, incluindo o uso da sintaxe nos relatórios que envia aos superiores. Preocupa-se com a expressão perfeita, independente de relatar ou não a verdade. Ao mesmo tempo, é tímido, ingênuo, menosprezado por todos e alvo de chacotas. Parece �anar acima da realidade, dividido entre a parvoíce e um agudo senso de dever, que o forçará a seguir em frente nas investigações, apesar do seu receio e dos empecilhos criados por policiais e militares. O início da história oferece ao leitor páginas cômicas, relatadas por um narrador sarcástico, nas quais surge Chacaltana, esse promotor que dialoga com a mãe já falecida e age em seu cotidiano como se ela estivesse viva; e que, para se sentir seguro, chega a dormir na cama materna. Lentamente, à medida que os crimes se sucedem e a investigação avança, ele se arrepende de cada nova pista descoberta, pois sabe que isso o obriga a perseverar. Forçado a agir, o homem que acreditava representar a lei descobre, atônito, uma realidade sobre a qual não possui nenhum poder. A cada passo, Chacaltana percebe que seus relatórios são peças inócuas dentro da vasta e emaranhada máquina estatal, e, ainda pior, que todos estão envolvidos numa vergonhosa trama: militares, governo e Igreja — há, por exemplo, um crematório, construído por solicitação do Exército, no subsolo da casa paroquial. Poder e linguagem A partir de certo momento, Chacaltana nota que todos aqueles com quem conversa acabam assassinados. Torna-se, desse modo, o centro dos crimes que investiga: uma espécie de Édipo, buscando às cegas o assassino que, indiretamente, parece ser ele próprio. Descon�ado de todos, vendo todas as certezas ruírem, “se o promotor Chacaltana sabe algo por experiência própria”, como a�rmou Santiago Roncagliolo, em seu discurso ao receber o Prêmio Alfaguara, é que toda paz implica olhar o horror cara a cara e ser capaz de certo grau de perdão. Mas ele também sabe que todo perdão traz consigo uma injustiça. Viver sem sangue signi�ca, de alguma forma, conviver com aqueles que o derramaram. Depois do que experimentou neste livro, o promotor se pergunta o que pode ser pior: deixar os assassinos em paz ou deixar que sigam matando. Mas também sabe que não lhe cabe encontrar resposta para essa pergunta. As sociedades seguem dando suas próprias respostas e não se preocupam muito com sua opinião. Desorientado, sentindo-se perdido, mas assim mesmo avançando em suas investigações, Chacaltana é o bufão que se transforma em herói trágico. Tendo como parte do cenário as comemorações da Semana Santa e a religiosidade peruana, com seus mitos e crendices nascidos da aculturação entre espanhóis e quíchuas, Abril vermelho trata, basicamente, da irracionalidade subjacente a todo poder abusivo, que transforma inocentes em culpados — a irracionalidade que acaba sempre erigindo o Estado como o único grande inocente. Esse poder se manifesta no texto não só por meio dos horrendos assassinatos, mas também na linguagem: contrapondo-se aos relatórios de Chacaltana, há uma outra voz que se manifesta, mas pronta a cometer erros de ortogra�a e utilizar uma sintaxe confusa. A comparação entre esses dois discursos, no entanto, não pode ser feita aqui, sob pena de, ao realizá-la, desvendar-se a autoria dos crimes. Vale, contudo, chamar a atenção dos leitores para essa voz que chega ao desvario, numa clara contraposição à racionalidade do texto legal. Um outro interessante recurso de linguagem refere-se à mudança de comportamento de Chacaltana, pois sua gradual tomada de consciência será acompanhada de modi�cações substanciais em seu discurso. Ele passa a falar com ironia e, nas entrelinhas do código burocrático de seus relatórios, deixa que a verdade transpareça. Ainda que em Abril vermelho estejam todos os ingredientes de um thriller prazeroso — incluindo os estereótipos da mocinha inocente que pode ser culpada, do militar sádico e extrema-direita, do juiz �ngido e do médico-legista debochado, que come chocolates a ponto de se lambuzar sobre os cadáveres —, trata-se de um romance que não se propõe a ser apenas um ótimo passatempo. Além do cuidadoso trabalho de linguagem, o irônico narrador nos oferece a saga de Félix Chacaltana Saldívar, na qual nenhuma dobra da realidade permanecerá sem explicação, incluindo as memórias familiares do protagonista, seu obscuro sentimento de culpa e suas angustiantes neuroses. A cada página, o leitor será convidado a lembrar a lição das melhores tragédias: todo homem paga um alto preço para se tornar herói. MUITO ALÉM DA MORTE — CLAUDIO MAGRIS Diferente do que faz em Danúbio e Microcosmos — nos quais �cção, ensaio e literatura de viagens se mesclam para dar vida a um dos melhores textos europeus da atualidade —, desta vez Claudio Magris nos apresenta o brevíssimo O senhor vai entender , publicado na Itália em 2006. A voz que narra O senhor vai entender é a da mitológica Eurídice, mulher de Orfeu, con�nada ao mundo inferior, sob o poder de Hades, a quem ela se dirige para relatar o que sucedeu durante a tentativa frustrada de ser reconduzida, por seu esposo, à vida na superfície terrestre. Nesse mundo de pouca luz, cujos habitantes são sonhos que deslizam e se perdem antes de serem reconhecidos, mundo onde todos se assemelham — exatamente porque só a morte tem o poder de nos tornar iguais —, Eurídice deleita-se em sua condição, regozijando-se com as normas que impedem os mortais de ali penetrarem, e recordando, com evidente desprazer, a vida terrena. O outro lado do espelho Para aqueles que conhecem o mito de Orfeu e Eurídice, no entanto, essa mulher — que na versão tradicional da narrativa permanece muda — surpreenderá ainda mais. Segundo o que relata, o amor e a saudade de seu marido não vibram exatamente por ela, mas pelos favores que lhe prestara, desbastando os poemas que ele escrevia, tornando-os mais bem acabados. Em um discurso cambiante e irônico,Eurídice se revela não apenas musa, mas verdadeira autora da obra de um Orfeu irresponsável, manipulador e adúltero. Assim, não foi movido pelo amor que ele decidiu resgatá-la da terra dos mortos, mas apenas por egoísmo. Foi ela quem o elevou à condição de homem, ensinando-o “a olhar a escuridão e não se importar com o pavor”. Eurídice canta a si mesma como guia, mestra e libertadora desse Orfeu fraco e infantil. Ao mesmo tempo, contudo, a certeza de ser superior não diminui seus sentimentos, não obscurece sua consciência da paixão que nutre pelo esposo. Eurídice sabe o quanto eles se completam. “O amor é este sono em que se continua e se apaga docemente sem se apagar realmente nunca”, ela diz. E, se decide �car em meio às sombras, é exatamente por amá-lo, para que ele não conheça a verdade — o que espera o homem depois da morte — e possa, assim, seguir escrevendo seus poemas, sonhando com respostas ideais que em nada correspondem ao que Eurídice já conhece: “Estamos do outro lado do espelho, que é também um espelho”. Sem idealizações Narradora não só consciente do seu poder, mas devotada ao amado e, ao mesmo tempo, vaidosa, cheia de vontades, por meio dessa mulher nem um pouco romântica, mas sinceramente apaixonada, Claudio Magris cumpre o ritual que garante a sobrevivência do mito — e, ao fazê-lo, assegura a magia da contínua e renovada transmissão literária, e também da própria literatura: a arte de contar sempre as mesmas histórias, mas de maneira original. Agradavelmente in�el ao mito tradicional, Magris recria nossa herança narrativa, concedendo nova força à história quiçá desgastada pela repetição. Recontar é, neste caso, revivescer o mito, permitindo que Orfeu e Eurídice ganhem simbolismos inusitados para os leitores do nosso tempo. Não é diferente, aliás, do que os próprios gregos �zeram, pois ninguém jamais descobrirá, em meio às escassas fontes arqueológicas, qual a narrativa verdadeiramente primeva, inspiradora de todas as outras. Claudio Magris desloca o relato da �gura do herói mítico — o eleito, o que desa�a todos os limites e parte ao encontro do eterno, do perigo, ou em busca de respostas e soluções — para a da mulher cujo silêncio, na história original, lembrava certa tranqüila submissão. Ao calar Orfeu, engrandece Eurídice e humaniza a narrativa, aproximando-a da nossa própria realidade. O autor não deseja reforçar o mito que pode sugerir preceitos morais — como o da superação de todas as di�culdades em nome do amor — ou falsamente estéticos — o da arte cujo poder vence a morte. Distante das idealizações fúteis, Magris nos oferece uma Eurídice satisfeita com sua própria sorte e um Orfeu impelido por motivos censuráveis. Essa Eurídice identi�cada com seu destino assemelha-se, aliás, à de Rainer Maria Rilke. Ainda que a de Magris não tenha a suavidade proposta pelo poeta, ela se encontra igualmente centrada, praticamente transmutada em outro ser, para o qual a volta ao mundo dos vivos talvez não seja a melhor escolha: [...] Estava em si, de altas esperanças, E não pensava no homem que lhe ia à frente nem pensava no caminho que subia para a vida. Estava em si. E ser-morta a colmava de plenitude. Qual fruto cheio de dulçor e treva, sentia-se repleta da sua grande morte, que lhe era nova e que ela não compreendia. Ela entrara numa outra, uma inatingível donzelice; seu sexo se fechara como uma �or recente ao �m da tarde e suas mãos se haviam desabituado tanto do enlace que até mesmo o toque in�nitamente suave do leve deus a conduzi-la lhe doía como excessiva intimidade. Ela não era mais aquela mulher loura Que os cantos do poeta invocaram tantas vezes, não mais o aroma e a ilha do espaçoso leito, nem propriedade mais daquele homem. Já estava solta como longa cabeleira e outorgada como chuva sobrevinda e repartida como cêntupla ração. Ela era já raiz. [...] Desmistificar a arte Adicionando novas camadas de sentido ao discurso da tradição, Claudio Magris também questiona, de maneira oblíqua, se não haveria algo de megalomaníaco em um poeta que con�a exageradamente no poder da sua arte, a ponto de acreditá-la su�ciente para domar os guardiões do reino de Hades e resgatar sua amada. Não seria digno de riso o escritor que se mostra tão absolutamente seguro do que pode fazer, chegando mesmo a desprezar os favores divinos? Desmisti�car a força da arte, mostrar que ela nada tem de prodigioso, aproxima o Orfeu de Magris daquele sugerido por Platão — no Banquete —, segundo o qual Hades não teria entregado ao poeta a verdadeira Eurídice, mas apenas sua sombra. E por um só motivo: Orfeu não passava de um homem fraco, destituído de virtudes, sem coragem para se unir ao objeto do seu amor através da única maneira possível, ou seja, aceitando morrer. Para Claudio Magris, entretanto, Eurídice ama esse escritor presunçoso. Conhece seus defeitos, mas quer, ainda uma vez, salvá-lo de si mesmo. Ela o mantém, assim, na inconsciência, pois sabe — agora que é uma sombra dentre milhares de outras — que a verdade pode esmagar o homem. A NAVALHA DO NARRADOR — WILLIAM SOMERSET MAUGHAM Se considerássemos “genial” um sinônimo de “vanguardista”, erro comum nos dias de hoje, William Somerset Maugham jamais poderia receber o primeiro quali�cativo. Mas se pensarmos que o elogio serve àquelas pessoas notáveis, cuja capacidade intelectual as coloca acima da maioria das pessoas, então esse fecundo escritor inglês de fato produziu alguns livros geniais. Edmund Wilson, no entanto, não pensava assim. Para ele, a fama de Maugham nos EUA era um sinal da decadência dos padrões literários. Wilson chamava Maugham de “escritor de segunda linha”, de�nia sua linguagem como “banal”, a�rmava que o escritor sequer possuía um “ritmo interessante” e deixou um julgamento que se pretende de�nitivo: trata-se de “romancista medíocre, que escreve mal, mas que é lido com regularidade por leitores médios que não se preocupam com a escrita”. As observações de Wilson certamente causam mal-estar nos leitores que apreciam Maugham mas não se sentem quali�cados para se contrapor ao crítico ou deixam-se in�uenciar pela opinião de um intelectual que, sem dúvida, merece deferência. A verdade é que, depois de lermos Maugham, podemos até chegar a conclusões semelhantes, mas duvido que um leitor consciencioso, que se disponha a passar alguns minutos entretido, por exemplo, com “Chuva”, um dos melhores contos da literatura universal, não julgue haver exagero no veredicto de Wilson. Erros e acertos O mesmo elogio não pode ser feito, infelizmente, a O �o da navalha — tradução de 1945 que vem ganhando sucessivas reimpressões —, romance menor mas famoso, com duas versões cinematográ�cas (a de 1946, com Tyrone Power, merece ser vista), que não é o melhor de Maugham, mas, ainda assim, está muito acima de uma literatura, digamos, de entretenimento. O que me incomoda em O �o da navalha é o fato de Maugham conceder ao personagem Lawrence Darrell uma importância que ele não tem. Maugham tentou construir um romance que falasse das desilusões, dos traumas e do vazio que se abatem sobre as pessoas em tempo de guerra, principalmente sobre os soldados que, de volta a seus lares, não se readaptam à vida em sociedade. Darrell — ou Larry, como ele é chamado ao longo do romance — volta da Primeira Guerra Mundial consternado pela morte do amigo que lhe salvara a vida; e passa, então, a buscar sentido para a existência. Trata-se de homem simples, herdeiro de pequena fortuna, que, movido por inquietações metafísicas, percorre o mundo em busca de respostas. Após experimentar diferentes religiões e empreender inúmeros estudos, torna-se uma espécie de santo leigo, alguém que, como o próprio narrador anuncia, “ao morrer não deixará vestígio de sua passagem pela terra”. Mas Larry — enigmático até mesmo para o narrador, que chega a ser repetitivo nas descrições, como se não conseguisse perscrutar o personagem — acaba se transformando num ser apático, destituído de grandes emoções, místico às vezes irritante. Esse falso protagonista surge de maneiraintermitente no romance — e Maugham se esforça para, por meio dele, unir as peças de sua trama. Traído por seu protagonista, o escritor perdeu a oportunidade de escrever um clássico, o que aconteceria se tivesse centrado sua atenção no esnobe Elliott Templeton, o melhor personagem do romance: norte-americano que vive em Paris, bon vivant , frívolo e pedante, de passado suspeito, que, graças ao comércio de arte, enriqueceu durante a Primeira Guerra. Fofoqueiro, tio solteirão, aparentemente homossexual, com tino para organizar festas ou recepções, ele transita na alta burguesia e na nobreza européias com facilidade. Mas é também homem generoso, que sai inabalado do crash da Bolsa, em 1929, não por ser um escroque, mas apenas pelo fato de possuir as fontes certas. Apegado aos valores de classe social que o acolheu — e como poderia ser diferente? —, Elliott se escandaliza, por exemplo, quando, de volta temporariamente aos EUA, um motorista de táxi o chama de “amigo” e não de “senhor”. Por meio dele, o narrador radiografa a vida e os valores das classes altas, mas, o que é um mérito, sem fazer julgamentos ideológicos, sem descair para o achincalhe ou, pior, para a exaltação dos pobres como bem- aventurados e puros de coração. Esse tipo de demagogia, nunca encontraremos em Maugham. Ao contrário, ele nos seduz com a “requintada ironia” de Elliott — há diálogos repletos de falas ferinas, inteligentes, plenas daquele tipo de esgrima social que presenciamos com facilidade nos grupos que sabem unir elegância, verve e rapidez de pensamento. Esses diálogos permitem que visualizemos até pequenas rugas de humor nas expressões dos personagens; e nosso autor jamais se rende à literatura de tese. Seguimos parte da vida de Elliott e, depois, sua decadência física, seu crescente medo da solidão; e o vemos se transformar num homem digno de piedade, apegando-se com todas as forças, apesar da doença, ao frenesi de uma vida glamorosa. Um dos mais perfeitos trechos do romance é o que descreve sua agonia e morte, bem como a preparação do cadáver. Cena triste, com uma ponta de humor negro, pois Elliott deixara ordens expressas para ser vestido de uma maneira que, sob o olhar do narrador, transforma o dândi num “corista de uma ópera de Verdi”. Acompanhamos a humilhação que a morte impinge — o quanto ela pode nos tornar ridículos — e, ao mesmo tempo, sofremos, pois nos acostumamos a gostar desse requintado bufão, ironista que ascendeu socialmente, sabe-se lá a que preço. Larry não tem um terço da complexidade de Elliott ou de Isabel Bradley, de quem se torna noivo por um breve período. Sobrinha de Elliott, Isabel é o exemplo de uma das melhores qualidades de Maugham: retratar personagens femininos. Ela evolui no transcorrer do romance, física e psicologicamente, e seu longo diálogo com Larry, quando rompem o noivado, mostra uma mulher realista, diante de quem Larry se transforma numa insigni�cante caricatura, sem respostas, que apela à ironia vulgar e covarde quando se sente sob pressão. Frente à lógica de Isabel, ele não passa de um idealista exacerbado — e como todos os sonhadores, um egoísta a quem os próprios ideais bastam. A frieza dessa mulher, contudo, se lhe dá forças para sobreviver quando o marido, Gray Maturin, perde tudo na crise de 29, também a leva a cometer um delito que comprometerá a vida de outra personagem, Sophie MacDonald. De encantadora colegial a rainha perversa, Isabel reúne todos os matizes femininos. É uma pena que a tradução seja muito antiga e não tenha sido revisada. Isabel, por exemplo, toma refresco usando uma “palhinha” e não um canudo; um personagem “dá uma perobinha” com outro, talvez uma gíria da década de 1940 no Brasil, mas da qual não consegui encontrar o signi�cado; as mulheres têm “pestanas” e não cílios; outro personagem, cheio de vivacidade, é “um azougue”; e, numa festa, todos se divertem “à grande”. Mas isso não estraga a narrativa. Aqui e ali, às vezes encontramos lugares-comuns ou descrições que chegam a ser bobas — e imediatamente lembramos de Edmund Wilson —, mas Maugham também nos oferece, além dos diálogos espirituosos, sólidas descrições dos personagens e trechos que são boas descobertas, como ao dizer que os mortos se assemelham a “fantoches de uma companhia falida” ou, apenas outro exemplo, quando comenta sobre a Avenue de Clichy, ao amanhecer: “Sórdida à noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada, abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça”. O único homem livre Em seu romance O destino de um homem , Maugham apresenta longa e precisa de�nição sobre os escritores, da qual sempre gosto de me lembrar, principalmente por suas últimas linhas: É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo; depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está à mercê de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de diretores de revistas que o atormentam pedindo matéria, de cobradores de impostos que o atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam para almoçar; de secretários de instituições que o convidam para fazer conferências; de mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos matrimoniais; de rapazes graves que querem sua opinião sobre suas composições; de agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência. Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma re�exão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, en�m, qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre. Não poderia haver melhor de�nição do próprio William Somerset Maugham. E um autor com tamanha autoconsciência deve ser perdoado por sua obra irregular. No que concerne a O �o da navalha , o narrador que desmente a si mesmo desde a primeira página e faz exatamente o oposto do que pensávamos ser uma decisão irrevogável; o narrador que escreve com a mesma paixão sobre a natureza, a beleza das mulheres e Racine — chegando à discutível e polêmica idéia de que “a arte triunfa quando consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio”; o narrador que consegue extrair drama da classe social que o senso comum e a esquerda julgam erroneamente viver em meio a futilidades e devaneios; um narrador assim, que conclui, falando sobre seu protagonista, ter faltado a Lawrence Darrell “aquela pequena nota de crueldade que mesmo os santos precisam ter para conseguir sua auréola”, certamente merece não apenas nossa atenção, mas também o nosso respeito. NOSSA HERANÇA COMUM — LIEV TOLSTÓI Liev Tolstói demorou quatro anos para escrever Anna Kariênina , entre 1873 e 1877. Passara sete anos trabalhando em Guerra e Paz , publicado no ano de 1869. Dois feitos notáveis se considerarmos, de um lado, as energias que obras de tal dimensão consomem, e de outro, o resultado, vastos panoramas que expõem, detalhadamente, não só a vida da aristocracia russa e de suas relações sociais, mas o pensamento, as angústias, os amores, as decepções, as alegrias e as dúvidas de um amplo e diversi�cado leque de personagens, com os quais, apesar de todas as diferenças, de alguma forma nos identi�camos. No que se refere, especi�camente, ao romance Anna Kariênina , é impossível não sentirmos certo desconforto ao iniciarmos sua leitura. Na verdade, um desagradável desconforto, nascido desse período de mais de um século entre a edição princeps e a primeira tradução brasileira feita diretamente do russo,por Rubens Figueiredo. Cerca de 120 anos representam a medida do nosso atraso cultural e da distância interposta entre nós e essa mulher magní�ca, embriagada com a “admiração entusiástica” que provoca em homens e mulheres, graças ao seu magnetismo e ao destemor de ir além do que a moral e a hipocrisia de sua época poderiam permitir. Mais de um século, infelizmente, ocupado por uma tradução indireta, feita a partir do francês, o que eleva ao quadrado a traição inevitável de todas as traduções. Mas nosso distanciamento em relação a Tolstói é ainda maior. Boris Schnaiderman a�rma, em Tolstói, antiarte e rebeldia , que, após a conclusão de Anna Kariênina , o escritor passou por uma crise profunda, durante a qual colocou em xeque suas crenças religiosas e sua concepção de mundo, tentando conciliar idéias estéticas, fé, moral e as contradições nascidas do embate entre seu anseio por mudanças sociais e sua origem aristocrática. Uma crise jamais resolvida, analisada com brilhantismo por Isaiah Berlin no ensaio “O porco- espinho e a raposa”, no qual conclui: “Ao mesmo tempo insanamente orgulhoso e cheio de ódio por si mesmo, onisciente e duvidando de tudo, frio e violentamente apaixonado, desdenhoso e pronto a se humilhar, atormentado e desapegado, rodeado por uma família que o adorava, por seguidores dedicados, pela admiração de todo o mundo civilizado e, ainda assim, quase totalmente isolado, ele é o mais trágico entre os grandes escritores, um velho desesperado, além do auxílio humano, perambulando semicego por Colona.” Essa crise permanente, essa dicotomia devastadora, encontra-se detalhada nos diários de Tolstói, catorze volumes dos noventa que compõem suas Obras completas , e dos quais não existe, em português, sequer uma condensação. Trata-se de um vazio que di�culta o conhecimento do homem e obscurece a apreensão do seu processo criativo, certeza reforçada pelas palavras do crítico e escritor Dimitri Sergueïevitch Merejkovski, citado por Thomas Mann no ensaio “Goethe e Tolstói, fragmentos sobre o problema da humanidade”, para quem “as obras artísticas de L. Tolstói não são, no fundo, nada mais que um diário poderoso, escrito durante cinqüenta anos de vida, uma con�ssão in�nita, minuciosa. [...] Na literatura de todas as nações, não se acha um segundo escritor que revele, com uma franqueza magnânima como Tolstói, a sua vida particular, freqüentemente os lados mais íntimos desta”. De fato, é conhecida, em Anna Kariênina , a semelhança de idéias entre o autor e o personagem Konstantin Liévin, cuja permanente crise existencial revelaria muitas das angústias do próprio Tolstói. Mas os aspectos autobiográ�cos presentes no romance se resumiriam às características de Liévin? E quais seriam eles? Provavelmente, as páginas dos diários poderiam oferecer uma resposta. Mas a pesquisa em outras fontes nos presenteia com uma pequena descoberta, por meio da qual ensaiamos alguns tímidos passos no conhecimento de como vida e obra são — e não apenas no caso de Tolstói — indissociáveis. No ensaio “A arte como procedimento”, de Victor Borisovitch Chklovski, no qual o autor analisa o que ele chama de “singularização” ou “liberação do automatismo perceptivo” em Tolstói, encontramos uma citação dos diários do romancista, de 28 de fevereiro de 1897: Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes, não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido. Ora, vinte anos depois de ter escrito Anna Kariênina , Tolstói grava em seu diário tais impressões, certamente experimentadas naquele dia. Contudo, a leitura do romance nos revela tratarem-se de sensações conhecidas do autor, por alguma razão intensi�cadas naquele 28 de fevereiro, mas utilizadas no passado para compor a derradeira crise de Anna: Olhou para o relógio. Haviam passado doze minutos. ‘Agora, ele já recebeu o bilhete e vai voltar. Não demora, mais dez minutos... Porém, e se ele não vier? Não, isso é impossível. Não posso deixar que me veja com os olhos chorosos. Vou me lavar. Sim, sim, será que eu me penteei?’, perguntou-se. E não conseguiu lembrar. Apalpou a cabeça, com a mão. ‘Sim, estou penteada, mas não me lembro de forma alguma quando me penteei.’ Chegou a não acreditar na própria mão e aproximou-se do espelho de um aparador, a �m de veri�car se estava penteada, de fato. Estava penteada e não conseguia lembrar quando �zera isso. ‘Quem é?’, pensou, olhando no espelho para um rosto in�amado, com olhos que brilhavam de modo estranho e �tavam-na, assustados. ‘Ora, sou eu’, compreendeu de repente [...]. O mesmo estranhamento dos diários lateja na aguda neurastenia de Anna, mostrando-nos que Tolstói, talvez mais do que Flaubert, poderia ter a�rmado: — Anna Kariênina sou eu. Ficção e moralismo O vazio que há entre nós e Tolstói não se restringe ao desconhecimento dos aspectos biográ�cos que podem estar ou não presentes em sua obra, ou às traduções indiretas, ou à impossibilidade de os leitores que dominam apenas a língua portuguesa adentrarem a constelação de fatos e idéias que ele relata em seus diários. Conhecer Tolstói pelas bordas signi�ca também correr o risco de menosprezar parte de Anna Kariênina , pois se é difícil situar-se em meio aos hábitos da aristocracia russa do século XIX, será um exercício igualmente intrincado entender sua moral. Na verdade, uma leitura proveitosa do romance exige que abdiquemos temporariamente do nosso modo de pensar e dos nossos valores, sob pena de, não agindo dessa forma, deixarmos escapar parcela signi�cativa do substrato atemporal da obra. Mesmo para uma leitora russa, de profunda sensibilidade, Anna Kariênina guarda questões inaceitáveis. Em meio à crônica do curioso encontro de Isaiah Berlin com a poeta Anna Akhmatova, ocorrido em novembro de 1945, relatado por Berlin no ensaio “Conversa com Akhmatova e Pasternak”, encontramos a surpreendente crítica da poetisa: Por que Tolstói fez com que ela se suicidasse? Assim que ela deixa Kariênin, tudo muda. Ela se transforma de repente numa mulher caída, numa traviata, numa prostituta. Quem pune Anna? Deus? Não, não é Deus — mas a sociedade cujas hipocrisias Tolstói está constantemente denunciando. Por �m, ele nos diz que Anna repugna até a Vrónski. Tolstói está mentindo. Ele tinha mais entendimento que isso. A moralidade de Anna Kariênina é a moralidade das tias de Tolstói em Moscou, das convenções �listéias. Está tudo ligado a suas vicissitudes pessoais. Quando Tolstói estava casado e feliz, ele escreveu Guerra e paz, que celebra a família. Depois que começou a odiar Sophia Andreevna [sua esposa], mas sem poder se divorciar, porque o divórcio é condenado pela sociedade, e talvez também pelos camponeses, ele escreveu Anna Kariênina e puniu Anna por deixar o marido. À parte as questões de ordem pessoal, que devem ter contaminado de algum modo os romances — mas, certamente, não da maneira automática e simplista colocada por Akhmatova —, trata-se de grave contra-senso exigir de um nobre do século XIX que escreva com os critérios de alguém que, vivendo sob o stalinismo, experimentava as mudanças radicais impostas pela Revolução de 1917. Se há, em Anna Kariênina , moralismos incompreensíveis, também é verdade que Tolstói não se cansa de criticar sua própria classe, apresentada como super�cial e hipócrita, ávida por censurar os escândalos, mas deliciando-se com eles, chafurdando num pântano de futilidade, mexericos e misticismo, in�uenciada por todo tipo de charlatão. Tolstói não deixa, inclusive, de descrever o comportamento machista e irresponsável de Stiepan Arcáditch Oblónski, irmão de Anna, igualmenteadúltero, além de perdulário e leviano, que consome a herança pertencente à esposa, Dária Aleksandrova (Dolly), enquanto esta, obrigada a viver em uma propriedade rural desprovida de conforto, para economizar se submete a vestir, a si mesma e aos �lhos, com roupas reformadas. As atitudes de Oblónski são relevadas pela sociedade, pois caracterizam o comportamento-padrão dos homens daquela classe senhorial, mas Tolstói não deixa de conceder a Dolly uma consciência clara acerca de sua condição e do lugar restrito atribuído às mulheres. Num diálogo com Liévin, que está apaixonado por sua irmã, ela diz: “— [...] Os senhores fazem o pedido quando o seu amor amadureceu ou quando, entre duas mulheres, concluíram pela superioridade de uma. Mas à moça, nada se pergunta. Querem que ela escolha por si mesma, mas não pode escolher, pode apenas responder: sim e não”. Tolstói não abandona seus personagens a uma vida destituída de raciocínio e complexidade de sentimentos. Assim, mesmo que Dolly, pressionada por sua condição social, veja-se obrigada a sofrer em silêncio e permanecer submissa, ela jamais perde a clareza em relação ao seu estado e às traições cometidas pelo marido. Quanto ao caso especí�co de Anna Kariênina, ela não é “punida” por seu adultério ou pelo fato de amar Vrónski e desprezar o marido, Aleksei Kariênin, comportamento que Tolstói descreve como rotineiro naquela aristocracia. A “punição” de Anna decorre de ela querer ardentemente “provar a liberdade do amor”, ou seja, não ser hipócrita, abandonar o marido e viver uma nova relação com seu amante. Depois de revelar a verdade ao marido, o que ela deseja é de�nir sua situação de uma vez por todas, atitude inaceitável para a época. Tolstói permite a sua heroína superar inclusive o medo da desonra, mas ela tem consciência da reação que virá: “Depois de parar e olhar de relance para o topo dos álamos que oscilavam no vento, com as folhas lavadas que brilhavam radiantes sob o sol frio, Anna compreendeu que não lhe perdoariam, que tudo e todos seriam agora impiedosos com ela, como aquele céu, como aquela vegetação. E de novo sentiu que sua alma começava a duplicar-se”. Assim, a um passo do delírio, ela desaba em prantos, não por se sentir culpada, mas por buscar, sem qualquer possibilidade de sucesso, o que a sociedade à qual pertencia encontrava-se incapacitada de lhe conceder: “Chorava porque seu sonho de um esclarecimento, de uma de�nição para a situação em que estava, fora destruído para sempre. Ela sabia de antemão que tudo havia de permanecer como antes, e até in�nitamente pior do que antes”. E mesmo mais tarde, depois de ter abandonado Kariênin e o �lho para viver com Vrónski, será esse estado inde�nido — dependente da boa vontade do marido para lhe conceder o divórcio, o que nunca ocorrerá, isolada por sua classe e dependente do amor de Vrónski, mas sem qualquer segurança, a não ser a dos seus próprios sentimentos — que condenará Anna a uma insuportável fragilidade. O romance, portanto, foi construído sobre uma sólida coerência interna. E o fato de a obra e a realidade social daquela época estarem eminentemente ligadas atesta o que poderíamos de�nir como uma realidade inescapável. Dessa forma, é compreensível que não haja nenhuma cena de amor envolvendo Anna e Vrónski. E quando a libido �nalmente se satisfaz, a narrativa enfatiza apenas o sentimento de humilhação da mulher. Quanto ao homem, “ele sentia o que deve sentir um assassino quando vê o corpo do qual tomou a vida”. Um exagero, sem dúvida, se lermos o livro sem nos despojarmos da moral ocidental do século XXI. O primeiro beijo do casal será descrito apenas várias páginas depois, e a única cena de intensa paixão, Tolstói a con�na nas últimas páginas da Parte 4, quando Vrónski, entrando abruptamente na casa dos Kariênin, “sem pensar em nada, sem veri�car se havia ou não alguém no quarto, abraçou-a e começou a cobrir de beijos o seu rosto, as suas mãos e o seu pescoço”. Entretanto, se o moralismo de Tolstói permanece atado aos costumes de sua classe e de seu tempo, ele também não pode ser dissociado da crise insuperável sobre a qual falamos acima, do “amargo con�ito interior entre sua experiência real e suas crenças, entre sua visão da vida e sua teoria do que essa vida e ele próprio deveriam ser, se a�nal tivesse de sustentar tal visão”, como nos explica Berlin. Um permanente antagonismo que, se não comprometeu a qualidade de sua �cção, causou danos à sua capacidade de julgar a arte e seus contemporâneos. No ensaio “Engajamento artístico — um legado russo”, Isaiah Berlin cita, por exemplo, as críticas de Tolstói a Flaubert: “[...] Tolstói se pergunta se Flaubert — o Flaubert que descreve são Juliano, o hospitalário, a abraçar os leprosos, que eram o Cristo — teria se comportado da mesma maneira em situação semelhante; esta dúvida mina sua con�ança no escritor, sua crença em sua autenticidade, a qual, para ele, era a base de toda arte verdadeira”. A exigência dessa coerência extrema, ou seja, vincular de tal modo criador e personagem, cobrando do primeiro que se comporte como o segundo, aproximar-se-ia perigosamente da demência se não soubéssemos, como o próprio Berlin a�rma, que Tolstói é movido por uma incontrolável ironia. Irônico ou não, no entanto, o pensamento do escritor estava impregnado desse estranho moralismo, como o ensaio de Berlin explica minuciosamente. A conhecida crise de Tolstói, no entanto, prevaleceria sobre tais idéias, fazendo com que, para o bem de sua �cção, ele se mantivesse incoerente por toda a vida. Para Berlin, ele “foi uma vítima notória do seu gênio artístico e sua consciência social”. E apesar de “sua condenação de toda arte, que, como vaidade e corrupção, não ajuda a curar as feridas morais dos homens — seu impulso artístico não se destruiu. Quando, mais tarde, tendo ele escrito Khadji-Murat , alguém lhe perguntou como chegara àquilo — qual era a mensagem moral ou espiritual da obra? —, respondeu, muito friamente, que mantinha seu trabalho artístico separado da exortação moral”. O período de elaboração da novela Khadji-Murat concentra-se, segundo Boris Schnaiderman, entre 1896 e 1904, mas em Anna Kariênina já é possível perceber como a mão do romancista parece refrear o moralismo do narrador, apesar de, em alguns raros momentos, perder o controle. Há uma evidente misoginia em determinados trechos e ao menos uma análise nitidamente preconceituosa, quando o narrador deprecia o comportamento de Anna em um encontro social e generaliza de maneira decepcionante: “Esse jogo de palavras, esses segredos dissimulados tinham um grande atrativo para Anna, como para todas as mulheres. Não era a necessidade de dissimular, tampouco a �nalidade da dissimulação, mas sim o próprio processo de dissimulação que a empolgava”. O que poderia ser um pequeno tropeço, contudo, permanece ofuscado, por exemplo, pela cena do jantar na casa de Oblónski, onde se encontram Liévin, Aleksei Kariênin, amigos do an�trião e intelectuais. Em seguidas páginas discute-se o tema da emancipação feminina, e vemos des�larem diante de nós todas as limitações da época, mas por meio de um diálogo no qual apenas os personagens expõem seus pensamentos, sem a intromissão impertinente ou inadequada do narrador. Estados de consciência A discussão sobre os dilemas que morti�caram Tolstói ao longo de sua vida é importante, inclusive, para compreendermos as razões que o afastaram da �cção durante vários anos. Quanto a Anna Kariênina , a obra não se resume à tragédia pessoal de uma adúltera ou à história de uma classe social, com seus preconceitos e vícios, mas mergulha nos dramas humanos, presentes em todas as pessoas que guardam um mínimo de autoconsciência. “Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e luz”, diz Tolstói. E ele nos mostra como essa alternância de estados pode marcar as existências, enquanto nos leva a perseguir Anna Kariênina, fazendo-nos compreender a cada página o que Vrónski havia pensado ao encontrá- la a primeira vez: “O excesso de algumacoisa inundava seu ser”. Ao voltar de Moscou para São Petersburgo, depois da famosa cena do baile, onde conquista Vrónski, Anna encontra-se no trem, esforçando-se para se concentrar na leitura de um romance, cujas páginas ela separa com uma espátula, sonhando partir com o herói do livro para sua propriedade rural. Ela raciocina sobre os sentimentos experimentados no baile e se divide entre a vergonha e a coragem de assumir seu desejo. Quando, en�m, a vaidade derrota a censura e ela se alegra por ter despertado a paixão em Vrónski, tudo se conturba e Anna não é mais dona de si: Sorriu com desdém e pegou de novo o livro, mas, positivamente, já não conseguia compreender o que lia. Deslizou a espátula pelo vidro da janela, depois encostou a superfície lisa e fria contra a face e por pouco não riu em voz alta, com a alegria que, sem motivo, se apoderou dela. Anna sentiu que seus nervos, como cordas, se punham cada vez mais tensos, puxados por uma cravelha que apertava. Sentia que seus olhos se abriam mais e mais, que os dedos das mãos e dos pés se remexiam nervosos, que algo dentro dela comprimia sua respiração e que todos os sons e imagens, nessa penumbra trêmula, a impressionavam com uma clareza incomum. De forma ininterrupta, lhe vinham momentos de dúvida, se o vagão seguia para frente ou para trás, ou se estava completamente parado. Tolstói tem a capacidade mágica de exprimir os mais diversos estados de ânimo. Nesse trecho, ele faz a atenção de Anna migrar dos barulhos e movimentos iniciais do trem para a leitura, desta para sua empregada, Ánuchka, que cochila, e de novo para a leitura, e do enredo do romance para as lembranças do baile, seguindo, gradativamente, a um estado em que todas as sensações se avivam, dominando-a a ponto de seu contato com a realidade esgarçar-se de tal maneira, que ela não sabe mais onde está ou se não teria se transformado em outra pessoa. O surpreendente, no entanto, é que Tolstói consegue descrever todas essas mudanças sem se distanciar do trem, dos elementos concretos que rodeiam Anna. E esse é exatamente o aspecto genial dessas descrições, pois elas jamais se desvinculam completamente do que as circunda: há sempre um barulho, a visão de uma luva rasgada, um facho de luz, uma sensação tátil — elementos que funcionam como frágeis liames, cuja utilidade reside em manter as personagens presas à vida, e sem os quais elas não conseguiriam retornar desse mundo onde vagam suspensas em uma nuvem de sonho ou de arrebatamento. Se há inúmeras qualidades no texto de Tolstói — seus diálogos entrecortados pelas interferências da vida que urge ao redor dos personagens, suas extasiadas e minuciosas descrições da natureza e a maneira como ele consegue revelar os verdadeiros interesses ou os preconceitos escondidos sob um raciocínio aparentemente justo ou honesto —, a que sobressai é sua capacidade para revelar as variações de humor e a maneira como a euforia, a excitação ou um pensamento mórbido podem dominar completamente o raciocínio e os atos de alguém. O melhor exemplo talvez seja a crise �nal de Anna. A forma como ela repisa os fatos, remoendo cada um deles sem extrair qualquer elemento novo, enovelando-se cada vez mais em um labirinto emocional confuso e obscuro, é cruciante. Passo a passo, vemos Anna perder o controle sobre seus pensamentos, refém do desespero, confundindo a realidade, rendendo-se a um ciúme injusti�cado e a uma dolorosa ciclotimia. Enquanto a imaginação de Anna galopa, a vida segue seu ritmo banal, e lentamente cresce nela uma hostilidade incontrolável, um asco descomedido. Tudo se torna repulsivo, cada elemento da realidade ressalta envolvido por uma aura de nojo e horror, de maneira que o suicídio surge como a solução para se livrar não só dos outros, mas também de si mesma. O que impressiona nessas páginas é a clareza com que Tolstói nos oferece cada mínimo detalhe, não só dos pensamentos