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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO LETRAS – LICENCIATURA PLENA Erinaldo Pereira Gomes ENTRE A LITERATURA E O CINEMA: ANÁLISE DO “AUTO DA COMPADECIDA”, DE ARIANO SUASSUNA Delmiro Gouveia 2019 Erinaldo Pereira Gomes ENTRE A LITERATURA E O CINEMA: ANÁLISE DO “AUTO DA COMPADECIDA”, DE ARIANO SUASSUNA Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade Federal de Alagoas como requisito final para obtenção de título Licenciado em Letras – Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr Marcos Alexandre de Morais Cunha. Delmiro Gouveia 2019 Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca do Campus Sertão Sede Delmiro Gouveia Bibliotecária responsável: Renata Oliveira de Souza CRB-4/2209 G633e Gomes, Erinaldo Pereira Entre a literatura e o cinema: análise do “Auto da compadecida” de Ariano Suassuna / Erinaldo Pereira Gomes. – 2019. 46 f. : il. Orientação: Prof. Dr. Marcos Alexandre de Moraes Cunha. Monografia (Licenciatura em Letras) – Universidade Federal de Alagoas. Curso de Licenciatura em Letras. Delmiro Gouveia, 2019. 1. Teatro popular. 2. Adaptação cinematográfica. 3. Análise 4. Suassuna, Ariano, 1927-2014. 5. O auto da compadecida. I. Título. CDU: 82-17:791 Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes. NEWTON, Isaac. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por ter me dado forças, saúde e coragem para superar todos os desafios que enfrentei durante os quatro anos de curso e pela experiência de aprendizado. Agradeço a minha família, principalmente ao meu Pai, Pedro Pereira Sobrinho, que não poupou esforços para que eu chegasse até aqui e pela torcida do meu sucesso profissional. Ao meu orientador, Marcos Alexandre de Morais Cunha pelos ensinamentos e envolvimento durante a produção da minha monografia. Aos professores Márcio Ferreira e Samuel Barbosa por aceitarem fazer parte da banca da minha defesa e pelas observações construtivas realizadas na monografia para que alguns erros sejam concertados. A todos os meus professores de curso pela aprendizagem proporcionada durante os quatros anos. Aos meus colegas de classe, principalmente a Janicleia Feitosa, Dinara Rodrigues, Chrislânya Bertoldo e Ariana Almeida, por me ajudar a superar os obstáculos. Agradeço também a Pedro Henrique Correia pela revisão realizada nesta monografia. A todos, o meu muito obrigado. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo geral discutir e apresentar a relação estabelecida entre a obra literária “Auto da Compadecida” (1955), de Ariano Suassuna, e a obra cinematográfica “Os trapalhões no auto da compadecida” (1987), de Roberto Farias. Neste sentido, será discutido a proposta do texto original e proposta da adaptação cinematográfica. Assim, o propósito desse texto não é afirmar que uma obra é melhor do que a outra, ou se uma obra está correspondendo às expectativas postas sobre ela, mas estabelecer um eixo entre as duas obras e apresentar diferenças que evidencie o processo de produção de cada uma delas. Para isso, será analisado as mudanças realizadas na adaptação fílmica que contribuíram para a produção da mesma, sendo correlacionadas com o texto original, tais como: a organização dos acontecimentos e o texto da adaptação cinematográfica, os personagens e a narrativa. Dessa forma, os principais autores utilizados para a realização desta pesquisa foram Curado (2007), Johnson (2003) e Bazin (1991). Apresentando assim, alguns entendimentos sobre a relação da literatura com o cinema, e mostrando as semelhanças e diferenças das obras citadas. Também é trabalhado nessa pesquisa o surgimento dos teatros populares, ressaltando o seu desenvolvimento durante o período em que chegou em Portugal. A metodologia deste estudo levou em consideração o uso de observações e recortes para se chegar a uma conclusão, logo esta pesquisa é qualitativa. Portando, após as observações foi possível compreender os procedimentos usados na obra cinematográfica. Palavras-chave: Análise, adaptação, cinema, literatura. ABSTRACT The present work aims to discuss and present the relationship established between the literary text "Auto da Compadecida" (1955), by Ariano Suassuna, and the cinematographic work "Os trapalhões no auto da compadecida" (1987), by Roberto Farias. In this sense, the proposal of the original text and the proposal of film adaptation will be discussed. In this intent, the purpose of this text is not to show that one work is better than another, or if a work is meeting the expectations posted about it, but to define an axis between the two works and to show differences that show the production process of each one of them. Therefore, it will be analyzed the changes made in the film adaptation that contributed to its production, being correlated with the original text, such as: the organization of the events and the text of the film adaptation, the characters and the narrative. Thinking about that, the main authors used for this research were Curado (2007), Johnson (2003) and Bazin (1991). Thus, presenting some understandings about the relationship between literature and cinema, and showing the similarities and differences of the mentioned works. It also works the emergence of popular theaters, highlighting their development during the period that arrived in Portugal. The methodology of this study took into consideration the use of observations and clippings to reach a conclusion, so this research is qualitative. Therefore, after the observations it was possible to understand the procedures used in the cinematographic work. Keywords: Analysis, adaptation, cinema, literature. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8 2 ARIANO SUASSUNA, VIDA E OBRA .................................................................... 13 3 A ORIGEM DO TEATRO POPULAR ...................................................................... 19 3.1 O SURGIMENTO DO TEATRO ......................................................................... 19 3.2 O TEATRO POPULAR EM PORTUGAL ........................................................... 20 3.3 O TEATRO POPULAR DE ARIANO SUASSUNA ............................................ 22 4 REFERENCIAL TEÓRICO ...................................................................................... 25 5 ANÁLISE DAS OBRAS ........................................................................................... 29 5.1 ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA................................................................. 29 5.2 ANÁLISE DAS OBRAS ...................................................................................... 30 5.2.1 A narrativa ................................................................................................... 30 5.2.2 O narrador ................................................................................................... 31 5.2.3 Personagens ................................................................................................ 33 5.2.4 Ordem dos acontecimentos ........................................................................ 34 5.2.5 A estética da adaptação .............................................................................. 35 5.2.6 O texto da adaptação ..................................................................................37 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 39 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 40 ANEXOS ..................................................................................................................... 43 8 1 INTRODUÇÃO Seguindo a linha raciocínio de Silva (2012), a relação da literatura com o cinema vem se estabelecendo desde que o registro de imagens passou a ser utilizado para contar histórias. Assim, ao longo dos mais de 120 anos da sétima arte, várias linguagens foram utilizados como pilares para as produções fílmicas. Em meio a esse embricamento, as adaptações cinematográficas são constantemente comparadas de maneira negativa pelo grau de fidelidade que elas têm com os textos originais (quanto mais fieis são, menos críticas sofrem), porém, essa forma de pensar não é oportuna, já que desconsiderada o processo da produção fílmica, a visão da cineasta e a liberdade (re)criativa. Para Johnson (2003), as relações entre o cinema e a literatura são complexas e se caracterizam, sobretudo pela intertextualidade e, citando Avellar, diz que “o que leva o cinema à literatura é uma quase certeza de que é impossível apanhar aquilo que está no livro e colocá- lo de forma literária no filme” (AVELLAR et JOHNSON apud CURADO, 2007, p.1). Desta maneira, é valido afirmar que a literatura e o cinema são duas áreas de conhecimento que conseguem estar interligadas devido ao fato que textos literários possuem visualidade que podem se transformar em películas, sendo a base para uma nova criação artística. Portanto, um livro e um filme possuem propriedades para a leitura e para a encenação da palavra escrita. É embasado nesse contexto que esse estudo irá discutir e apresentar as considerações sobre a relação da obra literária com a cinematográfica, tendo como exemplares a obra “Auto da compadecida” (1955), de Ariano Suassuna e a obra cinematográfica “Os trapalhões no auto da Compadecida” (1987), de Roberto Farias. Nesse sentido, será evidenciado os procedimentos realizados pelo cineasta em sua produção fílmica em comparação com as especificidades do texto base, usado para realizar essa reprodução. Pensando nisso, essa análise buscou explorar alguns fatores presentes na adaptação que se diferenciam do texto original e que mostram a dinâmica da elaboração e especificidades do filme, tais como: o espaço em que as cenas foram filmadas, a organização das cenas/acontecimento, falas dos personagens e características dos mesmos que são subentendias durante o filme. Além das modificações inseridas pelo cineasta. 