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Memorial Habermas

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“Acerca da legitimação com base nos Direitos Humanos”, de Jürgen Habermas
1. Introdução
Jürgen Habermas é um filósofo e sociólogo alemão que apareceu como um dos
grandes estudiosos sobre teoria política e democracia. O autor em suas obras dialoga com os
pensamentos de Immanuel Kant e Hannah Arendt em vários pontos, tentando retomar
algumas ideias kantianas, principalmente no que diz respeito à ideia de que o ser humano é
um fim por si mesmo, jamais podendo ser utilizado como instrumento, tendo uma dignidade
em si próprio e que, por ser racional, o ser humano não deve somente seguir as normas, mas
deve ser o autor, estando envolvido nos processos de produção jurídicas.
Habermas escreve sobre uma Teoria do Estado Democrático de Direito e um modelo
de moral procedimental, defendendo que pode existir uma complementaridade entre moral e
direito e tentando os direitos de minorias, sem, contudo, retomar o jusnaturalismo.
No presente trabalho, foi analisado o texto “Acerca da legitimação com base nos
Direitos Humanos”, presente na obra “A constelação pós-nacional: Ensaios Políticos”, do
autor.
2. A justificação processual do Estado Constitucional Democrático
O texto se inicia com o debate acerca da questão da legitimação de uma ordem
política atrelada a um Estado constitucional e traz, primeiramente, o conceito de legitimação
explicado a partir da ideia da potência política. Para Habermas, a potência política se
constitui sob a forma do direito positivo que regulamenta e coage. Ou seja, o direito deve ser
reconhecido não apenas faticamente, mas deve ter legitimidade, deve merecer ser
reconhecido.
As ordens jurídicas modernas são construídas com base nos direitos subjetivos, que
concedem a uma pessoa jurídica individual proteção legal para que ela guie suas ações por
suas próprias preferências, sem precisar ser juridicamente obrigado a justificar publicamente
seus atos, trazendo a ideia de separação entre o direito e a moral.
Isso pois os direitos morais são derivados de obrigações recíprocas, enquanto que as
obrigações jurídicas derivam de uma delimitação legal das liberdades subjetivas. O universo
moral é estendível a todas as pessoas naturais, enquanto que a comunidade jurídica, protege a
integridade de seus membros somente se eles aceitarem o status de portadores de direitos
subjetivos.
Assim, as normas jurídicas devem ser feitas de maneira que possam ser vistas ao
mesmo tempo sob aspectos diferentes como leis coativas e como leis da liberdade. Deve ser
possível seguir normas jurídicas não somente porque elas coagem, mas sim porque são
legítimas. Dessa forma, a validade de uma norma jurídica está atrelada a um poder estatal que
garante ao mesmo tempo a legalidade do comportamento para que as pessoas sigam a lei,
sendo impostas sanções, se for o caso, e também deve garantir a legitimidade das regras para
que seja possível que ela seja cumprida por respeito diante da lei.
Para explicar sobre a legitimação, Habermas desviou um pouco da teoria política
clássica, substituindo o conceito de soberania do estado pelo conceito de soberania popular.
Habermas, assim, inseriu na teoria política a ideia de soberania popular e direitos humanos. A
soberania popular fundamenta a legitimidade dos resultados baseados em qualidades
democráticas, ao direito à comunicação e à participação que garantem a autonomia pública do
cidadão. Já os direitos humanos clássicos, que garantem aos cidadãos os direitos à vida e à
liberdade privadas, se legitimam a partir de si mesmos. Assim, o direito positivado,
modificável, deve se legitimar sob esses dois pontos de vista, de forma a atuar como um meio
para a proteção igualitária das autonomias privada e civil do indivíduo.
Habermas traz a ideia de relação de complementaridade entre a soberania popular e os
direitos humanos. Só há soberania popular se houver participação de todos nos processos de
tomada de decisões e, ao mesmo tempo, os direitos humanos institucionalizam as condições
comunicativas para a formação de uma vontade política racional. O autor lida com os direitos
humanos enquanto maneira de preservar a dissidência e construção do debate político.
