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101 A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA OPOSIÇÃO AO GOLPE DE 1964: contextualização política e social1 Women’s participation in the 1964 swat opposition: political and social context MALZONI, Evelin2 ARAÚJO, Luís Guilherme Nascimento de3 DIOTTO, Nariel4 BRUTTI, Tiago Anderson5 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. 2 Discente do curso de Direito, da Universidade de Cruz Alta - Unicruz, Cruz Alta, Brasil. E-mail: evelinmalzoni07@ gmail.com. 3 Discente do curso de Direito, da Universidade de Cruz Alta - Unicruz, Cruz Alta, Brasil. E-mail: guilhermedearaujo@ live.com. Bolsista do PIBIC “Tolerância, igualdade e educação na construção do bem-comum”. 4 Mestranda em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social (UNICRUZ). Especialista em Direito Constitucional (FCV/PR). Bacharela em Direito (UNICRUZ). Bolsista CAPES. Email: nariel.diotto@gmail.com 5 Pesquisador Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - GPJur, Docente da Universidade de Cruz Alta - Unicruz, Cruz Alta, Brasil. E-mail: tbrutti@unicruz.edu.br. RESUMO O presente artigo visa refletir sobre a participação das mulheres na oposição ao regime ditatorial instalado no Brasil em 1964, compreendendo sua atuação política dentro dos movimentos de esquerda. Buscou-se, após uma breve contextualização do período, delimitar algumas formas de atuação das mulheres dentro do movimento político, refletir sobre as torturas e violações das quais foram vítimas e, analisar os limites que lhe foram impostos devido a sua condição, enquanto pertencente ao gênero feminino - historicamente e culturalmente desprezado - dentro da esfera política e social da época. Palavras-chave: Autoritarismo. Brasil. Ditadura. Golpe de 1964. Feminismo. ABSTRACT This article aims to reflect on the participation of women in the opposition to the dictatorial regime installed in Brazil in 1964, understanding their political performance within the leftist movements. It was sought, after a brief contextualization of the period, to delimit some forms of action of women within the political movement, to reflect on the tortures and violations they were victims of, and to analyze the limits imposed on them due to their condition, as belonging to the female gender - historically and culturally despised - within the political and social sphere of the time. Keywords: Authoritarianism. Brazil. Dictatorship. 1964 coup. Feminism. Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 102 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 MALZONI | ARAÚJO | DIOTTO | BRUTTI 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS As mulheres tiveram um papel fundamental entre a oposição ao golpe de 1964, ocorrido no Brasil: estudantes, operárias e camponeses fizeram oposição ao governo então vigente, participando, inclusive, da Guerrilha do Araguaia. Trazer a perspectiva feminina do período é de grande importância, tendo em vista que, no espaço público e político, a mulher foi (e continua sendo) invisibilizada e silenciada, limitada a obediência daqueles homens que estão no poder. Para discorrer sobre o assunto, em uma primeira seção, foi analisado o contexto sócio- político da instalação da ditadura militar, no ano de 1964 e, posteriormente, buscou-se trazer a participação das mulheres no período, as quais foram grandes vítimas de atrocidades e violações, torturadas e humilhadas não apenas em razão de sua visão política, mas em decorrência do preconceito e sexismo da sua própria condição de gênero. Resumidas à “putas comunistas”, não lhe era reconhecido o poder de escolha sobre a visão política. Sexualizadas e objetualizadas, inclusive, devido a sua forma de pensar, foram constantemente vítimas de violência sexual. Trazer a perspectiva dessas mulheres é fundamental para entender os resquícios de uma política sexista que predomina até os dias atuais, e acaba por silenciar e dificultar a participação das mulheres no espaço político. 