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Filosofia e Ciências Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Américo Soares da Silva Revisão Textual: Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos Popper e o Falseacionismo • Falseando Teorias • Indução vs Dedução • O Falseacionismo • O problema da demarcação • Caminhos para além do falseacionismo • Material Complementar · Apresentar uma síntese do pensamento de Karl Popper acerca da pesquisa científica, suas divergências em relação ao círculo de Viena e sua defesa de uma posição antidogmática na construção da ciência. OBJETIVO DE APRENDIZADO Nesta unidade, você conhecerá um pouco do pensamento do filósofo Karl Popper, conhecedor de diferentes áreas que acabou se voltando mais para a ciência e a filosofia. Suas reflexões o conduziram a questionar o próprio método científico de uma maneira distinta do que fizeram os pensadores do neopositivismo. A recomendação a você, estudante, é dividir seus estudos em etapas: primeiro, faça uma leitura atenta do texto. Nesse momento, não é tão importante fazer marcações; busque uma compreensão de conjunto. Em um segundo momento, retorne ao texto, mas dessa vez você já conhece o final da história, não é mesmo? Então, ao retornar, você o fará com um olhar de investigador(a); busque pelos pontos principais: quem são os personagens mais relevantes dessa “história”? Que ideias cada um deles defendia? Por quê? Outras questões são colocadas ao longo do texto para sua reflexão? Quais são elas? Além disso, para que a sua aprendizagem ocorra num ambiente mais interativo possível, na pasta de atividades, você também encontrará as atividades de Avaliação e uma Atividade Reflexiva. Cada material disponibilizado é mais um elemento para seu aprendizado; por favor, estude todos com atenção. ORIENTAÇÕES Popper e o Falseacionismo UNIDADE Popper e o Falseacionismo Contextualização Leia a reportagem de Gustavo Xavier acerca do – agora benéfico – consumo de café: Café sem culpa Novas pesquisas garantem: o café sai do papel de vilão para encarar um mocinho aliado da sua saúde. Mas antes de brindar a notícia, encontre a medida que pode beneficiar o seu organismo. Apreciado, amplamente consumido, saboreado de várias maneiras, o café faz parte da alimentação brasileira. Mesmo quem não toma costuma apreciar seu cheirinho agradável. E quem toma normalmente o faz diariamente. Puro, com leite, de manhã, de tarde, de noite, com sorvete, quente, morno, frio. O café está no topo dos alimentos mais consumidos. No mundo todo, só as plantas para fazer refrigerantes de cola e o chá ficam no mesmo patamar do café em termos de vegetais campeões de consumo. Assim, nada mais útil do que entender um pouco aquelas xícaras esfumaçadas e saber quais são suas propriedades e efeitos para a saúde. “Café não é remédio, mas a comunidade médico-científica já considera a planta como funcional — que previne doenças — ou mesmo nutracêutica — nutricional e farmacêutica. Isso porque o café não possui apenas cafeína, mas também outros componentes”, atesta a nutricionista Priscila Maximino, da Nutrociência, em São Paulo. Além da cafeína Potássio, zinco, ferro, magnésio e diversos outros minerais estão presentes no grão, embora em pequenas quantidades. Aminoácidos, proteínas, lipídios, além de açúcares e polissacarídeos também o compõem. Mas nem todas essas substâncias permanecem nas mesmas quantidades quando o café passa pelo processo de torrefação. Alguns deles chegam até mesmo a ser destruídos por completo se os grãos são torrados excessivamente. [...] [...] Geralmente, os grãos do café tipo Arábica, que é o mais usado para fazer o pó, passam por uma torrefação a 220ºC entre 12 e 15 minutos. No Brasil, os grãos passam, em média, por uma torrefação a 180ºC, durante cerca de 20 minutos. É considerado um tempo excessivo. Por isso, aqui o café costuma apresentar menor grau de qualidade, tanto nas propriedades nutritivas quanto no aroma, cor e sabor. Por um lado, a torrefação é a responsável pelo fato de o café ser pouco calórico. Afinal, parte dos lipídios, aminoácidos e açúcares são eliminados no processo. Por outro, aumenta a concentração de cafeína, que não se perde. 