Com isso, há uma tensão entre a soberania popular e os direitos humanos, entre a
“liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”. A liberdade dos antigos, retomada por
Hannah Arendt, trata da soberania popular e concede prioridade à autonomia pública dos
cidadãos em detrimento das liberdades não políticas dos indivíduos privados, através da ideia
de que deve-se garantir condições para que o debate público aconteça para que em meio a
esse debate público as decisões sejam tomadas.
Enquanto isso, a liberdade dos modernos, retomada por Kant, defende, a partir da
experiência com maiorias tirânicas, a prioridade dos direitos humanos com relação à vontade
do povo, indicando que os direitos humanos constituem limites que vedam que a vontade
soberana do povo consiga usurpar direitos de liberdade subjetivas intocáveis. Segundo a
liberdade dos modernos, deve haver o respeito aos direitos individuais, de forma que a
dignidade humana não pode ser de modo algum violada.
Ao invés de defender um só dos lados, Habermas defende que haja uma ligação do
exercício da soberania popular com a criação de um sistema de direitos, que debata sobre
quais direitos fundamentais os cidadãos livres e iguais devem se conceder reciprocamente
para regulamentarem a sua vida em comum através do direito positivo. Essas discussões
formam uma vontade política racional, gerando resultados legítimos e que fundamentam os
processos democráticos. A partir disso, o autor defende que pode existir uma
complementaridade entre moral de direito, não o direito submetido à moral, como Kant
defendia.
Assim, existiria um nexo interno entre direitos humanos e a soberania popular: os
direitos humanos institucionalizam as condições de comunicação para a formação da vontade
política racional e garantem a todos chances iguais para conquistarem os seus objetivos
privados na vida e uma proteção jurídica individual abrangente. Por um lado, os cidadãos só
podem atuar conforme sua autonomia pública se forem suficientemente independentes graças
a uma autonomia privada assegurada de modo igualitário. Por outro lado, só podem usufruir
de modo igualitário da autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem uso adequado da
sua autonomia política.
Habermas é situado dentro de um modelo de democracia radical, em contraponto ao
modelo de democracia em sentido formal. Na democracia em sentido formal, a
institucionalização do sufrágio universal e a democracia ocorre em momentos específicos,
geralmente são as eleições. Por sua vez, no modelo radical ou substancial que Habermas
adota, a democracia é um problema prático, não se reduzindo à forma da lei, exigindo
envolvimento constante dos cidadãos em esferas públicas democráticas, que devem ser a
fonte dos processos de decisão política. Ou seja, a democracia acontece a todo tempo e em
espaços formais e informais de construção democrática.
Além disso, também é trazida a ideia de duas tradições rivais dentro da teoria política,
o republicanismo e o liberalismo. No Republicanismo, há uma prevalência da autonomia
pública, colocando ênfase na liberdade dos antigos e na liberdade política enquanto virtude de
participar do debate público. Já o liberalismo, com a prevalência da autonomia privada, há
uma ênfase na liberdade dos modernos e nas liberdades negativas.
Para Habermas, no debate entre o republicanismo e o liberalismo, a saída é o
procedimentalismo, que nada mais é do que as condições mínimas de prosseguibilidade para
que exista um debate racional e a partir do qual as decisões serão tomadas, devendo seguir as
regras da racionalidade comunicativa. Assim, segundo o pensamento habermasiano, quanto
mais debate público e racional tiver a democracia, mais morais serão as decisões tomadas.
Assim, traz a noção de uma Teoria do Estado Democrático de Direito,em que o melhor
direito é o direito mais democrático.
3. A autocrítica do Ocidente
Os Direitos humanos, independente de seu conteúdo moral, possuem a forma de
direitos jurídicos, pois são normas jurídicas, visto que protegem as pessoas individualmente
somente na medida que elas pertencem a uma comunidade jurídica. Assim, existe um certo
conflito entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais da sua
efetivação, pois ao mesmo tempo que devem valer de modo ilimitado para todas as pessoas,
deve-se considerar as particularidades de cada local.
Para Habermas, contudo, apesar das controvérsias, os direitos humanos são o único
fundamento de legitimação para a política da comunidade dos povos. Segundo o autor, a
reivindicação de igualdade e inclusão universais trazida pelos direitos humanos também
serviu para encobrir o tratamento desigual fático dos tacitamente excluídos.
