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Crítica_-Literatura-e-Narratofobia Rodrigo Gurgel

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RODRIGO GURGEL
CRÍTICA, 
LITERATURA 
E NARRATOFOBIA
Prefácio de Flavio Morgenstern
SUMÁRIO
CAPA
FOLHA DE ROSTO
EPÍGRAFE
PREFÁCIO: “Um crítico que é um crítico” — Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
I — O Crítico à procura de si mesmo
Em busca do livro primordial
Reminiscências do mundo onírico
Dez livros que mudaram minha vida
Re�exões no Império dos Filisteus
Narratofobia — ou o pavor de narrar
II — A Tradição Universal
Narrador malicioso — Thomas Bernhard
Zen e melancolia — Yasunari Kawabata
Perfeição corrosiva — Saki
Amizade entre luz e trevas — Tahar Ben Jelloun
Perene inconstância — Hans Jacob Christoffel Von Grimmelshausen
Submetido ao desespero — James Joyce
Antes do silêncio — Carmen Laforet
Tímido acerto de contas — Jean-Marie Gustave Le Clézio
Onde está o bardo? — William Shakespeare
O silêncio impossível — Antonio di Benedetto
Heroísmo anônimo e perfeição — Arthur Miller
Literatura e populismo — Kiran Desai
A adúltera e a contradição — Gustave Flaubert
O preço de ser um herói — Santiago Roncagliolo
Muito além da morte — Claudio Magris
A navalha do narrador — William Somerset Maugham
Nossa herança comum — Liev Tolstói
Efêmera felicidade — Mario Benedetti
Sofrimento e dignidade — Joseph Roth
Tarde demais — Henry James
A vítima de pandora — Philip Roth
Pela fresta da porta — Isaac Bashevis Singer
À procura dos deuses — John Banville
III — Entreato Chesterton
O que falta ao nosso tempo
A missão dos náufragos
Redescobrir o romance
IV — O toque do Shofar
Pecados de Wilson Martins
Álvaro Lins: O crítico para os dias de hoje
Centelhas de verdade — Chamfort, Kraus, Lichtenberg, La Rochefoucauld
O jugo da utopia — Lauro Machado Coelho
Palavras inatingíveis — Stuart Kelly
Como defender a democracia? — Alexis de Tocqueville
Memória e Lágrimas — Daniel Mendelsohn
Diálogos com a civilização — Philip Roth
Grandiosa epopéia — Felipe Fernández-Armesto
Miragens de Kafka — Calasso, Lemaire, Crumb e Günther Anders
Trágica ingenuidade — Frederic Amory
Crimes incomensuráveis — Ivo Patarra
A Ética da liberdade contra o autoritarismo — Ralf Dahrendorf
Pessimismo, contradições e apatia — Emil Cioran
Ao encontro de Nelson Rodrigues
Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho
V — Pouca fortuna
Atalhos de sonho — Julián Fuks
Só para lacanianos — Wesley Peres
Incoerências e cacofonia — Livia Garcia-Roza
Boas e más escolhas — Roberto Drummond
Açucarados chavões — Ana Miranda
Narrativa feita de haicais — Adriana Lisboa
Liberdade para contar uma boa história — Igor Gielow
Um sabor a fel — Ivone C. Benedetti
A pequena alegria de Fabrício Corsaletti
Num pântano de escárnio — Eduardo Alves da Costa
Torturante labirinto — José Luiz Passos
Primos muito distantes
Bordados sem risco — Autran Dourado
Romance aliciador — Alberto Mussa
A cópia monótona da realidade — André Sant’anna
Seguro no ofício de narrar — Luis S. Krausz
Romance e pan�etarismo — Oscar Nakasato e Ana Maria Machado
O narrador doutrinário — Rodrigo Lacerda
Apuro estilístico e perversidade — Otto Lara Resende
No limiar da anti-�cção — Carola Saavedra
Desesperança e poesia — José Luís Peixoto
CRÉDITOS
SOBRE O AUTOR
Tenho lido ultimamente, em vários artigos de jornal, e até em livros,
em autores diversos — uns, por sinal, não tendo nada a ver com a
literatura —, a opinião de que a crítica não deve ser a�rmativa, mas
displicente, não deve ser julgadora, mas apenas comentarista. Pensam
assim, em geral, aqueles que não obtiveram da crítica mais do que
censura ou silêncio; também se inclinam para este ponto de vista os
que não puderam realizar a crítica integral. Opinião extravagante e
absurda, porque nenhum verdadeiro crítico aceitaria o desempenho de
um tão secundário papel como seja o de falar de livros e autores sem
os julgar, sem se de�nir diante de uns e outros. Seria fazer do crítico
um corneteiro da fama dos autores; um empregado para atirar �ores
sobre cabeças mais ou menos gloriosas; um fabricante de elogios e
adjetivos para engordar vaidades e orgulhos. Bem sei que se faz isso na
vida literária; que existem os pro�ssionais do elogio e da frase feita;
que há os que escrevem sobre livros somente com este �m sem
grandeza. Mas não será possível tolerar que se queira oferecer como
teoria da crítica, como destino da crítica, aquilo que é a sua
descaracterização, a sua caricatura.
Álvaro Lins, “O Ato de Julgar”, 13 de fevereiro de 1943
UM CRÍTICO QUE É UM CRÍTICO
DIZER QUE RODRIGO GURGEL é hoje o maior crítico literário do Brasil
carrega um deboche exagerado no dissabor: dos críticos literários
atuais, talvez Rodrigo Gurgel seja o único que é, de fato, um crítico.
No país do homem cordial, do relativismo e do coitadismo, alguém
ter uma opinião pouco airosa sobre algo soa, à nossa intelectualidade,
o equivalente a defender a Inquisição. Neste país, um caso, visto
apenas nas últimas páginas deste livro, tornou Gurgel célebre: até a
53ª edição do Prêmio Jabuti, as notas, como nas escolas de samba,
variavam só de 8 a 10, permitindo apenas encômios e adulação aos
escritores. Já na 54ª, a nota foi de 0 a 10. Ainda assim, os jurados
preferiram se manter na margem de elogios. Gurgel deu nota alta ao
romance Nihonjin , de Oscar Nakasato, e notas bem baixas aos
demais. Resultado: matematicamente, seu voto foi o único relevante,
já que os outros jurados, quando davam notas baixas, ainda �cavam
perto de 8. O romance logrou-se vencedor, Gurgel se tornou um
polemista conhecido do público leitor e o Jabuti, claro, voltou a
fechar-se na margem de erro elogiosa.
Foi um caso arquetípico para as letras nacionais. Sob auspícios de
um sentimentalismo infantil, toda crítica verdadeira é tratada como
intolerância, e o trabalho do crítico literário é reduzido a macaquear
bordões sobre os escritores que seus mestres consideravam dignos,
sem possibilidade de se fugir a um círculo de cães farejando as
próprias intimidades, cuidadosamente elaborado para sua auto-
manutenção por gerações – e sem outro propósito senão a troca de
glori�cações. Tal cenário torna-se ainda mais hórrido quando se
lembra que tais intelectuais arrogam-se os maiores “questionadores”
de tradições e tabus, nunca olhando para si próprios para perceber
que são os mais irritadiços mantenedores de uma formalidade oca e de
mera troca de afagos.