9 Outro fator de suma importância que também será analisado é a questão da presença do narrador em ambas as obras, já que ele se apresenta como elemento significativo para o desenrolar da trama, fazendo parte do enredo e se denominando como o autor do auto. No livro, ele também desempenha função de descrever o local, porém, como as obras cinematográficas utilizam de recursos visuais, essa função, em muitos casos, torna-se opcional. Sendo assim, observar a maneira que o cineasta faz uso da narração é fundamental para compreender a dinâmica do processo fílmico em questão. A metodologia desta pesquisa levou em consideração o uso de observações e estudos para chegar a uma conclusão, reunindo informações de teóricos do campo e da literatura e do cinema para buscar compreender a proposta do texto original e a maneira em que a produção fílmica recriou a obra de Ariano Suassuna. Assim, fazendo uso da revisão literária, esse trabalho irá discutir questões sobre a relação das duas artes citadas. Além disso, esse tema pretende salientar a devida importância de uma adaptação cinematográfica, seguindo a linha de pensamento de que as características e peculiaridades de cada arte devem ser respeitadas, já que autores e cineastas têm visões de mundo. De acordo com Schneider (1998), o método comparatista é um processo inerente a construção do conhecimento e que através dele é possível descobrir regularidades, deslocamentos e transformações, identificando diferenças e semelhanças, continuidade e descontinuidades nos objetos de estudos. Assim, esta pesquisa fará uso dessa metodologia para obter os resultados, isso significa dizer que houve a realização da comparação entre as duas obras para chegar a uma conclusão. Deste modo, o tema desta pesquisa é de suma importância para a reflexão sobre a relação entre os dois sistemas semióticos, no propósito de apresentar as opiniões de teóricos inseridos nesse campo do conhecimento para distinguir a proposta de cada obra analisada, entendendo que ambas as artes (literatura e cinema) têm singularidades, e, por isso, poderá haver diferenças entre elas, mesmo uma sendo baseada na outra. Antes de realizar a análise da relação existente entre as duas obras, que é o princípio deste trabalho, é importante compreender o propósito de cada sistema semiótico separadamente. O conhecimento sobre o assunto é amplo, mas o conteúdo deve ser desenvolvido de forma a um entendimento para facilitar o trabalho dessa tese. Desse modo, a atual pesquisa está dividida em cinco capítulos para que seja 10 possível um conhecimento sobre o assunto, a partir dos conceitos acerca do tema tratado e sobre a análise das obras. Assim sendo, o primeiro capítulo é a Introdução desta pesquisa. Devido esta pesquisa se tratar de análises do livro de Ariano Suassuna e de uma adaptação baseada na mesma, é de fundamental importância separar o segundo capítulo para falar sobre sua vida e toda a sua carreira profissional, mostrando o devido reconhecimento desse autor prestigiado, compreendendo que isso faça entender algumas das razões que o fizeram explorar o tema em que fez uso na obra. O terceiro capítulo será direcionado para discutir e apresentar a forma em que deu o surgimento dos teatros populares (ou autos), ressaltando o seu desenvolvimento durante o período em que chegou a Portugal, e como ele foi absorvido por Gil Vicente, principal inspiração de Ariano Suassuna para escrever o Auto da Compadecida. Também veremos nesse capítulo as próprias características bases da peça teatral desse renomado autor pernambucano, na qual preserva e faz uso das raízes populares, mostrando a cultura do nordeste. Ademais, entender a finalidade do texto de Suassuna traz relevância, no âmbito da literatura, porque irá explorar o conteúdo e as características contida no auto do escritor e em autos de forma geral. Assim, o quarto capítulo estará voltado para abordar as questões intrínsecas sobre adaptações cinematográficas, evidenciando as observações de teóricos desse campo do conhecimento para explorar o assunto, dissertando sobre o processo de produções fílmicas e esclarecendo as mudanças realizadas por cineastas nesses processos. Seguindo esta linha de pensamento, o quinto capítulo irá apresentar os resultados obtidos através de análises das obras relacionadas. Essas observações mostrarão as diferenças e semelhanças entre o texto de Ariano Suassuna e a adaptação cinematográfica de Roberto Farias. Por fim, no último capítulo, iremos expor as considerações finais desta pesquisa, retornando ao assunto principal, respondendo o problema apresentado na introdução, mostrando de forma sintetizada as conclusões gerais da pesquisa realizada. Dessa forma, as considerações finais dessa monografia servirá para ampliar a compreensão sobre o tema, esclarecendo se a hipótese levantada foi confirmada ou refutada. Porém, vale lembrar que essas considerações não finalizam 11 o assunto em si, pois podem existir novas concepções sobre o tema posteriormente, podendo ser explorado por outras perspectivas. Diante dessas possibilidades, o intuito também desta pesquisa é tentardesmistificar a ideia de que uma adaptação necessite ter fidelidade absoluta a um obra em que ela é baseada. Ao invés disso, ela deve dialogar com seu contexto, mesmo quando o propósito seja a representação dos valores inclusos no livro. Entendendo assim, que a adaptação cinematográfica é uma experiência da mudança de uma linguagem artística para a outra. Então, o questionamento a ser realizado tem como objetivo responder a seguinte pergunta: Uma adaptação cinematográfica precisa ter fidelidade ao texto de origem? A importância do tema levanta uma série de questionamentos em relação às adaptações cinematográficas. Assim, trazer as concepções de teóricos sobre o assunto e a análise das duas obras é de suma importância para a academia, já que servirá como objeto de pesquisa para graduandos em Letras que se interessem pelo tema. Portanto, vale salientar que o livro em muitas das vezes, serve mais como “pano de fundo” para o projeto cinematográfico fundamentado nas finalidades e linguagens do cinema, já que um cineasta é livre para interpretar textos originais, dando-lhe outras perspectivas para fazer compreender determinadas passagens da obra literária em questão. Assim, a análise das duas obras será mediante a observações comparatistas com a intenção de mostrar as peculiaridades de ambas, já que esse método possibilita uma investigação que revela semelhanças e diferenças, fazendo com que deixe em evidência as preferências do cineasta ao reproduzir a peça teatral dentro dos parâmetros do cinema. Fachin (2001), afirma que o método comparativo consiste em investigar coisas ou fatos e explicá-los segundo suas semelhanças e suas diferenças. Permite a análise de dados concretos e de dedução de semelhanças e divergências de elementos constantes, abstratos e gerais, proporcionado investigações de caráter indiretos. Dado essas considerações, conclui-se que esta pesquisa irá verificar as relações existentes entre o texto literário e o cinematográfico, respeitando as peculiaridades de ambas as obras em questão, e mostrando observações feitas para que se apresente um paralelo entre as mesmas, mas não de forma negativa, pois 12 cada uma tem finalidades diferentes. Assim, mesmo abordando as semelhanças entre ambas, o objetivo deste trabalho não é definir a fidelidade que uma tem com a outra, mas o que é próprio de cada um deles. 13 2 ARIANO SUASSUNA, VIDA E OBRA1 Nascido em 16 de junho de 1927 no Palácio da Redenção, localizado na capital da Paraíba, Ariano Vilar Suassuna era filho do governador do Estado da época, João Suassuna, que esteve no poder entre 1924 e 1928. Contudo, Ariano Suassuna foi morar na fazenda Acauhan, onde viveu seus primeiros anos. Para falar sobre a vida desse ilustre autor, é preciso primeiro voltar no passado e conhecer mais sobre seu pai. A morte do pai de Ariano Suassuna foi ocasionada depois que um conflito foi gerado entre o primo da mãe de Ariano, João Dantas, e o seu sucessor no governo da Paraíba, João Pessoa. Após a discussão entre ambos, a polícia invadiu o apartamento de João Dantas, onde encontrou várias correspondências de sua amada e expôs por toda capital. Tal fato deixou Dantas furioso e o fez assassinar João Pessoa. Com a morte do governador por um parente, João Suassuna passou a ser acusado de participação no incentivo ao crime, o que resultou no seu assassinato. A perda do pai na infância fez com que Ariano Suassuna viesse a escrever uma representação do mesmo, pois “Grande parte de sua obra literária é uma tentativa de recompor simbolicamente a harmonia dessa primeira fase da infância e de restaurar a figura paterna” (TAVARES, 2007, p.12). Após o fato ter acontecido, a família Suassuna abrigou-se em vários lugares diferentes. Primeiro, foram para a capital do Rio Grande do Norte, depois voltaram para Paraíba, logo em seguida foram para São Paulo, e por último para Pernambuco. Todavia, mesmo Ariano passando por todas essas cidades, ele afirmou em entrevista concedida a Marcus Vilar2 que a mais significativa foi a cidade de Taperoá, onde ele viveu dos seis anos aos quinze, pois foi onde aprendeu a ler, a escrever e a nadar. Além disso, foi o onde se conectou com a natureza, pois passava bastante tempo nas caatingas. 