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GROSFOGUEL, Ramón Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico Org Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado

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GROSFOGUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Org. Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado Torres, Ramón Grosfoguel. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. (Coleção Cultura Negra e Identidades)
Breves esclarecimentos conceituais 
· Neste artigo, utilizo vários termos que precisamos esclarecer antes de começar a discussão. Rero-me aos termos “sistema-mundo”, “colonialidade”, “civilização” e “modernidade”. O conceito de “sistema-mundo” é uma alternativa ao conceito de “sociedade”. Ele é utilizado para romper com a ideia moderna que reduz “sociedade” às fronteiras geográcas e jurídico-políticas de um “Estadonação”. Em um sentido comum eurocêntrico moderno, o conceito de “sociedade” é utilizado como um equivalente a “Estado-nação” e, por conseguinte, existem tantas sociedades quanto Estados-nações no mundo. Esse olhar eurocêntrico moderno não somente reduz a noção de Estado a “Estado-nação”, como também reduz sociedade a essa forma de autoridade política muito particular do mundo moderno/colonial. Já sabemos que a pretensão de um Estado de que sua identidade corresponda à identidade da população dentro de suas fronteiras é uma cção eurocêntrica do século XIX. Não existe em nenhuma parte do mundo tal coisa como um Estado cuja identidade corresponda à identidade da população dentro de suas fronteiras. Esse principio de correspondência identitária entre Estado e população tem criado mais problemas que soluções e mais confusões do que esclarecimentos, não somente no plano conceitual e epistemológico, como também nos planos político, econômico e social. 
· Dessa maneira, as ciências sociais eurocêntricas impõem como unidade de análise temporal/espacial as arbitrárias e movediças fronteiras espaciais e unidades temporais dos Estados-nações, subordinando as análises cientíco-sociais às lógicas temporais e espaciais da autoridade política que privilegia a modernidade. Com esse mecanismo metodológico, privilegiam unidades temporais e espaciais limitadas para a análise cientíco-social. Assim, são produzidos como invisíveis processos, estruturas e experiências de dominação e exploração cujas temporalidades e espacialidades transcendem o “Estadonação” como unidade de análise. O conceito de “sistema-mundo” é um movimento de protesto dentro das ciências sociais eurocêntricas contra as análises que utilizam a categoria “sociedade”, entendida como equivalente ao “Estado-nação”. Outra maneira de dizer o mesmo seria usar a noção de “sociedade-mundo”, ou seja, que vivemos em temporalidades e espacialidades de “sociedades globais”, e não de “sociedades nacionais”. A ideia da teoria do sistema-mundo é que existem processos e estruturas sociais cujas temporalidades e espacialidades são mais amplas que as dos “Estados-nações”. Estes, em todo caso, capturam dentro de suas fronteiras, de forma ativa/passiva, singularidades de processos globais de ampla duração e ampla espacialidade que ocorrem “mais além” e “dentro” de suas fronteiras e estruturas, atravessando-as transversalmente. Processos que ocorrem “dentro” das fronteiras dos Estados-nações se referem a processos comunitários de larga duração, por debaixo do Estadonação, que em muitas ocasiões estão também conectados a processos “mais além”, que ocorrem por cima do Estado-nação.
· té agora temos atribuído a teoria do “sistema-mundo” à escola de pensamento desenvolvida por Immanuel Wallerstein. Não há dúvidas de que Wallerstein é o teórico do sistema-mundo mais prolífero e mais conhecido da atualidade. Suas teorias têm criado um impacto importantíssimo na teoria social contemporânea. Seu compromisso político com o Fórum Social Mundial e com as lutas dos movimentos sociais ao redor do mundo lhe tem dado uma proeminência indiscutível como intelectual comprometido. O problema surge quando a epistemologia racista/sexista das ciências sociais eurocêntricas atribui a origem da teoria do sistema-mundo a um homem ocidental como Wallerstein, invisibilizando outros autores do terceiromundo que previamente haviam criado e desenvolvido essa teoria. O próprio Wallerstein (2000) tem feito esclarecimentos públicos sobre a origem do conceito “sistema-mundo”. Porém, parece que o racismo/sexismo epistemológico institucional é surdo e pode mais que as declarações do próprio Wallerstein. A honestidade intelectual desse autor não corresponde à desonestidade intelectual do racismo/sexismo das ciências sociais eurocentradas. Wallerstein diz o seguinte acerca da origem da teoria do sistema-mundo. 