6 7 Combate à depressão Embora seja o componente mais conhecido do café, a cafeína constitui apenas uma parte de sua composição total. E é menos do que muita gente pensa, pois um grão normal tem de 0,8% a 2,5% de cafeína. Nem por isso deixa de ser parte importante desse alimento, com sua devida participação sobre os efeitos no metabolismo e nas reações orgânicas. Uma das ações da cafeína se dá sobre os quadros de depressão. E, nesse sentido, o café parece ser um aliado importante no combate à doença. “A cafeína é um estimulante do sistema nervoso central e, em pequenas doses, pode trazer uma sensação de bem-estar, disposição e ânimo”, pondera Ricardo Borges, nutrólogo e coordenador do Centro de Nutrologia e Nutrição Clínica de Ribeirão Preto. Quando a bebida vicia A estudante Mariana Monteiro, de 20 anos, que o diga. Ela não consome café com exagero. Apenas uma xícara de manhã e outra no fim da tarde. Mas faz questão de ter sua dose de ânimo diariamente. “É um prazer indescritível. Eu me sinto mais disposta e até mais bem humorada”, conta. No entanto, quando Mariana não tem à disposição sua costumeira xícara, que é bem quente, forte e com pouquíssimo açúcar, os efeitos são totalmente adversos. “Quando fico sem tomar café, a primeira coisa que sinto é uma dor de cabeça relativamente fraca, mas chata. Fico muito mal humorada, sem paciência e inquieta”, revela a estudante. É comum que as pessoas habituadas a tomar doses diárias de café relatem dor de cabeça quando não o consomem. Segundo Borges, “a cafeína causa dependência física. O corpo precisa dela e, se não a ingere, a pessoa passa por um período de abstinência”. Tratando-se ainda do sistema nervoso, também há indícios de que a cafeína possa reduzir a incidência da doença de Alzheimer. Porém, estudos nessa direção ainda são experimentais, feitos com animais, e não é possível especular sobre os mesmos efeitos em seres humanos. (XAVIER, Gustavo. Café sem culpa. Disponível em: https://goo.gl/avjfg3 - Acesso em: 05 mai. 2016.) 7 UNIDADE Popper e o Falseacionismo Falseando Teorias Não é novidade na história do pensamento filosófico, seja sob qual enfoque for, que teorias levam a outras teorias. Posições teóricas levam mais cedo ou mais tarde à formação tanto de convergências como de divergências. Esse movimento do pensamento também se fez fortemente presente nas discussões filosóficas sobre as ciências. Estavam em jogo questões sobre o que é ou não ciência e, em consequência, o que significa quando uma teoria recebe, por exemplo, o reconhecimento como “científica”. Como esse processo ocorre? “Quem” faz esse reconhecimento? Qual o impacto que isso tem sobre o valor intelectual da teoria? Ela se torna mais confiável, mais verdadeira? Pode ser mais preditiva? É a sua condição de “prever” acontecimentos futuros que a reveste de confiabilidade, de veracidade? Essas e outras perguntas permearam, e ainda premeiam, o debate entre a filosofia e a ciência. Na estrada aberta pelo pensamento do círculo de Viena e seu positivismo lógico, estava a discussão sobre qual deveria ser a metodologia da ciência ou, pelo menos, quais critérios um saber e/ou teoria deveria atender para ser reconhecida como científica. Encontramos nessa mesma época um pensador que também se debruçaria sobre o problema do método e dos procedimentos de pesquisa da ciência, mas ele logo se posicionaria como um adversário intelectual das propostas do círculo. Figura 1 - Karl R. Popper Fonte: Wikimedia/Commons Em 28 de julho de 1902, nasce Karl R. Popper, em Viena, na Áustria; cresceu em um lar com muitos livros, dados os estudos de seu pai e seus irmãos no campo das leis. O período de sua infância coincide com o advento da Primeira Grande Guerra. Cedo deixou o lar paterno para viver em uma repúblicaestudantil, e na universidade transitou por disciplinas diversas, como História, Psicologia, Filosofia, Física e Matemática. Para compreender melhor as objeções popperianas, vamos retomar o problema da indução e da dedução. 