1 As informações sobre a vida e as obras de Ariano Suassuna foram retiradas de um documentário de Marcus Vilar (intitulado: O Senhor do Castelo) e de um estudo das autoras: Eulímpia Coutinho e Síria Lima. 2 Cineasta brasileiro e autor do documentário sobre Ariano Suassuna que levou cerca de 15 anos para ser finalizado. 14 Ariano iniciou seus estudos com sua tia Maria das Neves Vilar Dantas que o ensinava em casa, e mesmo ele brincando quando afirmava que ela tinha o colocado em um mundo de escravização, sempre foi grato a tia pelos ensinamentos. O primeiro contato com a arte da encenação aconteceu aos nove anos de idade quando foi levado para assistir um espetáculo de mamulengos no mercado popular de Taperoá pelo seu primo. Contudo, ele só descobriu o teatro através do circo, que na época de 1930, já que tinha encenações teatrais e projeções de filmes. O primeiro espetáculo assistido foi Stringhini, e daí em diante o autor foi criando interesse pelo circo e posteriormente usou em alguns elementos na sua obra. O circo foi de tamanha importância para Suassuna que quando tomou posse na Academia Brasileira de Letras fez menção ao palhaço de sua infância que se chamava “Gregório” e que está marcado na literatura brasileira, já que se faz presente no Auto da Compadecida. Aos 7 anos de idade, Ariano Suassuna foi estudar no Tradicional Colégio Americano Batista, em Recife, onde permaneceu entre os anos de 1934 e 1937, e passava as férias em Taperoá. No período da infância e adolescência, o autor leu livros e folhetos de cordel da biblioteca preservada de seu pai. Entre esses livros, os de autoria de Leonardo Mota tiveram grande valor, já que influenciou Suassuna no modo de escrita, no qual ele tomou como base alguns episódios para a realização de escrita do Auto da Compadecida. Suassuna iniciou seus estudos embasados nas tradições do protestantismo para entender mais sobre o assunto, porque sua mãe e sua avó se converteram à religião. A família Suassuna se mudou para capital de Pernambuco no final do ano de 1942, onde Ariano pôde concluir o curso médio - que na época era chamado de clássico - em 1944 no Ginásio Pernambuco. Em 1946 começou a estudar em um curso de direito e formou-se em 1950, mas tinha grande interesse na área, fez o curso porque não tinha muitas opções na época. Ariano afirmou, em entrevista, que os cursos que o trariam motivo de orgulho ao proporcionar um bom status na sociedade eram Medicina, Direito e Engenharia, e nunca gostou de ver cadáveres, nem gostava de fazer cálculos, por isso escolheu o curso de Direito na base da eliminação. O autor do Auto da Compadecida começou a trabalhar na profissão de advogado em 1952 quando estagiou no escritório de advocacia de seu amigo Murilo Guimarães. 15 Ariano começou a estudar no curso de Filosofia da Universidade Federal Católica de Pernambuco, e ao findá-la, chegou a lecionar Filosofia da Cultura no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco em 1988. No início de sua carreira literária, Ariano Suassuna começou por meio de poesias. O autor publicou seu primeiro poema aos 18 anos, cuja a estrutura dos versos era decassílaba, sem rima e com tom introspectivo. Contudo, só voltou a trabalhar nesse poema aos 71 anos de idade para incluí-lo no livro “O pastor Incendiado”. Os primeiros poemas ligados ao Romanceiro Popular Nordestino foram publicados entre os ano de 1946 e 1948. Já em 1947, Ariano escreveu sua primeira peça teatral “Uma Mulher Vestida de Sol” que posteriormenteveio a receber o prêmio Nicolau Carlos Magno. No ano seguinte, Ariano Suassuna conseguiu reunir um público de três mil pessoas na estreia do seu teatro móvel em um parque no centro de Recife. Após essa estreia, ele conseguiu realizar vários feitos em sua careira na literatura nos anos seguintes, porque publicou muitos poemas em revistas e jornais, além dos escritos teatrais que desenvolveu. Na vida amorosa, Ariano conta em entrevista que sofreu para ter um relacionamento, porque tinha baixo auto estima, já que se sentia feio e isso impediu que as mulheres bonitas tivessem interesse nele. Porém, aos 17 anos conheceu Zélia Andrade Lima em um cinema do Recife que veio a se tornar sua esposa. Zélia Andrade e Ariano Suassuna tiveram seis filhos e quinze netos. Ariano escreveu em 1956 o romance “A história de amor de Fernando e Isaura” baseado na versão de Joseph Bédier da obra “Tristão e Isolda3” para homenagear a sua esposa. O autor afirma que a primeira palavra que o personagem Fernando diz para Isaura é a primeira palavra ele disse para sua esposa Zélia. O romance só chegou a ser publicado trinta anos depois que Ariano começou a escrever. Ariano Suassuna tinha escrita muito séria no começo da carreira, já que suas obras eram direcionadas ao drama e tragédias. Contudo, o autor resolveu seguir o conselho de seu amigo João Cabral de Melo Neto e deu início a escrita no meio 3 Segundo Newton Júnior (2006) a história de Fernando e Isaura se baseia numa versão brasileira do mito original, cujos fragmentos mais antigos foram escritos no século XII. 16 humorístico das histórias populares, dando origem posteriormente a obra “Auto da Compadecida.” que o fez ficar conhecido nacionalmente no ano de 1957 após ser apresentada no Rio de Janeiro. A repercussão do Auto da Compadecida na época fez com que Ariano fosse lembrado como o criador da nova dramaturgia nordestina. Entre os anos de 1949 e 1966 foi muito significativos para a vida profissional do escritor, pois nesse período ele escreveu as obras: Os Homens de Barro (1949); o Auto de João da Cruz (1950); Torturas de um Coração ou Em Boca Fechada não Entra Mosquito (1951); a peça O Arco Desolado(1952); O Castigo da Soberba (1953); O Rico Avarento (1954); poema Ode e Auto da Compadecida (1955); A História do Amor de Fernando e Isaura(1956); O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna (1958); A Pena e a Lei (1959); Farsa da Boa Preguiça (1960); A caseira e a Catarina(1962); A novela O Sedutor do Sertão (1966); As Conchambranças de Quaderna (1987). Esse período também foi de grande importância para o Auto da Compadecida, pois foi nessa época que a obra ganhou algumas premiações, traduções e publicações internacionais, tais como: Medalha de ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais (1957), publicação na Polônia (1959), publicação nos Estados Unidos (1963). Em 1964, a obra é traduzida na Holanda. No ano de 1965, publicação na Espanha; Em 1969, estreia a primeira versão cinematográfica. Publicação na França (1970). Tradução alemã em (1971), mas só é publicado em 1986 no país. Além dessa obra, o período também foi de suma importância para outras escritura de Suassuna, tais como: A encenação da peça teatral “O Casamento Suspeitoso” em São Paulo, que ganha o Prêmio Vânia Souto de Carvalho. A peça “O Santo e a Porca” ganha medalha de ouro da Associação Paulista de Críticos Teatrais; O Santo e a Porca é publicada em Buenos Aires (1966). A pena e a Lei é premiada no Festival Latino-Americano de Teatro. O Romance d’A Pedra do Reino ganha o Prêmio Nacional de Ficção do Instituto Nacional do Livro. Em 1973 Suassuna publica Farsa da Boa Preguiça. Já em 1974 publica as peças “O Santo e a Porca” e o “Casamento Suspeitoso”; Seleta em Prosa e Verso; Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja. Em 1977, publica Ao Sol da Onça Caetana. Em 1997, publica a peça A História do Amor de Romeu e Julieta e em 1998, publica o livro de poemas “O Pasto Incendiado”. No ano de 1981, o autor se despediu de sua carreira literária após publicar uma carta de despedida, na qual faz um breve relato sobre sua vida como escritor. Na carta, ele pede que o público não cobre mais os livros que não estaria mais 17 escrevendo e pelos quais já perdeu qualquer interesse, pois segundo ele, “uma das coisas de que preciso me livrar é exatamente a monstruosa vaidade literária”. Ainda na carta, Ariano afirma que “colaborou no campo das outras Artes e fez o que me era possível pela Cultura brasileira, viajando, dando entrevistas, escrevendo, fazendo conferências, ajudando os mais moços, organizando concertos, exposições e espetáculos de várias naturezas” (SUASSUNA apud TAVARES, 2007, p.146). O autor fez esse pedido porque tinha recebido inúmeras solicitações para participar de vários eventos, tais como mesas-redondas, semanas culturais, entrevistas, homenagens, feiras de ciência, prefácios de livros, aulas, homenagens cartas de recomendação para instituições diversas, programas de televisão e de rádio, artigos, etc. nos últimos anos. Depois que trouxe esse esclarecimento para o público, Ariano deu seguimento aos seus escritos. O Auto da Compadecida e o Romance d’A pedra do Reino4 foram as obras que mais ganharam destaque e reconhecimento do público. Contudo, para o autor, a obra “a Farsa da Boa Preguiça” foi a mais bem realizada. No ano de 1995, Ariano Suassuna recebeu o título de Cavaleiro da Pedra do Reino concedida pela Associação Cultural Pedra do Reino da cidade de São José do Belmonte. Em dezembro no mesmo ano, Suassuna tomou posse da cadeira de nº 8 na Academia Pernambucana de Letras e posteriormente em 9 de outubro do ano de 2000, foi empossado da cadeira número 35 da Academia Paraibana de Letras. O autor teve algumas de suas peças adaptada para a televisão brasileira, tais como: Auto da Compadecida5, Farsa da Boa Preguiça, O Santo e a Porca e Uma Mulher Vestida de Sol. Ariano Suassuna revelou em entrevista a Marcus Vilar que quando resolveu ser escritor tinha preocupação em não escrever como os americanos ou europeus, ele queria que seus escritos expressassem a cultura do povo brasileiro, por essa razão, usou de folhetos como meio de expressão natural popular, principalmente do nordeste. 