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Essa pesquisa está vinculada a participação no Grupo de Pesquisa em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos (GPJur/UNICRUZ), voltando-se para a rediscussão da condição das mulheres no decorrer da história e da importância de sua participação na construção da atual conjuntura sócio-política do Brasil. A pesquisa aqui exposta foi bibliográfica, usando o método de abordagem hipotético-dedutivo, um estudo que implica em tentativas e eliminação de erros, que não leva a uma certeza, pois o conhecimento absolutamente certo e demonstrável por vezes não é alcançado. Esse método visa construir uma teoria que elabore hipóteses das quais as conclusões obtidas possam ser deduzidas, sobre as quais se pôs. É fazer previsões, que podem ser rejeitadas ou aceitas, e com isso obter uma resposta para o problema. De acordo com Diniz (2015, p. 02): O método hipotético-dedutivo consiste em se perceber problemas, lacunas ou contradições no conhecimento prévio ou em teorias existentes. A partir desses problemas, lacunas ou contradições, são formuladas conjecturas, soluções ou hipóteses [...] As bases da realização da pesquisa, na primeira seção, serão estruturadas por material doutrinário, legislação específica e artigos científicos físicos e virtuais. Na segunda seção, enfatizou-se a luta das mulheres na ditadura brasileira por meio da obra “Direito à memória e à A participação das mulheres na oposição ao golpe de 1964: contextualização política e social Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 103 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 verdade: luta, substantivo feminino”, sob organização de Tatiana Merlino e Igor Ojeda. Busca- se a compreensão da participação das mulheres no período ditatorial vivido pelo Brasil pós golpe de 1964, identificando a necessidade de relembrar as atrocidades desse período, vividas principalmente pelas mulheres, a fim de promover a reflexão acerca do tema e evitar que a perda de direitos humanos e fundamentais se repita. 3 CONTEXTO HISTÓRICO DE UM BRASIL AUTORITÁRIO No Brasil do século XX, o ocaso das liberdades e garantias democráticas e a opressão como política oficial de Estado foram estruturados através de uma sólida base legislativa, que foi o sustentáculo do regime militar. O início dos anos 1960 marcou o princípio de uma forma de ação política específica, por meio da organização popular, que se voltava a questionar o arbítrio dos governos internos e a considerável dependência econômica externa, e exigia mudanças nas estruturas políticas, sociais e econômicas, visando cada vez mais a inclusão das camadas populares e trabalhadoras da sociedade no âmbito da política e dos objetivos da atuação governamental brasileira. De fronte a isso, o grupo de militares que se estabeleceu no poder através do golpe de 1964 vinha de uma doutrina militar remota, que aludia à atuação do Brasil na II Guerra Mundial onde, ao atuar junto aos países da base aliada, terminou se sedimentando uma forte aproximação entre oficiais norte-americanos e militares brasileiros. Ao fim do grande conflito, uma considerável geração de militares brasileiros passou a se aprofundar nos modos como os Estados Unidos organizavam e estabeleciam a atuação das forças armadas em seu território. “Quando esses oficiais retornavam dos EUA, já estavam profundamente influenciados por uma concepção de ‘defesa nacional’” (ALVES, 1987, apud PRIORI, et al., 2012, p. 200). Não obstante o entrelaçamento entre as forças armadas brasileiras e as concepções políticas belicitas norte-americanas, fez-se notória uma profunda submissão econômica, que ditou os rumos do desenvolvimento do país nos anos que se seguiram ao golpe. Nas palavras de Almeida (2016, p. 209-210) o golpe militar, saudado por muitos como a preservação da unidade nacional diante dos perigos do comunismo, resultou em várias medidas econômicas que obrigaram as empresas brasileirasa se associar ao capital estrangeiro, o que coincidiu com o interesse dos países industrializados em transferir parte de suas linhas de produção para nações semi-industrializadas, como o Brasil. Os regimes autoritários são essenciais para retirar possíveis oposições de burgueses relutantes ou de trabalhadores descontentes, revelando que os exércitos se preparam menos para inimigos exteriores do que para reforçar a opressão em território nacional. Com base nesta relação foi criada a Escola Superior de Guerra (ESG), diretamente ligada ao Estado Maior das Forças Armadas, órgão em que se elaboraram algumas das diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional e muitos dos seus programas