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LOCKE
John Locke (1632-1704) é o mais destacado pensador da filosofia burguesa moderna, em ascensão na Inglaterra de seu tempo. Locke esteve envolvido de modo próximo com a Revolução Gloriosa, de 1688, que pôs fim ao Absolutismo e declarou, em 1689, o Bill of Rights inglês.
No mesmo ano de 1689 saem publicados, na Inglaterra, seus dois principais livros, os chamados DOIS TRATADOS SOBRE O GOVERNO: o Primeiro e o Segundo tratado sobre o governo civil. Algumas outras obras de vulto se destacam ainda no seu pensamento, como a Carta sobre a tolerância e o Ensaio sobre o entendimento humano.
No que diz respeito à sua filosofia geral, Locke é um dos mais destacados pensadores do empirismo. Insurge-se contra os inatistas, que argumentavam que o conhecimento partia de ideias já dadas, inatas. Para Locke, não se encontram em todos os indivíduos as mesmas ideias universais inatas.
· Por isso, o conhecimento se faz, no indivíduo, a partir de uma TABULA RASA. No pensamento de Locke, é a experiência sensível que leva ao conhecimento.
Tal postura, no campo da filosofia do conhecimento, será a mesma para o campo da filosofia política e da filosofia do direito. Não há poder inato, que venha de Deus. O PODER É UMA CONSTRUÇÃO HUMANA. Locke articula, assim, uma teoria do contrato social como um vigoroso pensamento contra o Absolutismo, que se sustentava justamente na fundamentação divina do poder.
O CONTRATO SOCIAL EM LOCKE
Das duas obras sobre o governo, o PRIMEIRO TRATADO sobre o governo civil é dedicado à refutação das teses absolutistas que estavam explicitadas no livro O patriarca, de Robert Filmer, um dos mais populares defensores teóricos do Absolutismo à época. A obra de Filmer sustentava, de modo quase absurdo para uma perspectiva racional, que o poder absoluto dos monarcas advinha, por sucessão, de Adão. Os reis seriam descendentes sanguíneos diretos de Adão e Eva. Locke desmonta tal tese ao afirmar que Adão, por si só, não possui nenhum direito divino, e, se o tivesse, não se pode dizer que o tenha transmitido por sucessão aos seus filhos e, se o tivesse transmitido, é impossível saber e comprovar, no mundo atual, qual é a sucessão dessa linhagem.
Tendo todas essas premissas sido, como me parece, claramente demonstradas, é impossível que os soberanos ora existentes sobre a Terra devam haurir algum benefício ou derivar que seja a menor sombra de autoridade daquilo que é considerado a fonte de todo o poder, o domínio particular e a jurisdição paterna de Adão.
O SEGUNDO TRATADO sobre o governo civil começa justamente com um balanço a respeito das teses levantadas contra Filmer e contra o poder absoluto dos reis por linhagem divina. ---
· Para Locke, o poder político não pode ser mensurado como se fosse passado de pai para filho. Não são iguais o poder do pai sobre o filho, o poder do marido sobre a mulher, do amo sobre seu servidor e o poder político de um magistrado sobre seus súditos. 
· Com isso, Locke desmonta a tradição político-jurídica aristotélica que considerava o Estado uma família ampliada, sem fazer distinção de natureza entre o poder do pai e o poder do governante.
Para Locke, o poder político tem uma característica específica que o difere dos demais poderes, como o paterno. É o contrato social que dá base ao poder político. A sociedade civil se levanta a partir de um pacto entre os indivíduos, que, antes de tal acordo, viviam sob a situação de natureza. O fundamento da vida em sociedade civil é, portanto, o consentimento dos próprios cidadãos:
*Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte.
**Assim sendo, Locke apresenta uma filosofia política em algum nível similar à de Hobbes, e radicalmente distinta da de Aristóteles. A passagem do estado de natureza para o estado civil por meio do contrato o torna próximo do pensamento hobbesiano, na medida em que ambos negam que os indivíduos sejam sociais por natureza, como afirmava Aristóteles. No entanto, ao contrário de Hobbes, para quem o estado natural era de guerra de todos contra todos, em Locke o estado de natureza é pacífico, pois o homem, mesmo nessa condição, tem meios de compreensão da lei natural. O homem não tem, no pensamento de Locke, uma inclinação de natureza a ser lobo do homem.