8 9 Indução vs Dedução O movimento usual do pensamento teórico e da sua aplicação, seja para o entendimento do acontecimento, seja para a sua previsibilidade – que direciona a ação – segue o seguinte trajeto: Usualmente parte-se de situações particulares; depois de identificado um padrão de repetição, propõe-se uma explicação dessa mesma regularidade, que assume a forma de lei: “sempre que ocorre o fenômeno A, temos como consequência o fenômeno B”. Ou ainda, em sua forma lógica: “sempre que A, então B”. Uma vez de posse de um conhecimento que “prevê” o efeito que temos presente após determinada causa, é possível, então, aplicar o raciocínio dedutivo. Fonte: iStock / Getty Images Já que temos a lei: “Sempre que A, então B” empiricamente comprovada, ou pelo menos aceita, o usuário desse conhecimento diante do acontecimento A em seu cotidiano – seja qual for – já irá esperar o acontecimento-efeito. Por exemplo: (Lei) “O mês de março em determinada localidade é um período extremamente chuvoso”. “Nesta mesma localidade, quando há chuvas fortes ocorrem alagamentos”. (Conclusão/ Previsão) “Quando chegar o mês de março aquela localidade sofrerá com alagamentos”. Obviamente, a meteorologia ainda não apresenta uma precisão tão grande na previsão de ciclo de chuvas quanto gostariam agricultores e os agentes da defesa civil nas grandes cidades. Mas esse exemplo atende aos fins didáticos para explicar um raciocínio dedutivo. Nele se parte de um enunciado geral (assumido como correto), passa-se para uma situação correlacionada e, por fim, chega-se a uma conclusão (dedução) sobre um acontecimento particular que “faz parte”, ou melhor, é explicado/ previsto pela lei geral. Porém, como se chega à lei geral? Partindo do exemplo dado, os estudiosos observaram que ao logo da história (utilizam-se registros históricos para tal) sempre aquele determinado período do ano naquela localidade foi extremamente chuvoso; mesmo havendo variações 9 UNIDADE Popper e o Falseacionismo (mensuráveis), os resultados eram fortes chuvas. Poderia em um ano chover um pouco mais no início do mês pesquisado e no outro a chuva forte só chegar na segunda quinzena, porém sempre aconteceram. Quanto mais longa a linha histórica anterior é – quanto mais antigos os registros – confirmando o mesmo caso, mais verossímil se torna o enunciado geral (e preditivo), maiores são as evidências de sua correção. Essa forma de pensar é indutiva – não estamos usando aqui o termo como muitas vezes aparece no senso comum, como “fulano induziu beltrano a fazer X coisa”, ou seja, não se trata de alguém manipulando alguém. Fonte: iStock / Getty Images O pensamento indutivo parte de enunciados particulares (mesmo que recorrentes) e identifica uma “regra”, um padrão universal para os acontecimentos. Em suma: começa-se observando/ analisando o particular e cria-se uma regra geral (indução). Depois, de posse da regra geral se extrai dela conclusões (dedução) que são aplicações/ previsões com base na regra geral (teoria). Ou seja, para formar lei se faz indução; a partir disso, para aplicá-la utiliza-se dedução. Todo processo de elaboração científica, até os dias atuais, sofre influência da abordagem indutiva. O sucesso da mesma em diferentes áreas do conhecimento (inclusive com a criação de tecnologias) tem servido de argumento para sua manutenção. No entanto, como destaca Araújo (2012), Popper percebeu um problema nesse tipo de abordagem e retomou uma objeção que já havia sido postulada pelo filósofo inglês David Hume: “Não é possível saber com certeza acerca de acontecimentos no futuro com base nas repetições do passado”. (ARAÚJO, 2012, p. 152). Ou seja, uma coisa é considerar que dado o acontecimento A, então B; e outra diferente – embora pareça uma diferença menor, ela é importante – que dado que tem acontecido A algumas (ou mesmo muitas) vezes, então B. A segunda construção não apenas não se sustenta do ponto de vista da lógica como também não garante elementos para uma certeza – diga-se de passagem, quase metafísica 10 11 – na regularidade dos fenômenos. O que temos, na realidade, e é esse o ponto que Popper pega emprestado de Hume para a sua crítica, é uma certeza psicológica, uma expectativa de que se aconteceu antes aconteça novamente. Apesar da extraordinária taxa de sucesso das teorias científicas produzidas via indução, filosoficamente, e por que não do ponto de vista de uma maior e importante prudência científica, deveríamos ser mais contidos quanto a algumas certezas. Nas palavras do próprio Popper: Alguns dos que acreditam na Lógica Indutiva apressam-se a assinar, acompanhado Reichenbach, que “o princípio de indução é aceito sem reservas pela totalidade da Ciência e homem algum pode colocar seriamente em dúvida a aplicação desse princípio também na vida cotidiana”. Contudo, ainda admitindo que assim fosse – pois, afinal, “a totalidade da Ciência” poderia estar errada -, eu