· Contrário a algumas teorizações que pretendem colocar Wallerstein como a origem da teoria do sistema-mundo ou Quijano como a origem da ideia de que o racismo é um fenômeno produzido pelo mundo moderno a partir da expansão europeia desde 1492, essas teorizações já se encontravam no intelectual afrotrinitário Oliver C. Cox desde os anos 1950. 
· Para Wallerstein existem três tipos de sistemamundo: 
· 1) Minissistema. O minissistema é um sistema-mundo em que existe uma divisão do trabalho que unica os diversos territórios articulados em centros e periferias, porém não existem classes sociais nem relações de exploração de trabalho. Todas as pessoas envolvidas participam diretamente do processo produtivo, e o excedente é usualmente apropriado pelas pessoas de maior idade, com frequência homens. O privilégio pende para o lado destes últimos. O modo de distribuição da riqueza do sistema-mundo minissistêmico baseia-se num sistema de reciprocidade. Nos minissistemas existem somente uma autoridade política, somente uma cultura e uma única divisão do trabalho. 
· 2) Império-mundo. O império-mundo é um sistema-mundo em que existe uma só divisão do trabalho entre centros e periferias, porém ela é articulada a um só Estado. Neste sistema-mundo existe uma elite privilegiada de não produtores que se apropria do excedente produzido pelos produtores diretos. O modo de redistribuição da riqueza se dá mediante mecanismos tributários do Estado apropriado por uma elite imperial. No império-mundo existe uma só autoridade política, uma só divisão do trabalho e múltiplas culturas que coexistem dentro de seu espaço. 
· 3) Economia-mundo. A economia-mundo é um sistema-mundo com uma só divisão internacional do trabalho entre centros e periferias vinculados à acumulação incessante de capital em escala global. O excedente é apropriado como mais-valia pela burguesia, que advém da exploração do trabalho dos produtores diretos no mercado. Na economia-mundo existe uma só divisão do trabalho com múltiplos Estados e múltiplas culturas. 
· O segundo conceito é o de “colonialidade”. Contrário ao pensamento de que o racismo é uma ideologia ou uma superestrutura derivada das relações econômicas, a ideia de “colonialidade” estabelece que o racismo é um princípio organizador ou uma lógica estruturante de todas as congurações sociais e relações de dominação da modernidade. O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, junto com as identidades e subjetividades, de tal maneira que divide tudo entre as formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc., acima da linha do humano) e outras formas e seres inferiores (selvagens, bárbaros, desumanizados, etc., abaixo da linha do humano). Para a esquerda ocidentalizada, primeiro vem a economia e segundo o racismo, como epifenômeno da primeira. Ao contrário, na perspectiva decolonial o racismo é um princípio organizador, o que não signica que seja um fator determinante em última instância, que substituiria a determinação de classe pela racial. Na perspectiva decolonial, o racismo organiza as relações de dominação da modernidade, mantendo a existência de cada hierarquia de dominação sem reduzir uma às outras, porém ao mesmo tempo sem poder entender uma sem as outras.O princípio de complexidade é o seguinte: não se pode reduzir como epifenômeno uma hierarquia de dominação à outra que a determine em “última instância”, porém tampouco se pode entender uma hierarquia de dominação sem as outras. Esse princípio de complexidade é o que Aníbal Pinto (1976) chamou de “heterogeneidade histórico estrutural”, Kyriakos Kontopoulos (1993) chamou de “heterarquia” e as feministas negras chamam de “interseccionalidade”. 