de Anna, mas de tudo que a rodeia, sem qualquer exagero, com equilíbrio, permitindo que visualizemos todos os elementos, todos os gestos, todas as in�exões, todo o desespero. Nem mesmo dos lampejos da memória ele descuida. E apesar da profusão de pormenores, as cenas correm na velocidade da carruagem na qual Anna atravessa a cidade ou com o ímpeto das rodas do trem em que ela �xa sua sofrida atenção e sob as quais liberta-se do “livro repleto de a�ições, ilusões, desgraças e maldades” que havia lido sofregamente até aquele momento. Quando Anna cruza o limite entre sua dor e os trilhos da ferrovia, não há mais moralismos, a dicotomia tolstoiana �nalmente encontra sua solução, não na morte, mas, antes, no gesto que re�ete uma escolha decisiva. Então, qualquer possibilidade de ironia ou de dúvida se desintegra; e, além dos trilhos onde jaz o corpo de Anna, vemos o semblante envelhecido de Tolstói, fugindo de Iásnaia Poliana para morrer na estação ferroviária de Astápovo. O �nal reservado a Liévin — aparentemente seguro em seu casamento e em sua propriedade — é tão infeliz quanto o de Anna. Ele não tem coragem para alterar o curso de sua existência, e permanecerá apegado a conclusões ingênuas, mas percebendo que nada mudará e que “continuará a existir um muro” entre o que considera sagrado e as pessoas. Infelicidade e mesmice “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, escreve Tolstói no início de Anna Kariênina , pois ele pressente que, por uma desconcertante razão, apenas a infelicidade nos arranca da mesmice. Em sua luta para descobrir o motivo de sermos eternamente infelizes, ele criou Anna e Liévin, frações de uma mesma personalidade, desse ego que se duplica e, seguindo rumos paralelos, tenta satisfazer sua insaciável busca de um sentido para a vida. Os anos posteriores ao romance mostram-nos que ele não conseguiu a resposta de�nitiva. Mas o nobre desgastado por dúvidas muitas vezes intoleráveis, e que viveu dividido entre ser escritor, profeta ou moralista, deixou-nos esse romance escrito naquela Rússia praticamente feudal, pois a servidão havia sido extinta em 1861, tratando de um tema simples, o adultério. Um exemplo, contudo, de como a arte pode permanecer fora do domínio do tempo; uma obra com a qual Tolstói nos mostrou não existirem barreiras para a dor que resume a experiência de viver, pois essa dor — sentida e expressada de maneiras as mais diferentes, nascida do custoso enfrentamento do cotidiano — é a verdadeira herança comum da humanidade. EFÊMERA FELICIDADE — MARIO BENEDETTI Em 1921, viajando de Paris à Itália, Edmund Wilson escreve em seu diário: “O que há de melancólico na felicidade não é ela não existir, e sim ela não durar (em resposta ao ‘Diálogo de Torquato Tasso’, de Leopardi)”. Na verdade, o texto de Giacomo Leopardi que ele comenta intitula-se “Diálogo de Torquato Tasso e seu Gênio Particular” e faz parte dos Opúsculos morais . Aparentemente, Torquato encontra-se no mosteiro de Ferrara, onde de fato permaneceu internado durante meses, vítima dos delírios persecutórios que o levariam à loucura. Ali, em sua cela, recorda-se da mulher que ama em segredo, Eleonora, irmã do duque Alfonso II d’Este. A lembrança é o mote para um diálogo sobre o prazer, o sofrimento e a fruição da vida, “composta e tecida”, segundo o Gênio, “em parte de dor e em parte de tédio”, só encontrando descanso “quando cai de uma paixão em outra”. A escolha da leitura e o comentário de Edmund Wilson são compreensíveis. Ele acabara de rever, em Paris, a poeta Edna Saint Vincent Millay, grande paixão de sua vida, de quem se lembraria, anos depois, como a que “ligou a ignição de duas coisas dentro de mim, minha paixão intelectual e meu insatisfeito desejo, que explodiram juntos numa chama de êxtase que permanece como um dos pontos altos de minha vida”. O reencontro em Paris, contudo, fora sombrio. Edna, que além de bissexual era promíscua, já se tornara amante de George Slocombe, e Wilson não se dispôs a reviver o ménage à trois que havia experimentado com ela e o poeta John Peale Bishop. Em carta a Bishop, na qualrelata o encontro, ele diz: “Ela não consegue mais me intoxicar com sua beleza nem jogar bombas em minha alma; quando olhei para ela, foi como se olhasse para dentro da cratera de um vulcão extinto. Ela me entristeceu; curiosamente, entristeceu-me constatar que eu a amara tanto e agora não a amava mais”. Distanciando-se de Paris, Wilson não resiste, no entanto, ao comentário amargo e deprimido sobre o fato de a felicidade não durar — um sentimento desalentador, sempre importuno, mas renitente; e sofrido, com certeza, por todos nós, tenhamos ou não vivenciado intensa paixão. A última chance É exatamente esse caráter transitório da felicidade a principal marca do romance A trégua , de Mario Benedetti. Martín Santomé, o narrador da história, escreve um diário cujo tema inicial concentra-se na espera de sua aposentadoria e numa curiosa visão da existência. Aos 49 anos, prestes a completar cinqüenta, viúvo, a seis meses e alguns dias de se aposentar, ele se sente indeciso quanto ao futuro, e também ingênuo e imaturo, como que preso à juventude, mas só aos defeitos dela. Trata-se de um homem detalhista, capaz de analisar as pequenas curvas de sua letra e, num exercício de incipiente grafologia, os estados de ânimo que, em sua opinião, elas revelam. Ama a rotina do trabalho — ele é um burocrata do comércio, cuja mesa, voltada para a parede, oferece-lhe apenas a visão de uma folhinha —, principalmente porque ela lhe permite pensar ou sonhar. Durante o expediente, divide-se em dois: um que trabalha de forma mecânica e outro, “sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria”. Ainda que seja um crítico arguto das pessoas, da sociedade e de si mesmo, ele nunca se revolta: “Já aprendi que meus estados de pré- explosão nem sempre conduzem à explosão. Às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões”. De uma ironia deliciosa, bem- humorada, capaz de elaborar descrições sutilmente ferinas dos médicos, dos jornais, da corrupção, da política em geral e da cidade de Montevidéu, Santomé possui, ao mesmo tempo, penetrante senso ético, que o faz criticar o comportamento dos outros, mas sem arrogância, ciente de que ele não é melhor ou superior. Em relação a Deus, pondera, com jocoso ceticismo, que Ele “talvez tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa”. Sofrendo a contradição que todo ser humano minimamente consciente experimenta — a de se saber (ou de se acreditar) superior ao seu destino —, ele se reconhece, entretanto, como um procrastinador: “A segurança de me saber capaz para algo melhor me deu o controle da postergação, que no �m das contas é uma arma terrível e suicida. [...] Postergar: esse é o meu vício, aliás incurável”. Sua capacidade de autoconhecimento permite-lhe distinguir, inclusive, o processo de insensibilização pelo qual a vida o obrigou a passar, e lembra-se, sem qualquer pudor, do que lhe disse uma de suas eventuais amantes: “Você faz amor com cara de empregado”. Ou das palavras da �lha, Blanca: “Acho que você se resignou a ser opaco, e isso me parece horrível, porque eu sei que você não é opaco”. Em meio aos encontros e divergências da vida familiar, na qual se revela às vezes um cinqüentão controlador, às vezes incompreendido pelos �lhos, e quase sempre um pai que não tem certeza sobre qual a melhor palavra a ser dita ou o gesto mais apropriado, Martín Santomé anseia apenas pelo ócio que a aposentadoria lhe concederá, e guarda a esperança de que ela o liberte para a derradeira chance de encontrar a si mesmo. Clarão instantâneo A forma do diário permite a Mario Benedetti criar um protagonista-narrador que jamais teme a auto-análise, a autoconsciência. Há temas, portanto, recorrentes, frutos dessa honestidade em esmiuçar as verdadeiras causas — e também as conseqüências — de suas escolhas. Santomé não poupa nem mesmo o passado, recuperando as lembranças de sua falecida esposa, Isabel, com incrível coragem. Em momento algum — o que realmente seria um recurso fácil — ele idealiza o casamento, mas repensa, um a um, todos os limites, todos os problemas, chegando a confessar sua incapacidade para reconstituir a imagem de Isabel. Lembra-se, isto sim, da textura e do calor de sua pele, do relevo de seu corpo. “Por que as palmas das minhas mãos têm uma memória mais �el do que a minha memória?”, ele se pergunta, somente para constatar que seu sentimento não é saudade, mas, antes, a certeza de estar preso ao desejo que, abruptamente interrompido pela morte, não pôde se consumir. Ele reencontrará o amor — e a libertação do tédio e da indiferença — em Laura Avellaneda, jovem de 24 anos contratada para ser sua subalterna. A princípio, ao analisá-la, ele demonstra certa misoginia — apesar das relações sexuais apressadas e ocasionais que mantém com desconhecidas —, mas sua avaliação muda gradativamente. A lenta aproximação de Laura — ou apenas Avellaneda, como ele apreciará chamá-la — e a forma com que o narrador descreve esse processo, são outras das inúmeras qualidades de A trégua . Não há saltos ou situações arti�ciais, mas um vagaroso apaixonar-se, que evolui do olhar observador às pernas da jovem, passando por uma difusa atração, até chegar à consciência, no feriado de 1º de maio, da saudade daquela “�gurinha triste, concentrada, indefesa”. No dia seguinte, quando a reencontra, seu amor é confuso: “Sinto-me nervoso como um adolescente, é verdade, mas quando vejo minha pele que começa a se afrouxar, quando vejo estas rugas dos meus olhos, estas varizes dos meus tornozelos, quando sinto de manhã minha tosse de velho, absolutamente necessária para que meus brônquios iniciem sua jornada, então já não me sinto adolescente, mas ridículo.” A partir desse trecho, a dolorosa percepção que Santomé demonstra do próprio envelhecimento chega a ser comovente. Assim, apesar de, passo a passo, tudo se tornar um deleite — “Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que isso é a vida”, escreve Martín Santomé —, esse amor outonal também terá sua cota de angústia, nascida daquela clara noção que o narrador possui da diferença de idade entre ele e Avellaneda, o que o fará mover-se impulsionado pela urgência, permanecendo alerta, temeroso de que a felicidade lhe escape. A paixão é submetida, dessa forma, a um duro senso de realidade, mas que nunca impede o desfrute do prazer ou o ímpeto de sonhar. Enquanto experimenta todas as formas de amar e vive a emoção de ter alcançado Avellaneda, de tê-la tornado realmente parte de si, Santomé jamais abdica de duas certezas — a solidão o espreita e a felicidade está acorrentada à fruição do momento: Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia de cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações. Quando a tragédia ocupa o lugar da redescoberta da ternura, a angustiosa constatação de Edmund Wilson e Giacomo Leopardi — a verdade da qual Martín Santomé sempre suspeitou — instala-se de maneira irremediável: o momento de felicidade não dura, é impossível conservá-lo. O silêncio de Avellaneda, a partida sem despedidas, interrompe bruscamente os esforços do narrador para “gastar a plenitude [...] sem nenhuma reserva”. E é perfeito que ela parta silenciosamente, ainda que muitos dos leitores de Benedetti tenham lhe pedido o adeus da personagem. Anos depois, ele o escreveria naforma de um poema — “Ultima noción de Laura” — dedicado a sua amiga, a atriz Ana Maria Picchio, que interpretou Laura no �lme A trégua , dirigido por Sergio Renán. O enredo do romance, contudo, fecha-se apenas depois de um inesperado diálogo, cujo conteúdo integral não será revelado ao leitor. Para nós, condenados a não saber tudo, restará apenas partilhar da verdade: uma só trégua, um único momento de felicidade, que se nega a perdurar, é muito pouco para a vida inteira de desapontamentos, vazios e interrogações sem resposta. SOFRIMENTO E DIGNIDADE — JOSEPH ROTH O título Jó — romance de um homem simples conduz o leitor a uma analogia tão imediata quanto falsa. Mais que a história bíblica reescrita sob aparência moderna, essa narrativa, publicada em 1930 pelo judeu-austríaco Joseph Roth, é profunda tentativa de diálogo com o livro tradicional. O protagonista, a princípio crédulo inocente, revolta-se diante dos desígnios de Javé. Ele se angustia buscando o motivo de suas provações, mas não luta para ser readmitido à graça divina. E se a mensagem oferecida pela história original é a de que o homem deve persistir em sua fé a qualquer custo, a lição do romance vai além da perseverança: Mendel Singer, o protagonista, evolui de sua fé infantil a um estado de silenciosa e sofrida dignidade, tipo incomum de sabedoria. Mendel é um humilde professor. No único cômodo de sua casa, onde reside com a esposa, Débora, e três �lhos — Jonas, Schemariah e Miriam —, ele transmite ensinamentos bíblicos a poucos alunos. Esse homem simples vê sua vida repetir-se todos os dias, “incessante e persistente como um pequeno e pobre riacho entre margens áridas”. Mas ele está preso a essa “roda de labutas e tormentos” por uma fé inquebrantável — como se Abraão re�zesse, dia após dia, a subida para o sacrifício de Isaac. Débora espera o quarto �lho. Mas à alegria do nascimento logo sucede a tristeza: o menino, Menuhim, tem sérios problemas de saúde, aparentemente irreversíveis. Será o primeiro elo em uma sucessão de dramas, a primeira de várias provas para Mendel, um obcecado pela fé. A criança doente inocula a dúvida no casal: os �lhos pagam pelos pecados dos pais? A única resposta possível se divide entre amar o menino, desdobrar-se para cuidar dele, e crer que, em algum momento, o plano divino se esclarecerá: “Ao rezar, ela [Débora] mantinha o rosto enterrado nas mãos mais demoradamente que de hábito, como se criasse sua própria noite, para nela enterrar o medo, e suas próprias trevas, para nelas encontrar a graça. Acreditava, conforme está escrito, que a luz de Deus resplandece nos crepúsculos, e que sua bondade clareia o negrume.” Amplificação Para introduzir o leitor nessa família de judeus pobres — que vivem na cidadezinha russa de Zuchnow em algum momento depois da Guerra Russo-Japonesa — e acompanhá-los até o �m da Primeira Guerra Mundial, Joseph Roth faz com que sua narrativa se desdobre, tentando abarcar toda a realidade, mas sem jamais se precipitar. Escreve de forma meticulosa, delicada, mesmo ao descrever momentos dramáticos ou cenas em que a tensão — nascida da miséria, da angústia ou do desamor — se espraia lentamente pelo texto, obedecendo a um narrador insatisfeito, que busca sempre mais, semelhante a um compositor que acrescentasse novas e incansáveis camadas de sentido a certa melodia. Sua ânsia é esgotar o que tem a dizer, mas um ou dois detalhes não o satisfazem. Sem as circunvoluções desmesuradas do barroco, Roth molda seu texto acrescentando elementos que acumulam sentido. Não se trata da mera repetição de sinonímias, mas de uma acumulação que, enquanto pormenoriza, concede concretude à história. Nesses trechos, o pensamento se ampli�ca, alargando o tecido narrativo; há um verdadeiro desdobramento de idéias, dando vida a quadros cuja complexidade corresponde perfeitamente à vida. Os elementos são decompostos não apenas para satisfazer a necessidade, digamos, de enumeração, mas antes para que o narrador argumente com perfeita clareza. A viagem de Débora, com o objetivo de levar o bebê para ser abençoado por um famoso rabino, pode servir como exemplo do estilo de Roth: Certo dia, uma semana antes das grandes festas (o verão transformara-se em chuva e a chuva queria fazer-se neve), Débora pegou o cesto de vime com o �lho, envolveu-o num cobertor de lã, acomodou-o na carroça do cocheiro Sameschkin e viajou para Kluczysk, onde morava o rabino. A tábua que servia de assento �cava solta sobre a palha e deslizava a cada movimento do carro. Débora continha-a apenas com o peso de seu corpo. Era como se a tábua estivesse viva e quisesse saltar. Lama prateada cobria a estrada estreita e tortuosa em que afundavam as longas botas dos caminhantes, assim como metade das rodas da carroça. A chuva encobria os campos, pulverizava vapor sobre as cabanas esparsas, moía com �na e in�nita paciência tudo de sólido que encontrava: a pedra calcária que, aqui e ali, crescia da terra negra como um dente branco; os troncos serrados nas margens da estrada; as pranchas de madeira perfumadas, empilhadas umas sobre as outras, em frente à entrada da serraria; o lenço sobre a cabeça de Débora e as cobertas de lã sob as quais Menuhim jazia enterrado. Nenhuma gotinha deveria borrifar sobre ele. Débora calculava que tivessem ainda quatro horas de viagem. Se a chuva não passasse, precisaria parar numa hospedaria e secar as cobertas, tomar um chá e comer as rosquinhas que trouxera, já amolecidas. Isso podia custar-lhe cinco copeques. Cinco copeques que não devia gastar de forma leviana. Mas Deus mostrou compreensão e a chuva parou. Um sol diluído branqueou os farrapos apressados de nuvens por menos de uma hora; depois, submergiu de�nitivamente em nova e ainda mais profunda penumbra. Narradores contemporâneos desprezariam, com certeza, as informações sobre a tábua que serve de assento, argumentando que nada adicionam à história, e resumiriam drasticamente as linhas dedicadas à chuva, satisfazendo-se, talvez, com a frase que antecede os dois-pontos. Preferindo sugerir a descrever, não condenariam seus leitores à cegueira, mas a ver em meio à neblina, o que se torna um recurso interessante nas mãos de raros escritores — e uma falha nascida da preguiça ou da incompetência, no que se refere à maioria. Outro exemplo seria o longo trecho da chegada de Débora a Kluczysk — “[...] As carroças espalhadas pela praça lembravam os destroços de um naufrágio” —, que se estende até a manhã do dia seguinte; ou quando ela acorda e, lentamente, toma consciência de seu envelhecimento. A cena começa por um despertar inocente em certa manhã de verão. A cada gesto, contudo, a mulher percebe a deterioração do corpo, até ser surpreendida pelo olho do marido que ainda dorme, cuja pálpebra abre involuntariamente, como se comandada por um músculo liso. A visão inesperada desse olho — “um lago congelado com um ponto negro no centro” —, enquanto o amanhecer segue seu percurso imutável, perturba Débora, contamina seus pensamentos, seus gestos. Ainda que nada aconteça, o trecho descreve uma tomada de consciência, na qual os elementos se desdobram e se acumulam para dar complexidade à trama. A partir dessa manhã, a relação do casal sofrerá uma ruptura. Continuarão juntos, mas sem qualquer atração física. Crueza e síntese Esse trecho, aliás, apresenta outro mérito de Roth: ele não permite que idealizações religiosas se imiscuam no drama. Mais tarde, a forma como Mendel passa a olhar para Débora, sentindo o desejo sexual fenecer, é narrada sem meios-tons: “De uma mulher a quem alguém se une apenas na penumbra, ela se convertera, por assim dizer, em uma doença à qual se está ligado dia e noite, que nos pertence por inteiro, que não é necessário partilhar com o mundo e em cuja �el amizade se sucumbe”. E a voz do narrador sentencia, referindo-se a Mendel: “A vergonha estivera no início de seu prazer, e ali estava ela de novo, no �m”. Se Joseph Roth não evita tratar com crueza o casamento massacrado pelo cotidiano e pelo envelhecimento, também não foge daspiores pulsões humanas. O olho de Deus e a culpa se fazem presentes depois que os irmãos tentam matar o caçula, mas, durante a cena do afogamento, as crianças são movidas por uma “alegre e atroz expectativa”. Com o passar do tempo, a família se desintegra, física e moralmente. Jonas se alista no exército, Schemariah migra para os EUA e Miriam passa a dar seu corpo aos soldados russos. A cena em que Mendel descobre a verdade sobre a �lha é outro exemplo do poder descritivo de Roth. Neste caso, a economia de recursos surpreende — e transmite, com perfeição, o impacto da vergonha. Pai e �lha haviam saído de casa juntos. Miriam, envolta em seu xale amarelo, para um encontro secreto; Mendel, rumo à sinagoga. Horas depois, caminhando de volta para casa, Mendel ouve sons estranhos ao passar por um trigal. Esconde-se, então, temendo algum perigo: [...] Quando as espigas se repartiram, o homem destacou-se primeiro. Um homem de uniforme, um soldado usando quepe azul-escuro, botas de couro e esporas cujo metal reluzia e tilintava levemente. Atrás dele, um xale amarelo iluminou-se, um xale amarelo, um xale amarelo! Uma voz ressoou, era a voz da jovem mulher. O soldado virou-se, abraçou-a, o xale se abriu, o soldado atrás dela, as mãos no seio, ela caminhava encaixada nele. Mendel fechou os olhos e deixou que o infortúnio passasse por ele em meio à escuridão. Com um simples recurso, a repetição pleonástica de “xale amarelo”, o narrador nos revela o espanto do pai. Depois de questionar a esposa sobre o paradeiro da �lha, Mendel volta à sinagoga, para rezar. O narrador transpõe, então, a cor do xale de Miriam para a oração desesperada de Mendel, intensi�cando a dor paterna: “No banco junto da estufa, dormia um judeu sem moradia. Sua respiração marcava o ritmo do canto monótono de Mendel Singer, que era como um canto ardente no deserto amarelo, perdido e íntimo da morte”. A condição de Jó A saída para preservar a honra de Miriam é a emigração. Mas o �lho doente tem de �car, sob os cuidados de amigos. Em Nova York, contudo, a derrocada da família e a dor de Mendel só aumentam. A América, o novo, invade a consciência do protagonista desde a chegada, alucinando-o; ele percebe a inevitável crise de identidade dos que o circundam, além de sofrer pelo �lho deixado para trás e pelo abandono das tradições. A idéia da volta à Rússia passa a estar sempre presente. Mendel espera. Repete o mesmo ritual, os mesmos gestos todos os dias — uma serena resignação, uma espera na fé. Ele acompanha o desenrolar do tempo na certeza de que todas as promessas se realizarão; observa o tempo como se este fosse uma transcorrência natural da misericórdia divina. Quando eclode a Primeira Guerra, à dor por Jonas, o �lho que não dá notícias, e por Menuhim, o caçula abandonado, somam-se as mortes de Schemariah e Débora, e a loucura de Miriam. A tragédia se instala. Joseph Roth despreza qualquer proselitismo. Tudo está morto. Mendel Singer é um herói trágico, ainda que passivo. Mudo diante do que não tem sentido, ele se revolta contra Javé e torna-se uma velha sombra, dependente dos favores alheios. Mas, em meio à dor inexplicável, Mendel preserva sua dignidade — como dizia Montaigne, ele “sabe pertencer a si mesmo”. Deus não abandonará Mendel, mas enquanto a hora da pesah não chega, o protagonista assume a condição de Jó. Este, quando se vê abandonado e coberto de chagas, apanha “um casco de cerâmica para se coçar” e, impassível diante de suas provações, “senta-se no meio das cinzas”. Sua mulher, então, lhe diz: “— Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!”