Criticar um livro, neste cenatório – sobretudo um livro ou autor
tido por inquestionável pelos vanguardistas empacados – exige
coragem, num mundo de subserviência em que só se pode desgostar de
um livro se for escrito por Paulo Coelho ou Adolf Hitler. Coragem
quase física: a força dos escritos de Rodrigo Gurgel é tonitruante,
demonstrando que a atividade intelectual exige um preparo da alma
que parece transparecer no mundo físico. Se soa hiperbólico,
experimente-se dizer em voz alta curtas frases deste livro a um
professor de literatura, como “A verdade jamais esteve no ambiente
repressivo da classe de aula”, comentar “os limites do autor” de O
Guarani , ou admitir o tédio da última quebra de paradigmas destes
escritores “presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a
cada amanhecer” – se exemplos faltarem, que tal o apotegma
“Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de
Alencar”? Valeria uma cena de um romance: e mostra como é precisar
tirar uma faixa preta e quebrar tijolos com as mãos antes de escrever
um artigo de jornal. A literatura (a brasileira em especial) está
querendo chocar e ser moderna com preceitos mais antigos do que
nossa bisavó. A resposta que não quer do crítico é a que dá Rodrigo
Gurgel: merecidos bocejos. Tido por exigente, é apenas o erudito que
qualquer adolescente adoraria ter conhecido na escola. Por que, a�nal,
a literatura precisaria ser tão chata, quando todos nós temos uma
necessidade vital de boas histórias?
Bem ao contrário do que sonha nossa vã Academia, na crítica que
aqui é lida não há geniosidade irascível nem intolerância. Trata-se
apenas de técnica. É a intelligentsia que possui uma técnica falha
(abusando-se da hipérbole), não nosso Rodrigo Gurgel. Este está
vacinadocontra a verborragia das torres de mar�m, formalmente
divorciadas da realidade da nossa vidinha rés-do-chão. E sua técnica,
embebida em Aristóteles ou Michitaro Tada, é a complexa e simples
arte de esperar da literatura algo sobre a vida. Não apenas
entretenimento, nem muito menos a estúrdia auto-referente do
pedantismo vanguardista, de escritores que espatifam a sintaxe apenas
para que seus cupinchas acadêmicos realoquem os caquinhos, com
esgares de sabedoria arcana.
O que se lê nas páginas que seguem são as re�exões de um leitor
especializado, mas não é a dinamitação niilista de quem acordou de
mau humor. É exatamente o elogio às grandes obras, através dos olhos
de um erudito, que extrai dos livros mais do que nós, pobres mortais,
podemos sonhar. E sua verve move-se contra o que chama de
“narratofobia”, o mal daqueles que “escrevem não para satisfazer
seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir
determinados preceitos”. Parece que ninguém mais tem uma história
interessante a narrar – civilizações foram criadas através de narrativas,
mas o estado das artes prefere o umbigocentrismo e falar de si
próprio. Gurgel esmiúça símbolos, temas e elementos literários como
os estudiosos de mitos, buscando no sonho e verdade não-racional,
que só cabe na poesia e na consciência elevada, seus paradigmas,
como os símbolos analisados nos primeiros ensaios deste livro. Uma
história, uma narrativa �ccional ou histórica, deve conter algo que
inquiete nossa alma, que nos tire de nosso conforto. A grande
literatura é o oposto da auto-ajuda e do vitimismo social, hoje a
grande régua a medir o mundo pela Academia. É incômoda, trágica,
satírica, muitas vezes melancólica. Não é para formar heroísmo de
bordões e agitadores pan�etários.
Este estado desolado, eliotiano, não se construiu por acaso. Os
intelectuais, na Academia, no jornalismo, na massa falante – o
palpitariado – se escoraram em teorias que pretendem espremer toda a
realidade numa ótica simplista, justamente quando crêem
fanaticamente que descobriram um novo método para atingir uma
verdade universal por debaixo do que nós, viventes, conhecemos. Diz
o nosso crítico: “Assim funciona parcela signi�cativa da academia:
estabelece-se um modelo – e a maioria só consegue papagueá-lo”. É
comum na análise literária no Brasil a busca da correlação entre
literatura e sociedade, tão dominante, por exemplo, na USP. Por mais
importante que tal relação seja, ela não é a única a explicar a
literatura: Gurgel mostra aqui a relação entre literatura e
individualidade , sem deixar de lado a história, o país, a cultura, os
acontecimentos sociais. Mas é no âmago da alma individual que a
literatura tem seu poder de nos tocar, mesmo em romances sociais.
Minguada à sociologia de botequim, a literatura, então mera
coadjuvante, só consegue papaguear modinhas políticas sem nada de
verdadeiro ou relevante, para se tornar mera ferramenta de agitação
partidária. Não é sem razão que a literatura brasileira esteja hoje
encolhida a falar sobre a ditadura militar, que terminou há mais
tempo do que durou, do que dizendo qualquer coisa sobre viver no
Brasil atual, com as oscilações que vemos na prática e nos jornais –
que Gurgel garante não ler há anos, “exatamente para me proteger da
idéia de que a realidade do país é irreversível”.
Outra modinha que Gurgel demole, à luz dos melhores romances e
críticos, é o estruturalismo, mais arraigado ao nosso fazer didático do
que o pessimismo a Thomas Bernhard. Crendo estar atingindo uma
estrutura de poder velada aos pobres mortais, maquiavelicamente
plantada por alguma mente obscurantista, foi o principal cabresto
mundial para que as letras apenas arranhassem a superfície e a forma
do fruto literário, sem nunca lhe transpassar a casca. Tal técnica foi
escorada ainda pela Escola de Frankfurt e a futura “teoria crítica”,
gênese do moderno politicamente correto que deu ares de ciência
arcana para o chilique e o coletivismo plani�cante, graças ao
pedantismo e ao estilo rebuscadíssimo de seus autores – confundido
com conhecimento rigoroso por alunos embasbacados, que nunca
percebem que apenas estão falando difícil a mesma análise super�cial
de quando eram adolescentes. Síndrome do “eterno vanguardismo”.
Para completar esse caldo de revitalizações do marxismo, já brega
até na União Soviética stalinista, que precisava ser disfarçado por uma
linguagem mais chiquetosa, junta-se a psicanálise, do freudismo à
lacanagem, com suas misti�cações de lingüística e semiótica, prontas a
“analisar” e dizer aos nossos olhos que o beijo de uma criança em sua
mãe não é inocência, mas – olhe bem para o que você não vê – o
desejo de assassinar o pai para fazer sexo com a progenitora. Se a
literatura hoje não tem mais verossimilhança, alguma verdade interna
que permanece inalterada tanto num conto em que se ensina um gato
a falar quanto no Henrique VIII de Shakespeare, tal se dá a tais
tapeações humanitárias. Sem apelo em consultórios, a psicanálise
migrou para o departamento de Letras, onde sua simpli�cação da
realidade serve de explicação do todo do real – vide o grande ensaio
deste livro sobre Le Clézio. Tempere essa análise “crítica” da realidade
com a “desconstrução” de Jacques Derrida e a “dissolução” de Michel
Foucault, e teremos a literatura e a crítica literária modernosas, tão
prontas a nos ofender e melindrar com sua quebra de paradigmas e
destruição de tabus, e tão e�cientes em nos curar a insônia, que
preferimos ter a alma assombrada pelos fantasmas de Henry James ou
da épica e das tragédias gregas. No Brasil, ainda temos também o
revanchismo histórico, a vitimização da nossa miséria por culpa
estranha a nós mesmos e a idealização da periferia. Diz Gurgel: “A
grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou
eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph
Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra-
se no centro do nosso coração”.