continuaria a sustentar que um princípio de indução é supérfluo e deve conduzir a incoerências lógicas. (POPPER, 1993, p. 29) Por isso, Popper separa o que seria da psicologia do conhecimento da lógica do conhecimento ou da pesquisa científica. Para o pensador vienense, não cabe à lógica da ciência ficar enredada com questões das expectativas psicológicas sobre um acontecimento ou de uma nova ideia, por exemplo. Em seu livro mais célebre, A lógica da pesquisa científica, ele sinaliza: Quanto à tarefa que toca à lógica do conhecimento – em oposição à psicologia do conhecimento –, partirei da suposição de que ela consiste apenas em investigar os métodos empregados nas provas sistemáticas a que toda ideia nova deve ser submetida para que possa ser levada em consideração [grifo nosso]. (POPPER, 1993, p. 32) É importante destacar a mudança de enfoque do pensamento de Popper em relação aos seus contemporâneos do círculo de Viena. A discussão deixa de ser em torno de uma antimetafísica e passa a ser sobre a quais critérios uma ideia nova ou uma teoria devem ser submetidas para serem aceitas. O Falseacionismo Falseacionismo é como ficou conhecido o critério popperiano para a lógica da pesquisa científica em oposição ao verificacionismo dos neopositivistas. Pelo método indutivista – que o círculo de Viena procurou aprimorar depurando a linguagem e imunizando-o da metafísica – o trabalho do cientista começa (como já dissemos) com a observação criteriosa dos fenômenos; dali, mensuração (de regularidades, intensidades, etc.), e finalmente a proposição geral na forma de teoria científica e com ela a de lei científica. 11 UNIDADE Popper e o Falseacionismo A proposta de Karl Popper é a de se buscar uma prova dedutiva das teorias. Em sua A lógica da pesquisa científica, ele discorre sobre quatro caminhos para por uma teoria à prova. 1. Para averiguar a coerência interna do sistema: a comparação lógica entre as conclusões. 2. Para checar se é uma teoria empírica (ou científica), ou se é uma teoria tautológica: analisar a forma lógica da teoria. 3. Para averiguar se a teoria será um avanço científico, caso venha a ser aceita: compará-la com outras teorias. 4. Por fim, a comprovação da teoria através das aplicações empíricas da mesma. ( Conf. POPPER, 1993, p. 33). Fonte: iStock / Getty Images Todo o processo, particularmente a última etapa, orienta-se por constatar se a teoria atende às exigências práticas, seja por experimentações científicas, seja por aplicações tecnológicas (conf. idem). O movimento dedutivo começa com por “assumir”, aceitar certos enunciados/predições deduzidos do corpo da teoria e ao lado outros enunciados que contradigam a teoria. Submetem-se ambos a experimentos e se confrontam os resultados. Em caso positivo, prevalecendo osenunciados/predições derivados da teoria, então esta foi provisoriamente comprovada. Por outro lado, se os enunciados/previsões que são conclusões oriundas da aceitação da teoria tiverem falhado nos teste, então a própria teoria da qual foram deduzidos também foi falseada. Importa acentuar que uma decisão positiva só pode proporcionar alicerce temporário à teoria, pois subsequentes decisões negativas sempre poderão constituir-se em motivo para rejeitá-la. Na medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas, e não seja suplantada por outra, no curso do progresso científico, poderemos dizer que ela “comprovou qualidade” ou foi “corroborada” pela experiência passada. (POPPER, 1993, p. 34). 12 13 Esse trecho transmite muito da essência da proposta falseacionista de Popper. Uma leitura desatenta e apressada levaria à conclusão de que “tudo é uma coisa só” e somente trocaram os nomes. No verificacionismo se “verifica” a teoria por meio de experimentos, no falseacionismo se “falseia” as teorias por meio de experimentos. Não. Muito cuidado, apesar da sutileza, a diferença é importante! Ao propor uma sequência de passos e procedimentos a serem obedecidos pelos cientistas em suas pesquisas e ao propor que os resultados tidos como “positivos” – a teoria não ser falseada – são provisórios, Popper está deslocando, de uma perspectiva filosófica, a própria relação que a ciência tenta o tempo todo estabelecer com a Verdade. Não se assume nada como Verdade no sentido absoluto. Uma conclusão “verificada” hoje por um experimento – e segundo o verificacionismo neopositivista