. Ao que Jó responde: “— Falas como uma idiota: se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (Jó 2, 8-10). Em seus comentários sobre esses versículos, Harold Bloom diz, em Onde encontrar a sabedoria? , que “o Livro de Jó encerra uma estrutura dotada de crescente autoconsciência”, um livro “que não confere conforto algum, na aceitação de tal sabedoria”. Mendel Singer seguirá por essa via. As dores, as perdas e as humilhações o conduzirão a um estado de perfeita integridade, no qual descobrirá o quanto o homem pode se manter digno, apesar de todo sofrimento. Uma dignidade solitária, �eumática — “uma sabedoria severa, suspensa entre a ironia e a tragédia”, diz Bloom —, na qual nem a religião nem Deus ocuparão qualquer espaço, mas que servirá para rea�rmar o Gênesis : se o homem foi moldado à semelhança de Javé, por que haveria de se vergar, mesmo diante do mais atroz padecimento? Referindo-se às di�culdades de sua própria vida, Bloom a�rma ter encontrado conforto, desde a infância, na sabedoria talmúdica que se concentra no Pirkei Avot , “uma suplementação tardia do extenso Mishná ”. E cita, dentre outros trechos, as questões atribuídas a um dos mestres mais reverenciados da tradição judaica, o rabino Hillel: “Se eu não for por mim, quem então? E, sendo por mim, o que sou? E se não for agora, quando será?”. Enquanto a esperança de Mendel não renasce, enquanto o milagre não se manifesta, ele fará de seus dias uma resposta silenciosa a essas três perguntas. TARDE DEMAIS — HENRY JAMES Uma das principais características de Henry James é revelar o inusitado que se esconde sob o cotidiano. O que pode ser extraordinário em uma vida aparentemente banal? Haveria carga dramática su�ciente em uma existência destituída de arroubos, gestos de heroísmo ou decisões capazes de alterar o curso de outras vidas? E como escrever sobre uma vida comum, quase estúpida, sem incorrer no erro fatal de utilizar uma linguagem medíocre ou um narrador que seja somente o decepcionante espelho dos fatos, capaz apenas de repetir, sem qualquer viço, perspicácia, inteligência ou ironia o cotidiano dos personagens? As respostas a todas essas perguntas encontram-se na novela A fera na selva . Esse delicado — e ao mesmo tempo terrível — estudo sobre a vida do irresoluto John Marcher e sua reticente amizade por May Bartram guarda uma história de silencioso sucesso no Brasil. Não, o livro não se tornou um best-seller , mas é promissor, em meio à barafunda de romancinhos kardecistas, livrecos de auto-ajuda e narrativas que se resumem a conversas de botequim ou do meretrício, que uma novela tão intrigante, plena de sutilezas, cujos temas abarcam expectativas que não se cumprem, a cegueira de um homem em relação ao seu destino particular e um triste amor, que se realiza unilateralmente, tenha conseguido a façanha de merecer duas traduções — feitas por Fernando Sabino e José Geraldo Couto. A explicação para isso talvez resida no fato de Henry James ter, entre nós, um público �el, apesar de diminuto, seduzido pela escrita tão cerebral quanto impressionista, capaz de profundas e embriagantes alusões, com alto poder evocativo e dotada de rara capacidade para analisar minuciosamente os processos emocionais que não só caracterizam os diferentes comportamentos humanos, mas direcionam ou intensi�cam cada uma das nossas atitudes, cada uma das nossas decisões. O que, convenhamos, não é pouco. Mesmo o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, quem melhor analisa as motivações humanas entre nossos escritores, se comparado a Henry James, transforma-se em um amador — com uma pitada a mais de ironia e ceticismo, é verdade, mas sem o abissal aparato psicológico jamesiano. Ao escrever sobre as bases necessárias à arte da �cção, Henry James, que também foi crítico e teórico da literatura, legou às novas gerações a descrição da sua maneira peculiar de ver a realidade. E ela certamente explica, em parte, seu poder de extrair beleza e verdade de pormenores quase sempre desprezados pelos escritores: A experiência nunca é limitada e nunca é completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma espécie de vasta teia de aranha, da mais �na seda, suspensa no quarto de nossa consciência, apanhando qualquer partícula do ar em seu tecido. É a própria atmosfera da mente; e quando a mente é imaginativa — muito mais quando acontece de ela ser a mente de um gênio — ela leva para si mesma os mais tênuesvestígios de vida, ela converte as próprias pulsações do ar em revelações. Prova de amor De fato, ler Henry James signi�ca enredar-se na “teia de aranha” da consciência de narradores argutos e, ao acompanhá-los, descobrir “revelações” em “tênues vestígios de vida”. No caso especí�co de A fera na selva , o narrador nos apresenta John Marcher, homem sensível, apreciador de poesia e história, em sua hesitante trajetória, iniciada ao reencontrar, inesperadamente, May Bartram, a quem ele con�denciara, dez anos antes, seu mais importante segredo. O reencontro tem seu glamour , mas está impregnado da emoção daquele dia distante, quando se viram a primeira vez: “Olhavam um para o outro com o sentimento de uma ocasião perdida; a atual poderia ter sido muito melhor se a outra, tão remota no passado, numa terra estrangeira, não tivesse sito tão absurdamente escassa”. Quando May lembra que ele lhe con�ou seu segredo, o interesse de Marcher por sua interlocutora cresce, fornecendo ao leitor o primeiro indício de egoísmo, a marcante característica desse homem anódino. Em alguns momentos, Marcher quase se predispõe a, efetivamente, conhecer e compreender May, mas acabará sempre dominado por sua apreensão — o seu segredo —, aguardando “a fera que saltará da selva” para mudar radicalmente sua vida. Pouco importa que os encontros dos dois tornem-se cada vez mais freqüentes: Marcher jamais deixará de ser o cavalheiro de “descoloridas” boas maneiras, ou de tratar May apenas como leal con�dente. Em determinado momento, chega a pensar num matrimônio, mas com o único objetivo de ter alguém para partilhar amiúde suas preocupações. Trata-se de acabado egoísta, cuja primeira regra na vida social resume-se à dissimulação. Marcher também é leviano, cego em relação aos sentimentos de May, pronto a conceder migalhas de atenção à amiga, frio — acreditando-se generoso —, incapaz de qualquer gesto arrebatador, de qualquer mínimo ato de coragem, e aferrado às próprias idéias, especialmente ao mórbido segredo partilhado com May. Nem mesmo quando ela adoece gravemente Marcher demonstra desvelo, ainda que se angustie, mas principalmente ao antever a possibilidade de �car sem a con�dente. Próxima do �m, a própria May o adverte, num tom de leve ironia: “Você con�a plenamente nas suas ‘sensações’”. Depois da morte da amiga, Marcher viverá longo processo de auto- análise, ainda hesitante, preso às conjecturas que controlam sua vida. O homem que não conseguiu amar, a não ser a si mesmo, pagará alto preço: a fera escondida na selva se manifestará com a violência que ele sempre esperou, mas permitindo-lhe, antes, a visão do que não pôde concretizar, do que perdeu. Contrapondo-se a Marcher, temos May Bartram, uma das mais instigantes personagens femininas do universo jamesiano. Lúcida, serena, amando John Marcher incondicionalmente, ela manifesta seu inacreditável respeito pelos limites desse homem infeliz. Em pelo menos três oportunidades, inclusive quando já se encontra devastada pela doença, tomará a iniciativa de se aproximar dele, de tentar acordá-lo para a realidade. Na verdade, May Bartram devotou sua vida a proteger Marcher dele mesmo. Foi sua prova de amor. Amizade e estilos Muito já se disse sobre o estilo de Henry James, elíptico e de contrastes às vezes imperceptíveis, com longos parágrafos, meticulosamente compostos, nos quais todos os elementos são indispensáveis. Um dos melhores comentários, no entanto, coube ao escritor Robert Louis Stevenson, com quem James trocou cartas entre 1884 e 1894. Logo na primeira resposta, a 8 de dezembro de 1884, Stevenson escreve, compondo uma imagem em negativo, de re�nado humor: [...] Não sou tolo a ponto de lhe pedir que abandone seu estilo, mas você não poderia, em um romance, para ganhar o agradecimento de um sincero admirador, não poderia fundir seus personagens em um molde um pouco mais abstrato e acadêmico [...], e a�nar os incidentes, não digo em uma tonalidade mais forte, mas ligeiramente mais enérgica, como se fosse um episódio de um dos velhos romances chamados de aventuras? Temo que você não o fará, e suponho que devo admitir, suspirando, que você tem razão. Os comentários de Stevenson revelam o que muitos sentem diante do texto de James. No entanto, onde, para alguns, talvez falte energia, para outros, com absoluta certeza, jamais falta agudeza de espírito. E o próprio Stevenson, na mesma carta, admite: “Cada um de nós prefere seu próprio objetivo, e eu pre�ro o meu; mas quando passamos a falar de execução, reconheço que sou, comparado a você, um grosseiro e um descuidado de primeira ordem.” As cartas de James e Stevenson merecem análise à parte, não só pelas questões literárias de que tratam, mas por representarem magní�co exemplo de civilidade, algo tão em falta nos dias de hoje. Há uma sincera relação cordial nessa correspondência. Os dois escritores falam o que sentem, mas não pretendem provar coisa alguma. Ao contrário, são movidos pelo desejo do diálogo sincero, pelo prazer de se comunicar e de fruir uma relação amigável que independe de se conhecer quem é o melhor ou quem está certo. Estão acima dessas questões fúteis. Desencontro Voltando à novela, a recompensa da leitura brilha a cada página dessa história de amor cujo tema central é o desencontro — ou seja, uma história de amor composta na forma de dilacerante antítese. John Marcher passou a vida cumprindo o destino da maioria das pessoas, ou seja, sem perceber o mais importante, o essencial. E no �m, quando consegue abandonar o que Henry James chama de “o centro do seu deserto”, acorda a tempo de, tão-somente, descobrir que é tarde demais. A VÍTIMA DE PANDORA — PHILIP ROTH Das entrevistas de Philip Roth que tenho arquivadas, uma frase sempre me aguilhoa, golpeando-me como um bordão inconveniente: “Nenhum ser humano está preparado para o que deve enfrentar em sua vida”. De uma verdade irretocável, esse pequeno conjunto de palavras poderia ser a divisa do brasão ou do ex-libris de um cético, para quem o homem vive em permanente mal-estar, perturbado pelos acontecimentos da existência na qual o destino ou a divindade o jogou sem lhe dar qualquer direito de escolha — ou, antes, de se recusar a nascer. Mas o pensamento de Roth permite uma re�exão mais angustiante: ainda que se disponha a seguir vivendo, o ser humano permanecerá de alguma forma imaturo, defrontando-se com incidentes que não conseguirá entender, diante dos quais um possível gesto de revolta talvez produza meros arranhões na roda da fortuna; certamente nem isso. E, pior, toda a sua dolorosa experiência resultará inútil para seus semelhantes e às gerações que o sucederem, pois, ainda que esbraveje, denuncie ou gaste a maior parte de seus dias gravando nas folhas em branco suas vicissitudes, os que o sucederem na face da Terra pouco aproveitarão de seus esforços, pois, no fundo, toda experiência é intransmissível. Se, de fato, “nenhum ser humano está preparado para o que deve enfrentar em sua vida”, resta ao homem apenas a resignação diante dos fatos, submeter-se à miséria em que vive sem jamais procurar entendê-la, sem jamais ter a ousadia de lhe conferir sentido. Haveria, assim, um único direito assegurado ao ser humano: o de espernear. Âncora no vazio Marcus Messner, o protagonista da novela Indignação , de Philip Roth, experimenta, de maneira dramática, o axioma do seu criador. Em sua passagem à vida adulta acontece o que reiteradamente ocorre a todos: o abandono das certezas da infância e dos sonhos da adolescência para ingressar na árdua e penosa tarefa de viver. Também para ele, Pandora abre sua caixa, deixando que o mal se interponha entre sua maneira de ver o mundo, suas frágeis certezas, seus valores, e a realidade, em relação à qual o que ele pensa ou deixa de pensar resulta insigni�cante. Hesíodo, na Teogonia , não deixa dúvidas: ao abrir sua caixa (ou verter o conteúdo de sua ânfora), Pandora obedece aos desígnios de Zeus: fazer da desgraça um presente para os homens, dispersar pelo mundo tristes inquietações, cobrir aterra de males. Também obedecendo a Zeus, Pandora fecha o recipiente antes que dele escape a Esperança, o que, concluo, implica duplo sortilégio: além dos malefícios, condenar o homem a sonhos que não passam de quimeras ou aporias, pois a esperança, presa para sempre no escuro do receptáculo, não passa de uma âncora a oscilar no vazio. No caso de Marcus Messner, todos esses males serão potencializados por sua própria personalidade. Jactanciando-se de seu “pendor para a frieza dos lógicos”, que o “transformara no esteio da equipe de debate do colégio”, ele descobrirá que, ao �m e ao cabo, a lógica não tem serventia alguma no mundo, pois a realidade é visceralmente irracional. A curta jornada desse personagem chega a ser tragicômica — ainda que, em certos trechos, o leitor seja tomado por uma a�itiva sensação de impotência. Messner é um �lho dedicado, mas seu amor pelo pai — açougueiro kosher sem estudos, que lhe ensinou uma lição básica: “A gente faz o que tem de fazer” —, seu senso de dever — além de estudar na universidade, onde consegue notas máximas, trabalha como garçom nas noites de sexta e sábado, suportando humilhações e gestos de anti-semitismo —, sua ânsia de sempre fazer tudo certo e sua luta para manter-se coerente a qualquer custo apenas acarretarão desastres. O pai, vítima de um medo infundado, passa a atormentar a vida do jovem. Diante da vigilância insuportável, ele muda de universidade e de estado, em busca de paz para os estudos, mas encontrará somente antagonistas. Do colega de quarto que não respeita suas horas de sono ao diretor da universidade, um fanático religioso que só consegue ouvir os próprios argumentos, passando pela jovem por quem se apaixona, cada uma das pessoas de seu convívio levará Marcus Messner a, gradualmente, sucumbir à insanidade que comanda as relações humanas. Obstinado racionalista Mas uma ponderação deve ser feita. Que racionalista é esse, que busca desesperadamente, a qualquer custo, a congruência de seus atos e dos de outrem? Olívia, a mulher que o enlouquece, lhe diz: “Você é tão intenso. Relaxe”. Mas ele responde: “Não sei como relaxar”; e re�ete: “Embora o dissesse em tom jocoso e encabulado, era a mais pura verdade. Estava sempre exigindo algo de mim. Sempre querendo atingir um objetivo”. Há um quê de irracionalidade nesse jovem tenso, ateu, despreparado para a vida a ponto de não conhecer um buquê de rosas. Ardoroso leitor de Bertrand Russell, o imaturo Messner enlouquece com a primeira e inesperada felação, apegando-se à namoradinha como se fosse a única mulher existente, naufragando diante do irresistível apelo dos sentidos. Em sua crença absoluta e infantil na razão, ele desconhece o quanto o corpo e seus hormônios podem se rebelar contra as idéias. E durante um desentendimento com o diretor da faculdade, será engolfado pela ira que, apesar de justa, o fará perder o controle sobre palavras e gestos. Philip Roth parece, às vezes, sorrir desse obstinado racionalista, atordoado frente ao comportamento inconstante de Olívia, perplexo diante das imposições doutrinárias e do gregarismo arti�cial da universidade, pronto a fugir dos colegas desrespeitosos e da aparente loucura de seu pai. Jovem que, apesar de seu comportamento e raciocínio rigorosos, só encontra cada vez mais loucura, cada vez mais desagregação social. A narrativa tem como pano de fundo a Guerra da Coréia, o que amplia o drama pessoal de Messner, que luta para não ser convocado. Mas o encadeamento vertiginoso dos fatos — que a mimese de Roth cria admiravelmente — mostra-se implacável: nenhuma das qualidades do jovem serve para evitar sua convocação; ao contrário, elas o levam à guerra. E essa é a formidável ironia de Roth: neste mundo, as grandes qualidades são desnecessárias. Ou melhor: a maioria medíocre as considera acintosas, impertinentes, quase obscenas. Philip Roth não chega a defender a ataraxia, mas as perguntas que nos coloca �cam no ar: se uma inocente guerra de bolas de neve pode descair para gestos tresloucados de violência — o escritor usa bem essa imagem nas páginas �nais do livro —, o que mais podemos esperar? Se uma brincadeira inocente conduz o homem à insanidade, então nada tem sentido — e todas as nossas atitudes são, na verdade, levianas. O “triunfo” da razão Desencontro após desencontro, enfrentando diferentes formas de intolerância, Messner deveria ter aprendido que a primeira importante lição da maturidade é não se levar a sério demais, pois “nossas escolhas banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados” não apenas “desproporcionais” — como a�rma o narrador que se incumbe de contar o �nal da história —, mas loucos, violentos, capazes de produzir uma guerra e condenar milhares de inocentes ao sofrimento e à morte. Isaiah Berlin, que sempre fugiu da idéia mentirosa de que a razão triunfará de�nitivamente em algum momento da história, dizia que estamos condenados a viver em um “equilíbrio difícil”, precário, que deve ser reconstruído a cada manhã; e ensinava, com sabedoria: “Um mundo sem con�itos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de nosso conhecimento”. Foi essa a lição que Marcus Messner não aprendeu, talvez por lhe faltar savoir-vivre , �euma e uma boa pitada de humour . Racionalista radical, foi destruído pela ignorância dos que o