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Por que redigir uma resenha sobre Os Afogados e os Sobreviventes, de Primo Levi? Alguns acontecimentos recentes parecem reforçar a necessidade de recorrer à difundida literatura referente à violência perpetrada nos campos de concentração. Recentemente, em maio de 2006, o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, declarou à comunidade internacional que o Holocausto, precisamente a execução em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, seria um mito. Ao ser indagado, pouco depois, em entrevista concedida à revista alemã Der Spiegel, se sabia que na Alemanha a negação da ocorrência do Holocausto é tipificada como crime, Ahmadinedjad respondeu questionando a liberdade de expressão da conhecida revista alemã. O presidente disse ao jornalista alemão: “[...] eu sei que a Der Spiegel é uma revista renomada, mas não sei se o senhor tem a possibilidade de publicar a verdade sobre o Holocausto. O senhor tem autorização para escrever tudo o que sabe sobre o Holocausto?” (entrevista concedida em 29/5/2006). As polêmicas declarações de Ahmadinejad são seguidas da visita do papa Bento XVI, realizada no final desse mesmo mês, ao campo de concentração de Auschwitz, em Birkenau, na Polônia. Ao contrário de Ahmadinejad, Joseph Ratzinger (o papa), conforme publicado pela Der Spiegel, depois de repetir diversas vezes que não poderia deixar de fazer a referida visita, afirmou que “o passado nunca é simplesmente passado quando nos diz respeito”. Contudo, a indagação mais impressionante manifestou-se nas suas perguntas: “Onde estava Deus naqueles dias? Por que ele silenciou? Como pôde tolerar esse excesso de destruição e triunfo da maldade?”. As declarações do presidente do Irã e do papa são representativas da necessidade de continuar a pensar e tentar compreender sine ira et studio o fenômeno da violência dos campos de concentração criados pelo Estado nazista alemão. Inúmeras razões podem ser apontadas para revisitar as idéias de Primo Levi, como o crescimento do neonazismo em diversos países da Europa, nos Estados Unidos e na Rússia. A existência de campos de prisioneiros em Cuba e no Iraque, respectivamente em Guantánamo e Abugrai, a prática de genocídio em Ruanda, no Sudão, a insistência nas atividades de tortura praticadas nas delegacias das democracias ocidentais e o terrorismo de Estado. A leitura de Os Afogados e os Sobreviventes nos convida a compreender a singularidade pela qual se manifesta o fenômeno da violência. A literatura de testemunho, produzida pelo sobrevivente Primo Levi, busca por meio de sua memória representar a realidade de quem passou pelo campo de concentração, desmistificar a imagem dos campos de extermínio, permitindo discernir entre distintas formas de violência. Campos de prisioneiros, campos de concentração, presídios, masmorras, penas de trabalho escravo ou forçado são, muitas vezes, ainda confundidos. A compreensão da peculiaridade do fenômeno dos campos de concentração (Lager) possibilita o conhecimento de uma face da modernidade que, sustentada pela fé cega na razão, na neutralidade da técnica e no progresso de supostas leis históricas, produziu milhões de cadáveres. O testemunho de Primo Levi é uma contribuição para evitar uma típica separação operada pela modernidade: entre conhecimento e pensamento, entre ação e reflexão, entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Mais de 60 anos nos separaram dos campos de extermínio existentes durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, enquanto o tempo parece encarregado de banalizar o mal, a memória busca apagá-lo. Ninguém pode assegurar à humanidade que a inaudita brutalidade dos campos de concentração foi sepultada de uma vez por todas. Ocorrerão outros extermínios em massa? Auschwitz retornará? A eliminação física, mental e simbólica de grupos étnicos ou religiosos cessou? Estas e outras questões Primo Levi busca responder em diversos livros de sua autoria, entre eles É Isto um Homem? e Os Afogados e os Sobreviventes, publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1947 e 1986. No Brasil é Isto um Homem? Foi publicado em 2000 e ``Os Afogados e os Sobreviventes'', último livro do autor, em 1990. Primo Levi (1919-87), judeu italiano, químico, foi um dos poucos sobreviventes do campo de extermínio de Auschwitz, onde milhões de prisioneiros judeus foram eliminados pelos nazistas. Levi eleva sua experiência à condição de testemunho deixado à humanidade. Mais do que isso, transforma sua experiência em verdadeira arma política contra