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RODRIGO GURGEL CRÍTICA, LITERATURA E NARRATOFOBIA Prefácio de Flavio Morgenstern SUMÁRIO CAPA FOLHA DE ROSTO EPÍGRAFE PREFÁCIO: “Um crítico que é um crítico” — Flavio Morgenstern APRESENTAÇÃO I — O Crítico à procura de si mesmo Em busca do livro primordial Reminiscências do mundo onírico Dez livros que mudaram minha vida Re�exões no Império dos Filisteus Narratofobia — ou o pavor de narrar II — A Tradição Universal Narrador malicioso — Thomas Bernhard Zen e melancolia — Yasunari Kawabata Perfeição corrosiva — Saki Amizade entre luz e trevas — Tahar Ben Jelloun Perene inconstância — Hans Jacob Christoffel Von Grimmelshausen Submetido ao desespero — James Joyce Antes do silêncio — Carmen Laforet Tímido acerto de contas — Jean-Marie Gustave Le Clézio Onde está o bardo? — William Shakespeare O silêncio impossível — Antonio di Benedetto Heroísmo anônimo e perfeição — Arthur Miller Literatura e populismo — Kiran Desai A adúltera e a contradição — Gustave Flaubert O preço de ser um herói — Santiago Roncagliolo Muito além da morte — Claudio Magris A navalha do narrador — William Somerset Maugham Nossa herança comum — Liev Tolstói Efêmera felicidade — Mario Benedetti Sofrimento e dignidade — Joseph Roth Tarde demais — Henry James A vítima de pandora — Philip Roth Pela fresta da porta — Isaac Bashevis Singer À procura dos deuses — John Banville III — Entreato Chesterton O que falta ao nosso tempo A missão dos náufragos Redescobrir o romance IV — O toque do Shofar Pecados de Wilson Martins Álvaro Lins: O crítico para os dias de hoje Centelhas de verdade — Chamfort, Kraus, Lichtenberg, La Rochefoucauld O jugo da utopia — Lauro Machado Coelho Palavras inatingíveis — Stuart Kelly Como defender a democracia? — Alexis de Tocqueville Memória e Lágrimas — Daniel Mendelsohn Diálogos com a civilização — Philip Roth Grandiosa epopéia — Felipe Fernández-Armesto Miragens de Kafka — Calasso, Lemaire, Crumb e Günther Anders Trágica ingenuidade — Frederic Amory Crimes incomensuráveis — Ivo Patarra A Ética da liberdade contra o autoritarismo — Ralf Dahrendorf Pessimismo, contradições e apatia — Emil Cioran Ao encontro de Nelson Rodrigues Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho V — Pouca fortuna Atalhos de sonho — Julián Fuks Só para lacanianos — Wesley Peres Incoerências e cacofonia — Livia Garcia-Roza Boas e más escolhas — Roberto Drummond Açucarados chavões — Ana Miranda Narrativa feita de haicais — Adriana Lisboa Liberdade para contar uma boa história — Igor Gielow Um sabor a fel — Ivone C. Benedetti A pequena alegria de Fabrício Corsaletti Num pântano de escárnio — Eduardo Alves da Costa Torturante labirinto — José Luiz Passos Primos muito distantes Bordados sem risco — Autran Dourado Romance aliciador — Alberto Mussa A cópia monótona da realidade — André Sant’anna Seguro no ofício de narrar — Luis S. Krausz Romance e pan�etarismo — Oscar Nakasato e Ana Maria Machado O narrador doutrinário — Rodrigo Lacerda Apuro estilístico e perversidade — Otto Lara Resende No limiar da anti-�cção — Carola Saavedra Desesperança e poesia — José Luís Peixoto CRÉDITOS SOBRE O AUTOR Tenho lido ultimamente, em vários artigos de jornal, e até em livros, em autores diversos — uns, por sinal, não tendo nada a ver com a literatura —, a opinião de que a crítica não deve ser a�rmativa, mas displicente, não deve ser julgadora, mas apenas comentarista. Pensam assim, em geral, aqueles que não obtiveram da crítica mais do que censura ou silêncio; também se inclinam para este ponto de vista os que não puderam realizar a crítica integral. Opinião extravagante e absurda, porque nenhum verdadeiro crítico aceitaria o desempenho de um tão secundário papel como seja o de falar de livros e autores sem os julgar, sem se de�nir diante de uns e outros. Seria fazer do crítico um corneteiro da fama dos autores; um empregado para atirar �ores sobre cabeças mais ou menos gloriosas; um fabricante de elogios e adjetivos para engordar vaidades e orgulhos. Bem sei que se faz isso na vida literária; que existem os pro�ssionais do elogio e da frase feita; que há os que escrevem sobre livros somente com este �m sem grandeza. Mas não será possível tolerar que se queira oferecer como teoria da crítica, como destino da crítica, aquilo que é a sua descaracterização, a sua caricatura. Álvaro Lins, “O Ato de Julgar”, 13 de fevereiro de 1943 UM CRÍTICO QUE É UM CRÍTICO DIZER QUE RODRIGO GURGEL é hoje o maior crítico literário do Brasil carrega um deboche exagerado no dissabor: dos críticos literários atuais, talvez Rodrigo Gurgel seja o único que é, de fato, um crítico. No país do homem cordial, do relativismo e do coitadismo, alguém ter uma opinião pouco airosa sobre algo soa, à nossa intelectualidade, o equivalente a defender a Inquisição. Neste país, um caso, visto apenas nas últimas páginas deste livro, tornou Gurgel célebre: até a 53ª edição do Prêmio Jabuti, as notas, como nas escolas de samba, variavam só de 8 a 10, permitindo apenas encômios e adulação aos escritores. Já na 54ª, a nota foi de 0 a 10. Ainda assim, os jurados preferiram se manter na margem de elogios. Gurgel deu nota alta ao romance Nihonjin , de Oscar Nakasato, e notas bem baixas aos demais. Resultado: matematicamente, seu voto foi o único relevante, já que os outros jurados, quando davam notas baixas, ainda �cavam perto de 8. O romance logrou-se vencedor, Gurgel se tornou um polemista conhecido do público leitor e o Jabuti, claro, voltou a fechar-se na margem de erro elogiosa. Foi um caso arquetípico para as letras nacionais. Sob auspícios de um sentimentalismo infantil, toda crítica verdadeira é tratada como intolerância, e o trabalho do crítico literário é reduzido a macaquear bordões sobre os escritores que seus mestres consideravam dignos, sem possibilidade de se fugir a um círculo de cães farejando as próprias intimidades, cuidadosamente elaborado para sua auto- manutenção por gerações – e sem outro propósito senão a troca de glori�cações. Tal cenário torna-se ainda mais hórrido quando se lembra que tais intelectuais arrogam-se os maiores “questionadores” de tradições e tabus, nunca olhando para si próprios para perceber que são os mais irritadiços mantenedores de uma formalidade oca e de mera troca de afagos. Criticar um livro, neste cenatório – sobretudo um livro ou autor tido por inquestionável pelos vanguardistas empacados – exige coragem, num mundo de subserviência em que só se pode desgostar de um livro se for escrito por Paulo Coelho ou Adolf Hitler. Coragem quase física: a força dos escritos de Rodrigo Gurgel é tonitruante, demonstrando que a atividade intelectual exige um preparo da alma que parece transparecer no mundo físico. Se soa hiperbólico, experimente-se dizer em voz alta curtas frases deste livro a um professor de literatura, como “A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula”, comentar “os limites do autor” de O Guarani , ou admitir o tédio da última quebra de paradigmas destes escritores “presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a cada amanhecer” – se exemplos faltarem, que tal o apotegma “Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de Alencar”? Valeria uma cena de um romance: e mostra como é precisar tirar uma faixa preta e quebrar tijolos com as mãos antes de escrever um artigo de jornal. A literatura (a brasileira em especial) está querendo chocar e ser moderna com preceitos mais antigos do que nossa bisavó. A resposta que não quer do crítico é a que dá Rodrigo Gurgel: merecidos bocejos. Tido por exigente, é apenas o erudito que qualquer adolescente adoraria ter conhecido na escola. Por que, a�nal, a literatura precisaria ser tão chata, quando todos nós temos uma necessidade vital de boas histórias? Bem ao contrário do que sonha nossa vã Academia, na crítica que aqui é lida não há geniosidade irascível nem intolerância. Trata-se apenas de técnica. É a intelligentsia que possui uma técnica falha (abusando-se da hipérbole), não nosso Rodrigo Gurgel. Este está vacinadocontra a verborragia das torres de mar�m, formalmente divorciadas da realidade da nossa vidinha rés-do-chão. E sua técnica, embebida em Aristóteles ou Michitaro Tada, é a complexa e simples arte de esperar da literatura algo sobre a vida. Não apenas entretenimento, nem muito menos a estúrdia auto-referente do pedantismo vanguardista, de escritores que espatifam a sintaxe apenas para que seus cupinchas acadêmicos realoquem os caquinhos, com esgares de sabedoria arcana. O que se lê nas páginas que seguem são as re�exões de um leitor especializado, mas não é a