circundavam e pela própria imaturidade, condenado a interrogar no vazio, sem encontrar respostas. Mais uma das incontáveis vítimas de Pandora. PELA FRESTA DA PORTA — ISAAC BASHEVIS SINGER No livro Entre nós — um escritor e seus colegas falam de trabalho , Philip Roth pergunta a Isaac Bashevis Singer se, quando migrou da Polônia para os EUA, teve medo de perder contato com o material que alimentava sua �cção. Num primeiro momento, Singer diz que sim; mas, logo a seguir, pondera: Quando morre uma pessoa que é próxima a você, nas primeiras semanas depois da morte essa pessoa �ca tão distante de você quanto é possível se estar; é só com o passar dos anos que ela se torna mais próxima, e aí chega um momento em que você está quase vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia, a vida judaica na Polônia, está mais próxima de mim agora do que estava naquela época. É desse milagre da memória, e do talento para dar vida ao mundo destruído pelos nazistas, que nasce No tribunal de meu pai , conjunto de relatos autobiográ�cos publicados pelo escritor no jornal Jewish Daily Forward sob o pseudônimo de Isaac Warshawsky. Reunidos em livro no ano de 1966, esses textos evocam, principalmente, o bairro judeu de Varsóvia antes e durante a Primeira Guerra Mundial, concentrando-se nos personagens da rua Krochmalna, onde o menino Singer viveu com seus pais e irmãos. (Mais tarde, em 1984, o autor publicaria um livro de memórias, Amor e exílio .) Ao resgatar as in�uências que o marcaram, o escritor nos apresenta histórias que poderiam ser transmitidas de geração a geração, exatamente como as parábolas, novelas e anedotas que compõem a literatura produzida pelo hassidismo, corrente religiosa à qual seus pais pertenciam. Ambos descendentes de famílias nas quais se destacavam famosos rabinos e estudiosos da Cabala e da Torá, com personalidades díspares — a mãe, crítica e racionalista; o pai, místico, alheio à realidade, sempre dedicado ao estudo e à leitura —, eles terão papel preponderante na formação do menino que, apesar de sofrer inúmeras outras in�uências, jamais esquecerá sua educação kosher , segundo a qual “o próprio mundo era tref [impuro]”: Embora minha mãe e meu pai não se parecessem muito um com o outro, a ambos revoltavam a vulgaridade, a ostentação, as intrigas e a bajulação. Havia em nossa família o entendimento de que a derrota era preferível ao vício, de que as conquistas que a pessoa obtinha na vida deviam ser alcançadas com honestidade. Éramos os herdeiros de um código heróico até então não descrito na literatura iídiche, cuja essência era a capacidade de suportar o sofrimento em benefício da pureza espiritual. Ao hassidismo se acrescentarão as concepções panteístas de seupai, homem embriagado pela mística judaica, que ensinava haver “uma partícula do divino em todas as coisas. Até mesmo a lama da sarjeta contém centelhas divinas, pois sem elas nada poderia continuar a existir”. Quando Singer, já adolescente, acompanhado pela mãe e por dois irmãos, escapa da fome que a�igia a Varsóvia da Primeira Grande Guerra, então sob domínio da Alemanha, e parte para a cidade de Bilgoray, sob poder austríaco, a �m de viver com tios e primos maternos, a relação com as tradições judaicas se aprofunda: O iídiche que eu ouvia ali e o tipo de comportamento e costumes judaicos que eu observava eram sobrevivências de um período muito anterior. [...] Nesse mundo de judaísmo antigo, encontrei um tesouro de relíquias espirituais. Tive a oportunidade de ver nosso passado como ele realmente foi. O tempo parecia andar para trás. Eu vivi a história judaica. Leitura, drama e delírio Na verdade, a formação de Isaac Bashevis Singer corrobora o que George Steiner diz, na longa entrevista concedida a Ramin Jahanbegloo (em George Steiner: à luz de si mesmo ), sobre o vínculo entre erudição e judaísmo: “A religião judaica é a única para a qual o sábio é uma bênção”. Naquele paupérrimo apartamento do nº 10 da rua Krochmalna, o pequeno Singer não se dedicava apenas ao estudo prazeroso das tradições hassídicas, mas, atormentado por inesgotáveis questionamentos, lia tudo que estivesse à mão, incluindo Crime e castigo , de Dostoiévski: “Parecia um livro de histórias, mas era outra coisa. Estranho e elevado, lembrava-me a Cabala . Quem escrevia livros assim? Quem era capaz de entendê- los? Aqui e ali, uma passagem se elucidava, eu entendia um episódio, e me entusiasmava com a beleza de uma nova compreensão”. Poucos anos depois, movido pela compulsão de saber, aprende hebraico, lê poesia iídiche e devora Strindberg, Turguêniev, Tolstói, Maupassant, Tchekhov. Apaixona-se por Sherlock Holmes, estuda Hillel Zeitlin e Spinoza — mas também se debruça sobre um compêndio de física. Tragado por um turbilhão de idéias, ele é a materialização do judeu descrito por Steiner: [...] é aquele que lê um livro com um lápis na mão [...]. É também aquele que corrige os erros mesmo ao ler um jornal. [...] Eu não falo em termos de gênio, porém designo uma sede incessante de conhecimento, de transcendência e de pensamento puro. Creio que o judeu é aquele que, até na soleira de uma câmara de gás, ainda corrigia um texto. Os rabinos o �zeram. Corrigir um texto é interpelar Deus dizendo-Lhe que se é �el a esse câncer do pensamento, a essa patologia do absoluto que Ele colocou em nós, sem que saibamos por que, é dizer-Lhe o que isso nos custou. Aos quinze anos, residindo em Bilgoray, Singer continua lendo com sofreguidão — e certo amigo lhe traz, às escondidas, um novo autor “gentio” a cada dia. Durante a infância, no entanto, será na tumultuada rua Krochmalna, acompanhando as demandas apresentadas ao Bet Din (“uma mistura de tribunal de justiça, sinagoga, casa de estudos e, se quiserem, consultório psicanalítico”, explica Singer), que o menino receberá as primeiras lições sobre a natureza humana e seus dramas. Dono de uma curiosidade singular, ele muitas vezes é proibido de assistir aos diálogos de seu pai com os querelantes, mas coloca-se atrás da porta e... ouve. Ou acompanha tudo através de uma fresta, deixada de propósito ao sair da sala. É, com certeza, o embrião do escritor, ávido de se apossar das tragédias alheias, que move esse menino atento a cada pormenor, sensível, de uma perspicácia inata, pronto a se deixar absorver pelas mais sutis variações de humor ou por terríveis tragédias. Que lugar poderia ser mais útil à formação do escritor do que um tribunal onde se julgam miudezas do cotidiano, pequenas vilanias, mas também crimes inconfessáveis, traições repulsivas? Onde mais o espírito humano se mostra despojado de todo verniz? Para o católico, seria como esconder-se, dia após dia, à sombra de um confessionário. Em No tribunal de meu pai , Singer narra alguns dos fatos que presenciou, compondo uma galeria inesquecível de personagens e situações às vezes cômicos, às vezes dramáticos, mas sempre edi�cantes. No capítulo “Por que grasnavam os gansos”, a atmosfera de terror é substituída pelo confronto surdo entre o racionalismo de sua mãe e a religiosidade paterna. “Um noivado desfeito” nos oferece as pequenas injunções que podem impedir a concretização do amor. Na crônica “Uma pergunta horripilante”, o pavor nasce não das esferas sobrenaturais, mas da desgraça, da pobreza, das humilhações a que, muitas vezes, o homem é submetido. A dignidade e a virtude — ou, como a�rma Singer, “o vigor da honestidade e do dever” — estão concentradas em “A lavadeira”. “Rumo à Terra de Israel” apresenta- nos Moshe Blecher, mística e singela �gura, homem à espera de um sinal divino, quando, na verdade, ele próprio é o sinal. E há mais: o livreiro que refaz interminavelmente seu testamento, movido por um estranho perfeccionismo; o homem que desejava vender sua parte na vida eterna; a melancolia saudosista de Reb Chayim Gorshkover; a doce loucura de Traitl; e inúmeras outras histórias, contadas sob o olhar de um menino curioso e impressionável, por vezes confuso entre a realidade e o que descobre nos livros, pronto a aventurar-se pelas ruas de Varsóvia e deliciosamente imaginativo. Mas, no caso de Singer, referimo-nos a um tipo especial de imaginação, que pode beirar o delírio — ou o êxtase. Certo dia, perturbado pelos ensinamentos panteístas do pai, ao descer a escada que leva ao porão, pára e fecha os olhos: Lembrei-me [...] das palavras de meu pai sobre os segredos da Torá: somos todos �lhos de Deus. Em cada um de nós habita uma alma que veio do Trono de Glória. Há centelhas divinas até na lama... [...] Cheguei realmente a sentir que havia um espírito santo dentro de mim, uma partícula da Divindade. Na escuridão, divisei uma �or chamejante, reluzindo como ouro, luminosa como o sol. Ela se abriu como um cálice e de seu interior saltaram cores vivas: amarelo, azul, púrpura — cores e formas como as que vemos somente nos sonhos. Em outro momento, agora sob in�uência do irmão mais velho, ávido leitor de Darwin e Newton, politizado e com idéias heréticas, o garoto Singer vive experiência semelhante: Tudo o que ele dizia �cava gravado na minha cabeça. Ao fechar os olhos, eu via �guras e cores que nunca tinha visto antes, as quais assumiam continuamente novos feitios e formas. Às vezes, divisava um olho afogueado, mais luminoso que o sol e com uma pupila estranhíssima. Até hoje consigo, com algum esforço, ver esse olho radiante. Minha lembrança daqueles dias é repleta de �ores e gemas visionárias. Porém, na época as visões eram tão numerosas que eu às vezes não conseguia me libertar delas. Sem dúvida, trata-se do escritor em formação. Um menino que, antes mesmo de ler, já se pergunta sobre “os paradoxos do tempo, do espaço e do in�nito” só não abraçará a re�exão e a escrita se for impedido. O que, para nossa felicidade, não ocorreu. Ao contrário, Singer era incentivado. O pai, acreditando que ele será um novo comentarista do Talmude , ensina-lhe: “Apresente um raciocínio claro e evite argumentos casuístas. Nunca houve entre os grandes eruditos quem torturasse o texto. Se é verdade que iam fundo em suas perquirições, jamais transformavam cupinzeiros em montanhas”. Dividindo-se entre o estudo da Guemará e a leitura de Dostoiévski, o mundo dos livros passa a ser, lentamente, sua principal referência. Depois de um primeiro passeio pelo campo — no capítulo “Rumo às vacas selvagens” —, onde tudo o impressiona vivamente, conclui: “No �m das contas, então, os livros de histórias não mentiam. O mundo estava realmente cheio de maravilhas. Bastava a pessoa atravessar a Muranow e mais uma rua para ver-se no meio de coisas prodigiosas”. Anos depois, no trem a caminho de Bilgoray, a imaginação exaltada pela leitura ressurge: Meus pensamentos se aceleravam com as rodas, estimulados por cada árvore, arbusto e nuvem. Vi lebres e esquilos.A redolência das folhas dos pinheiros mesclava-se com outras fragrâncias a um só tempo exóticas e reconhecíveis, embora eu não soubesse de onde vinham. Acometia-me o desejo de, à maneira dos heróis dos livros de histórias, saltar do trem em movimento e perder-me no meio daquelas coisas verdes. O umbral da verdade Há, contudo, uma ponta de melancolia que perpassa esses relatos. Ela nasce não apenas do fato de que a maior parte dos familiares de Singer foi morta pelos nazistas na Segunda Grande Guerra, mas também daquela certeza infelizmente tão viva para o povo judeu, e que a mãe do escritor declara sem titubear: “Os gentios sempre tiveram ódio aos judeus. Mesmo que use uma cartola, o judeu será odiado, pois é um guardião da verdade”. Ler No tribunal de meu pai é pôr os pés no limiar dessa verdade. Próximos do que fazia o menino Singer, olhamos pela fresta da porta não só porque somos curiosos, mas porque estamos sedentos de ética, decididos a recuperar um pouco da inocência primeva — e, sobretudo, conhecer aqueles que podem nos tornar melhores do que somos. À PROCURA DOS DEUSES — JOHN BANVILLE Em um conhecido poema de William Butler Yeats, “Sailing to Byzancium” (“Rumo a Bizâncio”), um pássaro quer se unir à eternidade, libertar-se da natureza e do seu corpo condenado a morrer, para, forjado em ouro, cantar o que é passado, o que passa e o que virá. Ele recusa o �m certo e se apega ao sonho de viver acima do tempo e, portanto, acima da morte. Max Morden — o narrador de O mar , do irlandês John Banville, vencedor do Booker Prize de 2005 —, diletante estudioso da história da arte, é impulsionado pelo mesmo desejo. Apesar de, semelhante ao pássaro de Yeats, saber que “tudo quanto se engendra, nasce e morre”, seu coração suplica, “doente de desejo e atado a um animal agonizante”, para ser unido ao “artifício da eternidade”. Perdido entre o passado, o presente e o futuro, acossado pela morte e pela saudade, ele, contudo, não encontra meios para se libertar do tempo, de suas lembranças e de tudo que o transcorrer da vida lhe roubou. Empreendendo um visceral exercício de resgate da memória, Morden apenas descobre, em meio aos vestígios da infância, o passado pronto a esmagá-lo com sua força. Essa tentativa de retorno no tempo não se restringe, no entanto, a uma forma de escape. Não. Como se estivesse colocado entre dois espelhos, ele pode olhar para si mesmo e encontrar, num plano posterior, o que normalmente não conseguiria ver: facetas talvez desconhecidas e a criança de certo verão longínquo — tendo consciência, ao mesmo tempo, de quem ele é no presente e de quem desejou ser no passado. Morden almeja recuperar aqueles dias de veraneio no litoral — onde, aliás, se encontra enquanto narra; e a visão das distantes semanas de felicidade traz consigo não só o desapontamento, mas os sonhos de futuro que ele alimentava, nos quais percebe “uma representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode- se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas, antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, uma vez que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha passado”. Assim, o futuro, visto a partir de um retorno à infância, torna-se, por um lado, mais suportável do que o próprio presente. Por outro, entretanto, nada pode arrancar Morden da opacidade à qual está preso, de suas insatisfações e de suas dúvidas: “Será que era mesmo pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além dele?”. Às vezes, sem querer, ele conseguiu se aproximar do sonho almejado pelo pássaro de Yeats: [...] Sentado diante da minha escrivaninha, imerso em palavras, [...] senti que rompia a membrana da simples consciência e penetrava num outro estado, num estado sem nome, onde as leis comuns não funcionavam, onde o tempo se movia de um modo diferente, se é que se movia, onde eu não estava nem vivo nem qualquer outra coisa, e, contudo, me sentia mais presente do que jamais pude me sentir nisso que chamamos, já que é preciso lhe dar uma denominação, mundo real. Mas, logo a seguir, a sombra da morte volta a intimidá-lo, e exatamente quando parece se encontrar a um passo de descobrir a fórmula que o libertará do tempo, percebe que “talvez a vida toda não passe de uma longa preparação para o momento em que devemos deixá-la...”. Em outros trechos, a ruptura desse inexorável encadeamento se dá por meio de uma duplicação da personalidade: “Vejo o navio negro ao longe, assomando imperceptivelmente, aproximando-se cada vez mais. Lá estou eu. Posso ouvir o som da sua sirene. Lá estou eu, quase chegando”. Mas o duplo que ele imagina enxergar não é nada mais que o seu próprio eu dilacerado. O magnetismo do pretérito possui tal força que Morden chega mesmo a substituir a presença corpórea da amada Chloe, realmente impossível, por sua presença imaginada, de maneira que a existência dela torna-se algo independente do tempo: [...] Como é que ela podia estar comigo num momento e no outro não? Como podia estar em qualquer outro lugar, de forma tão absoluta? Era isso que eu não conseguia entender; era isso que eu não conseguia aceitar e continuo não conseguindo. Uma vez afastada da minha presença, ela deveria ter se tornado imediatamente pura �cção, uma recordação minha, um sonho meu; mas todas as evidências me diziam que, mesmo longe, ela permanecia ela mesma, de um jeito sólido, obstinado, incompreensível. E, no entanto, as pessoas vão embora, desaparecem. Esse era o maior mistério, o maior de todos. No entanto, todas as recordações acabam sendo assaltadas pela realidade, que o faz resvalar do seu mundo onírico, acordando para um presente no qual não há certeza alguma: “Tive uma sensação quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente, se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o formato que bem quis”. E quando seus pensamentos se confundem e ele não sabe mais discernir entre a reconstrução do passado (maculada pelo olhar de um homem envelhecido) e a inatingível recuperação do que experimentou quando criança, Morden se obriga a concluir, melancolicamente: “Se é que é a própria Memória quem está em ação aqui, e não alguma outra musa, mais imaginativa”. Natureza e morte Esse narrador acorrentado às suas lembranças gera uma comparação quase que automática com o narrador de Em busca do tempo perdido , de Marcel Proust. Mas precisamos ser cuidadosos, pois o retorno ao passado não é patrimônio exclusivo de Proust. Idas e vindas no tempo, buscando dar sentido não só ao pretérito, mas também ao presente e ao futuro, utilizando-se de diferentes focos narrativos, estão espalhadas pela literatura. E, numa rápida lembrança, poderíamos citar Nostromo , de Joseph Conrad, e Fim de caso , de Graham Greene — romances que não se encontram sob a esfera da in�uência proustiana. Max Morden recua, sim, no tempo. E se a memória o prende ao passado, ele também se encontra acorrentado ao presente, lugar a partir do qual narra o hoje e o ontem, lembrando-se, como mostramos acima, do que, imaginava, seria o seu futuro — uma expectativa não realizada. Assim, há a decepção por não reter o passado — e, no entanto, estar atado a ele, às múltiplas e inebriantes sensações que ele lhe proporcionou e que Morden tenta desesperadamente recuperar — e a de, estando no presente, não encontrar nem o futuro imaginado na infância nem a felicidade parcial que acreditava ter construído durante o passar dos anos. Trata-se de um narrador esmagado por uma tripla experiência de morte: a da esposa, Anna, morta há poucas semanas; a do passado distante — vivido nos arredores da casa chamada Os Cedros e cuja sensualidade foi a experiência mais crucial de sua vida —, perdido irremediavelmente; e a da sensação de inutilidade nascida do decorrer do tempo, da própria vida, com todas as frustrações que, enquanto ele narra, o fazem se antecipar à sua ruína. De onde Morden está, não se vê qualquer futuro, mas apenas decepção. Sempre que o passado retorna, ele surge, inicialmente,na forma de um enlevo pleno de sensualidade, mas logo depois tudo se corrompe. Não há iterações. O narrador não consegue restaurar o passado, por mais que se esforce. Mesmo Os Cedros parece mudada: alguns cômodos surgem completamente diferentes do que ele lembra e há poucos vestígios capazes de ajudá-lo. Na há madeleines em John Banville. Ao contrário do que ocorre no romance de Proust, não existe tempo reencontrado ou redescoberto em O mar , mas apenas a destruição de tudo que é humano, sabendo, numa convicção ainda mais angustiante, que a natureza — cuja força e encanto conformam a única certeza desse narrador — permanecerá: vibrante, luxuriosa, iluminada. E sempre pronta a desdenhar dos homens, magní�ca mas indiferente. Figuras inusitadas Se, contudo, insistirmos em comparar o texto de Banville a outras experiências literárias, talvez um estudo acurado possa nos mostrar o diálogo que ele mantém com a própria literatura irlandesa — pensemos, por exemplo, em O mar, o mar , de Íris Murdoch — ou com um de seus poetas preferidos, Wallace Stevens, o Bardo de Hartford, e os dez cantos que compõem o poema “The auroras of autumn” (“As auroras boreais do outono”). A fulgurante natureza do Canto VI, por exemplo, está desdobrada em todo o livro, assediando o leitor com sua lascívia e aturdindo-o desde a primeira página: “As aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente.” Essas imagens arrebatadoras se repetem, não num exercício fútil de estilo, mas dilatando, até muito além do suportável, a impassibilidade da natureza: Um raio de sol desceu de viés sobre a praia, deixando a areia da orla branquíssima, e um pássaro branco, ofuscante contra o pano de fundo da muralha de nuvens, se ergueu no céu com as asas como foices, e, virando-se com um estalido inaudível, mergulhou no dorso do mar feito um “v” bem fechado. Era um suntuoso, isso mesmo, um suntuoso dia de outono, com todos aqueles cobres e ouros bizantinos sob um céu de Tiepolo, de um azul-esmaltado. O campo estava parado e com uma aparência vítrea, mais parecendo o seu próprio re�exo na superfície calma de um lago. Era o tipo do dia em que, ultimamente, o sol tem me parecido o olho empapuçado do mundo, observando tudo com o maior prazer, enquanto eu �co aqui me contorcendo na minha infelicidade. Quando a luz foi se tornando mais rala por entre as árvores, e a sombra do prédio em frente começou a baixar sobre o jardim como o alçapão de uma armadilha [...]