a banalização da violência, de Estados totalitários, perigosos líderes carismáticos, armas nucleares, enfim, qualquer forma de violência que avilta e degrada a condição humana. O relato e análise de Primo Levi, além de consistir em uma sociologia dos campos de concentração capaz de revelar o desdobramento mais abjeto do Estado totalitário, é uma incursão na psique humana. Diante de um mundo que apresenta uma miríade de indícios de extermínio em proporções incomensuráveis – em virtude da invenção da bomba atômica, capaz de varrer a Terra pelos ares –, Levi recorda do poder destrutivo que a sociedade industrial já tinha nas décadas de 1920, 1930 e 1940 na Europa. A despeito de chamar a atenção para os bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki, a Guerra do Vietnã, os desaparecidos durante a ditadura da Argentina, os 60 milhões de índios mortos na América pelos conquistadores espanhóis, o autor focaliza sua análise e depoimento, sobretudo, no Lager (campo de concentração) nacional-socialista. Consciente da pluralidade de genocídios perpetrados ao longo da história da humanidade e da atual ameaça tecnologicamente potencializada, admoesta Levi que jamais houve algo semelhante ao ocorrido no sistema concentracionário nazista. A singularidade deste fenômeno residiria em aspectos quantitativos e qualitativos. Nunca se teria tomado de assalto a humanidade de forma tão imprevisível para iniciar a eliminação de vidas humanas em linha de montagem. As instalações racionalmente organizadas a fim de suprimir vidas humanas em série consistiam em uma tecnologia de poder incomparável com qualquer outra forma de suplício. Primo Levi, a fim de decifrar o enigma da racionalidade submetida à perversão humana e desmistificar comentários ingênuos sobre a shoah (holocausto), lança mão de testemunhos, confissões, cartas, livros e experiências em geral sobre o assunto. O uso de diferentes materiais relaciona-se ao esforço de superar o obstáculo linguístico, de tentar representar através de palavras o indizível. O principal acervo é sua memória; contudo, como fazer a mediação entre a dor registrada na memória e as palavras? Em É Isto um Homem?, Levi observa que “pela primeira vez nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem” (2000:24). Ao mesmo tempo que reconhece a fragilidade das palavras para descrever o terror vivido, Levi parece compreendê-las como mimesis, isto é, reconhece na palavra a possibilidade de representar a realidade. Isto está intimamente ligado ao imperativo ético que orienta o testemunho que Levi se dispôs a prestar em sua obra. O testemunho de Levi, para que cumpra seu papel diante das diferentes gerações e à posteridade, tem de ser prestado pelo sobrevivente. Por isso, paradoxalmente, diz Levi: “repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas [...]. Nós sobreviventes somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo” (1990:47). Levi entendia que teria sobrevivido em razão de muita sorte; entre outras circunstâncias, seu ofício de químico o teria ajudado a escapar de algumas seleções para a câmara de gás. A declaração de Levi mostra os sobreviventes, uma minoria que se sente culpada e “envergonhada”. Entre eles há “os que calam e os que falam”, os que falam se deparam com a culpa por ter sobrevivido e a necessidade de narrar seus testemunhos sem deturpar a verdade dos fatos. O imperativo ético do testemunho dos sobreviventes como Leviou o austríaco Hans Meier, que adotou o nome Jean Améry, é traduzir o vivido, encontrando imagens adequadas, frases justas e uma estética capaz de representar o “horror dos horrores”. Os sobreviventes seriam os representantes das autênticas testemunhas que foram assassinadas e por isso, como Levi, têm uma missão: prestar o testemunho mais verdadeiro possível. O papel do tratamento da linguagem como forma de representação da memória torna-se mais claro no comentário que Levi faz da tradução do livro É Isto um Homem? do italiano para o alemão. “De um certo modo, não se trata de uma tradução, mas, antes, de uma restauração: esta versão era, ou eu queria que fosse, uma restitutio in pristinum, numa retroversão para a língua na qual as coisas tinham ocorrido e à qual se referiam. Devia ser, mais do que um livro, um registro de gravador” (idem:106). Ciente da natural falibilidade cognitiva de homens e mulheres em face à infinita complexidade e variabilidade dos fenômenos humanos, Levi discute o papel da memória diante da abstrusa crueldade do fenômeno dos Lager. Se a memória já é uma faculdade quimérica, a fortiori o registro