dinamitação niilista de quem acordou de mau humor. É exatamente o elogio às grandes obras, através dos olhos de um erudito, que extrai dos livros mais do que nós, pobres mortais, podemos sonhar. E sua verve move-se contra o que chama de “narratofobia”, o mal daqueles que “escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos”. Parece que ninguém mais tem uma história interessante a narrar – civilizações foram criadas através de narrativas, mas o estado das artes prefere o umbigocentrismo e falar de si próprio. Gurgel esmiúça símbolos, temas e elementos literários como os estudiosos de mitos, buscando no sonho e verdade não-racional, que só cabe na poesia e na consciência elevada, seus paradigmas, como os símbolos analisados nos primeiros ensaios deste livro. Uma história, uma narrativa �ccional ou histórica, deve conter algo que inquiete nossa alma, que nos tire de nosso conforto. A grande literatura é o oposto da auto-ajuda e do vitimismo social, hoje a grande régua a medir o mundo pela Academia. É incômoda, trágica, satírica, muitas vezes melancólica. Não é para formar heroísmo de bordões e agitadores pan�etários. Este estado desolado, eliotiano, não se construiu por acaso. Os intelectuais, na Academia, no jornalismo, na massa falante – o palpitariado – se escoraram em teorias que pretendem espremer toda a realidade numa ótica simplista, justamente quando crêem fanaticamente que descobriram um novo método para atingir uma verdade universal por debaixo do que nós, viventes, conhecemos. Diz o nosso crítico: “Assim funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo – e a maioria só consegue papagueá-lo”. É comum na análise literária no Brasil a busca da correlação entre literatura e sociedade, tão dominante, por exemplo, na USP. Por mais importante que tal relação seja, ela não é a única a explicar a literatura: Gurgel mostra aqui a relação entre literatura e individualidade , sem deixar de lado a história, o país, a cultura, os acontecimentos sociais. Mas é no âmago da alma individual que a literatura tem seu poder de nos tocar, mesmo em romances sociais. Minguada à sociologia de botequim, a literatura, então mera coadjuvante, só consegue papaguear modinhas políticas sem nada de verdadeiro ou relevante, para se tornar mera ferramenta de agitação partidária. Não é sem razão que a literatura brasileira esteja hoje encolhida a falar sobre a ditadura militar, que terminou há mais tempo do que durou, do que dizendo qualquer coisa sobre viver no Brasil atual, com as oscilações que vemos na prática e nos jornais – que Gurgel garante não ler há anos, “exatamente para me proteger da idéia de que a realidade do país é irreversível”. Outra modinha que Gurgel demole, à luz dos melhores romances e críticos, é o estruturalismo, mais arraigado ao nosso fazer didático do que o pessimismo a Thomas Bernhard. Crendo estar atingindo uma estrutura de poder velada aos pobres mortais, maquiavelicamente plantada por alguma mente obscurantista, foi o principal cabresto mundial para que as letras apenas arranhassem a superfície e a forma do fruto literário, sem nunca lhe transpassar a casca. Tal técnica foi escorada ainda pela Escola de Frankfurt e a futura “teoria crítica”, gênese do moderno politicamente correto que deu ares de ciência arcana para o chilique e o coletivismo plani�cante, graças ao pedantismo e ao estilo rebuscadíssimo de seus autores – confundido com conhecimento rigoroso por alunos embasbacados, que nunca percebem que apenas estão falando difícil a mesma análise super�cial de quando eram adolescentes. Síndrome do “eterno vanguardismo”. Para completar esse caldo de revitalizações do marxismo, já brega até na União Soviética stalinista, que precisava ser disfarçado por uma linguagem mais chiquetosa, junta-se a psicanálise, do freudismo à lacanagem, com suas misti�cações de lingüística e semiótica, prontas a “analisar” e dizer aos nossos olhos que o beijo de uma criança em sua mãe não é inocência, mas – olhe bem para o que você não vê – o desejo de assassinar o pai para fazer sexo com a progenitora. Se a literatura hoje não tem mais verossimilhança, alguma verdade interna que permanece inalterada tanto num conto em que se ensina um gato a falar quanto no Henrique VIII de Shakespeare, tal se dá a tais tapeações humanitárias. Sem apelo em consultórios, a psicanálise migrou para o departamento de Letras, onde sua simpli�cação da realidade serve de explicação do todo do real – vide o grande ensaio deste livro sobre Le Clézio. Tempere essa análise “crítica” da realidade com a “desconstrução” de Jacques Derrida e a “dissolução” de Michel Foucault, e teremos a literatura e a crítica literária modernosas, tão prontas a nos ofender e melindrar com sua quebra de paradigmas e destruição de tabus, e tão e�cientes em nos curar a insônia, que preferimos ter a alma assombrada pelos fantasmas de Henry James ou da épica e das tragédias gregas. No Brasil, ainda temos também o revanchismo histórico, a vitimização da nossa miséria por culpa estranha a nós mesmos e a idealização da periferia. Diz Gurgel: “A grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra- se no centro do nosso coração”. E o que resta dos temas universais e eternos do existir humano, tranca�ados no porão literário nunca visitado pela crítica moderna? O amor, tema tão próximo do ser que não consegue ser destruído nem sob totalitarismos, é trans�gurado em mera frustração sexual, o grande tema da literatura “anti-tabu” (com sua antítese no sexo mecânico e promíscuo). A amizade, suas dúvidas e suas crises, é mera maquinação ou concordância temporária para �ns de poder. Como se “desconstrói” o amor, que fez até Derrida intuir os limites de sua brincadeira, ou como compreender os valores da cultura, do sentido da vida (aquele que Viktor Frankl resgatou até num campo de concentração), da família e do eterno sob a análise psicanalítica? Se esta literatura não consegue mais espelhar a realidade ou a verossimilhança do nosso existir, o que obras mitológicas com deuses e dragões conseguem à perfeição, ao menos conseguem tornar algumas pessoas (e, mais infelizmente ainda, alguns escritores) em um bando de histéricos estampando suas frustrações e falta de amores publicamente, como concretização non plus ultra de sua suposta libertação, inconscientes de sua miséria. Reduzidos os homens às suas funções primárias, com a alimentação tratada como propaganda para políticas distributivistas e a reprodução como insatisfação sexual que logo eclode na luta histérica revolucionária, não coube a tais literatos muito além de criar livros que recebam a última função primária. São os “universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras”. A alma dividida, tema romântico por excelência, é vista por Gurgel no Marrocos ou no sopé do Himalaia. O homem morti�cado entre o dever e o prazer, tema de Homero a Ortega y Gasset, entre a eternidade e as contingências do presente, é-nos mostrado tanto sob as luzes barrocas, eivadas de contradições, de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen e seu personagem desnudando-se da inocência e tomando parte em uma vida cheia de obrigações e vocações, quanto nos tortuosos sentimentosde Gustave Flaubert ao escrever sua icônica Madame Bovary . Escreve nosso crítico: “Sem o duelo permanente que ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos incautos como o melhor realismo”. É esta dúvida interior, este dilacerante processo de mentir para si próprio, este presente atormentado por terrorismo, insurreições políticas, dramas familiares e paixões fulminantes na paz, tão contrastantes com o amor quando visto no caos, que tanto interessa a Gurgel, e que tão pouco é visto numa literatura que se pretende marcante e séria. Ainda menos nos “temas comezinhos da literatura brasileira”. E tal combate interno é comum tanto aos clássicos os mais antigos, dos primórdios de nossa e de outras civilizações, quanto aos românticos, aos renascentistas, aos modernos. Nas duas obras que inauguram a civilização ocidental, a Bíblia pelo lado judaico, o conjunto da Ilíada e da Odisséia pelo outro, já �sgamos personagens atormentados pela incumbência de feitos aparentemente muito maiores do que suas capacidades, caminhos tortuosos e torturantes, cheios de armadilhas e cobrando-lhes o risco vital de se apartarem da existência. É o que Lionel Trilling chama de “imaginação moral”, duas palavras que, juntas, explicam como termos superavit literário. Aprendemos com Erich Auerbach que no relato do Antigo Testamento, por exemplo, tudo é feito em poucas palavras (até os nomes são simples), nada é