e dispositivos políticos derivados, como o Serviço Nacional de Informações (SNI). Toda essa estruturação dos meios e Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 104 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 MALZONI | ARAÚJO | DIOTTO | BRUTTI tecnologias de controle veio a se materializar historicamente no Ato Institucional Nº 1. Como sistematiza Priori (2012, p. 200-201): Por meio do AI-1, foi institucionalizado o sistema de eleição indireta para Presidente da República, bem como foi dado poderes ao presidente para ditar nova constituição, fechar o congresso, decretar estado de sítio, impor investigação sumária aos funcionários públicos contratados ou eleitos, abrir inquéritos e processos para apurar responsabilidades pela prática de crime contra o Estado ou contra a ordem política e social, suspender direitos políticos de cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos legislativos de deputados federais, estaduais ou vereadores. Sob a égide dos atos institucionais, como estrutura jurídica, e a autoridade indiscutível dos militares no quadro executivo serviriam como sustentação e salvaguarda da atuação de todas as forças repressivas, independentemente dos métodos de ação escolhidos. A criação de órgãos voltados à repressão foi algo comum durante a vigência do governo militar, como os DOI-CODI, o CIEX, a CISA, se contar com consolidação dos DOPS por todo o território brasileiro. Esteve sempre presente, porém, o esforço em caracterizar o regime militar como um regime atrelado aos princípios democráticos, o que tornou a ideologia mais uma faceta da dominação e opressão, pois ainda que no visível exercício de um regime autoritário de exceção os seus mantenedores intentavam legitimá-lo como um sistema político e modo de governo baseado na vontade do povo. Conforme aduz Aquino (2000, p. 272) desde o primeiro general- presidente até o último buscou-se salientar, principalmente nos discursos de posse dirigidos ao povo, a adoção de “ações e comportamentos em nome da defesa da democracia no país”. Fator este que se faz presente hodiernamente onde, mesmo que “democratizado, o país se recusa a prestar contas às vítimas de um regime que [...] o próprio Estado brasileiro reconhece ter sido ilegal e antidemocrático” (ALMEIDA, 2016, p. 210). Constata-se que no decorrer de 21 anos em que se mantiveram os militares com o poder, a existência de qualquer forma de administração democrática e republicana foi apenas ficta, ideologicamente construída, tendo em vista o notório papel de repressão exercido pelos órgãos policiais e instituições jurídicas, com claro objetivo de emudecer possíveis perturbações sociais que estremecessem o pleno andamento das ações e programas do Poder Executivo militarizado. “Em princípio, o golpe foi tido como um movimento fadado a ser de curta duração e de alcance limitado” (CARONE, 1982, p. 3, apud PRIORI, 2012, p. 202). Todavia, no passar dos primeiros anos, a cúpula do comando militar cada vez mais se estruturava institucionalmente sobre os pilares do autoritarismo e entoava o discurso da defesa de valores nacionais, patriotas, dotado de tendências anticomunistas, pouco relacionadas com a verdadeira conjuntura política do país. O golpe buscou ser caracterizado como uma intervenção de cunho corretivo, destinada a preservar aspectos relevantes para a continuação do desenvolvimento que outrora o Brasil representou. No entanto, as formas de pôr em prática essas premissas não se deixaram limitar A participação das mulheres na oposição ao golpe de 1964: contextualização política e social Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 105 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 pela axiologia democrática e republicana, quando, por exemplo, se usou da cassação de direitos políticos de uma grande parcela da população, de parlamentares e até membros do Poder Judiciário para uniformizar a prática institucional. Portanto, o panorama da luta pelo retorno da democracia envolveu múltiplos arranjos e formas de resistência. O aparelhamento estatal canalizado para a opressão e o esforço para o silenciamento de qualquer voz que representasse a mínima oposição tornou o simples dissenso um objeto pelo qual se lutar. Dessa forma, o caráter de ilegalidade passou a ser a regra para grande parte dos focos de oposição, como os partidários de antigos partidos de esquerda, como o movimento estudantil e também a classe artística. Dentro desses variados agrupamentos voltados a se opor ao governo militar, contou-se com determinante participação feminina, desde a organização dos movimentos até a máxima expressão de resistência através da luta armada. 