· Tenho dito em outros lugares (G, 2016a, 2013) que a ideia de “colonialidade” não é original de Quijano. Trata-se de uma ideia que tem estado presente – usando outros termos – em muitos autores e autoras antesde Quijano ter começado a utilizá-la nos anos 1990. 7 A concepção de mundo da colonialidade do poder, na qual a ideia de raça ou de racismo é um instrumento de dominação ou um princípio organizador do capitalismo mundial e de todas as relações de dominação (intersubjetivas, identitárias, sexuais, laborais, de autoridade política, pedagógicas, linguísticas, espaciais, etc.) da modernidade, tem sido articulada bem antes de Quijano por outros autores e autoras, utilizando outros conceitos: capitalismo racial (R, 1981), racismo como infraestrutura (F, 1952, 1961), ocidentóxico (A, 1984), colonialismo interno (C, 1965; B, 1979; R C, 1993), gênero como privilégio da mulher branca ou mulheres negras vistas como fêmeas e não como mulheres (D, 1981), supremacia branca (D B, 1935; M X, 1965), relação reducionista entre raça e classe (C, 1950; 1957), ego conquiro (D, 1994), etc. Até mesmo Wallerstein, anos antes de Quijano, disse literalmente que uma das características da economia-mundo capitalista é “a importância fundamental do racismo e do sexismo como princípios organizadores do sistema” (W, 1990, p. 289)
· O assunto importante a reter aqui é que a modernidade não existe sem a colonialidade; elas são duas caras da mesma moeda, e o racismo organiza a partir de dentro todas as relações sociais e hierarquias de dominação da modernidade. O terceiro conceito é o de “civilização”. O conceito de “civilização” tem sido rechaçado por muitos intelectuais de esquerda devido a seu uso imperialista racial nos projetos imperiais/coloniais dos imperialismos ocidentais, em que se propõe uma denição darwinista social que assume uma civilização como superior e as outras como inferiores. No caso particular dos imperialismos ocidentais, a “civilização ocidental” se assume como superior. A maior parte das denições privilegiam elementos culturalistas e/ou de conhecimentos cientícos/tecnológicos para justicarse como “civilização superior”. 
· Sem embargo, em um sistema-mundo em que a expansão colonial europeia tem destruído todas as outras civilizações (C, 1950; G, 2013), é um absurdo falar de “choque de civilizações”, quando todos estamos hoje em dia no interior de uma única civilização planetária, a civilização ocidental-cêntrica. Immanuel Wallerstein rechaça o conceito de “civilização” devido às suas conotações culturalistas e epistemicidas, que deixam de lado as estruturas de dominação e exploração. Ele prefere falar de “civilização capitalista”, quer dizer, um sistema econômico que produz uma civilização. 
· Dessa maneira, o conceito de civilização usado aqui distancia-se da denição culturalista de Huntington para falar de estruturas sociais e hierarquias de dominação múltiplas e enredadas entre si (heterarquias), e também distancia-se de Wallerstein para falar de sistemas-mundo como equivalentes a civilizações, porque eles não se reduzem a hierarquias econômicas, e sim compõem-se de uma multiplicidade de estruturas sociais e relações/hierarquias de dominação. Césaire (1950), em um discurso no nal dos anos 1940, já nos falava da relação entre a civilização ocidental/imperial/moderna/colonial e a exploração de classe capitalista, concebendo a primeira como imbricada e constituída pela segunda. O quarto conceito é o de “modernidade”. A modernidade não é um projeto emancipatório, como grande parte do pensamento eurocêntrico nos tem feito acreditar. A modernidade/colonialidade é um projeto civilizatório, que se produz no calor da violência e difunde com a violência em uma escala planetária que gerou a expansão colonial europeia para produzir vida (embora sejam vidas medíocres) nas zonas do ser e morte prematura nas zonas do não ser (C, 1950; F, 1952; G, 2012). Não existe “civilização ocidental” antes da expansão colonial europeia. 
· A “modernidade” é a civilização que se cria a partir da expansão colonial europeia em 1492 e que se produz na relação de dominação do “Ocidente” sobre o “não Ocidente”. Como nos recordam continuamente os líderes indígenas do mundo, estamos diante de uma civilização de morte.