4 O romance d’A pedra do Reino teve três edições esgotadas em agosto de 1971, janeiro e agosto do ano de 1972. 5 O Auto da Compadecida ganhou duas versões cinematográficas, sendo elas dirigidas por Roberto Farias em 1987 e por Miguel Arraes no ano de 2000. 18 Nessa mesma entrevista, Ariano Suassuna confessou que não é regionalista, ele não simpatiza com a corrente literária. Ele afirmou que o barroco é que o faz inspirar, pois prefere as tragédias e comédias, na medida que são puras de arte, dessa forma, a expressão popular se torna mais privilegiada. Ele ainda disse que a visão do romanceiro e do teatro popular é de criar um ponto de vista usado pelo escrito como uma recriação poética do real. Na época em que as peça de Ariano Suassuna foram encenadas, os teatros brasileiros estavam passando por uma nova fase, pois o público estava valorizando cada vez mais os espetáculos cênicos, em particular, as encenações de comédia. Um dos motivos para que as peças de Ariano Suassuna tivessem tanto sucesso se deve ao fato da temática religiosa abordada, pois apresenta modalidades como religioso e o profano, moralidade, o mistério e o milagre, isso cria uma representação popular, já que representa os humildes. 19 3 A ORIGEM DO TEATRO POPULAR 3.1 O SURGIMENTO DO TEATRO De acordo com Araújo [200-], o surgimento do teatro se deu no século VI a.C. através de festas dionisíacas preparadas para homenagear o deus do vinho (Dionísio6) durante o período em que se faziaa colheita das uvas destinadas a bebida alcoólica. Nessas festas, eram realizados cortejos e cultos religiosos, além de, recitais de longa durabilidade. De acordo com historiadores, um homem chamado Téspis teria colocado uma máscara humana em seu rosto durante um desses cultos a Dionísio e teria afirmado ser o deus do vinho em praça pública. O acontecimento surpreendeu a todos que estavam no local, pois entendiam tal ato como um insulto, já que para eles, um deus deveria ser apenas louvado. Ainda de acordo com o pesquisador, há também a ideia que o teatro tenha surgido na pré-história, quando o homem primitivo, por meio da dança coletiva realizava ritos de celebração, perda e agradecimento. A partir disso, o homem começou, com o tempo, a realizar rituais sagrados com intuito de tranquilizar/conter os impactos da natureza, criando uma ligação com ela, e, com isso, o nascimento das danças miméticas que se caracterizavam como a história do mito em movimento. Araújo [200-] também releva que além dessas versões sobre o surgimento do teatro, existe ainda mais duas versões aristotélicas sobre o assunto. Na “Poética”, Aristóteles afirma que o teatro nasceu durante ritos de iniciação ao culto das deusas agrícolas Demeter e Perséfone, uma encenação anual do ciclo da vida que acontecia na cidade de Elêusis, onde uma semente era dada como o foco de toda demonstração, pois sua morte presenteava o nascimento de uma árvore, que por sua vez, faria nascer mais sementes. Aristóteles ainda traz outra concepção sobre o tema, dessa vez, ele afirma que o nascimento do teatro tenha dado em tributo ao herói Dório Adrausto, personagem que possibilitou o controle dos Dórios sobre os povos indo- 6 Um dos personagens mais importantes da mitologia grega, sendo considerado também como o deus da natureza, da fecundidade, da alegria e do teatro. 20 europeus que residiam na península. Dessa forma, o teatro seria a dramatização da vida de Adrausto e o seu lastimável fim. Embora haja muitas versões sobre o nascimento da segunda arte, o que importa é frisar que, ao longo do tempo seu desenvolvimento foi se estabelecendo e cada vez mais as artes cênicas foram ganhando formato até chegar aos dias de hoje. Para entendermos melhor a proposta do texto em asserção nesse trabalho, é preciso voltar no tempo e buscar a fonte da qual Ariano Suassuna se inspirou, o teatro de Gil Vicente. 3.2 O TEATRO POPULAR EM PORTUGAL Conforme Massaud (2008), o teatro popular surgiu na Idade Média e ganhou esse nome por conta das suas características intrínsecas, já que o tema e a linguagem eram simples e populares. Inicialmente, esse tipo de teatro começou com representações de breves quadros religiosos, retratando cenas bíblicas e encenados em datas comemorativas (sobretudo na páscoa e no natal) em altares de igrejas. Após isso, as encenações começaram a ser em entradas e nos pátios das igrejas. Foi nessa época que, ao sair das igrejas, os teatros passaram a ser de caráter profano, isto é, diante (pro) do templo (fanum). Posteriormente, as apresentações passaram a acontecer em feiras, mercados praças públicas e castelos europeus. Ademais, começaram a ser aceitos em reinos ibéricos. Ainda de acordo com Massaud (2008), é nesse contexto em que o teatro popular chega em Portugal e é absorvido por Gil Vicente7. Inspirado nas obras de Juan del Encina8, e nas apresentações de caráter cavalheiresco religioso, satírico e burlesco que Gil Vicente inicia seu teatro em 7 de junho de 1502, por ocasião do nascimento do futuro D. João III. Com interesse em saudar tal acontecimento, o dramaturgo declama em espanhol o Auto da Visitação na câmara real e é convidado a recitar o monólogo em festas de natal. Porém, aproveitou da oportunidade para 7 Dramaturgo e poeta português, cujo as obras continham críticas aos comportamentos e costumes da época. Ele é considerado o pioneiro do teatro português. 8 Poeta, músico e dramaturgo espanhol que também é conhecido como o pai do teatro ibérico. Uma de suas obras mais reconhecidas é o Triunfo da fama (1492). 21 encenar o Auto Pastoril Castelhano, e, a partir de então, se empenhou para escrever e representar teatro para a nobreza e levar suas peças para Lisboa e Santarém. Massaud (2008) ainda afirma que, antes de falecer entre os anos de 1536 e 1540, Gil Vicente havia preparado uma edição de suas obras, porém, devido ao seu óbito, essa obra foi publicada somente por seu filho, Luis Vicente, em 1562, intitulada “Copilaçaum de todas las obras de Gil Vicente”. Contudo, algumas das obras do dramaturgo foram omitidas e descobertas posteriormente. Durante toda trajetória, o teatro de Gil Vicente passou por algumas fases, das quais vale ressaltar três. A primeira fase inicia em 1502 e finda em 1514, nessa fase há a influência evidente Juan del Encina. A segunda fase ocorre entre os anos de 1515 e 1527, é o período em que suas melhores peças são encenadas, sendo o ápice de sua carreira. E, por fim, a terceira fase corresponde ao período de 1528 até 1536, nela, as obras de Gil Vicente estão sob a influência do classicismo renascentista9. Além disso, o teatro vicentino tem duas divisões, sendo ela o teatro tradicional e o teatro de atualidade. O primeiro corresponde as peças de caráter litúrgico, as de assunto bucólico e as de assunto de assunto influenciado pelas novelas de cavalaria. Já o segundo é definido pelo retrato satírico da sociedade que está incluso nele em muitas camadas sociais, desde a nobreza à plebe. Contudo, também há peças de classificações incertas. Além disso, Massaud (2008) revela que Luiz Vicente sugeriu que a obra “Compilaçaum de todas las obra de Gil Vicente” tenha quatro divisões, sendo elas: obras de devoção, comédias tragicomédias e farsas. Porém, de acordo com Massaud Moisés (1928), é uma classificação arbitrária e, portanto discutível: mistura o teatro pastoril com o religiosos, o cavalheiresco com o alegórico, separa as tragicomédias (aliás, rótulo descabido) das comédias, considerando “D. Duardos” entre as primeiras e desprezando o que há de comum entre elas, faz crer uma diferença nítida entre comédia e a farsa, quando na verdade, só existe um grau. Conforme Massaud (2008), ainda amparado financeiramente pelo Rei, Gil Vicente pôde incluir suas próprias convicções em suas obras, fazendo com que elas pudessem ter independência de caráter, sendo limitadas apenas pelo bom senso pelas restrições da corte. Assim, mesmo que o dramaturgo tenha escrito suas obras para um público rigoroso, ele não deixou de colocar seus gostos pessoais. Apesar do 9 O classicismo foi um movimento cultural que valorizou e resgatou elementos artísticos da cultura clássica (greco-romana) durante o período do movimento renascentista no século XVI. 22 teatro vicentino ter surgido no ambiente da corte, ele se configura como primitivo, rudimentar e popular. Submergido na autenticidade, o teatro de Gil Vicente tinha como objetivo entreter a corte e era organizado sob lei do improviso, já que as encenações iam se se desenvolvendo a partir das invenções do momento. Segundo Massaud (2008), é de supor que Gil Vicente esboçava um roteiro básico apenas para ordenar a encenação num sequência verossímil. O resto ficaria ao sabor do momento, e de toda sorte de alterações impostas pela lei do acaso. Devido a esse gosto ao improviso, os cenários das apresentações eram comuns e até mesmo ausentes, fazendo com que a mimica fosse de suma importância para o desenrolar da peça, já que o cenário contava apenas com uma cortina e uma cadeira. O teatro de Gil Vicente carregava em si sátiras de cunho social e, por isso, não relevou nenhuma das classes. Dessa forma, colocavaem prática o lema do castigat ridendo mores (rindo, corrige os costumes), no qual tem como princípio básico provocar a graça e o riso pelo cômido alicerçado do ridículo e na caricatura. Assim, exercia função purificadora, educativa e purgadora de vícios e defeitos. Por fim, Massaud diz que, este modo a sátira vicentina tornou-se algo de grande relevância, porque toca em feridas as sociedade, porém é equilibrada pelo pensamento cristão, inseridos nos autos de cunho medieval. Portanto, é nessas duas conjunturas que consiste os preceitos do teatro vicentino. E é baseado na sátira vicentina que Ariano Suassuna escreve a sua obra mais famosa e repercutida no país inteiro, “o auto da Compadecida”. 