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AULA 1 PSICÓLOGO NO CONTEXTO ESCOLAR Profª Rossana Ghilardi 2 TEMA 1 – INÍCIO DE CONVERSA Em 2013, o Conselho Federal de Psicologia lançou um documento com referências técnicas para a atuação de psicólogos na Educação Básica (CFP, 2013). Nesse documento, são discutidos, entre outros eixos, as possibilidades de atuação e os desafios para os psicólogos na escola. Ao longo destas aulas, voltaremos diversas vezes a esse documento. Por hora, destacamos que, no entender dos Conselhos de Psicologia, o saber específico do psicólogo a ser implementado na escola se refere às dimensões subjetivas do aprender, destacando temáticas como desenvolvimento humano, relações afetivas, socialização, motivação e interesse e aprendizagem, com propósito final de auxiliar a promoção da qualidade na educação (CFP, 2013). Não há dúvidas de que a esmagadora maioria das pessoas que se envolvem com a educação procuram promover qualidade no ensino. No entanto, sabemos que o Brasil é carente nesse critério. Por essa razão, a principal questão que norteará nossas aulas é: como o psicólogo pode contribuir para a melhoria da educação e da escola? A resposta é bastante complexa e jamais definitiva ou generalista, mas o primeiro elemento já se configura: para buscar melhorias em qualquer área é necessário entendê-la, isto é, mergulhar no contexto escolar e conhecer o Sistema de Educação Nacional, desde as legislações até às práticas pedagógicas das salas de aula. Para o psicólogo atuar de forma consistente no contexto escolar e contribuir de forma impactante, é imperativo conhecer profundamente a escola. A(o) psicóloga(o), no contexto educativo, ao conhecer as múltiplas determinações da atividade educacional, pode focar mais adequadamente determinadas áreas de intervenção e desenvolver um trabalho envolvendo toda a comunidade escolar – professores, pais, funcionários, estudantes. Qualquer trabalho realizado com um desses segmentos deve ter como princípio a coletividade, visando ao bem de todos e todas. (CFP, 2013, p. 54) O entendimento descrito nesse início de contato com a disciplina é fruto de algumas décadas de investimento de vários profissionais na busca da consolidação da atuação do psicólogo no contexto escolar. Podemos dizer que a relação da psicologia com o contexto escolar é no mínimo controversa. Embora, segundo Mitsuko Aparecida Makino Antunes (2008), a educação tenha sido o berço que sedimentou a profissionalização da psicologia no Brasil no início do século XX, estranhamente se tornou um campo 3 de atuação pouco procurado e até inexpressivo em se tratando de práticas aplicadas. Fato que levou Moreira e Guzzo (2014) a titular um dos seus artigos destacando o trabalho invisível da psicologia escolar. A análise histórica é um caminho necessário para lançar luz sobre os motivos dessas contradições, como também auxiliará a revelar rumos que a atuação do psicólogo na escola tomou ao longo do tempo; mostrando distinções e proximidades entre psicologia educacional e a psicologia escolar, além dos cenários atuais na área. TEMA 2 – O INÍCIO DA HISTÓRIA Antunes (2008) realizou uma pesquisa sobre o vínculo histórico da psicologia com a educação no Brasil. Entender a trajetória histórica nos auxilia a perceber o momento atual e as perspectivas de mudança, trazendo como consequência, possivelmente, maior visibilidade ao Psicólogo Escolar e Educacional. Segundo a autora, no século XIX alguns escritos de áreas como filosofia, educação e medicina já abordavam temas que mais tarde seriam atribuídos à psicologia, geralmente apresentando ideias que confrontavam os interesses metropolitanos de dominação colonial, causando certo desconforto e rejeição pelos governantes. No entanto, ao final desse mesmo século, as Escolas Normais, responsáveis pela formação dos professores, sistematizaram tais abordagens e incorporaram conteúdos que envolviam a aprendizagem, a inteligência e o desenvolvimento infantil. Assim surgiram disciplinas nos cursos Normais como Pedagogia e Psicologia para o Ensino. 2.1 Movimento da Escola Nova e a Psicologia Logo no início do século XX, as ideias liberais que circulavam no Brasil, trazidas da Europa, ganharam representação na área da educação por meio do Movimento da Escola Nova, que tem em seus fundamentos conhecimentos da psicologia (Antunes, 2008). Intelectuais da educação no Brasil, como Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Fernando Azevedo difundem os preceitos da Escola Nova e auxiliam na elaboração do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), marco na história da educação nacional, embora pouco das ideias defendidas nesse documento de fato tenham sido implementadas. 