· A retórica de embelezamento da modernidade, ocultando seu rosto imperial/colonial, começa quando o centro do sistema-mundo passa da península ibérica para o noroeste da Europa, em particular para a Holanda, logo depois da Guerra dos Trinta Anos. Na sequência, os franceses, britânicos e estadunidenses continuaram fetichizando a modernidade e a embelezando para dar à ascensão do Ocidente um rosto belo, doce, intrínseco e sui generis. Assim se atribui a ascensão do Ocidente à magia da “democracia”, “liberdade”, “igualdade”, “individualidade”, “cidadania”, “Estado de direito”, “conhecimentos cientícos”, “desenvolvimento tecnológico”, etc., desconectando os privilégios e a riqueza do Ocidente do saque imperial/colonial. Sem embargo, a “modernidade” é um projeto civilizatório constituído por um sistema-mundo que está composto por múltiplas hierarquias de dominação, que inclui, como um dos seus eixos, o capitalismo histórico. O capitalismo realmente existente é o capitalismo histórico, produzido pelas lógicas civilizatórias de morte da modernidade ou – para dizer o mesmo com outras palavras e fazer visível o que está em jogo – pelo “sistema-mundo moderno/colonial, capitalista/patriarcal, cristãocêntrico/ocidental-cêntrico” (G, 2011). Esse capitalismo histórico está atravessado e organizado a partir de dentro pelas lógicas civilizatórias da modernidade/colonialidade, e não o inverso. Por isso argumentamos que esse capitalismo é racista, sexista, heterossexista, cristãocêntrico,ocidental-cêntrico, eurocêntrico, ecologicida, cartesiano, etc. Para citar um exemplo, o dualismo cartesiano entre humanos e natureza é a cosmovisão ocidental-cêntrica da modernidade constitutiva das tecnologias do capitalismo histórico, que tem sido destrutora da vida em escala planetária (G, 2016a). 
· A relação entre modernidade /colonialidade e capitalismo é de tal ordem que a primeira, como processo civilizatório, é constitutiva da e se enreda com a segunda. O capitalismo histórico, por ser produzido por um processo civilizatório da modernidade, é moderno/colonial, porém são igualmente modernas/coloniais as relações de dominação de gênero, sexuais, epistêmicas, pedagógicas, ecológicas, espirituais, espaciais, políticas e de subjetividade/identidade. Esta última expressa-se no Ego conquiro de Enrique Dussel (1994), que captura com esse termo a subjetividade imperial moderna e o elemento predominantemente dominador/colonizador e não emancipador que caracteriza a modernidade. Em múltiplos sentidos, o que expresso é a elaboração, o aprofundamento e a expansão da grande contribuição para a crítica à modernidade de Aimé Césaire (1950) e Enrique Dussel (1994). Nas palavras de Césaire e Dussel, a modernidade é um projeto de morte genocida da vida (humana e não humana) e a destruição epistemicida de outras civilizações (destruição de formas “outras” de conhecer, ser e estar no mundo). 
Um olhar decolonial sobre os paradigmas da esquerda ocidentalizada
· Todas as demais relações de dominação e exploração que acompanham a expansão colonial europeia são vistas como epifenômenos derivados ou superestruturas da infraestrutura econômica. Por exemplo, o racismo, sexismo, eurocentrismo, cristão-centrismo, ocidentalismo, heterossexismo, cartesianismo, ecologicídio, etc. são todos problemas derivados do capitalismo e solucionáveis,uma vez desaparecido esse sistema econômico. De acordo com esse paradigma eurocêntrico, o que falta para solucionar os problemas da humanidade é superar a questão econômica da exploração capitalista por via da luta de classes e, a partir daí, construir uma nova sociedade mais justa, mais além do presente sistema econômico capitalista, o que alguns chamaram de “socialismo” ou “comunismo”.