seria aceita como verdadeira – pode perfeitamente ser desmentida num futuro, às vezes, nem tão distante, em que novos experimentos contradigam as informações apuradas no período anterior. Estabelecer-se-ia assim novas relações de causa e efeito, pela qual: “Não mais A então B, e sim X então B”. Isso sequer está tão distante do nosso cotidiano como imaginamos à primeira vista, basta pensarmos em quantas “novidades” surgem a todo instante sobre pesquisas ligadas à área da saúde, em particular à área da nutrição. O que defende Popper é uma posição mais cautelosa e rigorosa da ciência na elaboração das suas teorias, mas, principalmente, na aceitação das mesmas. A presunção de verdade pode sinalizar a ciência e a comunidade em geral que não há muito mais a se pesquisar sobre aquele determinado tema, isso pode engessar o desenvolvimento de novos conhecimentos, pois se passa a direcionar as energias intelectuais (cientistas) e estruturas (instituições de pesquisa) para outros temas. Voltar sobre passos anteriores com um novo olhar, às vezes acompanhado de novos conhecimentos correlatos, pode “derrubar” uma teoria, o que torna necessária uma nova explicação, outra teoria que articule e ultrapasse as inconsistências da anterior. Essa nova explicação pode perfeitamente gerar novas aplicações tecnológicas, uma vacina ou um novo tratamento médico, por exemplo. O Problema da Demarcação Enquanto o círculo de Viena fez uma “guerra contra a metafísica”, Popper assume uma postura bem menos beligerante. Também para ele era importante ter clareza de quando uma teoria é ou deixa de ser uma teoria científica. Ele claramente anuncia que não tem como objetivo a “derrocada da Metafísica” (conf. POPPER, 1993, p. 38). 13 UNIDADE Popper e o Falseacionismo Mesmo porque, segundo Popper: Encarando a matéria do ponto de vista psicológico, inclino-me a pensar que as descobertas científicas não poderiam ser feitas sem fé em ideias de cunho puramente especulativo e, por vezes, assaz nebulosas, fé que, sob o ponto de vista científico, é completamente destituída de base, e em tal medida, é metafísica. (POPPER, 1993, p. 40) Ao falar em “fé em ideias de cunho puramente especulativos”, sem dúvida deixou adeptos de neopositivismo bastante incomodados. O ponto, bem assinalado pelo autor, está na postura da ciência, ou melhor, do cientista. Evitar a todo custo o dogmatismo deveria ser uma das tarefas básicas da ciência, não apenas em relação a enunciados de outros domínios que não o científico, mas em relação aos enunciados produzidos pela própria ciência. No “momento” da descoberta (pode-se dizer quando começam a surgir as primeiras pistas), o cientista pode perfeitamente ter sido arrebatado por uma intuição1 , a qual o leva a crer que um determinado fenômeno pode ser explicado a partir de certos enunciados. Essa fé não deve ser posta de lado; ao contrário, a convicção pode ser estimulada, desde que o cientista submeta suas especulações a rigorosas provas de maneira a corroborar a sua hipótese. 1 É sabido o quão complexo pode ser o conceito de intuição na filosofia. Utilizamos aqui o conceito em uma das suas múltiplas interpretações que entendemos ser mais próxima do uso cotidiano, a saber: “Todo conhecimento dado de uma só vez e sem conceitos” (LALANDE, 1993, p. 594). Ex pl or Quando as energias intelectuais são mobilizadas dessa forma, e seguindo critérios rigorosos, tendem a fazer o conhecimento se aprimorar cada vez mais. O critério de demarcação de Popper busca delimitar sob quais critérios uma proposta de conhecimento pode ou não ser admitida como científica. No entanto, isso não desqualifica outras formas de conhecimento que não estejam de acordo com essa classificação. Trata-se menos de conceder status de conhecimento melhor, como ficou insinuado entre os antigos positivistas (como Auguste Comte), e mais em estabelecer um acordo sobre os parâmetros que determinam o conhecimento como sendo científico. O próprio Popper reconhece: “Admito, com sinceridade, que, ao formular minhas propostas, fui guiado por juízos de valor e por algumas predileções de ordem pessoal” (POPPER, 1993, p. 30). O que o coloca fora do escopo dos autores que buscam na ciência um conhecimento neutro e irrefutável. As propostas popperianas se direcionam mais na busca de um acordo ou como ele mesmo diz: “uma convenção” (idem, p. 38). Convenção essa a ser atingida por interlocutores com o mesmo objetivo. 