4 Saiba mais Caso tenha interesse em conhecer mais sobre o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, o documento completo pode ser baixado do site Domínio Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ me4707.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2020. O movimento da Escola Nova apresenta, dentre outros, o diferencial de propor a individualização do ensino, voltando o olhar para cada aluno, diferentemente da visão tradicional que tinha como foco o professor que ensinava para uma classe, com base em um suposto aluno idealizado. O movimento enfrentou muita resistência por parte das escolas já estabelecidas no país, um dos motivos pelos quais as ideias não terem se transformado em novas práticas. Assim, não foram percebidas modificações significativas nas atividades escolares da época. Ainda hoje, a maioria das estratégias pedagógicas das nossas escolas são consideradas tradicionais. Em contrapartida, os fundamentos escolanovistas foram bem difundidos nas Escolas Normais, que passaram a ter laboratórios de ensino e, entre eles, os laboratórios de psicologia, visando ao desenvolvimento de pesquisas e produção literária sobre temas de educação, ensino e aprendizagem. O movimento da Escola Nova e suas aplicações na formação de professores (Escolas Normais) se tornaram um marco histórico para o ingresso da Psicologia no Brasil, diferentemente de outros países, muitos dos quais tiveram a área da saúde como ponto de partida. Após a introdução da psicologia como um objeto de estudo nas Escolas Normais, a área começa a conquistar mais espaço e autonomia enquanto ciência, incorporando também o que se produzia na Europa e nos Estados Unidos (Antunes, 2008). Outra referência importante para nossa análise é a interdependência entre educação e psicologia, revelada nos estudos de Antunes (2008). A psicologia aparece e se sedimenta aqui, principalmente em conjunto com a pedagogia. Pode-se afirmar que o processo pelo qual a psicologia conquistou sua autonomia como área de saber e o incremento do debate educacional e pedagógico nas primeiras décadas do século XX estão intimamente relacionados, de tal maneira que é possível afirmar que psicologia e educação são, historicamente, no Brasil, mutuamente constituintes uma da outra. (Antunes, 2008, p. 471) A partir dos anos de 1930, a psicologia começa a desenvolver seus três principais campos de atuação, que estão presentes até hoje, todos enraizados na 5 educação: a atuação clínica; a organização do trabalho; além, naturalmente, da atuação em conjunto com a educação e na escola. As universidades vinculavam disciplinas de psicologia aos departamentos de filosofia e educação. As pesquisas na área de psicologia, na época, estavam relacionadas à educação, assim como os institutos e as associações dedicados à intervenção psicológica (Barbosa; Souza, 2012), ressaltando mais uma vez a interdependência das duas áreas, e apresentando as bases para consolidação da profissionalização na psicologia. Então, lançamos o questionamento: se, diferentemente de outros países, no Brasil o campo da educação foi o celeiro inicial para aplicação prática dos conhecimentospsicológicos (Barbosa; Souza, 2012), o que aconteceu para que a psicologia escolar tenha sido considerada por Moreira e Guzzo (2014) um trabalho invisível? Seguindo um pouco mais na história, conseguiremos algumas respostas. Esse assunto será tratado nos próximos temas desta aula. TEMA 3 – PROFISSIONALIZAÇÃO DA PSICOLOGIA Antunes (2008) aponta alguns motivos para a invisibilidade do psicólogo escolar e educacional na própria história da profissionalização. Ressalta que, na regulamentação da profissão do psicólogo, em 1962, a atuação no âmbito da educação é deixada em segundo plano, embora tendo sido a base, até então, para seu desenvolvimento. Os campos clínico e do trabalho se destacam em termos de investimento e interesse, até mesmo nas políticas públicas implantadas com base no perfil traçado para o profissional da área. A Lei n. 4.119, de 27 de agosto de 1962, apresenta em seu art. 13, inciso 1º, como função preferencial do psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com finalidade de: a. diagnóstico psicológico; b. orientação e seleção profissional; c. orientação psicopedagógica; d. solução de problemas de ajustamento. Diagnóstico, seleção, orientação e solução são as atribuições do profissional, além da docência nos diversos níveis de ensino, definida em outros artigos da lei. O que se percebe é que a interpretação da lei leva ao entendimento 6 da atuação do psicólogo preferencialmente na área clínico-terapêutica (modelo médico), mesmo em se tratando do atendimento no âmbito escolar. Mesmo a Lei 4.119/1962 definindo a vinculação dos cursos de psicologia às faculdades de filosofia, com o passar do tempo, uma grande quantidade de universidades associou a formação em psicologia ao campo da saúde. Outro imbróglio associado ao trecho da Lei 4.119/1962, recortado aqui, se refere à atividade de orientação psicopedagógica, que abordaremos posteriormente. A área da psicologia escolar e educacional e a área da psicopedagogia têm uma linha divisória muito tênue, ainda mal resolvida e que provavelmente suscitará controvérsias e ajustes em futuro próximo. 3.1 Nos rumos para psicologia escolar e educacional A história da psicologia escolar e educacional continua no sentido de uma revisão de paradigma. No período inicial da atuação do psicólogo na escola, as críticas estavam associadas principalmente a três fatores: I) redução da prática à aplicação de testes com interpretações e utilização pouco aprofundada e indiscriminada; II) justificativa dos fracassos escolares aos problemas emocionais da criança/adolescente, responsabilizando o indivíduo e a família; III) “redução dos processos pedagógicos aos fatores de natureza psicológica” (Antunes, 2008). Esses pontos provocaram estudos sobre e revisão da atuação do psicólogo no contexto escolar, trazendo bases teóricas diferenciadas para busca de práticas mais abrangentes. Assim, apontava-se como possibilidades de práticas nos anos de 1970 segundo Antunes (2008): a ação na formação dos professores; a intervenção na relação família, escola, comunidade; a interação com os grupos que atuam na escola; e a melhoria dos índices de aprovação, pois a reprovação era muito alta na 1ª série do 1º grau. Os processos de alfabetização e os fatores que interferiam no desempenho escolar eram focos das pesquisas na época. Vinculada à sociologia da educação, a psicologia revelava fatores socioeconômicos como motivo do baixo rendimento dos alunos, concepção que marca profundamente o ideário de fracasso escolar até os dias atuais. Na década de 1970, a visão reducionista da psicologia na educação foi criticada tanto pelos pedagogos quanto pelos psicólogos, impulsionando o surgimento de visões críticas dentro da própria psicologia na tentativa de superação e transformação na atuação dos psicólogos. 7 A tendência anterior era patologizar e individualizar a atuação no âmbito educativo, mas as propostas que surgiram levantavam possibilidades preventivas, fundadas na ação coletiva e interdisciplinar dos profissionais que atuam na escola para melhorar as condições pedagógicas de ensino e de aprendizagem. As críticas ganham voz retumbante nas obras de Maria Helena Patto, por exemplo. Destacamos que a psicologia crítica que foi construída na ocasião “não se refere a uma corrente teórica e específica, mas é um referencial que abrange concepções diversas para compreender as questões sociais e humanas, com foco nas relações de poder e no modo de produção social das relações e do capital” (Silva Neto, 2014, p. 26). O contexto desenhado até agora se constituiu como pano de fundo para as concepções da psicologia no contexto da escola. As poucas produções e pesquisas na área, além das reduzidas experiências práticas de uma psicologia no contexto escolar, nos revelam os motivos da falta de clareza que se tem ainda hoje nesse campo de atuação. Veja, por exemplo, a pesquisa realizada por Weschsler (1989) com o levantamento do Conselho Federal de Psicologia sobre a atuação de psicólogos no Brasil entre os anos de 1985 e 1986. Na Tabela 1, a seguir, existe em cada coluna um grupo de estados (referência ao Conselho Regional), além de subcolunas correspondendo ao trabalho inicial (1T) e ao trabalho atual (TA) dos profissionais. Tabela 1 – Comparação das percentagens de psicólogos nas diferentes áreas da Psicologia: primeiro trabalho/trabalho