mnemônico de quem vive situações de sofrimento limite tende a tergiversar ou eclipsar os episódios mais dolorosos. O autor transmite ao leitor a sensação de que a própria linguagem, compreendida como registro oral ou escrito da memória, consiste em uma banalização dos fatos vivenciados pelos indivíduos. Como enfrentar o mal quando tende a ser ocultado pela capacidade mnemônica? Segundo Levi, o Terceiro Reich teria o intuito de privar seus prisioneiros – presos políticos, criminosos e, sobretudo, judeus – de sua memória, identidade, referências familiares, crenças religiosas ou políticas, laços nacionais, enfim, de qualquer elemento simbólico constitutivo da personalidade do indivíduo. Não por acaso, Levi afirma que “toda a história do curto ‘Reich Milenar’ poder ser compreendida como ‘guerra contra memória’” (idem:14). A distorção, falsificação ou negação da realidade poderia ser pensada como mecanismo de fuga do mundo da parte daqueles que prestavam obediência e reverência ao regime nazista e de seus líderes. A fim de obter a fé cega de seus subordinados, o moderno Estado totalitário alemão valia-se da propaganda diretamente ou indiretamente dissimulada pela educação. Manipulava a população através do uso estratégico da cultura popular, censurava as informações antinômicas aos seus princípios e, sobretudo, subordinava os recalcitrantes ao regime do terror – em outras palavras, como diria Hobbes, submetia os adversários ao medo da morte violenta. O autor parece querer combater a guerra do Terceiro Reich contra a memória mediante o uso da própria memória, indispensável patrimônio que não foi subtraído de todos sobreviventes dos Lager. Mas como fazê-lo se as reminiscências são fragmentadas, desbotam e, ainda por cima, tendem a eclipsar os episódios ignóbeis? Interessante salientar que, para evitar o desbotamento da memória, o esfumaçar da violência sofrida, os relatos e considerações dos Lager devem se utilizar de uma percepção acurada cujo resultado não seja a redução de complexidades. Isto significa não incorrer no uso de uma retórica esquemática que reduza a complexidade do emaranhado dos fatos ao cognoscível convertendo-os em maniqueísmos e estereótipos. Não é possível dividir a percepção da realidade dos campos de concentração – o que se estende à vida social em geral – em esquemas como “nós” e “eles” ou na bipartição “amigo-inimigo” sob pena de se reduzir a variedade dos fenômenos humanos a maniqueísmos. Embora as faculdades cognitivas do gênero humano orientem-se de acordo com o desejo da simplificação para apreensão da realidade, não se deve confundir o desejo de simplificar com a superficialidade. A arte de compreender os fenômenos da história dos acontecimentos humanos não deve reincidir na narrativa do conflito entre atenienses e espartanos, romanos e cartagineses, senhores e escravos, proletários e burgueses, mocinhos e bandidos. O logro dos historiadores que reduz acontecimentos à plasticidade dos conflitos impede a compreensão dos pontos cegos, os “meios-tons” e a complexidade dos fenômenos investigados. O uso da memória não deve ser entendido do ponto de vista pejorativo ou irresponsável da distorção da realidade, mas como meio de reavivar as cores da realidade escamoteada pelo sofrimento. Além disso, Levir dá a entender que até mesmo a retórica pode estar a serviço da memória, mas como instrumento cuja finalidade é evitar a banalização do mal e reforçar a luta do testemunho contra a barbárie, sempre virtualmente ou concretamente presente. Levi, para esclarecer suas impressões, utiliza uma metáfora pertinente às intrincadas relações de poder presentes no Lager: “a zona cinzenta”. Tal metáfora permite que Levi descortina ao leitor o grau de imprevisibilidade, incerteza ou contingencialidade com que se depararam os prisioneiros, sobretudo, os judeus, que logo eram tatuados com a estrela de Davi e o registro de seu ingresso no braço. Deportado, em 1944, aos 24 anos, com mais de 600 italianos, da Itália para o campo de concentração de Auschwitz em condições desumanas, Levi esperava encontrar um mundo terrível, porém decifrável. Todavia, na delicada condição de “novato” – sempre submetido a hostilidades e humilhações –, paulatinamente percebia a Tenha fronteira que separava parte das vítimas dos opressores. Da observação da hierarquia do Lager constata-se uma classe híbrida de funcionários muito diferente da realidade apresentada em filmes produzidos sobre o Holocausto. O caráter híbrido das funções exercidas nos campos mostra que os próprios prisioneiros, muitas vezes judeus, eram