E o que resta dos temas universais e eternos do existir humano,
tranca�ados no porão literário nunca visitado pela crítica moderna? O
amor, tema tão próximo do ser que não consegue ser destruído nem
sob totalitarismos, é trans�gurado em mera frustração sexual, o
grande tema da literatura “anti-tabu” (com sua antítese no sexo
mecânico e promíscuo). A amizade, suas dúvidas e suas crises, é mera
maquinação ou concordância temporária para �ns de poder. Como se
“desconstrói” o amor, que fez até Derrida intuir os limites de sua
brincadeira, ou como compreender os valores da cultura, do sentido
da vida (aquele que Viktor Frankl resgatou até num campo de
concentração), da família e do eterno sob a análise psicanalítica?
Se esta literatura não consegue mais espelhar a realidade ou a
verossimilhança do nosso existir, o que obras mitológicas com deuses
e dragões conseguem à perfeição, ao menos conseguem tornar
algumas pessoas (e, mais infelizmente ainda, alguns escritores) em um
bando de histéricos estampando suas frustrações e falta de amores
publicamente, como concretização non plus ultra de sua suposta
libertação, inconscientes de sua miséria. Reduzidos os homens às suas
funções primárias, com a alimentação tratada como propaganda para
políticas distributivistas e a reprodução como insatisfação sexual que
logo eclode na luta histérica revolucionária, não coube a tais literatos
muito além de criar livros que recebam a última função primária. São
os “universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à
libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências
rasteiras”.
A alma dividida, tema romântico por excelência, é vista por Gurgel
no Marrocos ou no sopé do Himalaia. O homem morti�cado entre o
dever e o prazer, tema de Homero a Ortega y Gasset, entre a
eternidade e as contingências do presente, é-nos mostrado tanto sob as
luzes barrocas, eivadas de contradições, de Hans Jacob Christoffel von
Grimmelshausen e seu personagem desnudando-se da inocência e
tomando parte em uma vida cheia de obrigações e vocações, quanto
nos tortuosos sentimentosde Gustave Flaubert ao escrever sua icônica
Madame Bovary . Escreve nosso crítico: “Sem o duelo permanente que
ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é
vendida aos incautos como o melhor realismo”. É esta dúvida interior,
este dilacerante processo de mentir para si próprio, este presente
atormentado por terrorismo, insurreições políticas, dramas familiares
e paixões fulminantes na paz, tão contrastantes com o amor quando
visto no caos, que tanto interessa a Gurgel, e que tão pouco é visto
numa literatura que se pretende marcante e séria. Ainda menos nos
“temas comezinhos da literatura brasileira”.
E tal combate interno é comum tanto aos clássicos os mais antigos,
dos primórdios de nossa e de outras civilizações, quanto aos
românticos, aos renascentistas, aos modernos. Nas duas obras que
inauguram a civilização ocidental, a Bíblia pelo lado judaico, o
conjunto da Ilíada e da Odisséia pelo outro, já �sgamos personagens
atormentados pela incumbência de feitos aparentemente muito
maiores do que suas capacidades, caminhos tortuosos e torturantes,
cheios de armadilhas e cobrando-lhes o risco vital de se apartarem da
existência. É o que Lionel Trilling chama de “imaginação moral”,
duas palavras que, juntas, explicam como termos superavit literário.
Aprendemos com Erich Auerbach que no relato do Antigo
Testamento, por exemplo, tudo é feito em poucas palavras (até os
nomes são simples), nada é narrado, apenas sabemos que Deus pede
um sacrifício e, dali a dias, Abraão sobe a montanha com seu �lho,
mantendo-nos em silêncio tão brumoso e tenebroso, análogo àquele
experimentado por Abraão, sabendo que tem uma escolha entre
sacri�car seu �lho querido ou desagradar ao Deus Todo-Poderoso, no
último resquício de uma sociedade que imita o ritmo cíclico da vida
através de sua visão cósmica de sacrifício. É enfrentando tal provação
em silêncio – silêncio “narrado” pela própria violência cortante da
frieza da ausência narrativa – que Abraão sela a aliança de Israel com
Deus, inaugurando o “salto no ser”, no dizer de Eric Voegelin, que
cria a primeira sociedade que vai buscar a verdade justamente no
silêncio da alma individual, na verdade transcendente, e não no ciclo
de repetições do mundo circundante, na primazia da transcendência
sobre o presente de mortes e vida – presente este que é sintoma e causa
de uma literatura tão doente e fraca para tanto aquietar quanto
provocar nossa alma. A tortura de Abraão até o monte, depois de
amarrar Isaac e estar prestes a cometer o sacrifício, é revivida pelo
leitor, que se apieda e se integra no todo daquela sociedade e de todo o
drama interno humano – não penas um caso arquetípico de literatura
de identi�cação e participação, mas também anagógico, nos termos de
Northrop Frye, quando todo o cosmo é reaprendido e vislumbrado
por uma literatura profética e participativa.
Já na Ilíada de Homero, a dúvida de Aquiles é entre ele próprio
morrer jovem, mas com glória (numa sociedade em que isto representa
muito mais do que aplausos acadêmicos) ou velho, mas apartado de
seu povo por não tomar parte na Guerra de Tróia. Aqui, tudo é
narrado, tudo é detalhado, tudo é esmiuçado – o que reduz a
participação da alma do leitor na perturbação do personagem, mas
não sem que entendamos como a literatura é crise, em sentido grego:
cisão, divisão, a dura conquista �nal que exige antes tantas escolhas,
cada uma vindicando uma perda. Já na literatura moderna, a boa
literatura, se começa a trabalhar temas cada vez mais perturbadores e
sutis, como �uxos de consciência (leia-se Gurgel ao analisar Joyce), a
de�nição da individualidade, a participação no passado coletivo, a
insatisfação globalizada com o sentimento de pertencimento a uma
cultura opressora e que nada nos diz, mas sem que consigamos
pertencer a outra – todos temas analisados de forma emocionante por
nosso crítico nestas páginas. Quantos personagens emocionantes
realmente conhecemos?
