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Aluna: Aline Carvalho da Silva Análise do poema “Negra” de Noémia de Sousa Mamanguape 2020 Considerações iniciais O presente trabalho tem como objetivo analisar o poema Negra que está presente na obra Sangue Negro (1990), da escritora moçambicana Noémia de Souza. Diante do exposto, inicialmente será apresentado um breve resumo sobre a poesia moçambicana caracterizando suas fases que são a colonial, nacional e pré-colonial. Além disso, será apresentado um pouco sobre a autora e sua representatividade na poesia moçambicana. Por fim, será desenvolvida a análise do poema identificando as características e aspectos que condizem com a poesia produzida em Moçambique com o objetivo de comprovar a construção identitária de Moçambique através da poesia. Poesia Moçambicana Moçambique se tornou colônia de Portugal em 1498 quando Vasco da Gama chegou ao território moçambicano, e ganhou sua independência em 1974 com o fim da ditadura de Salazar. Sabe-se que foram anos desde a chegada dos portugueses até a independência do país, nesse espaço de tempo, os moçambicanos viveram dias difíceis, lutando contra os opressores que os humilhavam, discriminavam e exploravam com trabalho escravo forçado. O sofrimento do povo moçambicano foi escrito em obras que inicialmente eram publicadas em jornais, dessa maneira, as literaturas produzidas na época revelavam a realidade em que aquelas pessoas viviam e apesar de muitas vezes terem sido censuradas, foram um meio de denúncia e resistência daquele povo. A literatura escrita em Moçambique surge no início do século XX, a partir da imprensa, os jornais foram os veículos responsáveis pelo desenvolvimento dessa literatura. Portanto, foi a partir dos jornais O Africano e O Brando Africano criados pelos irmãos Albasini, que foram divulgadas poesias contra o sistema colonial da época. O processo de consolidação da literatura moçambicana se deu a partir de três fases, sendo a primeira denominada fase colonial, a segunda chamada fase nacional e a terceira fase pós-colonial. Cabe destacar que cada fase possui suas características, representantes e obras. A fase colonial é constituída pelos percursores da literatura moçambicana, responsáveis pela publicação das primeiras obras. De acordo com esse aspecto, cabe ressaltar que as poesias dessa fase seguiam os padrões europeus. Como um dos principais representantes dessa fase, temos Rui Noronha (1909-1943), autor de obras que se voltavam para os conflitos e impasses causados pelo colonialismo, mostrando a realidade da vida dos mestiços e negros. Outro escritor representante dessa fase é João Dias, que através de uma obra fictícia tenta desmascarar e mostrar a realidade social, mostrando como o povo moçambicano sofreu com o invasor europeu, espelhando a realidade através de seus personagens. "O leitor é confrontado com temas da exploração do negro, do racismo nas suas diversas formas, da violência física e psicóloga a qual é o sujeito o moçambicano, da duplicidade do mulato a negar as suas origens, do direito colonial a serviço do opressor, da mulher transformada num simples objeto, da idealização do Brasil em resultado da mestiçagem social." (DIAS, 1952 apud FONSECA; MOREIRA, 2017, p 30) Portanto, a fase colonial, apesar de ter sido escrita de acordo com os padrões europeus tem um caráter realista que mostra os problemas da colonização e o sofrimento dos moçambicanos. Os autores expõem a cruel realidade da vida do negro, mostrando a exploração que eles sofriam, o preconceito, a violência, entre outras injustiças. Além dessa fase, há a fase nacionalista, constituída por obras que de caráter político, sendo definida com uma literatura de combate. Os representantes dessa fase ansiavam pela independência de Moçambique e expressavam isso em suas obras. O primeiro romance moçambicano foi produzido durante essa fase, escrito por Orlando Mendes (1916-1990), a obra Portagem (1965), apresenta uma crítica a estrutura colonial da época mostrando a realidade dos africanos em uma sociedade colonizada. “Todo esse universo enfatiza a ideia da exclusão social generalizada que o romance traduz, delineando uma sociedade cheia de tensões agudas, onde o ódio, o crime e a violência confluem para esboçar um quadro de tragédias e desgraças.” (MENDES, 1965 apud FONSECA; MONTEIRO, 2007. p, 32 Por fim, a última fase denominada pós-colonial, é constituída por autores que escrevem obras de caráter individualista relatando suas experiências após a independência de Moçambique, diferentemente das anteriores que são constituídas por escritores que apresentam em suas obras características coletivas relatando evidenciando o sofrimento do povo Moçambicano. Nessa fase, um dos principais representantes, Mia Couto é um dos escritores mais conhecido da África, que produziu várias obras de destaque. “Suas obras problematizam a instabilidade na qual está mergulhado o povo moçambicano, a corrupção em todos os níveis do poder, as injustiças como consequência do um racismo étnico, a subserviência perante o estrangeiro, a perplexidade face as rápidas mudanças sociais, o desrespeito pelos valores tradicionais, a despersonalização, a miséria.”