obrigados, sob ameaça de morte, a operar câmaras de gás, fornos crematórios (funcionários denominados pelo autor de “corvos”), aplicar injeções letais, submeter seres humanos, concomitantemente, à fome, à sede e ao trabalho escravo. Conforme relata Levi, eram três os objetivos do sistema concentracionário: trabalho escravo (observa o autor em É Isto um Homem? que está registrada na sua memória a placa que virá pela primeira vez de um caminhão com os dizeres Arbeit macht frei, o trabalho liberta. O trabalho, neste caso, compreendido pelo autor como instrumento ascético herdado pelo nazismo da burguesia); a eliminação de adversários políticos; e o extermínio das “raças” supostamente inferiores. Vale lembrar que a diferença entre o regime concentracionário nazista e o soviético residia no fato de os campos de concentração soviéticos não visarem o último objetivo mencionado, isto é, a eliminação de “raças”. Por outro lado, enfatizavam a importância do trabalho escravo. Os três objetivos dos Lager eram, sob pena de morte, muitas vezes executados pelos próprios judeus. Em seu libelo contra o Estado totalitário, observa Levi que a organização da estrutura hierárquica dos campos, fundada na confusão de papéis de vítimas e executores, não deixava de excluir a culpa da condição das vítimas. A “zona cinzenta” da organização dos Lager impede que se precipite qualquer julgamento a priori ou que se incorra em juízos morais. Defende Levi que, antes de se avaliar a culpabilidade ou os motivos que levaram alguns prisioneiros a colaborar com o genocídio, deve-se dirigir “a culpa máxima” à estrutura do Estado totalitário. A despeito disso, não se deve excluir a imputabilidade penal dos colaboradores singulares, tampouco deixar de tentar apurar a medida de sua culpabilidade. É polêmica a afirmação de que a competência para julgar tais casos não poderia ser atribuída a um tribunal humano, tendo em vista que muitos dos sobreviventes diante das atrocidades vividas perderam a fé em qualquer forma de religião, sobretudo em uma justiça divina. Outro problema apontado pelo autor é que, embora Os prisioneiros privilegiados eram minoria entre a população dos Lager, representavam a grande maioria dos sobreviventes. Os produkcja (privilégios), muitas vezes, significavam condições menos subumanas de trabalho e dealimentação (nos campos utilizava-se a palavra fressen, cujo sentido é o de alimentar os animais) nos campos de concentração. Ao analisar e tecer suas considerações sobre o sistema de hierarquias e competências dos Lager, incluindo os privilégios de alguns prisioneiros, Levi apresenta ao leitor uma sofisticada análise das relações de poder. Ao decifrar a estrutura de poder dos campos, desvelando a relação entre opressores e oprimidos, marcada pelo mimetismo, imitação ou troca de papéis, a análise do autor permite uma melhor compreensão do Estado totalitário nazista. Deve-se, contudo, evitar o uso irresponsável da psicologia, “a afetação estética”, e não se deixar cair em dialéticas levianas entre o opressor e a vítima. Ao mesmo tempo que a estrutura dos campos é complexa e, aparentemente, ininteligível, pois os papéis muitas vezes se confundiam, também houve aqueles que puderam e ainda podem ser identificados como vítimas e assassinos. Descortinar a faixa cinzenta dos campos de concentração nazista permite perceber que os Lager reproduziam a estrutura hierárquica do Estado totalitário no qual quase todo o poder emana do alto. Somente nos Lager o poder proveniente de baixo era nulo, pois seres humanos eram reduzidos a um nada. É imprescindível observar que Levi assinala alguns motivos que teriam desencadeado o massacre alemão, como a sequiosa ânsia de servidão, o espírito tacanho, o estado de guerra, o afã do perfeccionismo tecnológico, a devoção à ordem, a ausência de uma tradição democrática e o carisma da Wille zur Macht de Hitler (que o autor corretamente distingue das idéias de Nietzsche). Fatores que Levi percebia que já estavam se espraiando pelo mundo ao observar a tragédia ocorrida em 1975 no Camboja, o patrocínio de ditaduras na América Latina e a expansão das armas nucleares durante a Guerra Fria. Se Levi estivesse vivo hoje, provavelmente ficaria atônito com a existência de instalações construídas pelos ex-aliados norte-americanos onde são depositados os “inimigos” da nação. Nestes campos de prisioneiros situados na base militar dos Estados Unidos em Cuba, precisamente, Guantánamo, e em Alegrai, no Iraque, vigora um dos dogmas da contingencialidade de Auschwitz: Hier ist Kein Warum (aqui não há por quê).