Tomando mais um pouco tal lição, podemos acompanhar o
trabalho genial de Rodrigo Gurgel, apresentando-nos as grandes
questões que passam despercebidas por uma leitura pouco
diligenciada, tanto nos processos rituais da vida, aqueles cíclicos e que
se repetem em cada história individual ou comunitária, imitando os
ritmos da natureza (seja no Peru sob a ditadura de Fujimori ou
naquele Israel sempre profético da humanidade), e também os
dialéticos, palavra tão escangalhada pela Academia, quando vemos
homens cujos sonhos estão em con�ito com a realidade, o que
aproxima tantos personagens da poesia – e do diálogo interior que
quase nunca podemos expressar. É essa tomada de posição, de
responsabilidade e de saber seu lugar no mundo, e o que se pode
comunicar pela �cção ao outro, que Gurgel nos apresenta, deixando-
nos com água na boca para desfrutar tantas grandes obras, e
preparados para entender o que está em jogo quando se terça armas
sobre cartas de escritores, traduções e visões críticas – não sobrando
mera bajulação, é claro, nem mesmo para os maiores nomes de seus
ramos.
Tal falta de tomada de responsabilidade é comum tanto à literatura
ruim quanto à crítica ruim, ambas com síndrome de puer aeternus e
deixando seu simbolismo, seu sentimentalismo e seus valores na
cultura, na mentalidade geral, no imaginário coletivo e nos
acontecimentos históricos recentes. No entanto, acompanhados de
nosso crítico, sentimo-nos mais familiarizados com os livros realmente
apaixonantes, mesmo em suas minudências mais sutis ou nas
complexidades mais cabeludas. Em poucas páginas, sabemos que os
únicos a temer um crítico que é crítico são os maus escritores, maus
professores ou os maus críticos. Todos mendigando aplausos,
cobrando tanto de nosso precioso tempo, e oferecendo apenas as
platitudes das explicações fáceis.
É
É responsabilidade a mais exigente e grati�cante cuidar de
apresentar este grande intelectual a um público tão importante quanto
os leitores de �cção – e também tarefa pavimentada de hesitações,
medos e aventuras perigosas, por não se querer tomar as rédeas do
leitor e conduzi-lo por impressões outras, desejando por �m ser
esquecido para que o leitor saboreie as palavras do verdadeiro autor. É
buscando uma integração no todo – zen , como nos ensina Rodrigo
Gurgel a ler Yasunari Kawabata –, longe de estruturalismos e outras
frescuras acadêmicas, que deixo a faina de reintegrar tais impressões
no objeto e no sujeito ao poder poético e de difícil assimilação por
esquematismos racionais à própria leitura literária – pois alguém da
grandeza de Rodrigo Gurgel, ao fazer crítica literária, também faz
literatura a mais brilhante.
Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
Reúno neste volume textos publicados na última década. A maior
parte, no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo . Outros, nas revistas
Sibila e Dicta & Contradicta , em meu próprio site ou como
entrevistas e prefácios. Ao preparar este livro, tentei criar um conjunto
homogêneo, que expressasse minha visão da literatura e do papel da
crítica literária. Só não foi possível ampliar, como gostaria, os textos
escritos para a Folha — mas a essência dos julgamentos respira neles
com igual força, com igual sinceridade.
Agosto de 2015
I — O crítico à procura de si mesmo
EM BUSCA DO LIVRO PRIMORDIAL
RECORDAR NOSSO PASSADO não pode ser um exercício de idealização. O
diálogo com o “eu” que nos observa e, ao mesmo tempo, envolto pela
neblina do tempo, nos dá as costas e caminha de volta à infância,
precisa estar impregnado daquela tensão que ressurge sempre que nos
debruçamos sobre o poço da verdade.
É o homem de carne e osso que busco quando olho sobre meus
ombros na direção da juventude, da infância. Mas não se trata de
revisitar um horizonte ensolarado. Trata-se, ao contrário, de repetir as
caminhadas de Miguel de Unamuno pelo claustro do Monastério de
Santo Estevão, em Salamanca, debruçar-se sobre o poço, no Pátio das
Cisternas, e gritar “Eu… eu… eu!”, para que o eco do passado, ao
repetir o pronome, rea�rme minha existência.
Um de meus sonhos recorrentes está impregnadodesse “eu” sempre
à minha espera, em algum ponto do emaranhado de reminiscências.
No sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó
paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei
de fazer durante a infância: retiro a chave pendurada no batente, num
prego, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre.
Sinto, imediatamente, o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e
o ar pegajoso que vem do ambiente escuro.
O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a
estante e o batente, o interruptor. A seguir, entrar. A lâmpada, fraca,
mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos
caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro
não está ali, mas no cômodo ao lado, que permanece escuro.
Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois
estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão.
Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o
interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada,
no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um
segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o
receio de que minha busca — e o encontro certo — não se
concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz.
Mas encontro a correntinha e puxo-a — e imediatamente vejo os
caixotes de livros no chão.
Sei o que venho buscar: o livro superior a todos os livros, um
manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, o guia para a
difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali,
aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas o conjunto de
páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a
síntese da experiência humana.
Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não
sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de
que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há
pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que �z
centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa,
principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a
morte prematura de seu �lho, meu tio-avô, mas sem nunca se
abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os
cabelos, os olhinhos atentos — e a língua ferina quando fala dos
políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro-
chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual
experimento, antecipadamente, o prazer de achar o que procuro,
tamanha é minha certeza.
E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros
inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado
nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em
um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da
capa é repleto de pequenos e irregulares círculos cor de vinho,
dispostos aleatoriamente sobre o fundo amarronzado. O cheiro de
BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos
olhos. Estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e
começo o gesto de erguê-la — mas acordo.
Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho,
sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Nesse
primeiro momento da vigília — ainda atônito por ter percorrido
novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado
antes de abrir o volume —, tenho certeza de que outra oportunidade
surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à
sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra
vez o livro.
O sonho é impressionante por vários motivos, mas deixo aos
psicanalistas a tarefa de compor, mais que a análise, suas �cções.
O que me interessa é reencontrar esse objeto que se tornou uma das
poucas constâncias em minha vida. Há, claro, um conjunto de fatos,
de circunstâncias que formam uma personalidade, mas, no meu caso,
os livros têm papel primordial.
Às camadas do meu ser correspondem livros. Nasci e fui educado
entre três bibliotecas: a de meu pai, composta, basicamente, de obras
de �loso�a e da área jurídica, mas onde descobri as sisudas capas
negras do Tesouro da Juventude — com a velha ortogra�a, em que eu
podia saborear a beleza excêntrica de palavras como ophthalmologia ,
columna e aucthor — e o Lello Universal ; a de minha avó,
pequeníssima, mas com livros indispensáveis, como As mil e uma
noites e Madame Bovary ; e a do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa.
Cada uma me ofereceu o que tinha de melhor, mas a do Gabinete
fez o principal, pois a bibliotecária da noite, Dona Odete, deixava que
eu transpusesse o balcão de madeira escura e, penetrando no acervo,
percorresse as estantes livremente. Ali, então, descobri o mundo.
Mas o que forma um leitor é, antes de tudo, o exemplo de outros
leitores. E não se trata apenas da imagem de meu pai sentado à velha
escrivaninha, que antes pertencera a meu avô, compulsando suas
coleções de jurisprudência. Antes, vejo-o de pijama, aos domingos,
lendo religiosamente os jornais e obrigando-me a ler editoriais e
artigos que considerava interessantes ou bem escritos, cuja
argumentação o impressionava.