14 15 Fonte: iStock / Getty Images Portanto, o critério de demarcação de Popper – com o qual ele separa o conhecimento científico dos demais – é um critério intersubjetivo. A objetividade de uma teoria será dada pelo conflito de opiniões, opiniões também alicerçadas em dados e em experimentos e não apenas em simpatias particulares. É a comparação de resultados, o compartilhamento de informações e, principalmente, a permanente discussão e reexame de hipóteses que dá a determinado conhecimento a condição de aceitável até o momento. Não é o caso de um ceticismo paralisante, mas sim de uma permanente abertura para o “novo”, para o ainda não descoberto. Do ponto de vista de uma abordagem à la Popper, fazer guerra contra a metafísica seria uma perda de tempo. Caminhos para além do Falseacionismo Sempre houve críticos que insistiam no pouco ganho filosófico da abordagem falseacionista, alguns chegaram o objetar para Popper o problema das construções ad hoc – termo que pode ser traduzido como: “para isto” – algo que explicaria um caso/ situação específico. Tratar-se-ia de um cenário em que os cientistas produziriam hipóteses ad hoc quando um determinado experimento viesse a falsear uma teoria. Seria algo equivalente à fórmula: “A então, B” e após um experimento que colocasse determinado aspecto do “então B” como falso, a comunidade científica simplesmente rearranjariam os enunciados da teoria de maneira que: “A então, B, exceto (ad hoc) para X”. Ou melhor, mantém-se a regra, preserva-se a teoria, apenas adicionando no enunciado uma exceção para aquilo que antes era regra universal. 15 UNIDADE Popper e o Falseacionismo Se você, estudante, achou essa “solução” um tanto quanto insuficiente, não foi o único. Popper também entendia que havia o risco de soluções ad hoc, mas nem por isso abria mão de sua posição. Há no pensamento de Popper um sentido ético, de dever para com a honestidadeintelectual, e os cientistas deveriam evitar esse “apego” exagerado às teorias estabelecidas; ao invés de fabricar mais exceções à regra, deveriam redobrar os esforços para aperfeiçoar cada vez mais os experimentos, pois deles poderia vir à luz uma nova teoria. Como bem nos lembra Feijó: O debate em filosofia da ciência após Popper deslocou-se do plano lógico para o histórico, e o próprio Popper impulsionou esse deslocamento, pois, ao enfatizar a convenção, destacou o papel da comunidade científica e os processos de comunicação entre os cientistas. (FEIJÓ, 2003, p. 56). Esse deslocamento abriria o caminho de uma nova frente de discussão entre a filosofia e a ciência, a saber: “há mesmo um método racional para as ciências?”. “Até que ponto as condições externas à racionalidade científica interferem nas mudanças científicas?”. Essas proposições ajudaram a trazer para o palco do debate historiadores da ciência, como Thomas Kuhn, que tentaram circunscrever a dinâmica que leva às transformações científicas. Mas isso é relato para outra unidade. 16 17 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Filosofia da Ciência: Introdução ao Jogo e a suas Regras ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições Loyola, 2000. Ciência: Conceito-Chave em Filosofia FRENCH, Steven. Ciência: conceito-chave em Filosofia. Trad. André Klaudat. Porto Alegre: Artmed, 2009. O Método das Ciências Naturais GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método das ciências naturais. 1ed. São Paulo: Ática, 2010. A Filosofia no Século XX LACOSTE, Jean. A filosofia no século XX. Tradução de Marina Appenzeller; revisão técnica Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1992. Filosofia da Ciência e da Tecnologia MORAIS, Regis de. Filosofia da ciência e da tecnologia. Introdução metodológica e crítica [livro eletrônico]. Campinas: Papirus 2013 17 UNIDADE Popper e o Falseacionismo Referências ARAÚJO, Inês Lacerda. Curso de teoria do conhecimento e epistemologia. Barueri: Minha Editora, 2012. FEIJÓ, Ricardo. Metodologia e filosofia da ciência: aplicação na teoria social e estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2003. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Sá Correia [et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 1993. POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1993. 18
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