( FONSECA; MONTEIRO,2017, p.34) Dessa maneira, até a fase pós-colonial muita poesia foi escrita, mas muitas foram censuradas por denunciarem o sistema colonial que explorava o povo moçambicano e suas terras. A maioria das obras produzidas mostravam a realidade daquela época, dando destaque ao sofrimento dos africanos que eram escravizados e descriminados pelos europeus. Noémia de Sousa Carolina Noémia Abranches de Sousa, poetisa moçambicana, nasceu em 1926 na vila Catembe e faleceu em Cascais, Portugal em 2002. Conhecida como a “Mãe dos poetas moçambicanos”, a escritora produziu diversos poemas que representam a resistência da mulher africana e a luta pela liberdade do povo de Moçambique, que foram publicados nos jornais da época como O brando africano, os poemas foram reunidos em única obra, denominada Sangue Negro (1990). “A sua poesia, desde logo, se mostrou “cheia” da “certeza radiosa” de uma esperança, a esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da Mãe-África, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia.”(FREITAS, 2010, p.5) Em seus poemas, Noémia de Sousa escreveu sobre o seu povo e suas lutas, mostrando a realidade do povo moçambicano evidenciando o sofrimento do seu povo e o caminho percorrido até a independência. Análise do Corpus literário Em relação ao aspecto gráfico, o poema é constituído por quatro estrofes com o número diferente de versos. Em relação ao título do poema, podemos deduzir que “Negra” pode se referir a própria África, pelo fato de ser uma característica dos poemas da escritora, que exalta a Mãe África em suas obras. Assim, podemos prever que o eu lírico relatar em seu poema o sofrimento do povo africano, podemos assim destacar o caráter coletivo presente nas obras da escritora. Na primeira estrofe, o eu poético se refere aos colonizadores que chegaram em Moçambique, querendo entrar e interferir na terra e na cultura do povo e revela como é o olhar do europeu em reação a África. Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos quiseram cantar teus encantos para elas só de mistérios profundos, de delírios e feitiçarias... Teus encantos profundos de Africa. Nos primeiros versos “Gente estranhas com seus olhos cheios doutros mundos/quiseram cantar teus encantos”, o eu lírico ao citar “gente estranhas” se refere aos colonizadores que chegaram na terra moçambicana para explorar a terra e o povo, echeios de outras culturas, costumes ao se infiltrarem quiseram impor suas culturas, como também como está no verso quiseram “cantar” as maravilhas de Moçambique, esse verbo pode estar relacionado a tradição oral que é muito presente na cultura africana. Assim, seria narrar as histórias dos africanos como se tivesse vivido há muito tempo com aquele povo fazendo parte da terra, mas eles eram estranhos que desconheciam tudo. Portanto, o eu poético, evidencia que os colonizadores queriam falar sobre as maravilhas do lugar, mas eles tinham outros olhos para aquele mundo, por serem intrusos adentrando no mundo deles sem pedir permissão. Sequencialmente, nos seguintes versos: “para elas só de mistérios profundos/de delírios e feitiçarias...”. O eu lírico ao falar “elas” se refere as pessoas estranhas, que são os colonizadores. Dessa maneira, mostra a visão do colonizador em relação ao país, e é evidente que os colonizadores desconheciam aquele povo, sua cultura, costumes e ideais. Assim, tinham uma visão errônea, por desconhecer e não procurar conhecer, pois eles só queriam explorar o povo e a terra. Além disso, no último verso “Teus encantos profundos de África”, o eu lírico evidencia o amor que tem pela terra, e o orgulho que tem de seu povo e da África. Na segunda estrofe, o eu poético afirma que apesar dos colonizadores tentarem falar sobre a África como se fizessem parte do povo, eles nunca iriam conseguir e destaca como eles tentavam camuflar a realidade dando a cultura moçambicana características da cultura europeia. Mas não puderam. Em seus formais e rendilhados cantos, ausentes de emoção e sinceridade, quedas-te longínqua, inatingível, virgem de contactos mais fundos. E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual, jarra etrusca, exotismo tropical, demência, atracção, crueldade, animalidade, magia... e não sabemos quantas outras palavras vistosas e Nos primeiros versos, “Mas não puderam/Em seus formais e rendilhados cantos/ausentes de emoção e sinceridade”, é perceptível que o eu lírico conhece os colonizadores pois ressalta a forma de falar e narrar a história do povo africano, e destaca que eles nunca vão poder falar sobre a África porque não tem emoção e sinceridade como um africano tem ao narrar as maravilhas de sua terra e seu povo. Posteriormente, nos versos: “quedas-te longínqua, inatingível/virgem de contactos mais fundos”, o eu poético se refere a África, revelando que apesar dela ter sido explorada por aqueles homens, as suas maravilhas, sua cultura, seu costume, seu povo, sempre será inalcançável por eles. Portanto, afirma que eles poderiam ter explorado tudo, mas o contato mais profundo é impossível. Ainda na mesma estrofe, a partir do verso, “E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual/, é destacado que os europeus tentam mascarar a realidade, dando