O tempo que passei na universidade também não foi de todo
perdido, principalmente porque, na PUC de São Paulo, tive duas
professoras brilhantes: Samira Chalhub, de Teoria Literária, e Anna
Maria Marques Cintra, de Língua Portuguesa. Mas foram Ivanira
Dadalt e Paulo Vieira, no colégio, que me mostraram a literatura e a
língua sob perspectivas que, comparadas à dos livros didáticos atuais,
fazem-me pensar que cumpri, antes de tudo, o mestrado.
Ivanira, delicada como uma gueixa, apresentava cada movimento
literário inserido num contexto cultural e político maior. Músicas,
pinturas, revoluções: tudo interpenetrava a literatura. E quando, certa
manhã, no corredor repleto de algazarra, com O Guarani nas mãos,
des�ei um rosário de reclamações sobre o livro, ela, com sua eterna
paciência, con�rmou-me os limites do autor, sem deixar de insistir
para que eu chegasse ao �m do volume. “É preciso conhecer tudo”,
disse-me.
Com Paulo Vieira não foi diferente. Que professor atual
recomendaria a seus alunos que lessem Thomas Merton? Paulo o fez
— e, passados quarenta anos, minha gratidão só cresce. Ao corrigir
uma de minhas redações, deu-me um 9. Não havia nenhum erro, mas
uma frase estava marcada em vermelho e, ao lado, a observação:
“Fale comigo depois da aula”. Procurei-o e ele me explicou que eu
usara um espanholismo, que aquela construção não pertencia à língua
portuguesa, deu-me exemplos, mostrou-me como seria o correto em
português. Um purista, dirão os modernosos. Um sábio, a�rmo.
Mais tarde, pude conviver com Nelson Foot, professor autodidata,
respeitável lingüista que, aposentado, passava as tardes brincando
com poesias em sua biblioteca: escolhia um poema de Cecília Meireles
e traduzia-o para o romeno, depois para o latim, a seguir o francês,
�nalmente o inglês. Gosto de imaginá-lo brincando com os textos
como se fossem animais de estimação.
Havia um rasgo de orgulho e independência no adolescente de
quinze anos que pegava o Cometa e, semanalmente, vinha de Jundiaí
para percorrer sebos e livrarias do Centro de São Paulo, tornava-se
amigo dos livreiros e voltava, muitas vezes, carregado de antigos
volumes, díspares como uma biogra�a de Savonarola, um dicionário
de locais históricos da Grécia e uma primeira edição de Murilo
Mendes ou Guilherme de Almeida.
Mas há outro sonho envolvendo o porão da casa de minha bisavó.
Desta vez, os livros não estão presentes. E não há recorrência. Sonhei
esta pequena história uma só vez, em setembro de 2007.
O céu da manhã está encoberto. A primeira percepção é de que não
há sol. Vejo-me, ainda criança, no quintal da casa de minha bisavó, à
procura de algo. Ela, no seu imutável vestido negro, altiva, pronta a
educar-me nas mínimas oportunidades, me observa, de pé no alto da
escada que leva à cozinha. A cena tem tantos detalhes — o tanque em
desuso à direita;o canteiro circular no centro, com as roseiras; o
corredor lateral que leva à entrada —, tantas recordações miúdas,
observadas enquanto vejo a criança brincar, que imediatamente penso
se não seria esse o melhor início para um livro de memórias. Há um
único gesto surpreendente, no �nal: arranco, de sob a soleira da porta
do porão, um ramo seco, semelhante a uma forquilha. Experimento
júbilo incontrolável, pois se trata de um tesouro, sem dúvida, cujos
poderes não posso conceber. Ergo o galho de pontas retas, compridas
e pálidas, balanço a descoberta no ar, pleno de satisfação — e minha
bisavó sorri, não de qualquer jeito, mas tenho certeza que pensa: “Ele
encontrou, �nalmente. Agora tudo está bem”.
O galho bifurcado é apenas o substituto do livro. Formas diversas
para a mesma fascinação.
Se o tempo me fez mais seletivo, se a ânsia adolescente de ter todos
os livros foi substituída por uma serenidade que diminuiu o número
de compras mas não tornou possível ler tudo o que desejo, isso não
muda o anseio das visões oníricas, de que, algum dia, aquele menino
que penetra no porão me permita ler ao menos o título, talvez a
primeira linha do livro que sintetiza a vida.
REMINISCÊNCIAS DO MUNDO ONÍRICO
Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas
trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país?
O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos
que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao
autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da
mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de
desvendarmos nosso eu.
Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o
itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças — às vezes
fragmentadas — como se formassem o mapa de uma aventura que
clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em
vigília, pode oferecer o tesouro — quem sabe inominável segredo —
escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar
durante o dia — e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê-
lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já
se esvai — as mesmas etapas noturnas, como o menino que,
encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto,
tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra,
que ele só consegue alcançar com grande esforço.
Noites atrás, depois de longa conversa com minha mulher sobre o
processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante
o sono, para meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança:
um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por
religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a
aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos
para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado
degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da
escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a
buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse
momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer
minha di�culdade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais
trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de
uma opção prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã,
circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno,
mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona
mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as
orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta
semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir
em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me
diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob
a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente
amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma
coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente
e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna
subiam, rumo à superfície, exemplares — animados e inanimados —
de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de
uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns
segundos à minha frente, para depois continuar sua rota ascendente.
Alegremente atônito, deixei-me �car ali, esquecido das aulas,
maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de
completude que acordei.
Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre
buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá-
lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes
de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas
idéias, não sei quais associações �zeram-me lembrar do poema de
Eugenio Montale:
Talvez uma manhã andando num ar de vidro, 
voltando-me, verei cumprir-se o milagre: 
o nada às minhas costas, detrás de mim 
o vazio, como um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato 
árvores casas colinas para a ilusão costumeira. 
Mas será tarde já; e eu partirei calado 
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me
a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se
tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade
jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas �las
de carteiras paralelas e professores, a maioria deles incapaz de me
mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com
que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável
necessidade de buscar outro caminho de�agraram a certeza de que eu
não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É
certo: a verdade, sempre a encontrei em outro lugar, oposto àquele
apontado pela escola.
Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua
semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância
deixou-me descon�ado. E a repentina solução para um problema que,
há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que
me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de
conhecer o ignorado.
Certamente não era à toa que as vestes da religiosa — notei bem
enquanto ela me falava — refulgiam num branco tão ofuscante
quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado, e que
depois se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no
“ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz
insólita e, em breve, com um novo olhar.
A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito
de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos
rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a
tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres,
a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta-
nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência.
O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento
que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do
prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma
claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte,
onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração.
E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num
mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular;
ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma
inesgotável.
Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve
origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas
convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os
elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda
não estão nomeados, quando ainda não foram classi�cados e
diminuídos pelo homem.
Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da
água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu
também havia retornado à infância, quando tudo está por ser
descoberto.E sentia-me — espectador e personagem do meu sonho —
como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória
e buscar o que, por acaso, houvesse perdido.
Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o
poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o
real — para ele, o vazio, o nada —, eu me aproximei do reinício de
tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da
realidade.
Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à
mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que
jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha
relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele,
a partir daquele sonho — e em todas as manhãs, esforçando-me para
repetir o ritual onírico de maneira consciente — eu devesse calar-me
“entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem
olhar, e carregar comigo “o meu segredo”.
A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada
pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado,
esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz
que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe
pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de
observação a cada momento, a �m de reencontrar, sob a mesmice do
cotidiano, o caráter inusitado do real.
Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a
realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é
habitual — resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela
trágica ou pueril, inocente ou terrível.
De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os
sonhos que carrego comigo — um patrimônio que cabe à lucidez
decifrar —, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília,
esta que acabo de descrever insu�a em minha consciência também
uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna
de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao
pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova
forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os
frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver
solitária entre os homens, carregando seu segredo?
Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que
surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a
conclusão de Montale à sua angústia é o poema — e não o silêncio —,
então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o
desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda.
Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua
própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco
meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a
“ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E,
principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela
maioria.
DEZ LIVROS QUE MUDARAM MINHA VIDA
1.
De Euclides da Cunha, Os Sertões foi o primeiro livro que estudei
com olhar de leitor malicioso — não no sentido de “má índole”, o
mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”,
“sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de
português no velho Instituto de Educação, em Jundiaí. Quando
comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível —
o livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao
meu lado.
Foi, aos dezessete anos, o primeiro lampejo de que as melhores
obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê no
seu contato super�cial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir
a musicalidade que a linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro
estava além dos meus conhecimentos — tudo me impulsionava a ir
adiante, a perseverar.
2.
Descobri John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de
aula na universidade. E a primeira aula do primeiro dia. Meu
professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio,
tirou o maço de Continental sem �ltro do bolso rasgado da camisa,
acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e, olhando para o vazio,
agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina,
começou: A thing of beauty is a joy for ever… Quando terminou, o
feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me vincular à
terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que
pudessem existir no meu espírito. Desde aquele dia, não passa um
semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro poema de
Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por
Homero: era como se eu tivesse descoberto um novo planeta.
3.
Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para
Drummond. Em algum momento daquele primeiro semestre,
interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio, e começou a
declamar “Campo de �ores”. Comprei Claro enigma depois da aula. E
descobri “Tarde de maio”, “Remissão” — nada resta do que
escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o �m
sem a injustiça dos prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que
pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”.
4.
O início de A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar,
ensolarada e todavia prenunciadora de morte”. Eu não sabia que a
visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe
do que qualquer outro romance. Com Hermann Broch descobri que a
�cção não precisava estar presa aos temas comezinhos da literatura
brasileira, às historinhas pér�das, a permanentes universos
mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita,
aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras.
5 e 6.
Lorde Jim e A fera na selva con�rmaram Broch. A grande literatura
está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes
esfaimados sem nenhuma dúvida interior.
Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha
encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história
sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa
consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos
incautos como o melhor realismo.
7.
Em algum momento da década de 1970 comprei Raízes da Criação
Literária , de Edmund Wilson. Foi meu primeiro contato com uma
crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao
contrário, a erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram
colocadas de forma clara — e o autor realmente dialogava com os
livros.
Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me,
percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo e a semiótica. Wilson
foi o �ltro que impediu minha contaminação completa. Na faculdade,
forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland Barthes,
eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada.
8.
A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em A
orgia perpétua , con�rmou o que eu intuíra ao ler Edmund Wilson: na
análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase
cientí�co, mas sem matar a obra, sem transformá-la num esquema,
numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a linguagem, sem
desvincular a obra da realidade.
Vargas Llosa ensinou-me ainda mais: mostrou-me que o
hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era
um engodo. E por um simples motivo: o bom escritor carrega a ira de
Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira,
muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o
vírus negativo que é o segredo da sua acessibilidade: para que um
romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”.
9 e 10.
Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de
Carvalho me vacinou contra o marxismo e a intelectualidade
materialista, hedonista e cética que ponti�ca na mídia e na
universidade brasileiras. Depois de ler O imbecil coletivo ainda militei
anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo permanecia —
desculpem-me o chavão — uma ilha de lucidez.
Fazia com Olavo deCarvalho o que o diretor do Gabinete de
Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da
ditadura militar: guardava-o num armário bem fechado, em algum
ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus próprios
pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho
seguirem destituídos de sentido. Ao mesmo tempo, percebia a
tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos
“companheiros” e sua prática cínica, aética.
O imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a
Isaiah Berlin — e então livrei-me do coscorão esquerdista. Olavo e
Berlin foram meus guias no processo de rompimento de�nitivo não
apenas com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver.
Ambos são intelectuais completos. Minha leitura de Berlin começou
por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em Pensadores russos , aula de
crítica literária e cultural.
Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin
ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que sempre estiveram à mão,
obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é
que justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda.
Aliás, a esquerda tem se notabilizado na história exatamente por,
chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais.
Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se
resume a desacreditar do marxismo. Seria muito pouco para dois
pensadores excepcionais. Eles me fazem re�etir, como os outros livros
que mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição
humana — e cada página deles acrescenta algo à minha
Weltanschauung .
REFLEXÕES NO IMPÉRIO DOS FILISTEUS
Respeito ao leitor
Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez
menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o
senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece.
Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações
dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certas
políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também
aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a
linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros.
Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada
semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer
chegar ao ponto �nal do texto sem saber o que, exatamente, o
articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à
tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se
a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a
respeitar o leitor.
Forma de hipocrisia
Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo , Karl Erik
Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo
jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer
julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm
coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade
exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida
assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça
e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa a�nidade e essa
conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas
exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”.
Quando li essas palavras, �quei em estado de júbilo: alguém
pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte
dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos
exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso
hermético, �cam naquilo que minha avó chamava de “conversa para
boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome
do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Papel da crítica
Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e
narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica
literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás,
extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a
obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa
ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o
depauperamento da cultura, da própria civilização.
Um subterfúgio verbal
Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela
trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra
“dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os
críticos di�cultariam a renovação e a inovação na literatura.
Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal,
pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as
estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo
“critérios estabelecidos”.
A questão, na verdade, é outra.
Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham
no sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve
para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária,
seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve
mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve
ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças,
para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade,
evitando adulações e idéias preconcebidas. E ambos devem agir,
principalmente, com independência.
Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o
quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos
agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica,
certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado
parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla
obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a
avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A
verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e
escritores cumprirem suas funções.
“Verniz onírico”
A crítica precisa reencontrar o caminho que possa salvá-la do
discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela
precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão
monista da obra literária e da própria realidade.
É inacreditável que grande parte da crítica e da produção
acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo
estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando
publica Critique de la critique .
Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o
Todorov de Poétique de la prose , que foi publicado em 1971… Assim
funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo
— e a maioria só consegue papagueá-lo.