. E há também comparações incomuns, instantâneos do artista que não teme a busca da imagem mais adequada, da �gura precisa para o que realmente deseja expressar. Um escritor vacinado contra aquele mal — infelizmente tão comum entre alguns autores contemporâneos — que denomino de narratofobia: A luminosidade do verão, espessa como mel [...]. [...] e nadávamos à noite, quando a água passava por cima dos nossos braços como ondulações de cetim negro. Um silêncio profundo, onírico, foi se acumulando ao nosso redor, brando e denso, como o lodo. O céu estava todo nublado e não havia um vento sequer para agitar a superfície do mar em cujas margens as ondas miúdas se quebravam numa linha um tanto apática, fazendo sempre o mesmo movimento, como uma bainha incessantemente dobrada por uma costureira sonolenta. Para John Banville, “os romancistas são os historiadores não reconhecidos do mundo”. Em O mar , Max Morden é o historiador de si mesmo, devassando sua memória em busca dos deuses que partiram. Não um memorialista frio, mas alguém que vasculha o passado numa incessante procura, certo de não ansiar por juízes do comportamento alheio, seres mitológicos ou, muito menos, atormentados que se �agelam e se deixam abater, mas buscando ardorosamente os deuses que ele nunca cansou de amar. III — Entreato Chesterton O QUE FALTA AO NOSSO TEMPO QUANDO GILBERT KEITH CHESTERTON PUBLICOU, em 1910, O que há de errado com o mundo , talvez não imaginasse que demoraria mais de uma década para se converter à Igreja Católica Apostólica Romana. Há incrível distância, portanto, entre suas idéias — ele publicara Hereges em 1905 e Ortodoxia em 1908 — e a decisão que o transformou num dos mais respeitáveis convertidos do século XX. Mas distância, neste caso, não signi�ca incoerência. Ao contrário, a vida de Chesterton foi — até seu batizado, a 30 de julho de 1922, no simples salão de baile do Railway Hotel, em Beacons�eld, transformado provisoriamente numa capela, pois a cidade não dispunha de templo católico — um exemplo, segundo Joseph Pearce, de “catolicismo latente”. Assim, se voltarmos às circunstâncias pessoais em que surge O que há de errado com o mundo , não causa surpresa o bem-humorado epitá�o composto pelo escritor Edward Verrall Lucas em 1910, de maneira a sintetizar a personalidade famosa por seu “dogmatismo”: O pobre Chesterton morreu; Deus, por �m, a verdade conheceu. Nosso escritor, entretanto, estava distante de ser um crédulo exagerado ou o cego defensor de uma doutrina religiosa. Ao contrário, o que acalentava no coração era demonstrado na singeleza dos desenhos oferecidos centenas de vezes a crianças, nos quais retratava seus respectivos santos patronos; ou na transcendência de in�uenciar amigos e conhecidos — como fez em relação ao poeta, historiador e crítico literário Theodore Maynard, cuja conversão ocorreu logo depois de ler Ortodoxia ; ou, ainda, numa desconfortável dose de angústia, fartamente demonstrada por seus biógrafos. Um exemplo revelador da fé de Chesterton dá-se em janeiro de 1909, quando, depois de aceitar o convite da modernista e marxista Church Socialist Quarterly , publica nesse periódico o artigo “O sentimentalismo, a cabeça e o coração”, no qual contrapõe sua visão tradicionalista às idéias que já haviam sido condenadas por Pio X, em 1907, na famosa encíclica Pascendi Dominici Grecis . Usando de sua excepcional qualidade para trabalhar com metáforas, Chesterton cria a famosa �loso�a da árvore e da nuvem: [...] A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modi�ca é apenas o cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser centrais. Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto. Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como numa árvore; objetivam a modi�cação total e absoluta de cada parte a cada minuto, como a transformação que sofrem as nuvens. Mas se adotarmos como �loso�a uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado, e a civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive amanhã mesmo. Pois bem, eu não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas um caos perpétuo; creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a natureza de cada coisa. Penso, por conseguinte, que não pode evoluir a civilização que não esteja razoavelmente completa, e a nossa, tão cientí�ca, avançada e progressista, está irracionalmente incompleta. Para termos uma idéia da repercussão desse artigo, seria o mesmo que, mutatis mutandis , certo autor ortodoxo publicasse texto semelhante numa revista dirigida, atualmente, pela Teologia da Libertação. O que só poderia acontecer, convenhamos, graças a um tremendo descuido do editor. O artigo de Chesterton recebeu virulenta resposta do esquerdista Robert Dell, um tipo especial de católico, muito comum nos dias de hoje, cujo esforço foi o de provarque “o despertar da consciência social e a difusão do sentimento de compaixão não eram conquistas da Igreja, mas, sim, da Revolução Francesa”, que a “Igreja Católica era a principal força reacionária em todos os países da Europa” e, �nalmente, depois de atacar Pio X, que a “Igreja papista” deveria ser destruída. Antes que Dell abandonasse o catolicismo — para transformar-se em agnóstico e revolucionário socialista —, coube ao anglicano Chesterton defender Roma. Na tréplica “A podridão do modernismo”, nosso escritor a�rma, dentre outras verdades: “O dogma da Igreja limita o pensamento da mesma maneira que o axioma de Euclides sobre o sistema solar limita a ciência física: não detém o pensamento, mas lhe proporciona uma base fértil e um estímulo constante”. Resposta que o trocista Edward Verrall Lucas certamente não leu. Chesterton mantinha, de forma repetida, essas polêmicas. No mês da resposta a Dell, pediram-lhe também a contestação, no Hibbert Journal , de um artigo assinado por certo “Mr. Roberts”. O texto negava a divindade de Jesus Cristo — e Chesterton optou por replicar com sua característica ironia, dizendo, logo no início, que o título do artigo — “Jesus ou Cristo?” — o atingia como se estivesse lendo algo semelhante a “Napoleão ou Bonaparte?”. Chesterton aproveitaria sua experiência nesses debates para escrever A esfera e a cruz , publicado no �nal de 1909. Com deliciosas pinceladas de nonsense e humor, a novela apresenta dois protagonistas, um católico e um ateu. Eles passam a história tentando realizar seu duelo intelectual — a respeito das verdades do cristianismo —, sempre interrompidos pela polícia, que os considera perigosos à ordem pública. De fuga em fuga, os dois acabam por se tornar amigos num cenário semelhante ao Juízo Final. Uma história que, somada ao clássico de Cervantes, com certeza inspirou Graham Greene a escrever Monsenhor Quixote . Incansável polígrafo, em maio de 1910 Chesterton publicaria novo artigo, no Daily News — uma aula de teologia e estilística: Não utilizem um substantivo e depois um adjetivo que contradiga o substantivo. O adjetivo quali�ca, não contradiz. Não digam “dêem-me um patriotismo livre de fronteiras”, porque é como se dissessem “dêem-me um pastel de carne sem carne”. Não digam “anseio por uma religião mais ampla, na qual não existam dogmas especiais”, porque seria como dizer “quero um quadrúpede maior que não tenha patas”. Quadrúpede signi�ca algo com quatro patas e religião signi�ca aquilo que compromete o homem com uma doutrina universal. Não deixem que o dócil substantivo seja assassinado por um adjetivo exuberante e jubiloso... Contra o senso comum O que há de errado com o mundo surge nesse momento da vida intelectual de Chesterton, livro mal recebido por alguns, se nos basearmos na crítica publicada pelo jornal Evening Standard : “Não temos nem a mais remota idéia do que está mal no mundo; e depois de ler o livro do Sr. Chesterton, [...] sentimos chegar à conclusão de que ele tampouco sabe”. Segundo Joseph Pearce, a recepção negativa da obra se deve, em parte, aos editores. Estes, convencidos de que um pouco de agressividade favoreceria as vendas, acrescentaram ao título original, O que há de errado , a expressão com o mundo , passando, de certa forma, a impressão de um autor arrogante, único detentor da verdade. No entanto, O que há de errado com o mundo realmente não foi escrito para agradar. Essa era a última preocupação de Chesterton naquela Inglaterra sacudida por dois grandes movimentos políticos. A �liação aos sindicatos crescia de forma expressiva — de 2,5 milhões de trabalhadores em 1901 para 4 milhões em 1913 — e estes, lutando por representação parlamentar, �zeram com que o Labour Party, fundado em 1900, pulasse de dois deputados, em 1901, para cinqüenta em 1906. Aproveitando a onda trabalhista, que tinha apoio dos Whigs — liberais e anticatólicos —, a esquerda, com socialistas e anarquistas, ganhou força, a ponto de, em 1911, quando Jorge V assume o trono, a Câmara dos Lordes ser praticamente forçada — sob a pressão do primeiro-ministro liberal, Herbert Henry Asquith — a votar a limitação dos seus próprios poderes. Pari passu , o movimento sufragista — fundador do feminismo contemporâneo —, que vinha crescendo lentamente desde a década de 1830, ganha força, em 1903, com a fundação do Women’s Social and Political Union (WSPU), facção violenta da National Union of Women’s Suffrage Societies (NUWSS). Nos anos seguintes, o WSPU tornou-se um aglomerado de agitadoras pro�ssionais, responsável por depredações, tumultos e outras formas de violência, mas soube capitalizar a opinião pública utilizando-se do recurso da greve de fome, dentro ou fora das prisões. Diante de tal conjuntura, a visão desapaixonada, lúcida e profundamente católica de Chesterton só poderia agradar a pequena parcela de leitores. Em meio à balbúrdia, ao populismo e à agitação social arti�ciosa, a sensatez chestertoniana transpirava verdades incômodas que ninguém queria ouvir. Nosso escritor tinha plena consciência disso, inclusive do papel camaleônico e dissimulado dos jornais, exatamente como os diferentes setores da mídia agem na atualidade: Se você empreender hoje uma discussão com um jornal moderno cuja posição política é oposta à sua, descobrirá que não se admite meio-termo entre a violência e a fuga; você não receberá senão jargões ou silêncio. Um editor moderno não deve ter o ouvido atento que acompanha a língua honesta. Pode ser surdo-mudo — a isso chamam “dignidade”. Ou pode ser surdo-barulhento — a isso chamam “jornalismo mordaz”. Numa sociedade em visível processo de desagregação, Chesterton se propõe a compor um diagnóstico que em nada agradará ao doente completamente cego para seus próprios problemas: “[...] Concordamos que a Inglaterra está insalubre, mas metade de nós seria incapaz de ver saúde naquilo que a outra metade chama de ‘saúde �orescente’. Os abusos públicos são tão patentes e pestilentos que arrastam todas as pessoas generosas para uma espécie de unanimidade �ctícia”. Semelhante ao Brasil de hoje, na Inglaterra do início do século XX a “política são ovos podres” e “no embrião de tudo penetra o veneno”. Desvinculado de sua verdadeira vocação, que é divina, o homem preso aos limites humanos, vendo apenas o horizonte estreito da vida material, perde também o sentido da ética. Chesterton alertava: “A única forma de falar do mal social é ir direto ao ideal social. Todos temos consciência da loucura nacional, mas o que é a sanidade nacional? Chamei este livro de O que há de errado com o mundo , mas esse título algo indômito conduz a um só lugar: errado é não solicitarmos o que é certo”. No centro do que Modris Eksteins chamou de “sentimento eduardiano da crise, estimulado pela atividade das sufragistas, pela inquietação trabalhista, pela oposição ao papel da aristocracia no processo legislativo”, Chesterton representava a Grã-Bretanha, “principal potência conservadora do �n-de-siècle . Primeira nação industrial, agente da Pax Britannica, símbolo de uma ética da iniciativa e do progresso baseada no parlamento e na lei” — e que, poucos anos depois de O que há de errado com o mundo ser publicado, levantou-se contra a arrogância das Potências Centrais, na Primeira Guerra Mundial. Recusando o “oportunismo atordoado e desajeitado que se põe no caminho de tudo”, típico da classe política, Chesterton introduz seus pensamentos na contramão do senso comum: Em nossa época, despontou uma fantasia singularíssima: a de que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um homem prático. Seria bastante mais verdadeiro dizer que, quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico. Um homem prático é alguém acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam normalmente. Quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do homem com uma doutrina que explica por que elas não estão funcionando. Enquanto Roma arde em chamas, é errado tocar violino; mas é correto estudar teoria hidráulica. Nosso escritorera esse teórico, alguém disposto a buscar a origem dos problemas, o “velho e distraído professor de cabeleira desgrenhada e branca”, �gura de um dos seus imaginativos exemplos, intelectual colocado muito acima da “e�ciência” — pois esta “só se ocupa das ações depois de concluídas” —, pensador que “tem a cura antes da doença”. Chesterton refutava o conjunto de opiniões que pretendia se impor como natural ou necessário. Um de seus primeiros cuidados em O que há de errado com o mundo é denunciar o poder do “grande preconceito impessoal” do mundo moderno, contrapondo-lhe “uma sanidade mental de aço e uma �rme resolução de não dar ouvidos aos modismos”. Contra o caráter efêmero das idéias que via espocar em cada esquina, Chesterton retorquia com uma proposta até hoje ousada, a de buscar a dignidade escondida no passado: A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação de fadiga — não isenta de terror — com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés �amejantes que não podemos suportar; houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar; empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta. O texto chestertoniano está repleto de trechos assim, nos quais a verdade é anunciada com eloqüência comovedora. Ele nos arrebata porque, no fundo de nossas mentes corrompidas pelas ideologias, sabemos o quanto seu pensamento está certo: “Os homens inventaram novos ideais porque não se atrevem a buscar os antigos. Olham com entusiasmo para a frente porque têm medo de olhar para trás”. Esperanças baseadas em so�smas, as promessas dos ideólogos são balões de ar que explodem em contato com a pressão da realidade. “O futuro é uma parede branca na qual cada homem pode escrever seu próprio nome tão grande quanto queira”, diz Chesterton, mas “o passado já está abarrotado de rabiscos ilegíveis de nomes como Platão, Isaías, Shakespeare, Michelangelo, Napoleão”. O advento do homem narcísico, o amanhecer do neopelagianismo, que pretende dispensar a graça divina e erigir o homem como dono absoluto do seu próprio destino, é a esse duplo espetáculo que Chesterton assiste, mas sem conivência. Ao contrário, denuncia a lógica visceralmente errada dos esquerdistas. Suffragettes e socialistas gritam: “Se algo foi derrotado, foi refutado”. Mas Chesterton retruca: “[...] O que se dá é sem dúvida o contrário: as causas perdidas são exatamente aquelas que poderiam ter salvado o mundo”. E completa, de maneira inquestionável, com um período cujo vigor nos contagia: “Os grandes ideais do passado fracassaram não porque tenhamos sobrevivido a eles, mas porque não foram vividos o bastante. A humanidade não transpôs a Idade Média: fugiu dela em debandada. O ideal cristão não foi julgado e considerado de�ciente: foi considerado difícil e deixado injulgado”. Às propostas dos socialistas, impregnadas de estatismo e quimérica igualdade social, semelhantes às que cansamos de ouvir na última década e meia — no Brasil e em vários países da América Latina —, Chesterton contrapõe discurso incisivo. Ele denuncia o “oportunismo aterrador”, a “morbidez moderna que insiste em tratar o Estado [...] como uma espécie de recurso desesperado em tempos de pânico”. Chama-a, com zombaria, de “passatempo da classe média alta”, e mostra, por meio de uma série de vivos exemplos, como, ao pretenderem enfraquecer a vida privada, os socialistas na verdade roubam a liberdade pessoal e contribuem à destruição da família. Seguindo os passos de seu grande amigo Hilaire Belloc, cuja inspiração nascera, por sua vez, da encíclica Rerum novarum , de Leão XIII, Chesterton se opõe ao socialismo e ao capitalismo, com idêntica veemência, para defender a justiça social — e critica a concentração da propriedade nas mãos do Estado ou de milionários. “Muito capitalismo”, ele dirá anos mais tarde, em The uses of diversity , de 1920, “não quer dizer muitos capitalistas, mas muitos poucos capitalistas”. Ou, com extremo bom humor, em O que há de errado com o mundo : “O duque de Sutherland possuir todas as chácaras numa única propriedade rural é a negação da propriedade, assim como seria a negação do casamento se ele tivesse todas as nossas esposas em um único harém”. No que se refere às sufragistas — embrião do movimento que, hoje, defende o aborto como “direito humano” —, Chesterton não receia ganhar a antipatia feminina: “Elas não geram revolução, o que geram é anarquia; e a diferença entre essas duas coisas não é uma questão de violência, mas de fecundidade e �nalidade. A revolução, por sua natureza, gera um governo; a anarquia só gera mais anarquia.” Este é o cerne do pensamento anti-sufragista de Chesterton. E não há nenhum exagero em dizer que ele prevê as conseqüências dessa “primeira onda” do feminismo — para citar a classi�cação utilizada por alguns estudiosos contemporâneos —, início de um movimento maior, provocador da “segunda onda”, anti-família e anti- maternidade, cuja tarefa foi levar as primeiras reivindicações, de igualdade perante a lei, para o âmbito da vida íntima, chegando, então, à “terceira onda”, experimentada hoje, com a ideologia de gênero e a tentativa de ignorar a ordem biológica, de maneira a transformar masculinidade e feminilidade em meras construções culturais, além de promover a libertinagem e o aborto. Para Dorothy Collins, secretária e, mais tarde, �lha adotiva dos Chesterton, o escritor “sentia um respeito místico pelas mulheres”. Talvez por esse motivo a�rme que “daria às mulheres não mais direitos, mas mais privilégios”. Idealista ou não, intuía o toque da graça de Deus na alma feminina; experimentou-o durante os longos anos de convivência com sua amada Frances Blogg, e pôde se antecipar a algumas das idéias que Gertrud von le Fort (em A mulher eterna ) e Edith Stein (em Die Frau. Ihre Aufgabe nach Natur und Gnade — A mulher. Sua tarefa segundo a natureza e a graça ) desenvolveriam a partir da década de 1930: Houve um tempo em que eu, você e todos nós estávamos muito mais próximos de Deus; tanto que, ainda hoje, a cor de um seixo (ou de uma pintura) e o cheiro de uma �or (ou de fogos de artifício) tocam-nos o coração com uma espécie de autoridade e convicção, como se fossem fragmentos de uma mensagem confusa ou traços de um rosto esquecido. Incorporar essa ardente simplicidade à totalidade da vida é o único objetivo real da educação. E quem está mais perto da criança é a mulher – ela compreende. Dizer exatamente o que ela compreende está fora do meu alcance. Só posso garantir que não é uma solenidade. É antes uma leveza altaneira, um amadorismo ruidoso do universo, assim como o que sentíamos quando éramos pequenos, o que nos fazia cantar, cuidar do jardim, pintar e correr. Arranhar as línguas dos homens e dos anjos, meter o nariz nas terríveis ciências, fazer malabarismos com colunas e pirâmides, jogar bola com os planetas, eis a audácia interior e a indiferença que a alma humana, como o ilusionista a jogar suas laranjas, deve conservar para sempre. Eis aquela coisa insanamente frívola a que chamamos sanidade mental. E a mulher elegante, deixando cair os anéis dos cabelos por sobre suas aquarelas, sabia disso e agia levando-o em conta. Ela fazia malabarismos com sóis frenéticos e �amejantes. Mantinha o arrojado equilíbrio das inferioridades que é a mais misteriosa — e talvez a mais inacessível — das superioridades. Ela mantinha a verdade primordialda mulher, da mãe universal: se uma coisa é digna de ser feita, é digna de ser mal feita. Chesterton sabia perfeitamente que “se as mulheres chegassem a ser ‘iguais’ aos homens, se envileceriam”, diz Joseph Pearce. É nossa realidade hoje. Como a�rma Francisco José Contreras, “o tipo de sexualidade (banalizada, de consumo rápido, desvinculada do amor, do compromisso e da reprodução) [...] parece desenhada à medida das necessidades e caprichos masculinos. As mulheres são as grandes vítimas da revolução sexual [...]