· Uma das grandes questões desse paradigma é que não somente não resolveu os diversos problemas de dominação que se propunha a corrigir, como também nem sequer solucionou o problema principal que se propôs a dissipar: o modo de produção capitalista. Se a luta contra o capital ocorre de maneira sexista, racista, eurocêntrica, ocidental-cêntrica, cartesiana, cristãocêntrica,heterossexista e ecologicida, continua-se, portanto, reproduzindo todas as lógicas civilizatórias da dominação da modernidade/colonialidade e termina corrompendo a própria luta contra o capital.
· O problema central do paradigma do socialismo do século XX foi que, ao subestimar epistemicamente as demais relações sistêmicas de dominação dessa civilização, fazendo-as todas epifenômenos das relações econômicas e da luta de classe, pretendia-se superar o capitalismo sem dar-lhes atenção, reproduzindo todas as lógicas de dominação que compõem o sistemamundo civilizatório moderno/colonial. Para a esquerda ocidentalizada, habitamos em um sistema econômico global conhecido como capitalismo, e somente superando esse sistema superaríamos as demais relações de dominação. Sem embargo, o laboratório mundial que foi o socialismo do século XX desmentiu por completo esse paradigma reducionista econômico. Se aprendemos algo com essa experiência foi que não podemos continuar construindo projetos anticapitalistas modernos que reproduzam todas as relações de dominação modernas/coloniais com o m de produzir um sistema socialista moderno, que reproduz todas as lógicas civilizatórias da modernidade. O horizonte político não pode ser em direção a um projeto de esquerda que cumpra todas as promessas e valores da modernidade. Lutar por um sistema social que pretenda realizar as promessas da modernidade é lutar por produzir novamente um mundo moderno/colonial. A decolonialidade trata da produção de um projeto antissistêmico que transcenda os valores e as promessas da modernidade como um projeto civilizatório e da construção de um horizonte civilizatório distinto, com novos valores e novas relações que comunalizem o poder. Necessitamos de projetos políticos antissistêmicos que rompam com o projeto civilizatório da modernidade. 
· A modernidade produz um mundo onde somente um único mundo é possível e os demais são impossíveis. A nova civilização, mais além da modernidade, produziria um mundo onde outros mundos sejam possíveis, a saber, o mundo da transmodernidade dusseliana. Este não é equivalente a um relativismo em que tudo vale. Se trata de um mundo antissistêmico que supere as lógicas de dominação do presente sistema-mundo e construa, desde os valores compartilhados pela diversidade epistêmica, um mundo onde outros mundos sejam possíveis. Nada nesse momento pode dizer com certeza como será em todas as particularidades essa nova civilização. A transição para ela pode durar décadas, senão séculos. Porém, podemos antecipar seus princípios gerais. Se mudarmos a geografia da razão e olharmos o mesmo processo de expansão colonial europeia não desde a “Europa expandindo-se” para outros lugares, mas sim desde a geopolítica do conhecimento da “Europa chegando” às Américas, à África ou à Ásia, torna-se visível todo um pacote de hierarquias de dominação que a partir do olhar eurocêntrico da “Europa expandindo-se” ca invisível. Olhando desde a experiência dos povos do sul global, a chegada da colonização europeia não foi somente a formação e o início de um novo sistema econômico mundial, como também a formação e o início de uma nova civilização, com toda uma série de relações de dominação que não se esgotam nas relações econômicas. Essa heterarquia ou multiplicidade de hierarquias de dominação enredadas entre si constituiu em seu momento a formação de uma nova civilização. Contrário ao que diz a esquerda ocidentalizada, a partir de uma perspectiva decolonial habitamos um sistema-mundo que constitui uma civilização planetária moderna/colonial. 
· Vivemos em uma civilização que tem um sistema econômico, e não em um sistema econômico que produziu uma civilização.