4 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO GOLPE DE 1964 COM BASE NA OBRA “LUTA, SUBSTANTIVO FEMININO” A resistência das mulheres é muito presente ao longo da história do Brasil, não apenas em um contexto ditatorial pós Golpe de 1964, mas muito antes as mulheres já se organizavam em movimentos políticos e de ruptura com o sistema patriarcal: as sufragistas, buscando seu direito de votar e participar do pleito eleitoral, as operárias que denunciavam os abusos vividos nas fábricas, as mulheres burguesas e feministas, que lutavam pela possibilidade de frequentar as escolas e universidades, em um período marcado pela sua exclusão do espaço público e da vida civil. Durante o contexto sócio-político brasileiro, quando se implantou a ditadura civil-militar com o golpe de 1964, “as mulheres também foram protagonistas, como militantes da resistência e como organizadoras da sociedade civil para o retorno do país à democracia” (MERLINO; OJEDA, 2010, p. 28). O golpe de 1964, [...] institucionalizou a detenção, a prisão e o sequestro, o banimento, a tortura, o assassinato e o desaparecimento, deixando um legado sinistro: mortos e desaparecidos políticos, uma legião incontável de militantes – homens e mulheres – presos e torturados e histórias de vida truncadas. A política de repressão é praticada quando o poder político, aliado ao poder policial e militar, outorga-se o direito sobre o corpo, a mente, a vida e a morte dos cidadãos. Exercer continuadamente atos que sustentam essa política é um gesto que, aos poucos, torna-se sobre-humanamente desumano, e apaga, devagar, a repugnância inata ao crime (MERLINO; OJEDA, 2010, p. 28). A grande maioria dos militantes que permaneceram no país durante esse período tornou- se clandestino político, abandonando suas famílias, casas, profissões e próprias identidades, permanecendo no anonimato para proporcionar a continuidade da luta contra o autoritarismo. Muitas das relações pessoais ficaram esparsas e, frequentemente, notícias de mortes e falecimentos de amigos e familiares ficaram conhecidas e foram ligadas ao momento político vivido no Brasil. A militância, em muitos casos, era descoberta apenas após a morte, pois, Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 106 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 MALZONI | ARAÚJO | DIOTTO | BRUTTI A clandestinidade escolhida como forma de sobrevivência dentro do país foi, no princípio, uma defesa para o militante, mas, como um bumerangue, tornou-se um ponto vulnerável: a repressão aproveitou o anonimato dos militantes capturados, com seus nomes frios e identidades fabricadas, para negar, às famílias e aosadvogados, o verdadeiro nome do preso. Dessa forma, eliminou-os, enterrou-os, fê-los desaparecer com nomes frios, como indigentes, nenhum nome, os NN (MERLINO; OJEDA, 2010, p. 29). As mulheres participaram ativamente do momento político vivido no país e foram alvos de atrocidades, principalmente em decorrência do seu gênero. O corpo da mulher tornou-se presa do torturador que, autorizado por seus superiores, “incorporou ingredientes próprios e piores ao ato que, por delegação, lhe foi solicitado e previamente permitido” (MERLINO; OJEDA, 2010, p. 30). Não importava a condição da mulher (se fosse mãe, se estivesse grávida, se fosse jovem, ou idosa), não havia tréguas: o próprio desejo da mulher pela maternidade foi usado com implacável vingança, tendo em vista que muitas tornaram-se estéreis após sevícias e estupros. Algumas foram cingidas com uma cinta de aço que, paulatinamente apertada, levou-as à morte; outras foram assassinadas a sangue frio; muitas foram estupradas, mutiladas e atingidas pelas armas. Algumas enlouqueceram pela dor e pela brutalidade e não sobreviveram aos choques elétricos. Todas, em sua provável maioria, foram despidas à força em algum momento. São brasileiras que fazem parte da galeria de mulheres combatentes e destemidas, muitas delas ainda insepultas por estarem desaparecidas (MERLINO; OJEDA, 2010, p. 30-31). No