À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como
bem de�niu Thomas Pavel em A miragem lingüística , infelizmente
pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular
a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de
geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas
sua lição, no delicioso A literatura em perigo , é atualíssima:
“Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples
ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”.
Dupla desorientação
O problema, entretanto, começa muito antes da universidade.
Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as
mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam
ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã , de Graça Aranha, ou
Bom Crioulo , de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um
disparate.
Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem
entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos
feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo
problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três
décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do
sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se
fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura.
Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens lêem péssimos
autores antigos como se fossem gênios —e péssimos autores
contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura.
Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que
um jovem de quinze ou dezesseis anos não lê, por exemplo, Homero
na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem
realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro;
além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como
José de Alencar... Mas é a escola que temos: claudicante como todas as
instituições do país.
Império de filisteus
No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de
pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da
idéia de que a realidade do país é irreversível.
Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset
completou seu trabalho de contaminação nas últimas décadas. A
pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais
ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas
clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova
superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para �car.
O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império
dos �listeus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia
o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio �listeísmo”.
Por isso mesmo não podemos �car em silêncio ou agir como
vaquinhas de presépio.
Uma só resposta
Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio
esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que,
demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e,
prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu
próprio eu — e só então expressa suas idéias, seus sentimentos.
É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada
textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser
não só uma re�exão, mas de apontar caminhos, soluções, regras,
quando não verdades.
Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina
faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para
as �ores das margens, numera as linhas — e fecha a página do
caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O
esquematismo refulge a cada linha.
Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto
estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica
literária.
Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas
apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império
dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem
branca, apressados e super�ciais.
Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os
homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma
única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”.
De quem o medíocre gosta?
O relativismo, que hoje impera em todos nichos da cultura, chama
de intolerante a quem possui certezas. Os fracos, temendo serem
julgados, agem como preconizou Ernest Hello: acrescentam a cada
frase uma perífrase açucarada: ‘parece que’, ‘ousaria dizer que’, ‘se é
permitido expressar-se assim’.
Hello, hoje desgraçadamente esquecido, está certo: “Ao medíocre
agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre
nenhum tema, que nada a�rmam e que tratam com respeito todas as
opiniões contraditórias. Toda a�rmação lhe parece insolente, pois
exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um
pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e
reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento
das transições e dos matizes”.
Competição de coxos
Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia
comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho
nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a
honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis.
À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos — o que
apenas o tempo poderá dizer —, quando, depois de ler certa obra,
vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem
nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se
há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao
contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja
movido por uma pulsão sádica.
E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele
não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo
que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada,
protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao
dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer
ou não fazer inimigos.
Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é
apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, �cam
satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de
celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a
literatura, a vida intelectual.
De minha parte, se considero um livro ruim, a�rmo claramente o
que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de
tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha
um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de
coxos, o primeiro que chega ao �nal continua sendo coxo, apesar de
tudo”.
Os dançarinos
Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam
como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem
na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os
incapazes, a �m de deixar mais espaço no salão para os bons
dançarinos.
Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país
subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as
edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da
população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel
do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste
país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para
poucos dançarinos.
Quem faz crítica literária aqui deveria trocar idéias, de maneira
didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo
assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em
literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há
o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim.
O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado
em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa
treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”.
Polidez
O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria
obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale.
É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer.
Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis
limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra
representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa
representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser
uma estrutura coerente?
Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o
interlocutor, deixar a conversa �uir sem a prévia preocupação de
provar este ou aquele ponto de vista.
Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de
forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita
estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos
já falaram.
Então, por polidez, escuto até o �m seus argumentos. Mas o autor,
ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas idéias e da
forma como as expôs, já julgou a si próprio.
O chavão da vanguarda
O �ccionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de
narratofobia . Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve
abandonar o clichê, o lugar-comum. Quando digo clichê, não me
re�ro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os
namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês
vanguardistas. Um jovem de vinte anos que escreve algo parecido com
“beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições
de igualdadecom a melhor vanguarda. E há críticos e professores que
dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar-
comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na
forma e no conteúdo, tremendo chavão.
Patologias
Mas há outros problemas na nossa �cção.
Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na
linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática
(muitos escritores, inclusive, justi�cam seu desconhecimento e sua
negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o
narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o
niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as
patologias atuais.
Crítica e patrulhamento
Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao
a�rmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘— O
racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de
jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis �lhos que escutam
reggae e rock and roll o dia inteiro [...]”.
O ensaísta terminava a a�rmação salientando o fato de que, caso
tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com
certeza, grande parte do valor.
Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi
acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda �cariam
felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo,
se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de
desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência
multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do
valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para
imigrantes desempregados.
A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os
ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar
que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio
violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos
sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia.
David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio
“Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, a�rmou, sem
receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um
camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro
de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”.
O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese
simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia
�el do real, é, no mínimo, insípida.
Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a
ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta
tais maneirismos.
Buscando um “meio-termo justo entre os excessos de requinte e de
simplicidade”, ele a�rma, no entanto, “ser difícil, senão impossível,
explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que
o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais
‘perigoso’”.
Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual.
Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parem de
escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou
talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam
com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”.
No atoleiro moral
Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no
Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste
que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a
maldade”.
A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se
melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir
tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal.
Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente
impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar
interesse?
O problema da re�exão de Anne Rice é que ela só exprime o senso
comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais
interessante que a maldade.
A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados
— do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após
dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos
apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por
esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do
que a maldade.
Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a �gura do
egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na
�cção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia,
também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do
século XX elevou à categoria de deus.
Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma
só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não
desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente
cultua o mal — inquieta, perturba, estimula.
Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos
intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a
frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a
bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido,
propagandeado.
A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no
atoleiro moral — e não querem que ele saia daí.
Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham
coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente
interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência
são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que
pretendem aprisioná-lo.
Fracasso, vileza e perversidade
Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do
mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos
contemporâneos usando uma pinça.
Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a
impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo
eterno vanguardismo.
Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea
— relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas
nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer
aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só
valorizam acrobacias lingüísticas.
Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo,
que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é
apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados
da doença à qual dei o nome de narratofobia .
Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias,
corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com
discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa
literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro
não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.
NARRATOFOBIA — OU O PAVOR DE NARRAR
Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma
estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos
criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos.
Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às
regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das
panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o
de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche.
A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista,
mas pedante e arti�cial, além de subserviente: nasce para agradar a
uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos
diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis.
Mas serei didático. Vamos a um exemplo que tornará mais
compreensíveis os parágrafos acima.
A vida, muitas vezes, parece um indistinguível conjunto de
ausências. Ao rememorarmos, no �nal do dia, tudo o que �zemos,
percebemos como a reconstituição �dedigna dos nossos atos é
impossível. Algo nos escapa; às vezes, um detalhe importante. E, ao
tentarmos realizar o balanço do que restou em nossa memória,
descobrimos que a fatia de realidade à qual procuramos acrescentar
nossa marca — a ín�ma seqüência do real que, revisitada, gostaríamos
de vislumbrar e concluir,com absoluta certeza: “Passei por aqui,
toquei este objeto, comuniquei-me com este ser” —, essa parcela de
verdade praticamente inexiste, como se a vida não fosse mais que um
vôo rasteiro, capaz apenas de tatear super�cialmente o existir.