atual Fonte: Weschsler, 1989, p. 27 Na tabela anterior, é evidente a quantidade sempre menor de psicólogos atuando na escola, se comparado à clínica e organizacional. Os dados também 8 mostram a migração daqueles que começam na escola para as outras áreas ao longo do tempo. Explicando melhor, observe a primeira coluna, correspondente aos estados da Bahia e Sergipe: são 24 profissionais que tiveram como primeira atividade a escola, e no momento da pesquisa, apenas 15 atuavam na área. Isso se repete em todos os estados. Refletindo a atuação profissional mais reduzida, as pesquisas e produções no campo da Psicologia Escolar também se mostravam em menor número, mas, segundo Antunes (2008), são suficientes para entender a matriz da atuação do psicólogo escolar: a compreensão dos fenômenos educativos para estabelecer processos de intervenção além do clínico-terapêutica, “criando uma modalidade de trabalho efetivamente comprometida com o cotidiano da escola em sua função essencialmente pedagógica” (Antunes, 2008). TEMA 4 – VISÃO CRÍTICA DE MARIA HELENA PATTO Muito do pensamento e da interpretação atual sobre o psicólogo no contexto da escola devemos aos estudos e produções de Maria Helena Souza Patto. Assim, vamos resgatar um pouco da trajetória da autora/pesquisadora contada por Maciel (2012), que a qualifica como rebelde e inconformista, pelo ponto de vista crítico sobre a psicologia escolar e educacional. Concordamos com Maciel quando destaca sobre Patto: “ao entrar numa escola, ao ser psicólogo em diálogo com a educação, ao discutir as relações entre psicologia e políticas educacionais e de saúde, seus estudos devem fazer parte das nossas ferramentas” (Maciel, 2012). O contexto no qual Patto produziu sua obra é reflexo do momento social pelo qual passava o país, revelado na Constituição Federal de 1988, gerada na e para redemocratização nacional. Na mesma época, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), legislação que versa sobre os direitos da criança e do adolescente, na qual a temática da educação é central. Internacionalmente temos, por exemplo, a Declaração de Salamanca (1994), que dá subsídios e suporte à consolidação de uma escola inclusiva, voltada para abarcar e atender todos. Culminando com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/1996), que destaca a gestão democrática, a inclusão e o olhar para cada aluno e para todos. Esse momento da nossa história, emparticular, foi bastante propício para promover e intensificar discussões e pesquisas sobre a relação da psicologia com a educação e a escola. 9 A primeira obra reveladora de Patto foi publicada nos anos de 1980, Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar, na qual coloca a psicologia desenvolvida até então como ciência ortopédica e corretiva, a serviço da classe hegemônica (Maciel, 2012). No livro, posiciona-se diretamente contra a adoção no Brasil dos preceitos funcionalistas do americano William James (1842- 1910). A autora apresenta a intenção de uma psicologia gerada tendo em conta visão ampla do ser humano – considerando contextos histórico, político, social, econômico. Também é condizente com o momento vivido na educação brasileira nos anos de 1980, de fundamentos histórico-críticos. Segundo Maciel (2012), Patto entende não existir uma ciência neutra, portanto, intenções, visões de mundo e interpretações estão presentes em parâmetros e referências que qualquer ciência produz, inclusive de como a sociedade e as políticas públicas “entendem” a escola, de como o professor planeja as aulas, dos conteúdos que são selecionados, do aluno que se pretende formar. A ideia de neutralidade, na verdade, esconde as intenções que sempre estão presentes. Por isso, quando os preceitos de qualquer ciência chegam à escola, é necessário se ter consciência dessa falta de neutralidade e ter em conta prioritariamente o interesse de quem é atendido pela escola – os alunos –, conhecendo-os em profundidade. 4.1 Fracasso escolar Na década 1990, Patto volta seu olhar para o fracasso escolar e como este é construído e atribuído ao aluno e a elementos externos à escola. No livro A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, resultado da tese de doutorado da autora, é feita uma analisa de como as pesquisas e políticas públicas nacionais reproduzem desde o início do século XX um discurso que atribui o fracasso escolar ao aluno e, mais tarde, a sua condição socioeconômica e familiar, psicologizando o fracasso e colocando as causas fora do sistema escolar. Constata-se também que a escola é a principal instituição a encaminhar crianças e jovens para atendimento psicológico em clínicas e ambulatórios. Em seu livro, Patto afirma que a escola consegue assassinar as proficiências e o desejo de aprender natural de toda criança (Maciel, 2012). 