3.3 O TEATRO POPULAR DE ARIANO SUASSUNA De acordo com Coutinho (2004), utilizando da irreverência social e aparado pela fé religiosa, a obra de Ariano Suassuna traz uma reflexão sobre as relações existentes entre Deus e os homens, sendo retratadas através do universo do circo, onde os pobres ganham favoritismo e destaque contra os ricos, pelo simples fato do olhar cristão que defende os fracos e desprotegidos. 23 A obra de Suassuna, além de se inspirar na maneira de Gil Vicente, também tem como base três folhetos de cordel10. Como o escritor era um autor intertextual, ele fez uso da ideia central desses três folhetos, que lia durante sua infância, para dar origem a sua obra. Segundo Miranda (2013), o primeiro ato do “Auto da Compadecida” está baseado no cordel de Leandro Gomes Barros denominado “O dinheiro”, no qual conta a história do dono de um cachorro morto que quer enterrar seu animal em latim. O segundo ato é fundamentado no folheto do mesmo autor, denominado “A história do cavalo que defecava dinheiro”, que dá origem a história do gato que descome moedas, vendido por João Grilo à Mulher do padeiro. E por fim, o terceiro ato da obra de Suassuna é alicerçado na obra “Castigo da Soberba” do autor Anselmo Vieira Souza, na qual relata a história de julgamento divino intercedido pela Nossa Senhora. Ainda de acordo com Coutinho (2004), o teatro de Ariano Suassuna, assim como outros teatros pernambucanos, preserva e faz uso das raízes populares, mostrando a cultura e a arte local, usufruindo de personagens meramente nordestinos, tais como: o cangaceiro, o coronel, a mulher adultera, o padre e espertalhão. E é através do último que a trama é constituída de circunstâncias inusitadas, já que é João Grilo que se envolve nas confusões entre os outros personagens na cidade interiorana e até mesmo após a sua morte. Deste modo, o personagem principal, João Grilo, é moldado com essa esperteza para conseguir sobreviver no meio em que está inserido. Sobressaindo assim, como uma figura típica do nordeste, pois mesmo sendo analfabeto, usa de sua esperteza para enfrentar a miséria do ambiente. E é por estar presente em todas as sequências que a peça está voltada para esse personagem, na perspectiva da estrutura da mesma. Mesmo sendo ao estilo quinhentista português, essa obra de Ariano Suassuna se transfigura como regionalista, já que faz transparecer temáticas sociais do nordeste brasileiro. Nesta perspectiva, é possível observar vários aspectos desse princípio na peça, tais como: o coronelismo (sendo representado na forma autoritária do personagem Antônio Morais); A pobreza (evidenciada nas péssimas condições de trabalho); Os cangaceiros (grupo de pessoas que realizavam saques e usavam da violência para aterrorizar o nordeste brasileiro); A seca (condição pela qual os personagens são inseridos). 10 Gênero literário muito popular no Nordeste, escrito com versos em forma de rima. Seu nome tem origem devido a maneira em que era vendidos pendurados em cordas 24 A peça teatral “Auto da Compadecida” é uma obra que está moldada dentro de um enquadramento do teatro medieval português, já que utiliza do ponto de vista do teatro vicentino, como já dito anteriormente, porém é uma obra que tem um enfoque regionalista, já que sua proposta é abordar as narrativas nordestinas. Portanto, com a união do modelo medieval e do modelo regionalista, a obra de Ariano Suassuna se configura no estilo de época do pós-modernismo, já que se introduz nas ideias gerais do movimento. Visto que um auto tem por finalidade levar cultura popular ao público, e, que por se tratar de conteúdo cômico, o autor designou que a trama de sua peça acontecesse em um circo. Ambiente favorável para afirmar ambas as propostas, já que é um espaço onde o pitoresco se estabelece e tem a predileção do povo, tornando-se então uma representação dentro da representação. Por se tratar de um texto teatral, a estrutura do “Auto da Compadecida” segue o parâmetro definido para esse gênero, ou seja, o enredo da obra acontece em uma sequência linear elaborada a partir de uma apresentação até desfecho da história. Além disso, o exemplar é constituído em quase sua totalidade por falas dos personagens, devido ao fato de que o texto teatral é escrito para ser representado e não contado, porém há também colocações do narrador-personagem conforme a trama vai se desenvolvendo. Por isso, as falas dos personagens tem grande importância nessa modalidade, por que é através do diálogo que a peça se estabelece. A princípio, a obra de Suassuna inicia com algumas sugestões de como o cenário pode ser construído para a encenação – ressaltando que esse teatro deve ser mais aproximado dos espetáculos de circo – e a maneira que os atores irão entrar no palco. Logo após isso, o narrador dá um introdução do conteúdo que será abordado e inicia-se os diálogos. Por fim, finda com um verso de um dos romances populares em que ela se baseou. Assim, o objetivo maior do dramaturgo era escrever um auto de cunho moral que visasse retratar tradições e costumes locais, colocando em destaque problemas regionais do nordeste, além de, misturar cultura popular e tradições religiosas, utilizando do catolicismo. Com isso, é interessante notar que a realidade nordestina também está presente por meio de seus recursos culturais mais relevantes: a literatura de cordel e a crença. 25 4 REFERENCIAL TEÓRICO De acordo com Johnson (2003), as possibilidades de inter-relacionamento da literatura com o cinema são praticamente infinitas, isto é, os meios que a sétima arte pode utilizar para fazer referências ou alusões fílmicas são enormes, porém sendo realizadas através de recursos visuais, orais ou até pela escrita. Por exemplo, um cineasta pode optar em colocar versos de um poema rabiscados em uma parede de uma casa, ou acrescentar desejos de um personagem em ler alguma obra, ou até mesmo fazer com que o protagonista expresse algum trecho de um livro, ou etc. Porém, cabe destacar que as distinções entre as duas artes não se reduz apenas para esses recursos, mas para aquilo que é inerente a cada uma. O crítico José Carlos Avellar escreve em seu texto O chão da Palavra: Cinema e literatura no Brasil que “A relação (literatura e cinema) se dá através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde cada poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que dever fazer”. Avellar apresenta nesse trecho uma solução para fazer compreender de forma mais propícia a relação das dois sistemas semióticos, já que considera que uma adaptação cinematográfica precisa ter sua independência de inventar e acrescentar aquilo que for necessário. Bazin (1999, p.93) afirma que a relação entre as duas artes é bastante proveitosa para a literatura, porque o cinema consegue instigar alguns telespectadores para procurar pelo texto de origem. As adaptações “não podem causar danos ao original junto a minoria que o conhece e os ignorantes, ou se contentarão com o filme ou terão vontade de conhecer o modelo”.Contudo, em alguns casos, filmes são criticados devido ao fato de que não reproduzem da mesma forma aquilo que está presente nos romances, porque não se apresentam de forma “fidedigna” a obra-modelo. Dessa forma, essa insistência na fidelidade se torna um problema porque é através dela que alguns julgamentos artificiais que desvalorizam a obra cinematográfica são postos. Porém, não é um problema para quem não conhece a obra em que o filme é baseado, já que não irá fazer críticas sobre as mudanças na película. 26 De acordo com Jonhson (2003), um aspecto que contribui para essa insistência na fidelidade está ligado a um estabelecimento de hierarquia entre as duas formas de expressão, isto é, devido a adaptação se basear em uma obra já existente, as pessoas tendem a julgá-la negativamente, porque não consideram a dinâmica de produção da mesma e querem que o filme seja uma cópia. A insistência na fidelidade – que deriva das expectativas que o espectador traz ao filme, baseadas na sua própria leitura do original – é um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios estão inseridos. Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco materiais de expressão diferentes. (JOHNSON, 2003, p. 42). Johnson (2003) aponta nessa passagem que, para se fazer uma análise entre uma obra literária e uma cinematográfica é preciso colocar em evidência as propriedades de ambas as artes para não desconsiderar aquilo que é da essência de cada uma, ou seja, é importante que os recursos das duas obras sejam abordados porque eles podem ser manipulados de diversas maneiras. Assim, ao explorar esses elementos, uma análise estará sendo mais produtiva, pois não irá ignorar as diferenças entre os dois meios. Ainda sobre esse assunto, Ismail Xavier (2003), afirma que a preocupação com a fidelidade é algo infundado, pois ambas as obras estão em diferentes processos “o livro e o filme nele baseado são como dois extremos de um processo que comporta alterações em função da encenação da palavra escrita e do silêncio da literatura” (XAVIER, 2003, p. 62). Em síntese, isso significa dizer que uma obra artística, seja ela um conto, poema, pintura, romance, filme, escultura ou qualquer outra forma de expressão, tem que ser avaliada nos valores de seu próprio campo cultural, ou seja, esperar que uma adaptação seja avaliada por critérios que não são específicos do seu campo não é oportuno. Então, é evidente que uma adaptação cinematográfica não precisa ter fidelidade ampla à obra em que ela é baseada, pois constituem dois campos de produção cultural distintos, embora haja um nível de relacionamento entre eles, já que a literatura “é um sistema ou subsistema integrante do sistema cultural mais amplo, que permite estabelecer relações com outras artes ou mídias” (CAMARGO, apud CURADO, 2007). 27 Para Curado (2007), ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película, suas crenças, seus objetivos e sua estilística. Assim eles buscam aproximar, ou traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao cinematográfico, observando as possibilidades de embricamento de um meio com o outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar. Dessa forma, colocam na película aquilo que acredita ser melhor. À vista disso, vale destacar que, mesmo que uma adaptação utilize a literatura como fundamento para a sua elaboração, é indispensável considerar que uma produção cinematográfica tenha em si valores culturais, subjetivos e políticos do produtor da película, e isso implica dizer que a visão de mundo do cineasta é que vai determinar a forma que o filme será produzido, dando-lhe novas perspectivas e mudanças, criando assim, uma nova obra. Desse modo, é válido afirmar que o cineasta tem no texto literário, o incentivo para a criação de uma nova arte, usando o texto de origem como um suporte, isto é, a adaptação será inovadora, mesmo que seja embasada no livro. Bazin (1999) defende que o cinema é uma arte jovem, e que, devido a isso, a sua evolução foi necessariamente concebida através de exemplos das artes consagradas, ou seja, o cinema sendo uma arte nova usufrui do aporte das outras artes, e isso deixa claro que o hibridismo entre as artes foi preciso para que o cinema viesse a se estabelecer com sua autonomia. Segundo ele, a história do cinema desde o início do século, "seria portanto resultante dos determinismos específicos da evolução de qualquer arte e das influências exercidas sobre ele pelas artes já evoluídas”. Devido a isso, convém salientar que uma adaptação cinematográfica não pode ser vista de forma negativa, porque toda e qualquer película é uma constante da história da arte do cinema. Ainda discutindo sobre a transformação do texto literário para o cinematográfico, Mitry (2002) releva que precisamos sentir a essência de cada esfera artística, pois a “literatura nos faz sentir o mundo de modo abstrato, por meio de palavras e figuras do discurso” e o cinema desempenha função mais ríspida “é um processo de percepção bruta”. Isso significa dizer quer que o autor também condiz com a ideia de que ambos os sistema semióticos tem em si, características peculiares que os fazem ser diferentes, e que por isso, se organizam de maneiras distintas, tornando-se dessemelhantes entre si. 28 É muito mais produtivo, quando se considera a relação entre literatura e cinema, pensar na adaptação, como Robert Stam, como uma forma de dialogismo intertextual; ou como quer James Naremore, que vê a adaptação como parte de uma teoria geral da repetição, já que narrativas são de fato repetitivas de diversas maneiras e em meios artísticos ou culturais distintos; ou como Darlene Sadlier, que propõe levar em consideração as circunstâncias históricas, culturais e políticas da adaptação, ou ainda como José Carlos Avellar, com a metáfora do desafio dos cantadores do Nordeste, que improvisam livremente em torno de um determinado tema. (JONHSON, 2003, p. 44). Nesse trecho Johnson (2003) revela aquilo que é a proposta desta pesquisa, já que afirma como a relação da literatura com o cinema deve ser vista. Em síntese, o que se destaca é que essa relação é bastante proveitosa para as duas artes e, por isso deve ser vista com bons olhos. 29 5 ANÁLISE DAS OBRAS 5.1 ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA Seguindo a linha de pensamento de Silva (2012), a relação entre a literatura e o cinema vem sendo desenvolvida a partir da descoberta do potencial cinematográfico para contar história. Desde então, várias obras literárias ganharam sua versão fílmica, ou melhor, sua adaptação cinematográfica. Assim, podemos dizer que processo da adaptação refere-se à transposição de um texto literário ou dramático para o audiovisual, cujas possibilidades criativas são vastas, porém seguem o princípio dos textos em que são baseados. Neste sentido, Bezerra (2004) afirma que muitos teóricos começaram a analisar a relação entre as duas artes, comparando-as em grau de fidelidade ao texto de origem que, durante muito tempo, foi o centro dos debates sobre adaptações cinematográficas, já que cineastas eram julgados por critérios específicos ao campo literário (as propriedades sensíveis do texto). Contudo, os estudos sobre adaptação cinematográfica evoluíram e foram consagrados com novos aportes teóricos. Assim, os cineastas ficaram mais desprendidos para interpretar livremente textos originais, dando-lhes outras perspectivas para fazer compreender determinadas passagens das obras literárias. A adaptação cinematográfica deve dialogar não só com o texto original,mas também com seu contexto, atualizando o livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores neles expressos. (XAVIER, 2003, p.62). A partir dessas perspectivas, Ismail Xavier afirma que para fazer uma análise de adaptações é preciso verificar primeiro o que há em comum entre a obra literária e a obra cinematográfica. Assim, uma análise deve partir da narrativa, pois cada esfera literária e cinematográfica tem sua forma de contar a história, ou seja, modos característicos de descrever acontecimentos, sendo o eixo comum entre elas. Dessa forma, a presente análise busca realizar observações nas duas obras para fazer uma relação entre as mesmas, mostrando suas diferenças e semelhanças, e evidenciando que ambas constituem dois campos de produção distintos, e devido a isso, a linguagem de cada meio deve ser respeitada. 30 Assumindo o pressuposto de que o autor da adaptação irá gerenciar a história/fábula e a trama, é possível afirmar que caberá a ele reproduzir a trama em maior ou em menor semelhança ao texto original ou conduzir de outra forma, suprimindo, acrescentando ou mudando os acontecimentos da história que será reproduzida. Portanto, para analisar uma adaptação cinematográfica é essencial levar em consideração o ponto de vista dos autores, pois ao entender as escolhas de cada autor, é possível determinar os parâmetros comuns e diferentes entre a obra literária e a adaptação, já que o cineasta e o escritor tem visões e propósitos diferentes. O cinema apresenta mais vantagem de representação na obra de Ariano Suassuna, por que o texto original trata-se de uma obra dramática, ou seja, uma adaptação cinematográfica conta com recursos que irão mostrar ao telespectador a expressividade dos atores, a manipulação do espaço e do tempo, o que permite intensificar efeitos dramáticos e psicológicos. Isso se faz acontecer devido a aproximação da câmera, trazendo multiplicidade das distâncias e dos ângulos de composição. 5.2 ANÁLISE DAS OBRAS 5.2.1 A narrativa Para se fazer uma análise entre uma obra literária e uma obra cinematográfica, alguns recursos precisam ser abordados. Explorar a maneira em que os acontecimentos da trama se desenrolam é um elemento que colabora com essa análise, já que a narrativa faz com que o leitor ou o telespectador compreenda melhor a leitura ou produção fílmica. Assim, a forma em que a obra é apresentada demonstra a maneira da sua compreensão. A princípio, a obra literária de Ariano Suassuna começa com a narração do Palhaço se dirigindo ao público para anunciar o espetáculo e, logo em seguida, há uma interação feita pelo personagem João Grilo com o mesmo e com o público, como forma de acréscimo ao texto do narrador. Até então, a narrativa do texto segue a 31 estrutura de um representação de circo, com o Palhaço marcando as situações técnicas. Contudo, ao introduzir na história do texto, percebe-se que há uma interrupção, pois os personagens de João Grilo e Chicó começam um diálogo pela metade, como se já tivessem iniciado a conversação antes. Neste ponto, percebe-se uma configuração de uma peça teatral, pois compreende-se que os personagens entram no palco desenvolvendo o texto. Assim essa encenação mostra que os personagens João Grilo e Chicó já estão a par doença da cachorra enquanto no filme a mulher do padeiro toma conhecimento dessa doença e revela para os telespectadores. Dessa forma, é interessante notar que a obra cinematográfica deixa mais fácil a compreensão da primeira cena, pois a adaptação textual traz uma sequência cronológica “descomplicada”. Sendo assim, a doença da cachorra é melhor introduzida na trama do filme de Roberto Farias, porque é mulher do padeiro e dona do animal que descobre a situação e revela para os telespectadores. Também cabe reafirmar que toda a narrativa é moldada para se dirigir as peripécias do personagem principal, sobressaindo como uma figura em que está presente em todas as cenas ao utilizar da sua sabedoria para enfrentar a miséria do ambiente. 