· Essas questões têm implicações políticas fundamentais. Defender uma modernidade anticapitalista nos coloca num atoleiro de reproduzir as lógicas civilizatórias de morte da modernidade do socialismo do século XX. O projeto de transformação tem que obrigatoriamente ser antissistêmico, quer dizer, a luta tem que abarcar todas as lógicas civilizatórias da modernidade no sentido de ser anticapitalista/antipatriarcalista/antieurocêntrica/antiocidentalcêntrica/anticristã-cêntrica/antiecologicida, porém mantendo, a partir da diversidade epistêmica de cada projeto, uma pluralidade de soluções de problemas similares. Não tem que haver uma única solução para um único problema. Podemos perfeitamente imaginar múltiplas soluções para um mesmo problema. 
· Daí que a decolonialidade não seja somente um assunto de lutar contra as estruturas externas da dominação moderno-ocidental (decolonialidade do poder), mas também lutar contra as estruturas internas ou o Ocidente que levamos dentro de nós (decolonialidade do saber e do ser) e os “ego conquiros” enfermos que constituem a todos nós (decolonialidade espiritual). 
Caos sistêmico 
Quando os brancos imperiais entram em crise: um perigo para toda a humanidade 
· Sempre que se fala em crise sistêmica na presente civilização-sistemamundo moderno/colonial se está falando fundamentalmente de crise para as populações racialmente privilegiadas nas zonas do ser em escala planetária. São elas que sofrem a crise com maior intensidade porque são elas que caem de status e perdem privilégios. Os povos colonizados, classicados racialmente como “inferiores” e incorporados como parte da periferia por meio de um processo de violência sistêmica de morte, têm estado em crise há 525 anos. Se há crise ou expansão sistêmica não faz tanta diferença para os povos pauperizados, dominados, explorados e “inferiorizados”, exceto pelos níveis de violência e de saque que se expandem a novos territórios e se intensicam onde já foram colonizados. 
· No princípio do século XX, como resultado da Primeira Guerra Mundial e com o acordo Sykes-Picot de 1916, repartiu-se o território otomano entre franceses e britânicos. A partir desse momento, todos os territórios do planeta já haviam sido colonizados e/ou se tornado periferias, concluindo a tendência secular de incorporar novos territórios e populações como maneira de resolver as crises cíclicas. O sistema não tem mais territórios para onde se expandir diante da crise em que vivemos hoje, de maneira que as populações brancas que experimentam o privilégio racial dentro das zonas metropolitanas do sistema-mundo são as mais afetadas pela crise de contração e pela crise de hegemonia. Desde o momento em que foram colonizadas e tiveram suas respectivas civilizações destruídas, as populações inferiorizadas racialmente têm estado e estão em crise tanto durante os períodos de e contração do sistemamundo.
· É em momentos como esses que aparecem os líderes carismáticos de extrema direita prometendo reestabelecer os privilégios imperiais da brancura e trazer de volta os “velhos bons tempos”. O “let’s make America great again” signica, na boca de Donald Trump, “let’s make American white again”. Em uma era de supremacia branca pós-Direitos Civis (post-Civil Rights) e pósapartheid nos Estados Unidos, os brancos imperiais possuem hoje a nostalgia do regresso ao tempo em que viviam com privilégios como parte da velha institucionalidade do apartheid da supremacia branca. As promessas racistas demagógicas da extrema direita se convertem em “soluções” atrativas para milhares de trabalhadores brancosimperiais, que associam seu declínio econômico à ascensão dos direitos civis para as minorias racializadas e à presença massiva de imigrantes. Em momentos de crise, como a que vivemos hoje, a demagogia racista dos líderes carismáticos penetra profundamente nas mentes das populações imperiais. 
· Nos anos 1930, durante a Grande Depressão, que produziu a pauperização das classes trabalhadoras brancas imperiais, vimos a ascensão do fascismo na Europa. Se seguirmos a leitura decolonial que fez Aimé Césaire (1950) sobre o hitlerismo, vemos que o fascismo signicou a extrapolação dos métodos de violência e despojo, utilizados pelos impérios europeus contra as populações racialmente desumanizadas em suas colônias, em direção e contra as populações brancas dos centros metropolitanos. Os métodos que a Europa usou contra africanos, asiáticos, latino-americanos e árabes em seus projetos coloniais, o hitlerismo os extrapolou contra as populações brancas metropolitanas.