10 A tentativa de ruptura desse ponto de vista ganha força nas pesquisas ao final dos anos de 1980, direcionando a busca por aspectos estruturais e funcionais das próprias instituições escolares como motivo do fracasso (Patto, 1997). Patto, então, lança a pergunta: quem fracassa na verdade? Entender as causas do fracasso escolar se apresenta como objeto de pesquisa tanto para psicologia quanto para a pedagogia. Ganham força produções alternativas à visão liberal, na tentativa de superar a condição excludente criada na escola que não acolhe a maioria dos seus alunos; que apresenta uma proposta de ensino que não os leve a aprender; e que atribui o fracasso a fatores externos à escola e ao próprio aluno. Na área da educação, foi marcante a influência da psicologia histórico- cultural desenvolvida inicialmente por Lev Vygotsky (1896-1934), que tinha como objetivo construir uma psicologia calcada na filosofia marxista, isso no início do século XX, na União Soviética recém-tornada comunista. As considerações do autor demoram a chegar ao Brasil, o que ocorreu apenas nos anos de 1980, quando na Europa já estavam amplamente divulgadas as obras de seus seguidores, com Alexei Nikolaievich Leontiev (1903-1979) e Alexander Luria (1902-1977). Descrevendo a relação dialética sujeito-meio para formação da mente, Vygotsky (1998) demonstra o peso das interações sociais e do meio cultural para formação da consciência. A subjetividade de cada um se estabelece na troca com o outro, com o meio, de uma forma mediada, seja por outras pessoas ou produtos da cultura, como a linguagem. Aliás, a fala e a linguagem foram o enfoque principal dos estudos do autor. Dessa maneira, as funções psicológicas superiores como memória, pensamento, linguagem são apreendidas e aprendidas nas trocas com o meio cultural. O que equivale a dizer que o desenvolvimento psíquico acontece por meio da aprendizagem, na interação com o meio cultural (Vygotsky, 1998). As pesquisas com base nos preceitos do materialismo histórico-dialético analisam de forma ampla as questões que envolvem o fracasso. Segundo o documento de referências técnicas para atuação de psicólogas(os) (CFP, 2013), os temas sobre fracasso escolar que passam a ser pesquisados são: a vida cotidiana na escola; as práticas educativas; as relações institucionais; 11 a estigmatização; as diferenças de classe social e gênero; o papel das avaliações psicológicas para alunos com dificuldades de aprendizagem; os instrumentos de diagnóstico e avaliação dos processos escolares; o papel, a identidade profissional e o lugar do psicólogo escolar. TEMA 5 – MOMENTO ATUAL Passadas algumas décadas dessas incursões conceituais, percebe-se que o fracasso escolar continua em evidência aqui no Brasil. Um bom exemplo são os resultados dos nossos alunos no Programme for International Student Assessment (Pisa, ou Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com o objetivo de pesquisar atualmente o desempenho acadêmico em 79 países, destaca que, nas três áreas avaliadas (matemática, leitura e ciências), o Brasil aparece ao longo dos anos de aplicação dessa avaliação sempre nas últimas colocações. Nossos alunos estão em todas as avaliações abaixo do 60º lugar. Esse mesmo exame mostra que o abismo do atendimento educacional entre as classes sociais permanece, pois se considerarmos as notas dos alunos brasileiros de escolas particulares de elite, ocuparíamos a 5ª posição (dados divulgados em 2019 para testes aplicados em adolescentes que tinham entre 15 e 16 anos em 2018). Cabe aqui um adendo: o exame Pisa também sustenta padrões de dominação e uma visão de mundo específica, alicerçada nos interesses capitalistas. Um dos problemas para nós, brasileiros, é que os resultados acabam muitas vezes por nortear políticas públicas em educação sem atender às demandas locais, e, outras vezes, reforçando a ideia do fracasso associada a causas externas à escola, como a classe social e origem étnica e cultural dos alunos. Resumidamente, as práticas atribuídas aos