. Na sociedade hipersexualizada, a mulher se converte com freqüência em objeto de usar e jogar fora. As feministas conseguiram impor à mulher o modelo sexual masculino”. E, em outro trecho, citando a jornalista e ensaísta Eugenia Rocella: “O neofeminismo converte as mulheres em ‘machos falidos’”. Não é preciso muito esforço para perceber que o mundo contemporâneo se incumbe, dia após dia, de comprovar a dramática atualidade das profecias de Chesterton, aqui ainda referindo-se ao movimento sufragista: “A destruição é �nita ao passo que a obstrução é in�nita. Enquanto a rebelião assume a forma de mera desordem (em vez de a de uma tentativa de impor uma nova ordem), não há um �nal lógico para ela; ela pode alimentar-se e renovar-se eternamente”. O intelectual inspirado pela compreensão cristã do mundo sabe que os ideólogos pretendem substituir o matrimônio pelo hedonismo absoluto. Exatamente por essa razão, Chesterton faz sábia e vigorosa defesa, como raras vezes encontramos atualmente, da família, esse núcleo de segurança, amor, dedicação e estabilidade: O princípio é este: em tudo que é digno de ter — mesmo nos prazeres todos — há uma porção de dor ou tédio que deve ser preservada a �m de que o prazer possa renascer e perdurar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler Virgílio vem depois do enfado de tê-lo estudado; o entusiasmo do banhista vem depois do choque inicial em face da gelada água do mar; e o sucesso do matrimônio vem depois do fracasso da lua de mel. Todos os votos, leis e contratos humanos são maneiras de sobreviver com sucesso a esse ponto de ruptura, a esse instante de rendição potencial. Em tudo que vale a pena fazer há um estágio em que ninguém o faria, exceto por necessidade ou por honra. É então que a Instituição sustém o homem e o ajuda a prosseguir sobre um terreno mais �rme. Se este sólido fato da natureza humana é su�ciente para justi�car a dedicação sublime do matrimônio cristão, isso já é outra questão; importa saber que ele é plenamente su�ciente para justi�car a corrente impressão dos homens de que o matrimônio é algo �xo e sua dissolução é uma falha ou, no mínimo, uma ignomínia. Selecionar e rejeitar Há muito mais em O que há de errado com o mundo . E não direi que o livro permanece atual pelo fato de o mundo seguir errado, pois seria cometer não apenas uma obviedade, mas, principalmente, repulsivo lugar-comum. A�rmo, porém, que Chesterton pode falar com a mesma veracidade, com o mesmo poder de sedução, sobre camaradagem e democracia, dogma e educação; rir e discordar de Bernard Shaw — sem jamais perder sua amizade — ou elogiar e fazer justiça ao, no Brasil, negligenciado Samuel Johnson; vergar-se à beleza e ao mistério da Encarnação ou enaltecer os méritos do parlamentarismo britânico, pois, na sua terra natal, “o primeiro homem que você avistar pela janela, eis o rei da Inglaterra”. De�nir o que é um diálogo perfeito, denunciar os perigos do cesarismo, zombar das “imaturas e hipotéticas” �loso�as modernas: Chesterton abarca tudo, pois, como a�rma o ensaísta Eduardo Mallea, a fome de relação achava-se proporcionada a seu corpo físico. Quer isso dizer que sua fome era gigantesca. Fome humana: fome de verdade; fome de verdade humana. Uma fome que não saciavam os conceitos, uma fome que não saciavam as idéias, uma fome que não saciavam as seitas, uma fome que não saciavam os axiomas, uma fome que não saciavam as estruturas mentais. Uma fome que não parava. Uma fome que ia mais além de tudo isso e que tinha a arquitetura do corpo humano: sua solidez, sua força, suas necessidades, sua mobilidade. Uma fome que era um estado de plenitude solicitada, contada, ou seja, um estado de poesia. Nos dias que correm, quando o relativismo empreende luta aberta para as�xiar a verdade, é de certa forma animador descobrir a velhice dessa guerra, e a presença de soldados valorosos ao nosso lado, pois Chesterton, há um século, demonstrava plena consciência da “tarefa da cultura”, não “uma tarefa de expansão, mas muito decididamente de seleção — e rejeição”. Certeza que devemos nos sentir moralmente obrigados a colocar em prática. Com seu raciocínio envolvente, construído por meio de analogias e paradoxos inesperados, Chesterton dilui a camada de banalidade que recobre as coisas comuns. Sua retórica ensolarada pisoteia, com a alegria de um menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo, principalmente no Brasil, onde a arrogância epistêmica se espalha, renovando-se, a cada dia, por meio da sintaxe confusa e do jargão intraduzível. Há algo de agradavelmente hipnótico na sua escrita, correndo solta, desimpedida, livre de exercícios tautológicos, um dos cacoetes herdados da semiologia de inspiração barthesiana. Chesterton não se refugia no vocabulário afetado ou hermético porque não dissimula, não é um enfadonho esnobe, possui convicções e dá à linguagem o tratamento merecido: o de honrosa ferramenta — e não o de uma divindade. Movido por profundo respeito pelo leitor, seus textos nascem da consciência de que, “para um católico, qualquer ato cotidiano é uma dramática dedicação ao serviço do bem ou do mal”. Alto, obeso, de riso tonitruante, seu volumoso corpo só foi superado pela multifacetada abrangência de suas idéias. Era o que mais falta ao nosso tempo: um sábio. A MISSÃO DOS NÁUFRAGOS Publicado duas semanas antes de Ortodoxia , em 1908, Considerando tudo — no original, All Things Considered — é uma seleção dos textos que G. K. Chesterton escreveu nos primeiros anos de sua colaboração, que durou de 1905 a 1936, na Illustrated London News . Dale Ahlquist, presidente da American Chesterton Society, a�rma que não há nenhuma razão para acreditar que essas crônicas, somadas às outras trezentas que foram reunidas em diferentes livros, sejam, necessariamente, as melhores contribuições dentre as 1.535 que Chesterton assinou na Illustrated . E completa dizendo que o corpus dessas colunas, quase integralmente publicado pela renomada Ignatius Press, “permanece como uma mina de ouro, com grandes tesouros esperando ser descobertos”. Assombro No capítulo anterior, encerrei minha análise ressaltando que a retórica ensolarada de Chesterton pisoteia, com a alegria de um menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo, inclusive no Brasil, onde a arrogância epistêmica se espalha, renovando-se, a cada dia, por meio da sintaxe confusa e do jargão intraduzível. A imagem que surge em minha mente quando releio essas palavras é a de um garoto a correr sob a chuva. Nesses minutos em que ele experimenta liberdade, pisoteando a enxurrada que desce a ladeira, o aguaceiro pára e o sol abre caminho por entre as nuvens, o que redobra sua alegria, fazendo-o chutar a água em todas as direções. O menino não sabe, mas essa tarde, esses minutos de imaculada excitação, a brincadeira espontânea — tudo permanecerá nele para sempre; serão as marcas da sua personalidade. Esta imagem algo idílica surge não do meu sonho, mas ancorada na realidade. A fé na inocência permaneceu como uma das notáveis características de Chesterton, ainda que esse apego à infância tenha sido ridicularizado por alguns de seus adversários, hoje esquecidos. Ele realmente acreditava que a inocência é o princípio da sabedoria, certeza inalterável, rea�rmada pouco antes de sua morte: “Nunca perdi o sentimento de que a infância era minha vida real; o princípio verdadeiro do que deve ser uma vida mais real; uma experiência perdida na terra dos vivos”. O leitor apressado poderia ver em taispalavras um sentimento melancólico, um saudosismo mal resolvido. No entanto, Chesterton lutou para jamais perder, frente à realidade, o olhar de assombro que nasce das crianças a cada mínima descoberta. “O sentido do milagre da Humanidade em si”, a�rma ele em Ortodoxia , “devia estar sempre mais vivo em nós do que as maravilhas do poder, da inteligência, da arte ou da civilização. O simples fato de o homem andar sobre duas pernas devia nos comover mais do que qualquer música, e nos impressionar mais do que qualquer caricatura.” Considerando tudo guarda inúmeros exemplos desse empenho para recuperar o assombro como ato de conhecimento. Em “Um ensaio de duas cidades”, por exemplo, Chesterton defende que “o principal objetivo da educação deveria ser restaurar a simplicidade”; ou, dito de forma apaixonada, “o principal objetivo da educação não é aprender coisas; não: o objetivo principal da educação é desaprender coisas. O objetivo da educação é desaprender toda a fadiga e maldade do mundo e retornar àquele estado de liberdade que todos instintivamente celebramos quando preferimos escrever sobre crianças e meninos”. Tal proposta não permaneceu relegada ao mundo das idéias, mas transformou-se numa das ferramentas estilísticas de Chesterton. Na crônica “Pensamentos ao redor de Köpenick”, nosso escritor abandona a visão óbvia das coisas e recria o espanto ao inverter a lógica: soldados prontos para a guerra, obedientes a seus superiores, estão longe de ser, como imagina o senso comum, “adoradores da força”. Repudiando o militarismo, Chesterton nos mostra que “os soldados, mais do que quaisquer outros homens, são sistemática e severamente ensinados que ter força não é ter direito”. A cada linha de sua argumentação, vemos o homem esmagado dentro de seu uniforme, pronto a “obedecer a símbolos, coisas arbitrárias, faixas em um braço, botões em um casaco, um título, uma bandeira”, mas, na verdade, preso a um estímulo de ordem moral, a lealdade: “[...] Enquanto alguém for leal a algo, nunca será um adorador da mera força. Pois a mera força, a violência abstrata, é o inimigo de tudo o que amamos. Amar alguma coisa é vê-la imediatamente sob céus tormentosos de perigo. A lealdade implica lealdade no infortúnio; e quando um soldado aceitou o uniforme de alguma nação, já aceitou também sua derrota”. Semelhante destreza de pensamento surge na crônica “Controvérsia Zola”. Ao ironizar a discussão que ocorria na França — se os restos mortais do romancista deveriam ou não ser colocados no Panthéon —, Chesterton, que não escondia seu desprazer em relação ao movimento naturalista, ironiza o debate e joga novamente com os termos. Vejam a repentina analogia entre a tabuada e Shakespeare; percebam como seu raciocínio migra da idéia de imortalidade à de insu�ciência; a seguir, o elogio irônico à “questão viva” que Zola representa; e, logo depois, o francês derrotado pelo enaltecimento incontestável de Shakespeare: Quando alguma coisa do intelecto se estabelece, não morre: antes, torna-se imortal. A tabuada é imortal, assim como a fama de Shakespeare. Mas a fama de Zola não está morta nem é imortal; está em crise, está na balança; e talvez seja insu�ciente. Os franceses, portanto, estão absolutamente certos em considerá-la uma questão viva. Ainda vive como questão, porque ainda não está resolvida. Mas Shakespeare não é uma questão viva: é uma resposta viva. Comparado a Shakespeare, Zola e sua obra tornam-se um conjunto de ossos cujo destino é incerto. Quanto ao dramaturgo inglês, sua posição na literatura mundial independe de estátuas ou homenagens: “[...] ninguém poderia dizer que uma estátua de Shakespeare, mesmo com cinqüenta pés de altura e colocada no topo da Catedral de St. Paul, poderia de�nir sua posição. De�ne apenas a nossa posição com relação a Shakespeare. Ele é que está �xo; nós é que somos instáveis.” Chesterton é um mágico que escamoteia, diante da platéia estupefata, os elementos do raciocínio. O coelho, há pouco preso na sua mão direita, desaparece para ressurgir na cartola que se encontra sobre a mesa. Será realmente o mesmo coelho? Não sabemos, mas o olhar assustado do animal — pobre Zola! — e a mise-en-scène nos convencem. Paradoxos Essa forma de argumentar servia ao intuito de Chesterton: por meio do raciocínio que desorienta, obrigava os leitores a perceber aspectos esquecidos ou menosprezados da realidade. A própria escolha dos vocábulos, ainda que parecesse muitas vezes excêntrica, era outra de suas preocupações. Na crônica “Espiritismo”, ele a�rma ser “uma regra quase invariável que o homem de quem discordo pense que estou me fazendo de bobo, e o homem com quem concordo pense que o estou fazendo de bobo. Parece haver uma espécie de idéia de que você não está tratando adequadamente de um assunto se o elogia com termos fantásticos ou defende com exemplos grotescos”. E continua: Penso seriamente, em geral, que quanto mais séria é a discussão, mais grotescos deveriam ser os termos. Há para isso [...] uma razão evidente. Pois um assunto é realmente solene e importante na medida em que se aplica a todo o cosmo, ou pelo menos a grandes esferas e ciclos de experiência. Na medida em que uma coisa é universal, é séria. E na medida em que algo é universal, está cheio de aspectos cômicos. [...] Os germes são sérios, porque matam. Mas as estrelas são engraçadas, pois dão origem à vida, e a vida dá origem à diversão. Se você tiver, digamos, uma teoria sobre a humanidade, e só puder prová-la falando sobre Platão e George Washington, sua teoria pode ser um bocado frívola. Mas se puder prová-la falando sobre o mordomo ou o carteiro, então é séria, pois é universal. Longe de ser uma irreverência usar metáforas tolas em questões sérias, é um dever usá-las nessas questões. É o teste da seriedade. É o teste de uma teoria ou religião responsáveis veri�car se são capazes de tomar exemplos de potes e panelas e botas e batedeiras de manteiga. O teste de uma boa �loso�a é se pode ser defendida grotescamente. O teste de uma boa religião é se é possível fazer piadas com ela. Como vemos, são indissociáveis do seu estilo as justi�cativas paradoxais — elas também, ao provocar estranheza, despertam a inteligência à verdade. O desejo de Chesterton é libertar seu leitor da invariabilidade do pensamento, dos chavões que obrigam a ver o real sem nenhum relevo. As coisas podem se tornar novas se lembrarmos como realmente são, despojadas da mesmice com que o senso comum as camu�a todos os dias. O paradoxo surge, assim, como a �gura de linguagem capaz de questionar o que parece irrefutável, contribuindo à certeza de que o mundo deve pasmar, pois ele é sempre mais do que aparenta ser. Com palavras que lembram as de Cícero — “O que os gregos chamam de paradoxo, nós chamamos de coisas que maravilham” —, Gabriel Syme, o detetive de O homem que foi quinta-feira , diz: “O paradoxo nos ajuda a recordar verdades esquecidas”. “Fatigada e lamuriosa cultura” Da mesma forma que seu contemporâneo, o jornalista Karl Kraus, Chesterton repelia a corrupção da língua executada por modismos literários e jornalísticos; repudiava a linguagem que, submetida à ideologia, não apresenta as coisas como são, mas pretende referendar um sistema de idéias sustentado por interesses de ordem política ou econômica. Na crônica “O garoto”, Chesterton mostra, por meio de um exemplo bem-humorado, como o jornalismo encobre a verdade ao utilizar subterfúgios: [...] todo o mundo moderno, ou pelo menos toda a imprensa moderna, tem um perpétuo e esgotante terror da pura moral. Os homens sempre tentam evitar condenar algo apenas por argumentos morais. Se eu espancar minha avó até a morte amanhã no meio de Battersea Park, podem ter certeza de que as pessoas dirão tudo sobre isso exceto o fato simples e bastante óbvio de que é algo errado. Alguns o chamarão de insanidade; isto é, o acusarão de uma de�ciência de inteligência. Isto não é necessariamente verdade. Vocês não poderiam dizer se foi um ato pouco inteligente ou não, a menos que conhecessem minha avó.Alguns o chamarão de vulgar, repugnante, e coisas assim; isto é, o acusarão de falta de educação. Talvez demonstre mesmo uma falta de educação; mas di�cilmente é seu maior defeito. Outros falarão sobre o asqueroso espetáculo, e a cena revoltante; isto é, o acusarão de uma falta de arte ou de beleza estética. Também isso depende das circunstâncias: para ter certeza absoluta de que a aparência da velha senhora de�nitivamente deteriorou-se no processo de ser espancada até a morte, é necessário que o crítico �losó�co esteja bem certo de quão feia ela era antes. Outra escola de pensadores dirá que o ato é pouco e�ciente: que é um desperdício pouco econômico de uma boa avó. Mas isso só poderia depender do valor, que é novamente um assunto individual. O único ponto real que vale a pena mencionar é que é um ato perverso, pois sua avó tem o direito de não ser espancada até a morte. Porém, o jornalismo moderno tem, dessa simples explicação moral, um persistente medo. Chamará a ação de qualquer outra coisa – louca, bestial, vulgar, idiota, antes de chamá-la pecaminosa. Ele também não titubeia ao expor as conseqüências da corrupção da linguagem para a vida diária: [...] Se o mundo moderno não insistir em ter uma lei moral clara e de�nida, capaz de resistir às atrações contrárias da arte e do humor, será simplesmente entregue como espólio a qualquer um que consiga fazer algo errado de uma forma simpática. Qualquer assassino que consiga matar de forma interessante será autorizado a matar. Qualquer ladrão que roube com gestos realmente humorísticos poderá roubar tanto quanto quiser. A linguagem cambiante, inexata, que transforma meias mentiras em supostas verdades, corrompe o próprio sistema escolar. Temos a terrível impressão, ao ler a denúncia de Chesterton, de que ele se refere ao nosso tempo: Em nenhuma escola pública inglesa sequer se sugere, exceto por acidente, que é dever de um homem dizer a verdade. O que se sugere é algo inteiramente diferente: que é dever de um homem não mentir. Este engano embebe de forma tão completa toda a civilização que muito raramente chegamos sequer a pensar na diferença entre as duas coisas. Quando dizemos a uma criança: “Você deve dizer a verdade”, queremos simplesmente dizer que deve abster-se de inexatidões verbais. Mas o que nunca chegamos a ensinar é o dever geral de dizer a verdade, de dar uma imagem completa e clara de qualquer coisa de que falemos, de não deturpar, não evadir, não suprimir, não usar argumentos plausíveis que sabemos serem falsos, de não escolher inescrupulosamente provar uma hipótese ex parte [...]