mesmo período em que o país era assolado pela violência e pela tortura, mesmo em ambiente hostil, as mulheres da sociedade civil e de organizações sociais continuavam sua luta por meio da organização de protestos nas ruas, universidades, sindicatos, igrejas e etc., buscando denunciar as violações da ditadura e buscando formas de vencê-la. A campanha pela anistia, por exemplo, fruto da indignação de vários setores da sociedade brasileira, foi organizada, inicialmente, por mulheres pertencentes ao Movimento Feminino pela Anistia (MERLINO; OJEDA, 2010). A participação em movimentos estudantis, partidos políticos e sindicatos era um desafio ao papel feminino tradicional. Mesmo que em menor número que os homens, as mulheres também armaram-se buscando o fim da ditadura militar, na maioria dos casos, jovens com menos de trinta anos de idade e estudantes universitárias. Contudo, não foram apenas jovens mulheres de classe média e universitárias a se organizarem no regime militar, pois a rápida urbanização das cidades, originária dos fluxos migratórios internos, expandiu a organização do movimento de mulheres para às periferias. Portanto, na guerrilha não havia apenas homens, “mas também mulheres armadas lutando por essa causa, sendo que algumas desapareceram, seus corpos nunca foram encontrados e são consideradas desaparecidas políticas”. (MACIOSEK, 2017, p. 776). As mulheres também tiveram efetiva participação na Guerrilha do Araguaia, que ocorreu entre meados de 1960 (quando os primeiros militantes do Partido Comunista do A participação das mulheres na oposição ao golpe de 1964: contextualização política e social Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 107 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 Brasil – PCdoB, chegaram à região) e 1974 (quando os últimos guerrilheiros foram caçados e abatidos por militares). Nesse período, houveram muitas execuções, tendo em vista que a “eliminação de vestígios e tortura estão nos relatos colhidos, assim como na literatura existente sobre a guerrilha” (PEIXOTO, 2011, p. 1). Os militares foram instruídos de que não fizessem prisioneiros, sendo que, desde o início, a intenção foi realizar uma operação de “limpeza”. O primeiro integrante do PCdoB se instalou na região no ano de 1966 e, em 1972, às vésperas da primeira expedição dos militares, já eram quase setenta pessoas. Grande parte desses homens e mulheres no Araguaia era composta de lideranças estudantis que haviam participado de manifestações contra a ditadura militar, nas grandes cidades do país e muitos já haviam sido presos por outras atividades de oposição ao regime (PEIXOTO, 2011). Mesmo que as organizações que se opuseram ao regime ditatorial questionassem o modelo de sociedade, ainda haviam distinções entre os gêneros dentro dessas organizações, tendo em vista que poucas mulheres assumiram cargos de liderança. A repressão do período construiu uma imagem da mulher militante, contrária aos padrões impostos pela ditadura militar: aquela que rompesse os padrões vigentes e integrasse a esfera pública e política, era vista como uma “puta comunista”, termo que os próprios agentes da repressão usavam, principalmente durante os interrogatórios e as sessões de tortura (COLLING, 1997). Nesse sentido: Para a repressão, a mulher militante será definida sempre como “puta comunista”. [...] Além da caracterização da mulher militante como prostituta, a repressão trabalhava na tentativa de desmoralização com duas outras ideias: a de que as mulheres estavam buscando homens e a de mulher-macho (COLLING, 1997, p. 84). Este tipo de tratamento, extremamente discriminatório e sexista, visava desmerecer a atuação política das mulheres, o que visava reforçar a tese de que lugar da mulher era no espaço privado. Aquelas que buscassem o espaço público e a atuação política, estariam fazendo por interesses sexuais, na busca por um companheiro ou companheira, e não por interesse político. Em suma, questionava-se a capacidade de a mulher agir por interesses próprios, ou sem a tutela de um homem. Além disso, sustentava-se que para exercer a sua militância, a mulher deveria negar a sua feminilidade. Contudo, a participação das mulheres “[...] na contestação à ordem, entre 1966 e 1968, deu-se, sobretudo, por meio do movimento estudantil, que forneceu a maioria dos quadros