**No Segundo tratado, Locke insiste em diferenciar sua visão a respeito do estado de natureza daquela que seria a de Hobbes. OS HOMENS, EM ESTADO NATURAL, SÃO IGUAIS E DESFRUTAM DA LIBERDADE. Sendo livres e iguais, não são, no entanto, necessariamente irrefreáveis no uso dessa liberdade. Para Locke, a liberdade natural não impede que possam os indivíduos viver com algum respeito nessa condição. A liberdade é possível em natureza por conta da lei natural, que nela existe. A guerra, que é o resultado do desrespeito a essa lei natural, é apenas uma possibilidade do estado de natureza, não sua constante apresentação. Mas, justamente porque é uma possibilidade, e essa possibilidade pode se concretizar e via de regra se concretiza, por isso então os indivíduos resolvem viver em sociedade, para que haja uma estabilidade no governo de seus interesses. Mas a situação de guerra é um risco que não existirá apenas em natureza. Também sob governo é possível que haja desrespeito aos direitos naturais, o que exigirá a defesa de tais direitos. Por isso, não há em Locke, como há em Hobbes, uma associação necessária entre estado de natureza e guerra. É possível a paz no estado de natureza e o estado de guerra é possível tanto na vida em natureza como também na vida política.
· Dirá Locke, destacando que sua teoria sobre o estado de natureza não é igual àquela de molde hobbesiano, de guerra de todos contra todos:
Eis aí a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, os quais, por mais que alguns homens os tenham confundido, tão distante estão um do outro quanto um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um estado de inimizade, malignidade, violência e destruição mútua. Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um superior comum sobre a Terra com autoridade para julgar entre eles, manifesta-se propriamente o estado de natureza. Mas a força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja um superior comum sobre a Terra ao qual apelar em busca de assistência, constitui o estado de guerra. [...] A ausência de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de guerra, havendo ou não um juiz comum.
Este estado potencial de guerra que se verifica na vida em natureza não encontra, apenas com a força individual, meios suficientes para findar. Justamente para cessar tal estado de guerra é que os homens se unem em sociedade, constituindo um poder para governá-los e juízes para dirimir suas questões. Há inconvenientes na vida natural, por conta da falta de proteção da propriedade. 
>Locke situa a propriedade de modo amplo, como a vida, a liberdade e os bens. Sem um governo, a propriedade não está resguardada. Buscando tal proteção, então, os indivíduos estabelecem o contrato social:
Se o homem no estado de natureza é livre como se disse, se é senhor absoluto de sua própria pessoa e suas próprias posses, igual ao mais eminente dos homens e a ninguém submetido, por que haveria ele de se desfazer dessa liberdade? Por que haveria de renunciar a esse império e submeter-se ao domínio e ao controle de qualquer outro poder? A resposta evidente é a de que, embora tivesse tal direito no estado de natureza, oexercício do mesmo é bastante incerto e está constantemente exposto à violação por parte dos outros, pois que sendo todos reis na mesma proporção que ele, cada homem um igual seu, e por não serem eles, em sua maioria, estritos observadores da equidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da propriedade é bastante incerto e inseguro. Tais circunstâncias o fazem querer abdicar dessa condição, a qual, conquanto livre, é repleta de temores e de perigos constantes. E não é sem razão que ele procura e almeja unir-se em sociedade com outros que já se encontram reunidos ou projetam unir-se para a mútua conservação de suas vidas, liberdade e bens, aos quais atribuo o termo genérico de propriedade.
A finalidade precípua do contrato social é, para o pensamento de Locke, a garantia da propriedade privada. São célebres suas palavras nesse sentido, no Segundo tratado: “O FIM MAIOR E PRINCIPAL PARA OS HOMENS UNIREM-SE EM SOCIEDADES POLÍTICAS E SUBMETEREM-SE A UM GOVERNO É, PORTANTO, A CONSERVAÇÃO DE SUA PROPRIEDADE”.
Em Locke, o contrato social dá origem a um corpo político que legisla, julga e sustenta, por meio da força, a comunidade. O Estado não surge como um negador dos direitos naturais. Antes, é um continuador desses direitos, garantindo-os. O mais importante direito que leva ao contrato, o direito à propriedade privada, mantém-se. Apenas o direito à justiça por conta própria é retirado dos indivíduos, situando-o agora nas mãos do Estado. Os demais direitos naturais permanecem em continuidade do estado de natureza para o social.