. A única coisa que nunca é ensinada na atmosfera das escolas públicas é exatamente isso – que há uma verdade nas coisas, e que ao conhecê-la e dizê- la somos felizes. Chesterton repete suas críticas, sempre de forma contundente, em diversas crônicas. Elas nascem sob a forma de obstinada zombaria — em “A adoração dos ricos” —, aliam-se à condenação de moralismos frívolos — “Limeriques e conselhos de perfeição” — e tornam-se um ataque direto a seus companheiros de pro�ssão: “[...] Pensamos ser mais inteligentes do que as pessoas para quem escrevemos, quando, na realidade, somos geralmente ainda mais estúpidos” (em “Sobre o críptico e o elíptico”). Mas é na crônica “A Donzela de Orléans” que Chesterton, ao acrescentar incrível didática ao seu domínio da escrita, profetiza os rumos decepcionantes da cultura ocidental. Sua avaliação dos estilos de Anatole France e Ernest Renan ajusta-se ao que poderíamos dizer sobre milhares de ensaístas: “A amabilidade fria, todo o desprotegido pecado sentimental do literato moderno”; a arrogância de explicar e de�nir as coisas como se elas pertencessem exclusivamente “ao seu intricado e particular mundinho literário”; a covardia para empreender um ataque frontal, preferindo a retórica melí�ua. A longa paródia que ele constrói no terceiro parágrafo é uma aula sobre o “método do cético reverente”, típico da petulância esnobe que a esquerda acadêmica, quase sempre estruturalista, difunde com sucesso, degradando ainda mais a monotonia, por exemplo, de Roland Barthes, a ponto de transformá-la em bovinice. “Fatigada e lamuriosa cultura”, conclui Chesterton, com acerto. De volta à realidade Mas nosso escritor não se entrega a lamentações. Chesterton possui planos para ultrapassar o cinismo enfadonho e desencantado da intelectualidade modernista, cujos textos pautam-se, também, por um solipsismo patológico. Aqueles que leram as crônicas reunidas em Tremendas trivialidades certamente se recordam do Capítulo 16, “A avó do dragão”. O inesperado e desagradável visitante de gravata verde e pescoço longo entra na biblioteca no exato momento em que Chesterton acaba de “examinar uma pilha de �cção”, novelas cujos títulos sintetizam, de forma irônica, a estreita temática da literatura moderna: Processo suburbano: um conto de psicologia ; Processo psicológico: um conto dos subúrbios ; Trixy: um temperamento ; e Ódio ao homem: uma monocromia. Entre essa tediosa leitura e a chegada da visita, o escritor vê, sobre a escrivaninha, um volume dos Contos de Grimm e reage com júbilo: “Aqui pelo menos, aqui en�m, era possível encontrar um pouco de bom senso”. Na longa, paradoxal e divertida explanação que se segue, na qual ele defende os contos de fadas, encontramos a síntese da crítica chestertoniana à literatura narcisista, incapaz de criar heróis, debilitada a ponto de renunciar ao épico: Você não vê, disse-lhe, que os contos de fadas são em sua essência bastante sólidos e diretos, mas que essa eterna �cção sobre a vida moderna é em sua natureza essencialmente incrível? Folclore quer dizer que a alma é sã, mas o universo é selvagem e cheio de maravilhas. Realismo quer dizer que o mundo é enfadonho e cheio de rotina, mas que a alma está doente e gritando. O problema do conto de fadas é – o que um homem saudável faria com um mundo fantástico? O problema do romance moderno é – o que um louco faria com um mundo monótono? Nos contos de fadas o cosmo enlouquece, mas o herói não. Nas novelas modernas o herói está louco antes de o livro começar e sofre com a dura estabilidade e a cruel sanidade do cosmo. [...] Acreditar que insatisfação, misantropia e indiferentismo são os únicos sentimentos ou atitudes possíveis signi�ca conceder à demência o papel de protagonista da literatura, conclui Chesterton, mostrando que uma �cção dessa espécie é sinônimo de abatimento moral, acídia, desânimo: Um lunático não é surpreendente para si mesmo, porque é bastante sério; isso é o que faz dele um lunático. Um homem que pense ser um pedaço de vidro é para si mesmo tão sem graça quanto um pedaço de vidro. Um homem que pense ser uma galinha é para si mesmo tão comum quanto uma galinha. Apenas a sanidade é que consegue ver até mesmo uma poesia selvagem na insanidade. Assim, aqueles sábios contos antigos �zeram o herói ordinário e o conto extraordinário. Mas vocês �zeram o herói extraordinário e o conto ordinário — tão ordinário — oh, tão terrivelmente ordinário. O que acontecia com Chesterton no início do século XX ocorre hoje conosco: abrimos os romances e, na maioria das vezes, somos invadidos pelo narrador em primeira pessoa cujo discurso não consegue ir além de um vagalhão de frustrações e ressentimentos. O tema do conto de fadas é um dos mais recorrentes na obra de Chesterton; e o porquê dessa insistência está inextricavelmente ligado à solução que ele oferece para a literatura escapar do labirinto de pessimismo. Na crônica “Contos de fadas”, Chesterton salienta: — A idéia de que a paz e a felicidade só podem existir com alguma condição. Esta idéia, que é o cerne da ética, é também o cerne dos contos infantis. Toda a felicidade do país das fadas está por um �o, um único �o. Cinderela pode ter um vestido tecido em teares sobrenaturais e reluzente com um brilho que não é deste mundo; mas deve estar de volta quando o relógio bater as doze horas. O rei pode convidar fadas para o batizado, mas deve convidar todas, ou haverá conseqüências terríveis. Aesposa de Barba Azul pode abrir todas as portas menos uma. Quebra-se uma promessa feita a um gato, e o mundo todo desmorona. Quebra-se uma promessa a um anão amarelo, e o mundo todo desmorona. Uma garota pode ser a esposa do Deus do Amor em pessoa se nunca tentar vê-lo; ela o vê, e ele desaparece. Uma garota recebe uma caixa com a condição de não a abrir; abre-a, e todos os males do mundo escapam para cima dela. Um homem e uma mulher são colocados em um jardim com a condição de não comerem uma fruta; comem-na, e perdem a alegria em todas as frutas da terra. Esta grande idéia, portanto, é a espinha dorsal de todo o folclore — a idéia de que toda a felicidade depende de um pequeno veto; toda a alegria positiva depende de uma única negativa. As narrativas que nos lançam “em um mundo simultaneamente de maravilhas e de guerra” recriam o otimismo, o extraordinário e a moralidade menosprezados pelos escritores contemporâneos. Mas não só. Ao fazê-lo, recusam-se a acorrentar o leitor a seu mundo fantasioso e o devolvem à realidade, obrigam-no a encarar o real, pois a decisão ética das personagens — a decisão inescapável a que somos chamados dia após dia — é o âmago da realidade. “O conto de fadas é tão-somente a história do próprio homem, que é, ao mesmo tempo, a mais fraca e a mais forte das criaturas”, a�rma Chesterton. Ou, como salienta em Ortodoxia , “o País das Fadas não é outra coisa senão o ensolarado país do bom senso”. Ao introduzir a escolha moral e reapresentar a realidade, essas narrativas nos obrigam a ver as coisas comuns sob uma nova luz, a descobrir nelas a “possível plenitude” de que fala Ortega y Gasset: Es frecuente en los cuadros de Rembrandt que un humilde lienzo blanco o gris, un grosero utensilio de menaje se halle envuelto en una atmósfera lumínica e irradiante, que otros pintores vierten sólo en torno a las testas de los santos. Y es como si nos dijera en delicada amonestación: ¡Santi�cadas sean las cosas! ¡Amadlas, amadlas! Cada cosa es un hada que reviste de miseria y vulgaridad sus tesoros interiores, y es una virgen que ha de ser enamorada para hacerse fecunda. Somente esse novo olhar, capaz de romper a crosta de “miséria e vulgaridade” das coisas, só o olhar infantil pleno de assombro é que pode devolver nossa humanidade. As narrativas povoadas de encantamentos são o primeiro passo, um exercício para libertar nossa percepção, pois esses mundos construídos às avessas, nos quais o maravilhoso se impõe a cada página, preparam o espírito para redescobrir e amar o real: “Esses contos nos dizem que as maçãs são douradas unicamente para relembrarem o esquecido momento em que veri�camos serem elas verdes. Eles fazem com que os rios sejam de vinho unicamente para nos lembrar, durante um fugaz momento, que neles corre água”. Não é outra a tarefa que Chesterton impõe a si mesmo com seus paradoxos e sua alegria tantas vezes infantil. Ele deseja que recordemos nossa verdadeira identidade — e essa é, apesar de esquecida, a mais honrosa função da literatura: “Tudo aquilo a que chamamos espírito, arte e êxtase, signi�ca apenas que, durante um atroz instante, nos lembramos de que esquecemos”. Sempre que leio Chesterton, recordo-me do �nal de “A ética da Terra dos Elfos”, capítulo medular de Ortodoxia . A imagem do náufrago Robinson Crusoé lutando para salvar seus bens guarda a chave da obra chestertoniana, do que esse incrível escritor nos convoca a fazer diante da realidade: a força do mar e as limitações de Crusoé o impedem de resgatar tudo — mas o pouco que consegue garante-lhe a sobrevivência e, principalmente, recriar a civilização da qual se encontra apartado. REDESCOBRIR O ROMANCE O renascimento brasileiro de G. K. Chesterton é um fenômeno que comemoro todos os dias. Há três anos, novos livros chegam semestralmente ao mercado — e neste 2014 acaba de chegar às livrarias, em um único volume, a tradução de Mateus Leme para O defensor e Tipos variados . Além disso, Wisdom and Innocence — A Life of G. K. Chesterton , biogra�a escrita pelo crítico literário Joseph Pearce, está sendo traduzida. É claro que ainda falta muito para alcançar a totalidade da obra de Chesterton — tarefa que a Ignatius Press realiza de forma extremamente pro�ssional. Se quisermos ter uma idéia do que representa o legado desse escritor, basta pensar que, na sua Collected Works , foram necessários dez volumes, do 27º ao 37º, para reunir os artigos semanais que ele publicou na The Illustrated London News . Analisei, nos capítulos anteriores, algumas características do estilo de Chesterton, incluindo a incrível habilidade para criar paradoxos, mas quero falar também de sua teoria literária, especi�camente da forma como ele vê o romance. Este último lançamento permite que o leitor descubra como Chesterton entendia a literatura, pois Tipos variado s reúne ensaios que dedicou a Charlotte Brontë, Alfred Tennyson, Alexander Pope, Elizabeth Barrett Browning, Walter Scott e Robert Louis Stevenson, dentre outros. No mesmo volume, em O defensor , três artigos enfocam diferentes aspectos da obra literária: “Em defesa do absurdo”, “Em defesa das novelas de um centavo” e “Em defesa dos romances policiais”. O leitor ideal Enquanto eu lia “A posição de Sir Walter Scott”, lembrei-me do que Northrop Frye escreve, em The Secular Scripture , a respeito do autor de Ivanhoé e Rob Roy . Frye recupera parte de sua história como leitor de Scott, desde a infância, quando se deliciou com o ciclo de Waverley , passando pelo que chama de “idade da intolerância”, até chegar à maturidade e, sob in�uência do amigo Richard Blackmur, libertar-se dos preconceitos da crítica e “se deixar fascinar, mais uma vez, pelas técnicas que Scott usava”. A história de Frye é o percurso do leitor ideal: de forma paralela à leitura dos seus autores prediletos, ele acompanha o que os críticos dizem, pesa as conclusões e deixa, então, que as próprias obras falem, mais uma vez, ao seu coração, ao seu intelecto. Ele não está em busca de uma verdade de�nitiva, mas de um diálogo — com a literatura e a crítica literária — que permita o seu próprio amadurecimento não apenas como leitor, mas de forma integral, como homem. A busca desse amadurecimento irrompe na ironia chestertoniana que abre o segundo parágrafo de “A posição de Sir Walter Scott”: “Diz-se que Scott foi abandonado pelos leitores modernos; se for assim, o problema poderia ser descrito com mais propriedade dizendo- se que os leitores modernos foram abandonados pela Providência.” O que pode parecer apenas um chiste espirituoso, na verdade expõe a base do pensamento de Chesterton em relação ao romance, um gênero que, para ele, só será compreendido “quando o Tempo, o Homem e a Eternidade também o forem”. Contra o formalismo Longe de ser uma generalização, esta a�rmativa de G. K. Chesterton o coloca no ângulo exatamente oposto ao das teorias formalistas e niilistas, hoje populares. A teoria moderna inteira, diz ele, surge de um erro fundamental — a idéia de que o romance é de alguma forma uma brincadeira com a natureza, uma invenção, um convencionalismo, algo exterior. Nunca haverá nenhuma crítica genuína ao romance até que nos demos conta do fato de que o romance não está do lado de fora da vida, mas absolutamente em seu centro. A mesma idéia renasce um século depois da publicação de Tipos variados , quando Tzvetan Todorov, sem se referir a Chesterton, mas fazendo críticas contundentes aos estruturalistas e a outras visões reducionistas da literatura, lembra que “o conhecimento da literatura não é um �m em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um” (em A literatura em perigo ). Chesterton recusa a idéia de que “o romance ou a aventura” são “coisas simplesmente materiais misturadas ao emaranhado de uma trama”. Para ele, o romance é “um estado de espírito”, isto é, “não consiste em experimentar aventuras”, mas “em estar pronto para elas”. Esse distanciamento dos aspectos formais da obra literária pode parecer incompreensível aos que foram treinados peloestruturalismo, mas é libertador, pois permite observar a �cção em sua completude — impossível de ser dissociada da realidade — e não apenas como um constructo feito exclusivamente de linguagem. Crítica a certo realismo Essa idéia perpassa o ensaio dedicado a Robert Louis Stevenson, em que Chesterton refuta os críticos que confundem os narradores de Stevenson com o próprio escritor e rea�rma a importância da imaginação, presente, enquanto potência criadora, não só no leitor, mas no que ele chama de “alma da história”. Para Chesterton, o eixo da �cção de Stevenson encontra-se no conceito de que “as idéias são os verdadeiros incidentes: que nossas imaginações são nossas aventuras”. Ou, no seu estilo alegre, “pensar em uma vaca com asas é essencialmente tê-la encontrado”. Assim, em Stevenson, “a história era a alma, ou melhor, o signi�cado, da visão do corpo”. Essa análise traz, embutida, a crítica de Chesterton ao realismo rasteiro, que acaba por diminuir a realidade para apregoar uma tese ou uma ideologia. Censura que ele constrói ao defender a eloqüência de Walter Scott, característica de sua “incapacidade para desprezar qualquer” personagem: “Não escarnecia do mais revoltante canalha como o realista de hoje freqüentemente escarnece de seu próprio herói. Embora sua alma esteja em farrapos, todo homem de Scott pode falar como se fosse um rei.” Ao censurar os realistas que sacri�cam personagens e enredos para enaltecer idéias, Chesterton elabora uma crítica que serve a grande parte dos escritores brasileiros atuais: Tome qualquer obra de �cção contemporânea e abra-a na cena em que o jovem socialista denuncia o milionário, e então compare a afetada palestra sociológica dada por aquele chato abnegado com a crescente festa de palavras com que Rob Roy se declara, ou Athelstane desa�a De Bracy. Aquele antigo mar de paixão humana sobre o qual as palavras elevadas e as grandes frases são a resplandecente espuma está neste exato momento em maré baixa. Chegamos mesmo ao ponto de nos felicitarmos porque conseguimos enxergar a lama e os monstros do fundo. Posso discordar de Chesterton quanto à necessidade do discurso altissonante, pois em nossa literatura ele quase sempre surge repleto de lugares-comuns e adjetivação pegajosa. Mas concordo que, se podemos elogiar o “delicado e fascinante discurso que se enterra cada vez mais fundo como uma toupeira” — e ele cita, como exemplo, Henry James —, então devemos estar abertos ao “discurso que se eleva cada vez mais alto como uma onda e depois quebra-se em uma arrasadora peroração”. Estranho mas inspirador Todas estas questões con�uem, no entanto, para o que apontei acima, a idéia do romance necessariamente preso à vida. Para Chesterton, a obra literária que busca apenas uma suposta perfeição lingüística ou erige a linguagem como sua protagonista é, na verdade, uma traição à literatura. Também por esse motivo ele elogia o romance policial, gênero considerado menor, mas que é capaz de expressar “de alguma forma a poesia da vida moderna”, não no sentido de uma exaltação ao crime, à violência ou à super�cialidade que a existência adquire nos grandes centros urbanos, mas porque, “no meio de um burburinho de pedantismo e preciosismo”, o romance policial se nega a “encarar o presente como prosaico e o comum como lugar-comum”. De fato, nada é banal para Chesterton. Todas as coisas merecem ser amadas. E ele compõe um hino de louvor à realidade: Os homens viveram entre poderosas montanhas e �orestas eternas por séculos antes de que se apercebessem de que estas eram poéticas; pode-se inferir razoavelmente que alguns de nossos descendentes poderão enxergar as chaminés com um matiz de púrpura tão rico quanto o dos picos das montanhas, e pensar que os postes de luz são tão velhos e naturais quanto as árvores. Com relação a essa percepção de uma grande cidade como algo em si mesmo selvagem e óbvio, os romances policiais certamente são sua Ilíada . Ninguém pode ter deixado de notar que nestas histórias o herói ou investigador cruza Londres com algo da solidão e liberdade de um príncipe em um conto de fadas, que durante aquela jornada incalculável o ônibus casual assume as cores primárias de um navio de fantasia. As luzes da cidade começam a brilhar como os olhos de inumeráveis duendes, já que são as guardiãs de algum segredo, talvez grotesco, que o escritor conhece e o leitor, não. Cada curva da rua é como um dedo que aponta para isso; cada fantástica linha de chaminés parece assinalar de forma fantástica e zombeteira o signi�cado do mistério. Para alguém que, como eu, vive em São Paulo, é impossível não recusar o idealismo de Chesterton. Um idealismo que talvez fosse aceitável se pensarmos na Londres do início do século XX. Mas ele nos embriaga com seu estilo e somos forçados a distinguir, no caos de hoje, alguma forma de beleza. Somos obrigados a ver o homem, a encontrar nosso semelhante: ele é o centro do “mistério”, pois, Chesterton está certo, o núcleo do romance policial é sempre uma questão moral — “a mais obscura e ousada das conspirações”. De qualquer forma, Chesterton não deseja que concordemos com ele. Mas que percebamos a necessidade de uma literatura que jamais perca contato com a imperfeição, com o mundo que ele encontrou em Walter Scott: estranho, antigo, confuso — e exatamente por isso, inspirador e saudável. IV — O toque do shofar PECADOS DE WILSON MARTINS POR UMA DESSAS CASUALIDADES com que a vida nos golpeia, às vezes mal tenhamos acabado de morrer, Wilson Martins faleceu em 30 de janeiro de 2010, quando os jornais, as rádios, a tevê, a web e grande parte dos intelectuais que detêm postos-chave na mídia ainda derramavam lágrimas de sangue pela morte de J. D. Salinger. De certa forma, foi uma casualidade positiva: graças ao intervalo de três dias (o escritor norte-americano faleceu a 27 de janeiro), o crítico literário, historiador e professor emérito da Universidade de Nova York ganhou, aqui e ali, dez ou quinze linhas de atenção. Mas a sorte durou pouco. Logo no dia 31, para consternação geral, outro ícone falecia — e quando alguns poucos leitores esperavam por artigos mais aprofundados sobre a obra do nosso intelectual, o noticiário foi tomado por per�s, críticas, rememorações, encômios, listas de obras publicadas e fotos do argentino Tomás Eloy Martínez. Entretanto, devemos ser otimistas e, assumindo o comportamento apropriado ao populismo que impera no país, fazer o jogo do contente: se Wilson Martins tivesse falecido um dia depois de Salinger ou na mesma data que Martínez, sequer receberia o favor de um breve necrológio. Não discuto o valor da obra dos estrangeiros falecidos — e muito menos a dor de suas viúvas brasileiras —, mas se o leitor me pergunta sobre o porquê desse tratamento diferenciado, quiçá injusto, minha resposta talvez não agrade, mas é a única que tenho: ainda somos um país primitivo, uma colônia que se encanta facilmente com o ouropel das cortes estrangeiras. No que se refere à teoria literária, por exemplo, o estruturalismo é questionado na Europa desde a década de 1980 — e alguns de seus seguidores já lhe deram as costas, como Todorov —, mas aqui ainda é objeto de culto nas universidades, onde há quem leia Derrida e outros de joelhos, acreditando que certa terminologia folclórica pode dar conta de analisar não só a literatura, mas toda a realidade. Não importa se os estruturalistas e seus continuadores criaram apenas — no irônico dizer de Thomas Pavel — um “verniz onírico” ou, lembrando o ácido comentário de José Guilherme Merquior, uma “teorréia, ou seja, teorização inconseqüente sem qualquer referente estável”. Importa, sim, o prazer doentio de se submeter ao que vem de fora, aceitando, sem críticas, qualquer teoria fantasiosa. Em segundo lugar, há outro motivo para o descaso em relação a Wilson Martins: ele — pasmem! — não era de esquerda, não rezava pelo catecismo marxista, não acreditava na irrefreável, fatal e invencível revolução que, no galope leninista ou no trote gramsciano, um dia levará o proletariado