· Entretanto, o fenômeno Trump não é excepcional aos Estados Unidos. É um fenômeno global que aparece nos centros metropolitanos quando os brancos perdem privilégios. Marine le Pen na França, Geert Wilders na Holanda e Boris Johnson com o Brexit na Inglaterra são os rostos do neofascismo europeu. A latinofobia e a islamofobia de Trump têm seu rosto europeu na islamofobia dos líderes neofascistas mencionados. Se trata de um neofascismo, ou seja, novas formas de fascismo. Se nos anos 1930 o fascismo europeu se direcionava fundamentalmente, embora não exclusivamente, contra judeus, hoje em dia se direciona contra muçulmanos, de maneira que passamos do antissemitismo contra os judeus à islamofobia contra árabe/muçulmanos. Se nos anos 1930 buscavam expandir-se militarmente, hoje se apresentam sob um discurso antiintervencionista defensivo. Todos, de alguma forma, ao menos em suas falas, põem em questão as políticas neoliberais e as guerras no exterior, levantando um discurso populista a favor dos trabalhadores brancos contra as elites, contra os ricos e contra as corporações transnacionais que levam seus contratos bilionários de guerra e retiram suas empresas para o terceiromundo, deixando massivamente desempregados os trabalhadores metropolitanos. Embora o discurso neoliberal nunca tenha sido consequentemente implementado no norte global, mas sempre foi discurso de fachada para disciplinar e saquear os países do sul global, não há dúvidas de que, se agora o presidente dos Estados Unidos clama por protecionismo, o discurso neoliberal perde sua credibilidade. 
Para uma refundação decolonial de projetos de transformação radical
· As crises são momentos de oportunidade. Diante do esgotamento dos discursos e paradigmas eurocêntricos da esquerda ocidentalizada e de sua capacidade de gerar alternativas políticas voltadas ao futuro, o panorama atual traz um momento de oportunidade para os movimentos decoloniais. A mudança de conteúdo dos nossos projetos de luta anti-imperialista e anticapitalista moderna para um conteúdo antissistêmico de mudança civilizatória constitui hoje mais do que nunca uma necessidade e um projeto atrativo a muitas populações no mundo atual. A crise terminal dos projetos e discursos eurocêntricos de esquerda e de direita, que não permitem produzir nada “alternativo” que não seja repetir novamente pesadelos globais, constitui um momento de oportunidade para os movimentos decoloniais no mundo. Mesmo dentro da crise e da desolação, há sinais positivos muito importantes. Por exemplo, o trabalho político dos movimentos decoloniais nos centros metropolitanos está produzindo “brancos decoloniais”, que hoje em dia representam um projeto político distinto do projeto da esquerda ocidentalizada, mas em consonância com as “epistemologias do sul” (S S, 2010). Na França, como resultado dos Indígenas da República, 12 existem brancos decoloniais que são chamados desrespeitosamente de “islamo-esquerdistas” (islamogauchistes), que nos Estados Unidos são chamados de “blacklovers”. Enm, ao mesmo tempo em que entramos numa fase neofascista nos países metropolitanos, com consequências nefastas para o resto do planeta, abrem-se possibilidades inesperadas para os discursos e movimentos decoloniais no mundo. Porém, para isso têm que ser desenvolvidas táticas e estratégias políticas decoloniais adaptadas a cada lugar. Não se pode derivar a política mecanicamente de princípios gerais ou abstratos nem do novo horizonte civilizatório. É preciso conjugar prática política concreta com o horizonte utópico decolonial em direção a uma nova civilização (D; 2006, 2009). Os diálogos e alianças sul-sul são importantes hoje mais do que nunca. Não podemos conceber uma mudança civilizatória sem contar com atores políticos aliados do mundo africano, asiático, latino-americano e do sul dentro do norte. Faz falta uma nova Conferência de Bandung; todavia, que não seja somente anti-imperialista e anti(neo)colonial, e sim radicalmente e amplamente antissistêmica com os giros decoloniais correspondentes. Uma nova civilização é possível!

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