Para Locke, a renúncia, na passagem do estado de natureza para a sociedade civil, só se dá no que tange ao direito à preservação de si por conta própria, que se acompanha também da renúncia ao poder de castigar:
Ao primeiro poder, ou seja, o de fazer tudo quanto considere adequado para a preservação de si e do resto da humanidade, ele renuncia para que seja regulado por leis elaboradas pela sociedade. [...] Em segundo lugar, renuncia por completo ao poder de castigar e empenha sua força natural (que anteriormente poderia empregar na execução da lei da natureza, mediante sua autoridade individual, conforme julgasse conveniente) para assistir o poder executivo da sociedade, segundo a lei desta o exija.
Assim sendo, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil em Locke não representa uma transformação da liberdade em submissão, como o era no pensamento de Hobbes. Não há um salto qualitativo na forma de organização dos homens: o contrato social em Locke mantém a liberdade natural, apenas a sustenta em outro grau, agora político e não mais individual. Em Locke, a associação não é uma alteração nos horizontes da vida humana de natureza. O sentido das leis naturais persiste o mesmo. Como o contrato social, busca-se, na verdade, consolidar os direitos já existentes no estado de natureza, agora pela via social e institucional. Dirá Bobbio nesse sentido:
Na concepção de Locke, a transferência dos direitos naturais é parcialíssima. O que falta ao estado de natureza para ser um estado perfeito é, sobretudo, a presença de um juiz imparcial, ou seja, de uma pessoa que possa julgar sobre a razão e o erro sem ser parte envolvida. Ingressando no estado civil, os indivíduos renunciam substancialmente a um único direito, ao direito de fazer justiça por si mesmos, e conservam todos os outros, in primis o direito de propriedade, que já nasce perfeito no estado de natureza, pois não depende do reconhecimento de outros mas unicamente de um ato pessoal e natural, como é o caso do trabalho
*O contrato social dá ensejo à formação da sociedade civil – que Locke denomina também de sociedade política, sem distinção – e esta gerará, por escolha da comunidade, uma determinada forma de governo. Locke, seguindo ainda a velha classificação de Aristóteles, trata da monarquia, da oligarquia e da democracia. Em todas essas formas, o governo deve buscar a conservação da propriedade. Contudo, tomando partido de uma visão de política bastante oposta à de Hobbes, Locke dirá que a monarquia absoluta não se coaduna com os propósitos da sociedade civil:
Fica, portanto, evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é de fato incompatível com a sociedade civil, e, portanto não pode ser, de modo algum, uma forma de governo civil.
· QRX PROVA Locke também estabelece uma distinção entre os poderes na sociedade política, destacando três: o legislativo, o executivo e o federativo – este, um poder encarregado das relações exteriores. Para Locke, no balanço entre tais poderes, o poder LEGISLATIVO, ESCOLHIDO PELA MAIORIA, tem um poder supremo em relação aos demais: “EM TODOS OS CASOS, ENQUANTO SUBSISTIR O GOVERNO, O LEGISLATIVO É O PODER SUPREMO. POIS O QUE PODE LEGISLAR PARA OUTREM DEVE POR FORÇA SER-LHE SUPERIOR.”
QRX> A divisão de poderes, no pensamento político de Locke, é fundamental como modo de evitar a concentração de poderes nas mãos de um apenas. Ao contrário de Hobbes – para quem o Leviatã tinha por fundamento a força de apenas um, e portanto dava esteio ao Absolutismo –, Locke considera que um governo com poderes distribuídos tem a possibilidade de melhor garantir os direitos naturais dos indivíduos, conformando, portanto, uma teoria política liberal-burguesa.
O DIREITO NATURAL EM LOCKE
QRX>Em algumas de suas obras de juventude, antes da escrita dos dois tratados, Locke dedicou-se ao tema do direito natural, encaminhando-se para a perspectiva comum do JUSNATURALISMO moderno, que se afasta do modelo aristotélico. Em oito Ensaios sobre a lei de natureza, escritos entre 1663 e 1664, Locke afirma existir uma lei da natureza, passível de ser conhecida por todos e que obriga a todos os homens.
· QRX> Contudo, Locke não se baseia num direito natural advindo de uma razão inata. Para ele, a lei de natureza não está inscrita nas mentes dos homens. Pelo contrário, bem ao molde empirista, afirma o direito natural como um conhecimento alcançável somente por meio da experiência dos sentidos: >Empirismo 
Considerando, como já se mostrou noutra parte, que essa lei de natureza não é tradição, nem certo princípio moral interno escrito em nossas mentes pela natureza, nada resta que permita defini-la, a não ser a razão e a percepção dos sentidos. De fato, apenas essas duas faculdades parecem ensinar e educar as mentes dos homens, providenciando aquilo que é característico da lei de natureza, a saber: que sejam passíveis de ser trazidas à mente e conhecidas como se fossem examinadas coisas que, do contrário, permaneceriam inteiramente desconhecidas e ocultas na escuridão. [...]