psicólogos na escola começam pela aplicação de testes; passando para emissão de laudos que segregam e estigmatizam os alunos com dificuldades em aprender; até ganhar uma sala de atendimento dentro da escola, embora ainda sem interferir no seu cotidiano. Chegamos ao momento atual no qual a atuação é entendida como integrada e 12 considerando o contexto, mas ainda sem superar a expectativa da própria escola na qual o psicólogo escolar atua com o aluno problema (Andrada, 2005). Os problemas de aprendizagem e o fracasso foram pontos de partida para questionamentos e desenvolvimento de um novo olhar na atividade do Psicólogo Escolar e Educacional. Na atualidade, entende-se que esse profissional tem como principal tarefa buscar otimizar situações que envolvam os processos de escolarização a partir de uma prática com o coletivo e o individual concomitantemente. Como métodos e técnicas, utilizam-se diferentes estratégicas que atendam às necessidades das instituições escolares, dos educadores, dos educandos e da comunidade escolar como um todo. O profissional pode atuar como profissional dentro da escola ou nos moldes de trabalho externo (consultoria externa). (Barbosa; Souza, 2012) As discussões levantadas nas últimas décadas revelam umnovo e fundamental eixo de análise no que se refere à escolarização. Trata-se das Políticas Públicas educacionais, essenciais para estabelecer o contexto escolar. Em última instância, compreende-se por considerar as Políticas Públicas entender princípios, valores e condições que permeiam o cotidiano da escola (CFP, 2013), que precisa ser entendido e questionado para se perceber possibilidades para os psicólogos e educadores na escola e na educação. Naturalmente considera-se que o ponto de vista da psicologia crítica, apesar de alicerçado na legislação educacional brasileira e apoiado em manifestações dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, não é unânime. Outras abordagens sempre estiveram presentes, incluindo o modelo clínico como forma principal para superação das dificuldades de aprendizagem. Essa visão, tão arraigada na sociedade, dificulta a implementação efetiva de uma proposta diferenciada. Barbosa e Souza (2012) atribuem para problemas de aprendizagem, por exemplo, o crescimento da psicopedagogia nas escolas à visão do atendimento clínico e de intervenção individual, uma vez que o psicólogo escolar e educacional tenta sedimentar ações preventivas e coletivas, consideradas pelos desavisados como menos efetivas. Se avaliarmos friamente, perceberemos que esse entendimento remediativo aparece em todas as áreas. No planejamento urbano, pouca atenção se dá à prevenção; geralmente as ações estão no atendimento emergencial quando o “caos já está instalado”. Na saúde, temos algumas políticas voltadas à prevenção, mas a ideia do cidadão comum de se medicar é sua principal arma para combater sintomas. As ações policiais também são muito mais de contenção do que de prevenção. 13 Percebe-se na atualidade uma intenção crescente nas escolas de patologização e medicamentalização como meios de entender e resolver as dificuldades de aprendizagem e atuar sobre os alunos considerados problema. A respeito da força do ponto de vista médico-clínico, há uma constatação reveladora: doenças de fundo neurológico são utilizadas para explicar a agitação, a apatia, a falta de interesse e a agressividade dos alunos. Assim, nas escolas brasileiras em geral, cresce vertiginosamente as suspeitas e o encaminhamento de casos de Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e, mais recentemente, de Transtornos do Espectro Autista (TEA). Sem a superação de problemas tão essenciais à educação nacional, Moreira e Guzzo (2014) consideram que o caminho a percorrer ainda é longo e há a necessidade de tomar medidas para que profissionais envolvidos na educação, como os psicólogos, possam de fato contribuir para a aprendizagem dos alunos. Há muito a ser feito, muito a ser pesquisado e implementado. 14 REFERÊNCIAS ANDRADA, E. G C. de. Novos paradigmas na prática do psicólogo escolar. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 196-199, ago. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-797220050002000 07&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 abr. 2020. ANTUNES, M. A. M. Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas. Psicol. Esc. 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