5.2.2 O narrador Há muitos aspectos para ser analisados nesta pesquisa. Pensando nisso, a presença do narrador é um quesito a ser sondado, já que a maneira em que ele é posto pode contribuir na construção do filme. Figura muito importante na peça teatral, o narrador, que também é personagem, tem funções metatatral11 e anti-ilusionista12, porque é ele quem narra, anuncia para o público o que está prestes a acontecer, comenta sobre o que se passa em alguns trechos do espetáculo. Além disso, há no texto da peça teatral várias passagens que ajudam na apresentação da encenação, já que é o palhaço (narrador) 11 Incumbência de lembrar constantemente o espectador que ele está no teatro, colocando-se entre a ação representada e aquele que a assiste. 12 Função de fazer com que o telespectador acredite em algo que corresponde à realidade. 32 que dá dicas de como proceder com as cenas e ainda descreve como o personagem pode utilizar do espaço físico. Na adaptação cinematográfica “Os trapalhões no auto da Compadecida” (1987), de Roberto Farias, o narrador é de muita importância para a trama, mas não se mostra tão ativo quanto na peça teatral (mesmo tendo quase todas as funções), já que não foi preciso ele fazer a apresentação do cenário ao público ou dar muitos detalhes sobre a peça ou sobre as cenas, porque esse recurso, embora seja utilizado também no cinema, é algo opcional nos filmes, já que as adaptações contam com a visão da imagem. No texto da peça teatral, há muitos momentos em que o palhaço interfere nos finais das cenas para descrever ou até mesmo avisar o público que algum novo cenário será posto. O que se percebe é que a escolha de um palhaço para fazer essas interferências é algo lógico, já que em espetáculos de circos, cabe a esse personagem entreter o público para que algo seja montado. Um dos momentos em que essa interferência acontece é logo no início da peça, cabendo a ele explicar o cenário, “O distinto público imagine a sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é a sua esquerda. O resto é com os atores” (SUASSUNA, 2004, p.25) Em ambas as obras o narrador é explícito, pois se apresenta como o autor da obra, e também é um narrador-testemunha13, já que é uma das personagens da história contada, porém não exerce função principal. Nas duas obras, ele participa de uma cena com o bispo e da cena do enterro de João Grilo, onde ajuda o personagem Chicó a carregar o corpo do amigo. No filme, o narrador-personagem mesmo se intitulando como o autor da obra, mostra não ter conhecimento sobre dois momentos que acontecem na trama. Um desses episódios ocorre logo na chegada dos cangaceiros à cidade, pois assustado com os tiroteios, o palhaço se esconde para não ser atingido e afirma que não tinha escrito aquela cena, isso demonstra que mesmo sendo o autor, ele também pode sofrer uma ação porque é personagem. O segundo momento ocorre após a personagem João Grilo ressuscitar no enterro, pois o palhaço foge de cena ao achar que ele é uma alma penada. 13 Narrador testemunha é um personagem que vivencia os fatos e analisa tudo o que acontece, em outras palavras, ele é narrador e personagem ao mesmo tempo. 33 O palhaço em ambas as obras se mostra irônico com a igreja, porém na obra de Roberto farias, essa ironia é acrescentada a expressões sarcásticas em uma cena em que o bispo aparece na praça da cidade. Isso se dá para demonstrar o descontentamento do narrador onisciente com a arrogância do bispo. Bezerra (2004) revela em seu artigo que “O auto da Compadecida”, de Miguel Arraes14, não faz o uso do narrador para contar, comentar a história ou descrever os cenários nemas situações, retirando assim, o palhaço como um dos personagens. Contudo, ele acrescenta novos personagens de outras obras do autor Ariano Suassuna no filme, a exemplo do Cabo 70 e Vicentão, ambos personagens fazem parte da peça “Torturas de um coração”. Dessa forma, Guel Arraes aproveitar para criar novas situações na história, já que ele os introduz como amantes da mulher do padeiro e ainda cria uma competição entre os personagens introduzidos e Chicó para disputar a filha a do major Antônio Moraes, Rosinha. Dessa forma, conclui-se que o cineasta Roberto Farias optou para que a presença do narrador em sua obra tenha sido menos participativa se comparado ao texto original, transparecendo uma mudança no campo de produção de sua obra. 5.2.3 Personagens Outro quesito a ser analisado na relação entre as obras é a utilização dos personagens. A princípio, a peça teatral de Ariano Suassuna conta com dezesseis personagens principais, sendo eles: o Palhaço, João Grilo, Chicó, Padre João, Antônio Morais, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Frade, Severino do Aracaju, Cangaceiro, Demônio, Encourado, Manuel e a Compadecida. Contudo, na adaptação de Roberto Farias há a aparição de um personagem adicional que se mostra no texto original através de uma fala do major Antônio Morais, na qual o mesmo revela que seu filho mais moço está doente e que precisa da benção do padre para depois ir ao Recife realizar o tratamento. O cineasta aproveitou o trecho para inserir uma cena, na qual o filho de Antônio Morais aparece acamado em um dos 14 Cineasta e produtor da segunda adaptação cinematográfica do Auto da Compadecida. Além de várias outras obras cinematográficas brasileiras, tais como: Caramuru – A invenção do Brasil e Lisbela e o Prisioneiro. 34 quartos da casa, e em conversa com seu pai, pede para que o padre o abençoe. Assim, é notório perceber a maneira em que o cineasta optou para fazer compreender essa passagem da obra literária. O texto de Ariano Suassuna não traz nenhuma característica física ou emocional dos personagens, porque o narrador não faz essa descrição, porém a imagem de cada personagem é entendida com o decorrer da história. No filme de Roberto Farias, a esperteza de João Grilo fica evidente no tratado do testamento da cachorra com o padre, bispo e sacristão; o adultério da mulher do padeiro quando ela dá em cima do cangaceiro em frente ao marido; a soberba do sacristão, do padre e do bispo, mudando de ideia sobre o enterro da cachorra por causa do testamento; o medo de Chicó, que em duas cenas se revela frouxo. A adaptação cinematográfica de Roberto Farias utilizou alguns trechos das falas do narrador para criar novas cenas, fazendo com que o narrador não aparecesse tanto. Ele também transformou algumas falas do narrador em falas do personagem em que estava em questão. Ambas situações acontecem em trecho em que o major Antônio Morais faz a reclamação ao bispo sobre o padre ter chamado a sua mulher de cachorra. “Morais saiu furioso com o padre e acaba de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal das contas representa a paroquia” (SUASSUNA, 2004, p.72) 5.2.4 Ordem dos acontecimentos Outro quesito a ser observado é a organização das cenas e falas dos personagens perante ao texto de Ariano Suassuna. O que se observa no filme de Roberto Farias é que algumas das cenas não seguem a mesma linha de tempo do texto original, ou seja, algumas sequências de cenas não são inseridas no mesmo curso do livro. Entre essas cenas estão as duas histórias de Chicó e a história do gato que descome dinheiro. 35 A princípio, a fábula do gato que descome dinheiro é inserida no texto teatral logo após a confusão entre o padre, bispo e João Grilo, na qual o bispo fica sabendo do testamento da cachorra. Contudo, a sequência entre esses dois trechos é invertida no filme de Roberto Farias. Isso também acontece na fábula do cavalo bento e na fábula do pirarucu. Há também na adaptação cinematográfica de Roberto Farias mudanças em relação a ordem das falas dos personagens em um cena específica, porém mesmo com essa alteração, as falas utilizadas são as mesmas do texto original. No filme, essa alteração da ordem das falas se dá com a chegada precoce do sacristão informando que o cachorro já havia morrido, o que dá início a discussão do enterro. A alteração da ordem das falas modificou em parte o sentido do texto original, já que as falas que eram para convencer o padre a benzer o cachorro enquanto ainda vivo se tornaram falas para convencer o padre a enterrar o cachorro morto. Contudo, não houve mudança no contexto do texto. Observa-se que nesse trecho há outra mudança na ordem das cenas, pois no texto original, a história do pirarucu, contada por Chicó, é acrescentada no meio da discussão sobre benzer e enterrar o cachorro, porém, percebe-se que o roteirista optou para que essa história fosse acrescentada em outro momento para que a cena da discussão com o padre não fosse interrompida. Dessa forma, o roteirista optou em começar a cena a partir das falas da páginas 55/56, pulando para as páginas 60/61, retornando para as páginas 53/54 e finalizando na 62. Embora tenha modificações na ordem de alguns acontecimentos, o diretor manteve a risca o texto original, já que não fez alterações nas falas dos personagens, sendo assim, a obra de Roberto Farias tem semelhança grande com o texto de Ariano Suassuna. 5.2.5 A estética da adaptação Uma das preocupações em uma adaptação fílmica está direcionada no aspecto estético da obra, isto é, exteriorizar o espaço e características de personagens já concretizados é fundamental para uma melhor representação do texto de origem. 