A isso ele dá o nome de traço detetivesco dos direitos humanos, trazendo a noção de
que os direitos humanos que promovem a inclusão do outro funcionam ao mesmo tempo
como sensores para as exclusões realizadas em seu nome. Dessa forma, mesmo que
constantemente os direitos humanos sejam utilizados para justificar opressões, eles possuem
um traço detetivesco, ou seja, precisa-se dos direitos humanos para identificar situações em
que os direitos humanos estão sendo utilizados de maneira distorcida.
4. O discurso do outro conosco: “Valores asiáticos”
Habermas traz a ideia de que a interpretação adequada dos direitos humanos deve ser
feita a partir de uma noção que seja justa com o mundo moderno também do ponto de vista
de outras culturas. Entretanto, ele faz uma crítica aos valores orientais, que dão primazia à
comunidade em detrimento dos indivíduos e não possuem uma separação rigorosa entre o
direito e a ética. Para ele, as tradições orientais trazem uma legitimação política do
autoritarismo, criando governos autoritários que tendem a justificar as suas violações aos
direitos civis e políticos com uma prevalência dos direitos sociais e culturais.
Essas tradições acabam autorizando, com base no direito ao desenvolvimento
econômico, a suspensão da concretização de direitos liberais e políticos até o país alcançar
um patamar de desenvolvimento econômico que permita satisfazer de modo igualitário as
necessidades materiais básicas da população. Entretanto, o autor entende ser injustificável
esse modelo de desenvolvimento autoritário em que a liberdade individual é submetida ao
bem estar da comunidade.
A partir disso, consegue-se fazer uma diferenciação de argumentos normativos e
argumentos instrumentais. Segundo os argumentos instrumentais, há a possibilidade de se
atacar direitos individuais sob a justificativa de bem comum. Já para os argumentos
normativos, que tem base kantiana, os seres humanos não podem ser utilizados como
instrumentos, sendo injustificável que haja uma ofensa aos direitos humanos tendo como
fundamento o bem-estar geral.
5. O desafio do fundamentalismo
Além disso, Habermas traz uma reflexão sobre o fundamentalismo e sobre a
neutralidade cosmopolita do Estado. Para ele, as tradições fundamentalistas tratam a própria
verdade como absoluta e a impõe por meio da força e da violência políticas, fazendo com que
essas tradições sejam incompatíveis com a inclusão igualitária de adeptos de outras crenças.
Assim, seria ideal uma neutralidade cosmopolita do Estado, que neutralize a religião no seu
significado público e diferencia a esfera religiosa do Estado, possibilitando a coexistência
igualitária de vários credos dentro de uma comunidade política.
É nesse sentido que Habermas fala sobre a solidariedade comunicativa, que se
desenvolve entre “estranhos que querem permanecer estranhos”. Ou seja, a partir de pessoas
altamente diferentes e que poderiam entrar em conflito consigam dialogar e tomar decisões
em conjunto. O que é importante aqui não é um consenso fático, mas sim um consenso
racional, que só é construído a partir e após o debate feito com base em um procedimento e
que possibilita o desenvolvimento da democracia.
Assim, ao escrever sobre uma Teoria do Estado Democrático de Direito e um modelo
de moral procedimental, Habermas indica que o consenso que se alcança através do
procedimento, em situação discursiva ideal, é racional, universalizando as condições para a
comunicação e a participação. Essa situação discursiva ideal se desenvolve a partir do agir
comunicativo, através de uma orientação, de uma simetria entre os participantes e de um
acesso universal potencial ao debate, em que existe a possibilidade de que todos os
interessados possam eventualmente vir a participar do debate.
Por fim, ele critica as interpretações tendenciosas dos direitos humanos que trazem a
ideia de abuso dos direitos humanos para o encobrir interesses particulares, pois para
Habermas as pessoas devem cultivar relações simétricas, ou seja, relações de reconhecimento
mútuo, transposição recíproca das perspectivas, de aprender um com o outro, para a criação
de um sistema legítimo e inclusivo.

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