narrado, apenas sabemos que Deus pede um sacrifício e, dali a dias, Abraão sobe a montanha com seu �lho, mantendo-nos em silêncio tão brumoso e tenebroso, análogo àquele experimentado por Abraão, sabendo que tem uma escolha entre sacri�car seu �lho querido ou desagradar ao Deus Todo-Poderoso, no último resquício de uma sociedade que imita o ritmo cíclico da vida através de sua visão cósmica de sacrifício. É enfrentando tal provação em silêncio – silêncio “narrado” pela própria violência cortante da frieza da ausência narrativa – que Abraão sela a aliança de Israel com Deus, inaugurando o “salto no ser”, no dizer de Eric Voegelin, que cria a primeira sociedade que vai buscar a verdade justamente no silêncio da alma individual, na verdade transcendente, e não no ciclo de repetições do mundo circundante, na primazia da transcendência sobre o presente de mortes e vida – presente este que é sintoma e causa de uma literatura tão doente e fraca para tanto aquietar quanto provocar nossa alma. A tortura de Abraão até o monte, depois de amarrar Isaac e estar prestes a cometer o sacrifício, é revivida pelo leitor, que se apieda e se integra no todo daquela sociedade e de todo o drama interno humano – não penas um caso arquetípico de literatura de identi�cação e participação, mas também anagógico, nos termos de Northrop Frye, quando todo o cosmo é reaprendido e vislumbrado por uma literatura profética e participativa. Já na Ilíada de Homero, a dúvida de Aquiles é entre ele próprio morrer jovem, mas com glória (numa sociedade em que isto representa muito mais do que aplausos acadêmicos) ou velho, mas apartado de seu povo por não tomar parte na Guerra de Tróia. Aqui, tudo é narrado, tudo é detalhado, tudo é esmiuçado – o que reduz a participação da alma do leitor na perturbação do personagem, mas não sem que entendamos como a literatura é crise, em sentido grego: cisão, divisão, a dura conquista �nal que exige antes tantas escolhas, cada uma vindicando uma perda. Já na literatura moderna, a boa literatura, se começa a trabalhar temas cada vez mais perturbadores e sutis, como �uxos de consciência (leia-se Gurgel ao analisar Joyce), a de�nição da individualidade, a participação no passado coletivo, a insatisfação globalizada com o sentimento de pertencimento a uma cultura opressora e que nada nos diz, mas sem que consigamos pertencer a outra – todos temas analisados de forma emocionante por nosso crítico nestas páginas. Quantos personagens emocionantes realmente conhecemos? Tomando mais um pouco tal lição, podemos acompanhar o trabalho genial de Rodrigo Gurgel, apresentando-nos as grandes questões que passam despercebidas por uma leitura pouco diligenciada, tanto nos processos rituais da vida, aqueles cíclicos e que se repetem em cada história individual ou comunitária, imitando os ritmos da natureza (seja no Peru sob a ditadura de Fujimori ou naquele Israel sempre profético da humanidade), e também os dialéticos, palavra tão escangalhada pela Academia, quando vemos homens cujos sonhos estão em con�ito com a realidade, o que aproxima tantos personagens da poesia – e do diálogo interior que quase nunca podemos expressar. É essa tomada de posição, de responsabilidade e de saber seu lugar no mundo, e o que se pode comunicar pela �cção ao outro, que Gurgel nos apresenta, deixando- nos com água na boca para desfrutar tantas grandes obras, e preparados para entender o que está em jogo quando se terça armas sobre cartas de escritores, traduções e visões críticas – não sobrando mera bajulação, é claro, nem mesmo para os maiores nomes de seus ramos. Tal falta de tomada de responsabilidade é comum tanto à literatura ruim quanto à crítica ruim, ambas com síndrome de puer aeternus e deixando seu simbolismo, seu sentimentalismo e seus valores na cultura, na mentalidade geral, no imaginário coletivo e nos acontecimentos históricos recentes. No entanto, acompanhados de nosso crítico, sentimo-nos mais familiarizados com os livros realmente apaixonantes, mesmo em suas minudências mais sutis ou nas complexidades mais cabeludas. Em poucas páginas, sabemos que os únicos a temer um crítico que é crítico são os maus escritores, maus professores ou os maus críticos. Todos mendigando aplausos, cobrando tanto de nosso precioso tempo, e oferecendo apenas as platitudes das explicações fáceis. É É responsabilidade a mais exigente e grati�cante cuidar de apresentar este grande intelectual a um público tão importante quanto os leitores de �cção – e também tarefa pavimentada de hesitações, medos e aventuras perigosas, por não se querer tomar as rédeas do leitor e conduzi-lo por impressões outras, desejando por �m ser esquecido para que o leitor saboreie as palavras do verdadeiro autor. É buscando uma integração no todo – zen , como nos ensina Rodrigo Gurgel a ler Yasunari Kawabata –, longe de estruturalismos e outras frescuras acadêmicas, que deixo a faina de reintegrar tais impressões no objeto e no sujeito ao poder poético e de difícil assimilação por esquematismos racionais à própria leitura literária – pois alguém da grandeza de Rodrigo Gurgel, ao fazer crítica literária, também faz literatura a mais brilhante. Flavio Morgenstern APRESENTAÇÃO Reúno neste volume textos publicados na última década. A maior parte, no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo . Outros, nas revistas Sibila e Dicta & Contradicta , em meu próprio site ou como entrevistas e prefácios. Ao preparar este livro, tentei criar um conjunto homogêneo, que expressasse minha visão da literatura e do papel da crítica literária. Só não foi possível ampliar, como gostaria, os textos escritos para a Folha — mas a essência dos julgamentos respira neles com igual força, com igual sinceridade. Agosto de 2015 I — O crítico à procura de si mesmo EM BUSCA DO LIVRO PRIMORDIAL RECORDAR NOSSO PASSADO não pode ser um exercício de idealização. O diálogo com o “eu” que nos observa e, ao mesmo tempo, envolto pela neblina do tempo, nos dá as costas e caminha de volta à infância, precisa estar impregnado daquela tensão que ressurge sempre que nos debruçamos sobre o poço da verdade. É o homem de carne e osso que busco quando olho sobre meus ombros na direção da juventude, da infância. Mas não se trata de revisitar um horizonte ensolarado. Trata-se, ao contrário, de repetir as caminhadas de Miguel de Unamuno pelo claustro do Monastério de Santo Estevão, em Salamanca, debruçar-se sobre o poço, no Pátio das Cisternas, e gritar “Eu… eu… eu!”, para que o eco do passado, ao repetir o pronome, rea�rme minha existência. Um de meus sonhos recorrentes está impregnadodesse “eu” sempre à minha espera, em algum ponto do emaranhado de reminiscências. No sonho, estou na entrada do porão da casa de minha bisavó paterna. A cena começa exatamente ali, repetindo os gestos que cansei de fazer durante a infância: retiro a chave pendurada no batente, num prego, coloco-a na fechadura e, com um único giro, a porta se abre. Sinto, imediatamente, o cheiro adocicado de BHC, um odor úmido, e o ar pegajoso que vem do ambiente escuro. O segundo movimento é localizar, na parede à esquerda, entre a estante e o batente, o interruptor. A seguir, entrar. A lâmpada, fraca, mal ilumina as porcelanas e os vidros nas prateleiras, além dos caixotes empilhados e recobertos de pó. No entanto, o que procuro não está ali, mas no cômodo ao lado, que permanece escuro. Não sinto calor ou frio, apenas uma expectativa controlável, pois estou certo de que ele se esconde no quarto vizinho, sob a escuridão. Então penetro naquele lugar ainda mais úmido, e é difícil descobrir o interruptor, que não passa de uma delicada corrente presa à lâmpada, no centro do cômodo. A mão cega apalpa a escuridão. Por um segundo, a ansiedade transforma-se numa espécie de medo, talvez o receio de que minha busca — e o encontro certo — não se concretizem, somente pelo fato de eu não conseguir acender a luz. Mas encontro a correntinha e puxo-a — e imediatamente vejo os caixotes de livros no chão. Sei o que venho buscar: o livro superior a todos os livros, um manual completo sobre a existência e, ao mesmo tempo, o guia para a difícil, emaranhada tarefa de viver. Tenho certeza de que está ali, aguardando-me. Não uma obra mágica, mas apenas o conjunto de páginas recoberto por duas capas envelhecidas, no qual se esconde a síntese da experiência humana. Vasculho os caixotes lentamente, retirando os livros, um a um. Não sei o título da obra e, muito menos, seu autor. Estou certo, apenas, de que está ali. O tempo da busca dura a eternidade do sonho. Não há pressa. Sinto-me seguro naquele porão, repetindo os