36 Dessa forma, analisar tais elementos mostra o cuidado do cineasta em gerar significado através do contexto (cenário, figurino, atores, música) para que o receptor interprete melhor a película. Nesta perspectiva, percebe-se que cenário utilizado na adaptação cinematográfica de Roberto Farias é semelhante a proposta do texto de origem, pois o espaço escolhido é uma pequena cidade do interior do nordeste, para reproduzir assim, a cidade de Taperoá, com as caraterísticas originais da infância de Suassuna. Então, o que se mostra na adaptação são os três imóveis principais (igreja, padaria e a casa do major Antônio Morais), a praça (onde a maioria das cenas se passam) e as casas em volta. Do mesmo modo, o cenário também mostra aspectos da região como o território seco e a vegetação formada por plantas adaptadas ao clima. Ainda sobre esse ponto de vista, os trajes dos personagens também fazem parte do fundamento estético, já que contribuem para a personalização dos mesmos. João Grilo é customizado com um chapéu e vestes surradas de coloração que remete ser antigas para ressaltar sua pobreza. O frade tem figurino simples e limpos que evidenciam sua humildade, já que o mesmo ator irá representar o Manuel posteriormente. O bispo e o Padre seguem a ascendência hierárquica da igreja, sendo o figurino do Bispo mais vistosa e imponente. Antônio Morais é customizado com roupas de um coronel para destacar sua autoridade e prosperidade financeira. Os cangaceiros vestem-se com trajes de couro retratando roupas típicas usadas no cangaço. O padeiro é vestido a moda inglesa com gola borboleta e colete. Já a Mulher do Padeiro e Chicó são retratados de forma simples. Nota-se que figurinos foram criados tendo como base os anos 30. A escolha dos trapalhões para atuar no filme de Roberto Farias foi muito benéfico para a adaptação, pois o humor que o grupo faz é relativo a proposta do texto teatral,já que se trata do cômico. Isso fica claro em várias cenas do filme, por exemplo, no momento em que João Grilo tenta fugir do padre e os dois ficam correndo em círculos na praça, o que faz com que o frade dê gargalhadas. Outro momento em que fica mais em evidencia é quando o padeiro descobre a farsa do gato que descome dinheiro e vai tirar satisfações com João Grilo e Chicó munido de panelas, andando rapidamente, fazendo lembrar do personagem Charlie Chaplin, arremessa a panela 37 que acidentalmente atinge o bispo, e depois inicia-se uma perseguição, deixando em evidencia a comédia burlesca15 em que os trapalhões fazem uso. Já a obra cinematográfica de Guel Arraes não faz uso dessa comédia, porém é evidente o humor em várias passagens que também são da obra de Ariano Suassuna. O filme é mais expressivo e faz uso de efeitos tecnológicos para dar mais ênfase nas histórias de Chicó. “Ao escrever esta peça, onde o combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, por que acredita que esse povo sofre é um povo salvo e tem direito a certas intimidades” (SUASSUNA, 2004, p.23) 5.2.6 O texto da adaptação Por fim, como último elemento dessa análise, acreditamos que o texto da adaptação seja tão relevante quanto os outros recursos, pois é um quesito em que a uma semelhança com a obra original se evidencia, porém, essa semelhança é vista como um artifício despretensioso e não na qualidade de uma avaliação criteriosa da película. O que se observa é que o cineasta utilizou o texto da peça teatral quase por completo, realizando apenas alterações mínimas nas falas dos personagens, que consequentemente, não constituem como mudanças muito evidentes. Isso se deu pelo motivo da participação de Ariano Suassuna como roteirista do filme, juntamente com Roberto Farias. Dessa forma, o que se observa é que a intenção do cineasta e do autor foi deixar a obra cinematográfica semelhante ao livro, aproximando-os não apenas nesse sentido, já que a película também ficou com um formato parecido com uma peça teatral, e isso se mostra na última cena, onde os atores se juntam para aplaudir. 15 A comédia burlesca é usada em obras ou espetáculos que tem como propósito ridicularizar um determinado tema. Incialmente, essa comédia surgiu como um subgênero literário, mas hoje em dia está associada a teatros de variedades 38 Roberto Farias também optou em reduzir e retirar algumas das falas dos personagens, fazendo com que os diálogos entre eles ficassem mais acelerados, tornando a adaptação mais próxima de um arranjo teatral desse gênero, pois mesmo que a peça se constitua em conversações, na maioria das vezes não há falas estendidas. E isso também traz a hipótese de que os diálogos mais frenéticos tenha favorecido na evidenciação do humor no filme, pois é um recurso que ajuda a causar a zombaria. Mesmo que o texto da adaptação tenha sofrido redução se comparado com o texto original, não há detrimento na história em si, ou seja, não houve nenhum corte significativo na trama, todos os fatos relevantes se mostram presentes, fazendo com que a adaptação não tenha mudanças bruscas. O que se percebe é que alguns desses cortes feitos faziam parte da narração, cuja finalidade é revelar ao leitor o que está ocorrendo. Por exemplo, no trecho em que Severino é baleado, há o seguinte passagem: O cangaceiro ergue o rifle de novo e atira. Severino cai e o Cangaceiro pega a gaita (SUASSUNA, 2004, p.128). Isso significa dizer que a narração é utilizada para a criação da cena, já que o cinema conta com o recurso da imagem. Contudo, muitas falas também são cortadas, e é interessante notar que algumas dessas falas se fazem presente na película de Guel Arraes. Por exemplo, durante o julgamento, o Encourado volta-se para João Grilo, mas a Compadecida se põe entre os dois e o Encourado corre para o inferno. Em seguida, ela fala: Na raiva, virou-se para você e me viu (SUASSUNA, 2004, p.186). Produzindo assim, uma das cena mais marcantes do filme. Portanto, vale ressaltar que, mesmo que as duas adaptações tenham sido baseadas na mesma obra, é notório perceber divergências entre elas, porque cabe ao cineasta reproduzir aquilo que acredita ser mais importante para a sua película. Dessa forma, conclui-se que todas essas observações feitas nessa análise expressa as escolhas realizadas pelo cineasta Roberto Farias em sua adaptação fílmica, revelando que a dinâmica de produção da mesma está voltada para a visão de mundo do cineasta, uma vez que foi livre para reproduzir a obra da maneira que acreditou ser a melhor. 39 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Seguindo as linhas de pensamentos aqui expostas, esta pesquisa buscou mostrar, através dos resultados, as especificidades de cada gênero artístico para que a análise fosse mais rica, fazendo com que as propostas de ambas as obras fossem trabalhadas. Consequentemente, as ideias que o cineasta Roberto Farias teve para realizar sua produção cinematográfica foram apresentadas da mesma forma que as propostas do texto literário de Ariano Suassuna, estabelecendo assim, um eixo entre as duas obras que evidencia suas diferenças. Diante disso, destacou-se nessa pesquisa algumas mudanças específicas realizadas no filme, como por exemplo, a implementação de um personagem que era apenas citado por outro personagem, acrescentando-lhe falas através de outra fala. Nesse ponto, vemos a forma em que o cineasta utilizou dos recursos do cinema para transformar um signo em outro, criando uma cena da maneira que achou melhor para fazer com que o telespectador compreendesse melhor a passagem. Outro aspecto que também mostrou mudanças na produção fílmica foi o texto da adaptação cinematográfica que foi reduzido para ter efeitos nas conversações, tornando-as mais aceleradas para evidenciar o humor no filme. As possibilidades de criação cinematográfica mostram o livre-arbítrio de cineastas com suas produções fílmicas. E é por meio desse livre-arbítrio que esse trabalho apresenta observações das obras em questão com intuito de expor a liberdade recreativa de Roberto Farias em sua obra Os trapalhões no Auto da Compadecida. Assim, o propósito desse texto não é afirmar que uma obra é melhor do que a outra, ou se uma obra está correspondendo às expectativas postas sobre ela, mas estabelecer um eixo entre as duas obras e apresentar diferenças que evidencie o processo de produção de cada uma delas. Assim, conclui-se que este trabalho usou das concepções dos autores aqui referidos sobre a relação da literatura com o cinema para realizar da melhor forma uma análise da obra literária de Ariano Suassuna e da obra cinematográfica de Roberto Farias, respeitando as singularidades de ambas e não usando de uma hierarquia para depreciar alguma das duas. Além disso, mostrar as diferenças e semelhanças foi essencial para chegar ao resultado dessa pesquisa. 40 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Lindomar da Silva. A história do Teatro. InfoEscola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/artes/historia-do-teatro/> Acesso em 02 de abril de 2018. BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. Editora Brasiliense, São Paulo, 1991. ______. (1999). Por um cinema impuro. Tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense. In: CURADO, Maria Eugênia. Literatura e Cinema: adaptação, tradução, Diálogo, Correspondência ou transformação? Temporis [ação], Goiás, v.1, nº9, Jan/Dez 2007. BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004. BEZERRA, Cláudio. Do teatro ao cinema – Três olhares sobre o Auto
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