para os grupos de extrema esquerda” (COLLING, 1997, p. 84). A participação das mulheres nos movimentos de oposição à ditadura militar demonstra o quanto foram importantes na construção e organização de movimentos a fim de romper com o regime autoritário instalado no país. Contudo, também foram grandes vítimas das atrocidades cometidas pelos militares: resumidas a “putas comunistas”, o seu gênero e sexo biológico tornavam-se alvo de grandes violações, foram estupradas, violentadas e cruelmente assassinadas. Sua condição de gênero, a qual a despendia um tratamento de inferioridade e carência de intelectualidade, a obrigava a seguir padrões morais previamente impostos pelo regime ditatorial. Enquanto isso, na resistência e oposição ao regime, fora impedida de assumir Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 108 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 MALZONI | ARAÚJO | DIOTTO | BRUTTI cargos de liderança, demonstrando que, mesmo dentro das organizações de esquerda, haviam concepções que a reduziam ao “sexo frágil”. Mesmo diante de todas as atrocidades e de toda a violência do período, demonstraram o seu papel de resistência dentro do meio político, inclusive na luta armada, o que se demonstrou determinante na queda do regime militar e na construção da democracia. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate sobre a mulher e sobre a sua participação no meio político é sempre muito importante, pois é nítida a existência de um massacre intelectual, moral e físico que, desde sempre, dizimou inúmeras mulheres e silenciou muitas vozes. Permitir que a condição dessas mulheres seja reconhecida e que, seu papel enquanto atriz do meio político, seja enaltecido e não diminuído, é trazer um pouco de justiça para essas mulheres silenciadas em suas lutas. Quando se discute o período militar e a instalação de uma ditadura, dificilmente vem a memória a atuação de mulheres. Imagina-se, inicialmente, um exército de homens, com suas armas, enfrentando manifestantes (também homens) nas ruas das capitais brasileiras. Quando se trata da Guerrilha do Araguaia, reproduz-se a imagem de homens armados, numa dicotomia esquerda versus direita, deixando de lado aquelas mulheres que, igualmente aos homens, se armaram para opor-se ao autoritarismo.Essas mulheres, manifestantes, comunistas e guerrilheiras foram pessoas muito humanas, que muitas vezes beiram o esquecimento: foram jovens, muitas delas de classe média e universitárias, numa luta talvez utópica, mas cheia de significado. Foram mulheres cientes na necessidade de uma nova organização social, inspiradas por experiências comunistas no mundo inteiro, que buscaram uma ressignificação da sociedade. Discutir a condição dessas mulheres permite uma reflexão acerca dos diferentes papeis de gênero, da violenta opressão que sofreram (inclusive por parte de um Estado violento), e da sua invisibilidade na esfera política, mesmo na vigência de uma democracia. REFERÊNCIAS AQUINO, M. A. A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico. In: REIS FILHO, D. A. (Org.). Intelectuais, história e política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 271-287. ALMEIDA, Silvio Luiz de. Sartre: direito e política: ontologia, liberdade e revolução. São Paulo: Boitempo, 2016. COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997. DINIZ, Marco Túlio Mendonça. Contribuições ao ensino do método hipotético-dedutivo a A participação das mulheres na oposição ao golpe de 1964: contextualização política e social Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão 109 ISSN 2358-6036 – v. 7, p. 101 - 109, 2019 estudantes de Geografia. Geografia Ensino & Pesquisa, vol. 19, n. 2, maio/ago. 2015. MACIOSEK, Gabriella Candida. Análise da representação das mulheres nas forças armadas na mídia brasileira. Anais do EVINCI, UniBrasil, Curitiba, v.3, n.2, p. 771-784, 2017. MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (Orgs.). Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010. PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 3, Belém, 2011. PRIORI, A., et al. História do Paraná: séculos XIX e XX [online]. Maringá: Eduem, 2012. A Ditadura Militar e a violência contra os movimentos sociais, políticos e culturais, p. 199-213. ISBN 978-85-7628-587-8.
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