outras características para a cultura africana, assim são citados vários elementos da cultura europeia. Desse modo, podemos relacionar a imposição de cultura que eles trouxeram consigo, pois quando chegaram na terra, dominaram o povo impuseram cultura, costumes, religião e exploraram as riquezas. Assim, ao falar de Moçambique eles usavam referencias de suas próprias origens que seria europeia. Na terceira estrofe, o eu lírico relata que apesar de terem sido dadas várias características europeias a África, todas essas definições nunca seriam as reais características do continente. Em seus formais cantos rendilhados foste tudo, negra... menos tu. Nos versos “foste tudo, negra.../menos tu”, há a afirmação de que as características europeias dadas ao continente africano e ao povo moçambicano nunca iriam condizer com a realidade daquele povo. Na quarta e última estrofe o eu lírico expressa um amor ao seu povo e a sua pátria, e afirma que apesar de tudo o que eles sofreram, eles tinham uns aos outros e também tinham a África que seria sempre deles e ninguém iria poder tirar. E ainda bem. Ainda bem que nos deixaram a nós, do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma, sofrimento, a glória única e sentida de te cantar com emoção verdadeira e radical, a glória comovida de te cantar, toda amassada, moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE Nos primeiros versos “E ainda bem/ Ainda bem que nos deixaram a nós/ do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma/ sofrimento”, o eu poético expressa uma gratidão por ter seu povo, e ressalta que todos do seu povo possuem o mesmo sangue e sofreram juntos tentando resistir aos opressores que invadiram suas terras. Podemos também relacionar a independência, pelo fato do eu lírico inicialmente falar sobre os colonizadores e depois de seu povo e sua glória ao cantar. Sequencialmente, nos versos “a glória única e sentida de te cantar/com emoção verdadeira e radical”, é expresso o orgulho de ser africano e de poder narrar as histórias e maravilhas da terra e do povo com emoção e com sinceridade, coisa que só o povo africano pode fazer. Nos últimos versos do poema “a glória comovida de te cantar, toda amassada/moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE”, o eu poético usa adjetivos (amassada/vazada) para definir a África após ser colonizada, pois tentaram tirar tudo da terra e do povo, mas apesar de ter sido explorada, a terá e seu povo sempre resistiram e o essencial nunca foi perdido. O povo africano sofreu muito, mas nunca desistiram de ter sua terra de volta, e sempre resistiram uns pelos outros, e nunca perderam sua cultura, seus costumes, seu amor à pátria. No último verso o eu lírico ainda se refere a África usa a palavra “MÃE”, destacando com letra maiúscula para definir sua terra, que sempre vai ser imensa e luminosa. Logo, o poema evidencia o processo de colonização em Moçambique, descrevendo como os colonizadores agiram no decorrer dos anos até a independência do país. O eu lírico que representa os africanos, mostra o sofrimento do povo de Moçambique ao verem sua terra ser invadida por desconhecidos que chegaram se infiltrando e querendo tomar posse de algo que não pertencia a eles, e também querendo impor seus costumes e ideais em uma terra que já tinha seus costumes, cultura e povo. Desse modo, o poema mostra o sofrimento, a resistência e força do povo africano que lutaram para ter sua independência. Considerações Finais Sabe-se que muitos dos poemas escritos em Moçambique na época da colonização foram censurados, mas apesar disso, através de poemas resgatados, hoje podemos adentrar nesse mundo do povo africano e conhecer a luta e resistência desse povo, e assim nos impressionar com o amor pela terra e pelas suas origens. Em síntese, o poema de Noémia de Sousa, que faz parte da literatura de combate, expressam resistência do povo africano a colonização. Assim, exalta os valores sociais e culturais africanos, mostrando o sofrimento vivido pelo povo moçambicano, como também resistência desse povo em relação a luta pela sua terra. Escrito por alguém que viveu o que escreveu, o poema mostra como os colonizadores agiram ao chegar na em Moçambique e como os africanos resistiram a eles. Inicialmente é perceptível a angústia do eu lírico ao ver um povo desconhecido querendo destruir a cultura e o povo, mas também é perceptível o sentimento de orgulho de seu povo e sua terra. Por fim, o poema representa a construção da identidade moçambicana, visto que relata a vida do povo moçambicano e o que esse povo viveu. Referências Bibliográficas FONSECA, M. N. S.; MOREIRA, T. T. PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA. Cadernos CESPUC de Pesquisa Série Ensaios, n. 16, p. 13-72, 11 maio 2017. MARQUES, L. L. M. A poesia moçambicana: entre a escrita de combate e o caráter intimista da produção contemporânea. FREITAS, F. R. S. Noemia de Sousa: Poesia combate em Moçambique. Cadernos Imbondeiro, João Pessoa, 2010. OLIVEIRA,J. COELHO, C. A resistência poética em Noémia de Sousa. Mosaico, São José do Rio Preto, 2019. http://www.kapulana.com.br/noemia-de-sousa/ Acesso em: 18 de novembro de 2020. http://www.kapulana.com.br/noemia-de-sousa/