gestos que �z centenas de vezes. Sei que os adultos estão na parte de cima da casa, principalmente minha bisavó, vestida no seu luto perpétuo, desde a morte prematura de seu �lho, meu tio-avô, mas sem nunca se abandonar à tristeza, com seu porte altivo, a redinha prendendo os cabelos, os olhinhos atentos — e a língua ferina quando fala dos políticos. Assim, trata-se apenas de não desistir. Encontrarei o livro- chave, o livro-totalidade, graças a essa busca estranha, durante a qual experimento, antecipadamente, o prazer de achar o que procuro, tamanha é minha certeza. E então, do fundo de um caixote de madeira, sob a pilha de livros inúteis, retiro aquele que me revelará o segredo de viver. Nem pesado nem leve, segurá-lo guarda o mesmo prazer que sinto ao encontrar, em um sebo, a obra há vários anos desejada. O papel marmorizado da capa é repleto de pequenos e irregulares círculos cor de vinho, dispostos aleatoriamente sobre o fundo amarronzado. O cheiro de BHC torna-se ainda mais intenso quando aproximo o volume dos olhos. Estou pronto a abri-lo, toco a ponta da capa com os dedos e começo o gesto de erguê-la — mas acordo. Despertar, ver-me em meu quarto, ser arrojado para fora do sonho, sem dúvida é frustrante. Mas não há qualquer angústia. Nesse primeiro momento da vigília — ainda atônito por ter percorrido novamente as etapas conhecidas do sonho e, mais uma vez, acordado antes de abrir o volume —, tenho certeza de que outra oportunidade surgirá, de que, de alguma maneira, aquele menino permanece preso à sua vida onírica, pronto a repetir os mesmos gestos e encontrar outra vez o livro. O sonho é impressionante por vários motivos, mas deixo aos psicanalistas a tarefa de compor, mais que a análise, suas �cções. O que me interessa é reencontrar esse objeto que se tornou uma das poucas constâncias em minha vida. Há, claro, um conjunto de fatos, de circunstâncias que formam uma personalidade, mas, no meu caso, os livros têm papel primordial. Às camadas do meu ser correspondem livros. Nasci e fui educado entre três bibliotecas: a de meu pai, composta, basicamente, de obras de �loso�a e da área jurídica, mas onde descobri as sisudas capas negras do Tesouro da Juventude — com a velha ortogra�a, em que eu podia saborear a beleza excêntrica de palavras como ophthalmologia , columna e aucthor — e o Lello Universal ; a de minha avó, pequeníssima, mas com livros indispensáveis, como As mil e uma noites e Madame Bovary ; e a do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa. Cada uma me ofereceu o que tinha de melhor, mas a do Gabinete fez o principal, pois a bibliotecária da noite, Dona Odete, deixava que eu transpusesse o balcão de madeira escura e, penetrando no acervo, percorresse as estantes livremente. Ali, então, descobri o mundo. Mas o que forma um leitor é, antes de tudo, o exemplo de outros leitores. E não se trata apenas da imagem de meu pai sentado à velha escrivaninha, que antes pertencera a meu avô, compulsando suas coleções de jurisprudência. Antes, vejo-o de pijama, aos domingos, lendo religiosamente os jornais e obrigando-me a ler editoriais e artigos que considerava interessantes ou bem escritos, cuja argumentação o impressionava. O tempo que passei na universidade também não foi de todo perdido, principalmente porque, na PUC de São Paulo, tive duas professoras brilhantes: Samira Chalhub, de Teoria Literária, e Anna Maria Marques Cintra, de Língua Portuguesa. Mas foram Ivanira Dadalt e Paulo Vieira, no colégio, que me mostraram a literatura e a língua sob perspectivas que, comparadas à dos livros didáticos atuais, fazem-me pensar que cumpri, antes de tudo, o mestrado. Ivanira, delicada como uma gueixa, apresentava cada movimento literário inserido num contexto cultural e político maior. Músicas, pinturas, revoluções: tudo interpenetrava a literatura. E quando, certa manhã, no corredor repleto de algazarra, com O Guarani nas mãos, des�ei um rosário de reclamações sobre o livro, ela, com sua eterna paciência, con�rmou-me os limites do autor, sem deixar de insistir para que eu chegasse ao �m do volume. “É preciso conhecer tudo”, disse-me. Com Paulo Vieira não foi diferente. Que professor atual recomendaria a seus alunos que lessem Thomas Merton? Paulo o fez — e, passados quarenta anos, minha gratidão só cresce. Ao corrigir uma de minhas redações, deu-me um 9. Não havia nenhum erro, mas uma frase estava marcada em vermelho e, ao lado, a observação: “Fale comigo depois da aula”. Procurei-o e ele me explicou que eu usara um espanholismo, que aquela construção não pertencia à língua portuguesa, deu-me exemplos, mostrou-me como seria o correto em português. Um purista, dirão os modernosos. Um sábio, a�rmo. Mais tarde, pude conviver com Nelson Foot, professor autodidata, respeitável lingüista que, aposentado, passava as tardes brincando com poesias em sua biblioteca: escolhia um poema de Cecília Meireles e traduzia-o para o romeno, depois para o latim, a seguir o francês, �nalmente o inglês. Gosto de imaginá-lo brincando com os textos como se fossem animais de estimação. Havia um rasgo de orgulho e independência no adolescente de quinze anos que pegava o Cometa e, semanalmente, vinha de Jundiaí para percorrer sebos e livrarias do Centro de São Paulo, tornava-se amigo dos livreiros e voltava, muitas vezes, carregado de antigos volumes, díspares como uma biogra�a de Savonarola, um dicionário de locais históricos da Grécia e uma primeira edição de Murilo Mendes ou Guilherme de Almeida. Mas há outro sonho envolvendo o porão da casa de minha bisavó. Desta vez, os livros não estão presentes. E não há recorrência. Sonhei esta pequena história uma só vez, em setembro de 2007. O céu da manhã está encoberto. A primeira percepção é de que não há sol. Vejo-me, ainda criança, no quintal da casa de minha bisavó, à procura de algo. Ela, no seu imutável vestido negro, altiva, pronta a educar-me nas mínimas oportunidades, me observa, de pé no alto da escada que leva à cozinha. A cena tem tantos detalhes — o tanque em desuso à direita;o canteiro circular no centro, com as roseiras; o corredor lateral que leva à entrada —, tantas recordações miúdas, observadas enquanto vejo a criança brincar, que imediatamente penso se não seria esse o melhor início para um livro de memórias. Há um único gesto surpreendente, no �nal: arranco, de sob a soleira da porta do porão, um ramo seco, semelhante a uma forquilha. Experimento júbilo incontrolável, pois se trata de um tesouro, sem dúvida, cujos poderes não posso conceber. Ergo o galho de pontas retas, compridas e pálidas, balanço a descoberta no ar, pleno de satisfação — e minha bisavó sorri, não de qualquer jeito, mas tenho certeza que pensa: “Ele encontrou, �nalmente. Agora tudo está bem”. O galho bifurcado é apenas o substituto do livro. Formas diversas para a mesma fascinação. Se o tempo me fez mais seletivo, se a ânsia adolescente de ter todos os livros foi substituída por uma serenidade que diminuiu o número de compras mas não tornou possível ler tudo o que desejo, isso não muda o anseio das visões oníricas, de que, algum dia, aquele menino que penetra no porão me permita ler ao menos o título, talvez a primeira linha do livro que sintetiza a vida. REMINISCÊNCIAS DO MUNDO ONÍRICO Para onde nos levam os sonhos? Ao caminharmos, indefesos, nessas trilhas de símbolos, seguimos para que estranho, desconhecido país? O mundo onírico é mais do que a tela na qual se projetam desejos que anseiam por se realizar. Cada sonho guarda um convite ao autoconhecimento; cada viagem empreendida ao subterrâneo da mente esconde um sinal que, às vezes repetitivo, insiste no sentido de desvendarmos nosso eu. Assim, quando acordo e percebo que a memória preserva o itinerário da viagem noturna, acalento essas lembranças — às vezes fragmentadas — como se formassem o mapa de uma aventura que clama por ser reconstituída; tarefa que, realizada pela mente em vigília, pode oferecer o tesouro — quem sabe inominável segredo — escondido em algum ponto de chegada. Procuro, então, revisitar durante o dia — e, muitas vezes, esforçando-me por continuar a fazê- lo nos dias seguintes, quando pressinto que a lembrança do sonho já se esvai — as mesmas etapas noturnas, como o menino que, encontrando no caminho à sua frente as pegadas de um adulto, tentasse colocar seus pés, passo a passo, nas marcas deixadas na terra, que ele só consegue alcançar com grande esforço. Noites atrás, depois de longa conversa com minha mulher sobre o processo de criação de alguns textos, enveredei mais uma vez, durante o sono, para meu labirinto pessoal. Deparei-me comigo, ainda criança: um menino de nove ou dez anos. Freqüentava uma escola dirigida por religiosas e, naquela manhã, chegando com outras crianças para a aula, percebi que o centro da escada de metal, por onde subíamos para entrar nas classes, fora retirado. Alcançando determinado degrau, eu tentava pular o vão que me levaria à parte superior da escada, mas meus esforços eram inúteis. Desci, então, resolvido a buscar um atalho, pois a aula começaria em poucos minutos. Nesse momento, uma freira se aproximou de mim e, demonstrando conhecer minha di�culdade, instruiu-me sobre o caminho alternativo. Mais trabalhoso, disse-me ela, com o sorriso que revelava a promessa de uma opção prazerosa. Eu deveria sair do prédio, orientou-me a irmã, circundá-lo, encontrar a fonte existente em algum ponto do terreno, mergulhar nela, atravessar a nado um trecho submerso e voltar à tona mais à frente, quando encontraria a entrada para a classe. Aceitei as orientações e, mesmo notando a existência de outra escada, esta semelhante à do sobrado em que passei minha infância, decidi seguir em frente. Cruzo o longo gramado que ladeia o prédio e encontro-me diante de uma fonte circular, na qual mergulho sem hesitação. Lá, sob a água cristalina e iluminada, em um espaço surpreendentemente amplo, deparei-me com o cenário deslumbrante: no centro havia uma coluna formada por outra qualidade de água, ainda mais transparente e mais luminosa do que aquela onde me encontrava; e por essa coluna subiam, rumo à superfície, exemplares — animados e inanimados — de tudo o que compõe a realidade. Esse conjunto imensurável vinha de uma região subterrânea, e cada exemplar demorava-se alguns segundos à minha frente, para depois continuar sua rota ascendente. Alegremente atônito, deixei-me �car ali, esquecido das aulas, maravilhado com o espetáculo. E foi com inigualável sentimento de completude que acordei. Ainda sentado na cama, meus pensamentos dividiam-se entre buscar uma explicação para o sonho e, ao mesmo tempo, rememorá- lo sem perder os detalhes. Finalmente, poucos minutos depois, antes de iniciar os afazeres do dia, enquanto ainda concatenava minhas idéias, não sei quais associações �zeram-me lembrar do poema de Eugenio Montale: Talvez uma manhã andando num ar de vidro, voltando-me, verei cumprir-se o milagre: o nada às minhas costas, detrás de mim o vazio, como um terror de bêbedo. Depois como numa tela, acamparão de um jato árvores casas colinas para a ilusão costumeira. Mas será tarde já; e eu partirei calado entre os homens que não se voltam, com o meu segredo. Com o livro de Montale aberto, meu primeiro pensamento dava-me a certeza de que a verdade não estava nas aulas que assistiria, se tivesse conseguido saltar de um trecho a outro da escada. A verdade jamais esteve no ambiente repressivo da classe de aula, com suas �las de carteiras paralelas e professores, a maioria deles incapaz de me mostrar o que subsistia para além da lição diária. A quase alegria com que percebi a ausência dos degraus e o sentimento de inevitável necessidade de buscar outro caminho de�agraram a certeza de que eu não voltaria ali, de que uma experiência singular me aguardava. É certo: a verdade, sempre a encontrei em outro lugar, oposto àquele apontado pela escola. Foi fácil, portanto, recusar inclusive a segunda escada. Sua semelhança com a que existira na casa onde passei minha infância deixou-me descon�ado. E a repentina solução para um problema que, há poucos segundos, apresentava-se insuperável, contribuiu para que me afastasse dali, desprezando o atalho, movido pelo desejo de conhecer o ignorado. Certamente não era à toa que as vestes da religiosa — notei bem enquanto ela me falava — refulgiam num branco tão ofuscante quanto o que encontrei difuso na atmosfera do pátio gramado, e que depois se repetiria sob a água. Como se eu vivesse a manhã envolta no “ar de vidro” de Montale, empenhei-me naquela jornada, sob uma luz insólita e, em breve, com um novo olhar. A intensa claridade abarca, de fato, esse sonho, tornando-o um rito de passagem no qual o cenário se impregna do branco como nos rituais de batismo. Todas as cores estão reunidas sob a alvura, a tonalidade que marca o amanhecer, quando a aurora reveste os seres, a vida, dessa coloração que nos prepara a um novo começo, desperta- nos da letargia noturna e nos estimula ao enfrentamento da existência. O branco está associado ao reinício, ao recomeço, ao renascimento que se segue à noite, à morte. Eu abandonava a penumbra fria do prédio escolar para ser impregnado pela luz, envolvido por uma claridade que chegava a ofuscar minha vista; mergulhava na fonte, onde a luz fundia-se à água, esta também um símbolo de regeneração. E o fazia não em qualquer lugar, não em um lago estagnado ou num mar tormentoso, mas sob as águas de uma imponente fonte circular; ela também, recordo-me, toda branca, agitando a água de forma inesgotável. Ali, de volta ao começo, de volta ao elemento no qual tudo teve origem, vislumbrei o centro por onde passam as coisas e de onde elas convergem à vida. No centro do líquido translúcido conheci os elementos da realidade em sua forma original, primeva, quando ainda não estão nomeados, quando ainda não foram classi�cados e diminuídos pelo homem. Mas, imerso na transparência, equilibrando-me sob a pressão da água, não apenas os elementos da vida mostravam-se novos. Eu também havia retornado à infância, quando tudo está por ser descoberto.E sentia-me — espectador e personagem do meu sonho — como se pudesse, a partir daquele momento, reiniciar minha trajetória e buscar o que, por acaso, houvesse perdido. Meu sonho foi, logo, diferente do vivenciado por Montale, pois se o poeta vislumbrou o terror que se esconderia sob o que parece ser o real — para ele, o vazio, o nada —, eu me aproximei do reinício de tudo e percebi o oposto: a urgência de captar a verdadeira face da realidade. Terminado o sonho, pressenti também ser tarde para retornar à mesmice da carteira escolar e das receitas oferecidas pelos homens que jamais “se voltam”. Talvez exatamente por essa razão tenha relembrado, ao acordar, o poema de Montale: porque, assim como ele, a partir daquele sonho — e em todas as manhãs, esforçando-me para repetir o ritual onírico de maneira consciente — eu devesse calar-me “entre os homens que não se voltam”, entre os homens que não sabem olhar, e carregar comigo “o meu segredo”. A mensagem, certamente há muito dentro de mim, mas galvanizada pelo sonho, repete-me a necessidade de transpassar o real banalizado, esforçando-me por redescobrir a verdade das coisas. O sonho me diz que meu olhar deve despir a realidade da camada de fantasia que lhe pespegamos diariamente; que devo reiniciar meu exercício de observação a cada momento, a �m de reencontrar, sob a mesmice do cotidiano, o caráter inusitado do real. Esta é a revelação do mundo onírico: devo obrigar-me a enxergar a realidade a partir do seu centro, de onde ela desborda para o que é habitual — resgatar a verdade preservada em cada elemento, seja ela trágica ou pueril, inocente ou terrível. De todos os enigmas que a noite e o sono semeiam, de todos os sonhos que carrego comigo — um patrimônio que cabe à lucidez decifrar —, dessas imagens noturnas que sobrevivem durante a vigília, esta que acabo de descrever insu�a em minha consciência também uma pergunta: o que será daquela criança, embevecida frente à coluna de luz e água por onde passa o universo? Ela não deveria retornar ao pátio gramado, ao convívio dos homens, e ali, dona agora dessa nova forma de olhar, dessa visão que lhe parece inaudita, transmitir os frutos da sua descoberta? Ou, como Montale, resta-lhe apenas viver solitária entre os homens, carregando seu segredo? Tal possibilidade, contudo, assemelha-se à segunda escada que surge em meu sonho, pois oferece uma facilidade ilusória. Se a conclusão de Montale à sua angústia é o poema — e não o silêncio —, então ele desejou oferecer aos homens uma tocha capaz de iluminar o desconhecido e diminuir a incerteza que, a cada esquina, nos aguarda. Da mesma forma, estas linhas são uma pergunta e, também, sua própria resposta. Por meio delas retorno ao pátio ensolarado e busco meus semelhantes, disposto não a lhes denunciar, com pessimismo, a “ilusão costumeira” de Montale, mas pronto a redescobrir o real. E, principalmente, esforçar-me por revelá-lo com o vigor esquecido pela maioria. DEZ LIVROS QUE MUDARAM MINHA VIDA 1. De Euclides da Cunha, Os Sertões foi o primeiro livro que estudei com olhar de leitor malicioso — não no sentido de “má índole”, o mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”, “sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de português no velho Instituto de Educação, em Jundiaí. Quando comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível — o livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao meu lado. Foi, aos dezessete anos, o primeiro lampejo de que as melhores obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê no seu contato super�cial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir a musicalidade que a linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro estava além dos meus conhecimentos — tudo me impulsionava a ir adiante, a perseverar. 