Uma citação dos diários de Liev Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897,
utilizada por Viktor Borisovich Chklovski em seu ensaio “A arte como
procedimento”, pode elucidar a sensação de desconforto que é
inseparável do nosso cotidiano:
Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me
lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes,
não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci,
isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém
conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu
ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola
inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido.
Entre os inúmeros comentários de Chklovski a este trecho,
especialmente um chama a atenção, pelo teor de verdade que o
estudioso russo concentra em uma única frase: “A automatização
engole os objetos”.
O desejo daqueles que possuem um mínimo de autoconsciência é,
sem dúvida, de que todos os atos só se concretizassem depois de uma
re�exão prévia, cuja intensidade fosse su�ciente para revelar as mais
secretas intenções: a gama de condicionamentos ocultos,
sorrateiramente, sob a aparência de naturalidade que forra o viver. E,
acrescento, não bastaria que conhecêssemos as razões que nos
impulsionam, mas seria imprescindível concentrar a atenção em cada
uma de nossas decisões, no exato momento em que agimos, além de
prever as possíveis conseqüências de nossos atos. Se tal irrestrita
consciência fosse possível, cada insigni�cante gesto nasceria apartado
de toda banalidade.
Sabemos, contudo, que não é assim. E estamos cientes de que o
estranhamento de Tolstói é um sintoma que experimentamos com
relativa freqüência.
A arte, no entanto, pode nos ajudar no sentido de superarmos esse
distanciamento em relação à vida. Ela detém o poder de lacerar a
banalidade ou, no que se refere à literatura, criar uma realidade
paralela de tal maneira envolvente que, ao despertar em nós o que
costuma ser condenado à letargia (por nossa limitada capacidade de
percepção), romper o automatismo do cotidiano e conceder
signi�cação, muitas vezes inusitada, ao real.
Chklovski fala exatamente sobre isso, ao comentar o trecho de
Tolstói:
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra
é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto
como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma,
aumentar a di�culdade e a duração da percepção.
O ato de percepção em arte é um �m em si mesmo, e deve ser prolongado [...].
As a�rmações de Chklovski são conhecidas. Suas idéias foram
disseminadas no bojo das correntes estéticas que, de um modo ou de
outro, se inspiraram no formalismo russo ou se �liaram a seus
princípios. No entanto, foi graças a tal disseminação que essa teoria
— utilizada, no caso acima, para explicitar as qualidades de Tolstói —
tornou-se regra absoluta. E, como todas as regras, reduziu a riqueza
das propostas de Chklovski a um só ponto: “O procedimento da arte
é o procedimento de aumentar a di�culdade e a duração da
percepção”.
Não bastasse tal reducionismo, os reprodutores do pensamento de
Chklovski desprezaram o fato de que os exemplos citados no ensaio,
extraídos da �cção de Tolstói, não apresentavam uma leitura penosa,
árdua ou cheia de obstáculos. Esses repetidores cegos preferiram
entender “di�culdade” como “di�cultar a leitura a qualquer custo” —
e esmeraram-se no sentido de esquecer, por exemplo, a ponderação
que Chklovski faz: “[...] A liberação do objeto do automatismo
perceptivo se estabeleceu por diferentes meios; neste artigo, quero
indicar um destes meios do qual quase que constantemente se serviu
Tolstói [...]”.
À evidência de que Chklovski não tem a pretensão de expor uma
receita sobre como escrever textos literários — ele não só enaltece o
estilo claro, plenamente inteligível do autor de Anna Kariênina , como
insiste em dizer que seu objetivo é apresentar apenas “um” dos meios
utilizados — devemos acrescentar a péssima leitura que alguns
escritores, críticos e acadêmicos �zeram do ensaio: entenderam, repito,
o termo “di�culdade” de forma extremamente simplista; submeteram
o trabalho do teórico a um raciocínio esquemático; e a minuciosa
análise do texto tolstoiano foi colocada de lado, certamente para que
não maculasse a excelência do novo mandamento.
Essa simpli�cação é prática comum, não só em teoria literária.
Dilui-se a complexidade para se adquirir uma certeza, a receita
infalível sobre quais procedimentos devem ser seguidos — neste caso,
para se criar obras realmente “modernas”. A maioria dos mestres
mostra-se pródiga nesse sentido, e a repetição constante gera, é claro,
resultados medíocres, desalentadores.
No caso especí�co da literatura, tal regra tem servido a uma
perigosa misti�cação: a de que a verdadeira obra de arte é difícil de ser
compreendida. Essa mentira resultou — e continua a resultar — em
escritores que, para cumprir o dogma, especializam-se em erigir a
linguagem à condição de protagonista da obra. A obediência cega à
suposta lei gerou — e continua a gerar — obras sem enredo e sem
personagens, ou narrativas nas quais enredo, personagens, �uxo de
tempo, con�guração do espaço, etc. amontoam-se num verdadeiro
caos.
Dessa forma, parte da produção literária distanciou-se radicalmente
do receptor da mensagem — o leitor —, transformando-o em um ser
incapacitado para decodi�car o texto, condenando-o a ler sem
entender, ou ler defrontando-se com di�culdades sobre di�culdades. A
falsi�cação da teoria de Chklovski foi transformada em uma espécie
de tormento, nova técnica de tortura, cujo objetivo é impedir que o
leitor cumpra seu papel de co-autor.
Sem dúvida, quando a linguagem serve apenas à reinvenção de si
mesma, esquecendo-se do ato de narrar, a leitura — o exercício de
recriar a obra — torna-se impossível.
No afã de corresponder à mentira disseminada em nome de
Chklovski, inúmeros escritores se concentram em elaborar a
linguagem de tal modo que, ao término de seus esforços, são
compreendidos apenas por si próprios ou, quiçá, por um seleto grupo
de iluminados.
Obedecendo a um atavismo desolador, esses escritores repetem o
que Antonio Candido detectou inclusive nos primórdios da nossa
literatura: a situação arti�cial em que os próprios escritores são “ao
mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo
multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a
literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de
um ponto de apoio”.
Fechados em si mesmos, presos à falsa necessidade de criar uma
nova vanguarda a cada amanhecer, bajulando-se em suas seitas
particulares, tais escritores parecem buscar o que Gustave Flaubert
expressou certa vez: “O que me parece belo, o que eu gostaria de
fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se
sustentaria pela força interna de seu estilo, como a Terra, sem estar
sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou
pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.”
Inebriante devaneio, sem dúvida. Mas apenas devaneio.
Partindo do afã de di�cultar, a qualquer custo, a recepção da obra
literária, e passando por centenas de outras simpli�cações,
semelhantes à quimera �aubertiana e repetidas ad nauseam ,
chegamos ao que diagnostico como narratofobia — o pavor, a paúra
de narrar —, reforçada, em inúmeros casos, por evidente insegurança
no uso da linguagem. (É risível, aliás, o caradurismo de alguns
escritores, que justi�cam seu desconhecimento

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