2. Descobri John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de aula na universidade. E a primeira aula do primeiro dia. Meu professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio, tirou o maço de Continental sem �ltro do bolso rasgado da camisa, acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e, olhando para o vazio, agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina, começou: A thing of beauty is a joy for ever… Quando terminou, o feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me vincular à terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que pudessem existir no meu espírito. Desde aquele dia, não passa um semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro poema de Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por Homero: era como se eu tivesse descoberto um novo planeta. 3. Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para Drummond. Em algum momento daquele primeiro semestre, interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio, e começou a declamar “Campo de �ores”. Comprei Claro enigma depois da aula. E descobri “Tarde de maio”, “Remissão” — nada resta do que escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o �m sem a injustiça dos prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”. 4. O início de A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte”. Eu não sabia que a visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe do que qualquer outro romance. Com Hermann Broch descobri que a �cção não precisava estar presa aos temas comezinhos da literatura brasileira, às historinhas pér�das, a permanentes universos mesquinhos, restritos à pelada no �m de semana, à libido insatisfeita, aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras. 5 e 6. Lorde Jim e A fera na selva con�rmaram Broch. A grande literatura está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes esfaimados sem nenhuma dúvida interior. Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa consciência, a banalidade se instala na �cção — e é vendida aos incautos como o melhor realismo. 7. Em algum momento da década de 1970 comprei Raízes da Criação Literária , de Edmund Wilson. Foi meu primeiro contato com uma crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao contrário, a erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram colocadas de forma clara — e o autor realmente dialogava com os livros. Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me, percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo e a semiótica. Wilson foi o �ltro que impediu minha contaminação completa. Na faculdade, forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland Barthes, eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada. 8. A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em A orgia perpétua , con�rmou o que eu intuíra ao ler Edmund Wilson: na análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase cientí�co, mas sem matar a obra, sem transformá-la num esquema, numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a linguagem, sem desvincular a obra da realidade. Vargas Llosa ensinou-me ainda mais: mostrou-me que o hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era um engodo. E por um simples motivo: o bom escritor carrega a ira de Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira, muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o vírus negativo que é o segredo da sua acessibilidade: para que um romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”. 9 e 10. Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de Carvalho me vacinou contra o marxismo e a intelectualidade materialista, hedonista e cética que ponti�ca na mídia e na universidade brasileiras. Depois de ler O imbecil coletivo ainda militei anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo permanecia — desculpem-me o chavão — uma ilha de lucidez. Fazia com Olavo deCarvalho o que o diretor do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da ditadura militar: guardava-o num armário bem fechado, em algum ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus próprios pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho seguirem destituídos de sentido. Ao mesmo tempo, percebia a tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos “companheiros” e sua prática cínica, aética. O imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a Isaiah Berlin — e então livrei-me do coscorão esquerdista. Olavo e Berlin foram meus guias no processo de rompimento de�nitivo não apenas com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver. Ambos são intelectuais completos. Minha leitura de Berlin começou por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em Pensadores russos , aula de crítica literária e cultural. Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que sempre estiveram à mão, obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é que justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda. Aliás, a esquerda tem se notabilizado na história exatamente por, chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais. Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se resume a desacreditar do marxismo. Seria muito pouco para dois pensadores excepcionais. Eles me fazem re�etir, como os outros livros que mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição humana — e cada página deles acrescenta algo à minha Weltanschauung . REFLEXÕES NO IMPÉRIO DOS FILISTEUS Respeito ao leitor Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece. Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certas políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros. Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer chegar ao ponto �nal do texto sem saber o que, exatamente, o articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a respeitar o leitor. Forma de hipocrisia Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo , Karl Erik Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa a�nidade e essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas palavras, �quei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, �cam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia. Papel da crítica Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização. Um subterfúgio verbal Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra “dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os críticos di�cultariam a renovação e a inovação na literatura. Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal, pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo “critérios estabelecidos”. A questão, na verdade, é outra. Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham no sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária, seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças, para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade, evitando adulações e idéias preconcebidas. E ambos devem agir, principalmente, com independência. Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica, certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e escritores cumprirem suas funções. “Verniz onírico” A crítica precisa reencontrar o caminho que possa salvá-la do discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão monista da obra literária e da própria realidade. É inacreditável que grande parte da crítica e da produção acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando publica Critique de la critique . Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o Todorov de Poétique de la prose , que foi publicado em 1971… Assim funciona parcela signi�cativa da academia: estabelece-se um modelo — e a maioria só consegue papagueá-lo. À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como bem de�niu Thomas Pavel em A miragem lingüística , infelizmente pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas sua lição, no delicioso A literatura em perigo , é atualíssima: “Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”. Dupla desorientação O problema, entretanto, começa muito antes da universidade. Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã , de Graça Aranha, ou Bom Crioulo , de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um disparate. Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura. Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens lêem péssimos autores antigos como se fossem gênios —e péssimos autores contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura. Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que um jovem de quinze ou dezesseis anos não lê, por exemplo, Homero na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro; além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como José de Alencar... Mas é a escola que temos: claudicante como todas as instituições do país. Império de filisteus No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da idéia de que a realidade do país é irreversível. Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset completou seu trabalho de contaminação nas últimas décadas. A pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para �car. O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos �listeus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio �listeísmo”. Por isso mesmo não podemos �car em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio. Uma só resposta Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que, demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e, prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu próprio eu — e só então expressa suas idéias, seus sentimentos. É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser não só uma re�exão, mas de apontar caminhos, soluções, regras, quando não verdades. Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para as �ores das margens, numera as linhas — e fecha a página do caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O esquematismo refulge a cada linha. Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica literária. Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem branca, apressados e super�ciais. Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”. De quem o medíocre gosta? O relativismo, que hoje impera em todos nichos da cultura, chama de intolerante a quem possui certezas. Os fracos, temendo serem julgados, agem como preconizou Ernest Hello: acrescentam a cada frase uma perífrase açucarada: ‘parece que’, ‘ousaria dizer que’, ‘se é permitido expressar-se assim’. Hello, hoje desgraçadamente esquecido, está certo: “Ao medíocre agradam-lhe os escritores que não dizem nem sim nem não sobre nenhum tema, que nada a�rmam e que tratam com respeito todas as opiniões contraditórias. Toda a�rmação lhe parece insolente, pois exclui a proposição contrária. Mas se alguém é um pouco amigo e um pouco inimigo de todas as coisas, o medíocre o considerará sábio e reservado, admirará sua delicadeza de pensamento e elogiará o talento das transições e dos matizes”. Competição de coxos Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis. À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos — o que apenas o tempo poderá dizer —, quando, depois de ler certa obra, vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja movido por uma pulsão sádica. E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada, protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer ou não fazer inimigos. Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, �cam satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a literatura, a vida intelectual. De minha parte, se considero um livro ruim, a�rmo claramente o que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de coxos, o primeiro que chega ao �nal continua sendo coxo, apesar de tudo”. Os dançarinos Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os incapazes, a �m de deixar mais espaço no salão para os bons dançarinos. Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para poucos dançarinos. Quem faz crítica literária aqui deveria trocar idéias, de maneira didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim. O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”. Polidez O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale. É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer. Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser uma estrutura coerente? Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o interlocutor, deixar a conversa �uir sem a prévia preocupação de provar este ou aquele ponto de vista. Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos já falaram. Então, por polidez, escuto até o �m seus argumentos. Mas o autor, ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas idéias e da forma como as expôs, já julgou a si próprio. O chavão da vanguarda O �ccionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de narratofobia . Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve abandonar o clichê, o lugar-comum. Quando digo clichê, não me re�ro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês vanguardistas. Um jovem de vinte anos que escreve algo parecido com “beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições de igualdadecom a melhor vanguarda. E há críticos e professores que dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar- comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na forma e no conteúdo, tremendo chavão. Patologias Mas há outros problemas na nossa �cção. Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática (muitos escritores, inclusive, justi�cam seu desconhecimento e sua negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as patologias atuais. Crítica e patrulhamento Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao a�rmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘— O racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis �lhos que escutam reggae e rock and roll o dia inteiro [...]”. O ensaísta terminava a a�rmação salientando o fato de que, caso tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com certeza, grande parte do valor. Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda �cariam felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo, se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para imigrantes desempregados. A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia. David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio “Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, a�rmou, sem receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”. O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia �el do real, é, no mínimo, insípida. Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta tais maneirismos. Buscando um “meio-termo justo entre os excessos de requinte e de simplicidade”, ele a�rma, no entanto, “ser difícil, senão impossível, explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais ‘perigoso’”. Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual. Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parem de escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”. No atoleiro moral Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a maldade”. A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal. Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar interesse? O problema da re�exão de Anne Rice é que ela só exprime o senso comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais interessante que a maldade. A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados — do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do que a maldade. Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a �gura do egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na �cção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia, também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do século XX elevou à categoria de deus. Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente cultua o mal — inquieta, perturba, estimula. Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido, propagandeado. A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no atoleiro moral — e não querem que ele saia daí. Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que pretendem aprisioná-lo. Fracasso, vileza e perversidade Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça. Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea — relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só valorizam acrobacias lingüísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia . Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade. NARRATOFOBIA — OU O PAVOR DE NARRAR Parcela dos escritores brasileiros contemporâneos sofre de uma estranha patologia: escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos. Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o de exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche. A literatura produzida segundo tais critérios não é só exclusivista, mas pedante e arti�cial, além de subserviente: nasce para agradar a uns poucos, para corresponder àquelas teorias que certos literatos diluíram e transformaram em receitas aparentemente infalíveis. Mas serei didático. Vamos a um exemplo que tornará mais compreensíveis os parágrafos acima. A vida, muitas vezes, parece um indistinguível conjunto de ausências. Ao rememorarmos, no �nal do dia, tudo o que �zemos, percebemos como a reconstituição �dedigna dos nossos atos é impossível. Algo nos escapa; às vezes, um detalhe importante. E, ao tentarmos realizar o balanço do que restou em nossa memória, descobrimos que a fatia de realidade à qual procuramos acrescentar nossa marca — a ín�ma seqüência do real que, revisitada, gostaríamos de vislumbrar e concluir,com absoluta certeza: “Passei por aqui, toquei este objeto, comuniquei-me com este ser” —, essa parcela de verdade praticamente inexiste, como se a vida não fosse mais que um vôo rasteiro, capaz apenas de tatear super�cialmente o existir. Uma citação dos diários de Liev Tolstói, de 28 de fevereiro de 1897, utilizada por Viktor Borisovich Chklovski em seu ensaio “A arte como procedimento”, pode elucidar a sensação de desconforto que é inseparável do nosso cotidiano: Eu secava no quarto e, fazendo uma volta, aproximei-me do divã e não podia me lembrar se o havia secado ou não. Como estes movimentos são habituais e inconscientes, não me lembrava e sentia que já era impossível fazê-lo. Então, se sequei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, era exatamente como se não o tivesse feito. Se alguém conscientemente me tivesse visto, poder-se-ia reconstituir o gesto. Mas se ninguém o viu ou se o viu inconscientemente, se toda a vida complexa de muita gente se desenrola inconscientemente, então é como se esta vida não tivesse sido. Entre os inúmeros comentários de Chklovski a este trecho, especialmente um chama a atenção, pelo teor de verdade que o estudioso russo concentra em uma única frase: “A automatização engole os objetos”. O desejo daqueles que possuem um mínimo de autoconsciência é, sem dúvida, de que todos os atos só se concretizassem depois de uma re�exão prévia, cuja intensidade fosse su�ciente para revelar as mais secretas intenções: a gama de condicionamentos ocultos, sorrateiramente, sob a aparência de naturalidade que forra o viver. E, acrescento, não bastaria que conhecêssemos as razões que nos impulsionam, mas seria imprescindível concentrar a atenção em cada uma de nossas decisões, no exato momento em que agimos, além de prever as possíveis conseqüências de nossos atos. Se tal irrestrita consciência fosse possível, cada insigni�cante gesto nasceria apartado de toda banalidade. Sabemos, contudo, que não é assim. E estamos cientes de que o estranhamento de Tolstói é um sintoma que experimentamos com relativa freqüência. A arte, no entanto, pode nos ajudar no sentido de superarmos esse distanciamento em relação à vida. Ela detém o poder de lacerar a banalidade ou, no que se refere à literatura, criar uma realidade paralela de tal maneira envolvente que, ao despertar em nós o que costuma ser condenado à letargia (por nossa limitada capacidade de percepção), romper o automatismo do cotidiano e conceder signi�cação, muitas vezes inusitada, ao real. Chklovski fala exatamente sobre isso, ao comentar o trecho de Tolstói: E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a di�culdade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um �m em si mesmo, e deve ser prolongado [...]. As a�rmações de Chklovski são conhecidas. Suas idéias foram disseminadas no bojo das correntes estéticas que, de um modo ou de outro, se inspiraram no formalismo russo ou se �liaram a seus princípios. No entanto, foi graças a tal disseminação que essa teoria — utilizada, no caso acima, para explicitar as qualidades de Tolstói — tornou-se regra absoluta. E, como todas as regras, reduziu a riqueza das propostas de Chklovski a um só ponto: “O procedimento da arte é o procedimento de aumentar a di�culdade e a duração da percepção”. Não bastasse tal reducionismo, os reprodutores do pensamento de Chklovski desprezaram o fato de que os exemplos citados no ensaio, extraídos da �cção de Tolstói, não apresentavam uma leitura penosa, árdua ou cheia de obstáculos. Esses repetidores cegos preferiram entender “di�culdade” como “di�cultar a leitura a qualquer custo” — e esmeraram-se no sentido de esquecer, por exemplo, a ponderação que Chklovski faz: “[...] A liberação do objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios; neste artigo, quero indicar um destes meios do qual quase que constantemente se serviu Tolstói [...]”. À evidência de que Chklovski não tem a pretensão de expor uma receita sobre como escrever textos literários — ele não só enaltece o estilo claro, plenamente inteligível do autor de Anna Kariênina , como insiste em dizer que seu objetivo é apresentar apenas “um” dos meios utilizados — devemos acrescentar a péssima leitura que alguns escritores, críticos e acadêmicos �zeram do ensaio: entenderam, repito, o termo “di�culdade” de forma extremamente simplista; submeteram o trabalho do teórico a um raciocínio esquemático; e a minuciosa análise do texto tolstoiano foi colocada de lado, certamente para que não maculasse a excelência do novo mandamento. Essa simpli�cação é prática comum, não só em teoria literária. Dilui-se a complexidade para se adquirir uma certeza, a receita infalível sobre quais procedimentos devem ser seguidos — neste caso, para se criar obras realmente “modernas”. A maioria dos mestres mostra-se pródiga nesse sentido, e a repetição constante gera, é claro, resultados medíocres, desalentadores. No caso especí�co da literatura, tal regra tem servido a uma perigosa misti�cação: a de que a verdadeira obra de arte é difícil de ser compreendida. Essa mentira resultou — e continua a resultar — em escritores que, para cumprir o dogma, especializam-se em erigir a linguagem à condição de protagonista da obra. A obediência cega à suposta lei gerou — e continua a gerar — obras sem enredo e sem personagens, ou narrativas nas quais enredo, personagens, �uxo de tempo, con�guração do espaço, etc. amontoam-se num verdadeiro caos. Dessa forma, parte da produção literária distanciou-se radicalmente do receptor da mensagem — o leitor —, transformando-o em um ser incapacitado para decodi�car o texto, condenando-o a ler sem entender, ou ler defrontando-se com di�culdades sobre di�culdades. A falsi�cação da teoria de Chklovski foi transformada em uma espécie de tormento, nova técnica de tortura, cujo objetivo é impedir que o leitor cumpra seu papel de co-autor. Sem dúvida, quando a linguagem serve apenas à reinvenção de si mesma, esquecendo-se do ato de narrar, a leitura — o exercício de recriar a obra — torna-se impossível. No afã de corresponder à mentira disseminada em nome de Chklovski, inúmeros escritores se concentram em elaborar a linguagem de tal modo que, ao término de seus esforços, são compreendidos apenas por si próprios ou, quiçá, por um seleto grupo de iluminados. Obedecendo a um atavismo desolador, esses escritores repetem o que Antonio Candido detectou inclusive nos primórdios da nossa literatura: a situação arti�cial em que os próprios escritores são “ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio”. Fechados em si mesmos, presos à falsa necessidade de criar uma nova vanguarda a cada amanhecer, bajulando-se em suas seitas particulares, tais escritores parecem buscar o que Gustave Flaubert expressou certa vez: “O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a Terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que não teria quase tema, ou pelo menos em que o tema fosse quase invisível, se é que pode haver.” Inebriante devaneio, sem dúvida. Mas apenas devaneio. Partindo do afã de di�cultar, a qualquer custo, a recepção da obra literária, e passando por centenas de outras simpli�cações, semelhantes à quimera �aubertiana e repetidas ad nauseam , chegamos ao que diagnostico como narratofobia — o pavor, a paúra de narrar —, reforçada, em inúmeros casos, por evidente insegurança no uso da linguagem. (É risível, aliás, o caradurismo de alguns escritores, que justi�cam seu desconhecimento
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