Ao contrário, toma-se razão aqui como a faculdade discursiva da mente, que avança de coisas conhecidas a coisas desconhecidas, e argumenta de uma coisa a outra de acordo com uma ordem definida e fixa de proposições. É essa a razão por meio da qual a humanidade chega ao conhecimento da lei natural. No entanto, as fundações sobre as quais repousa, em toda a sua integridade, esse conhecimento que a razão constrói e alça tão alto quanto o céu, são os objetos da experiência sensorial; pois os sentidos fornecem essencialmente a matéria inteira do discurso, e também sua matéria principal, introduzindo-a nos profundos recessos da mente.
· QRX Locke é um dos destacados defensores do direito natural, que assume, em sua perspectiva, uma faceta muito distinta daquela da visão clássica, aristotélica.
Para Aristóteles, o direito natural é advindo da própria condição social humana. Mas Locke, separando um estado de natureza individual de um estado civil social, identifica o direito natural não com a sociedade, mas sim com o estado de natureza individual, pois a lei natural, como diretriz para a conduta humana, aí já se apresenta. No Segundo tratado, assim diz:
O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. [...]E para que todos os homens sejam impedidos de invadir direitos alheios e de prejudicar uns aos outros, e para que seja observada a lei da natureza, que quer a paz e a conservação de toda a humanidade, a responsabilidade pela execução da lei da natureza é, nesse sentido, depositada nas mãos de cada homem, pelo que cada um tem o direito de punir os transgressores da dita lei em tal grau que impeça sua violação. Pois a lei da natureza seria vã, como todas as demais que dizem respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém que tivesse, no estado de natureza, um poder para executar essa lei e, com isso, preservar os inocentes e conter os transgressores.
**Assim sendo, a lei natural busca a preservação de si mesmo e da humanidade e, no estado de natureza, todos os indivíduos são executores da lei natural, na medida em que ainda não há um Estado que possa se arrogar nesse papel. Há, portanto, o direito de punir por conta própria os infratores da lei natural. Mas a passagem do estado natural para a sociedade civil não é, para Locke, uma negação da lei natural. Tal direito se mantém ainda quando a sociedade civil for instituída por meio de contrato.
O grande direito natural que se levanta já no estado de natureza é o direito de propriedade. O eixo da filosofia do direito de Locke é a afirmação do direito natural como direito de garantia da propriedade individual. Nisso, Locke dá um passo decisivo em direção ao liberalismo burguês, na comparação com Hobbes. Para este, a propriedade surge apenas a partir da sociedade civil. Em estado natural, todas as coisas são de todos. Para Hobbes, portanto, é o Estado que garante ou não a propriedade. 
· Já para Locke, a propriedade está entranhada como direito natural do indivíduo; vem antes do Estado. Contra ela o Estado não tem poder, devendo respeitá-la. A noção de propriedade em Locke agrada muito mais à burguesia e à visão de mundo liberal do que a visão hobbesiana, que fazia a propriedade privada ser dependente da vontade do Estado. >Propriedade ao individuo 
A propriedade privada é a razão de ser do contrato social e é o eixo central e problemático da filosofia de Locke. Nesse ponto, avulta sua teoria econômica burguesa liberal. Não é a sociedade que cria a instituição da propriedade privada; ela já se apresenta como direito a partir do próprio indivíduo, na medida em que cada qual possui, por natureza, a si próprio e ao seu trabalho. As coisas da natureza são comuns, mas dirá Locke que, com o trabalho, o objeto trabalhado torna-se de propriedade daquele que trabalhou.
Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade.
**Assim sendo, na teoria de Locke, o fruto colhido por meio do trabalho faz com que haja a propriedade do trabalhador sobre ele. A terra trabalhada, no entanto, é coletiva. Para Locke, foi dada por Deus a todos. O que faz com que, então, ela seja de propriedade de alguém? A terra se torna individual apenas pelo resultado do trabalho. A partir daí, o que era coletivo passa a ser privado, em razão do que se empreendeu nessa terra com a aragem, a plantação, a melhoria e o cultivo dos produtos.
Ocorre, no entanto, que, numa situação inicial de natureza, sendo a propriedade o resultado do trabalho, cada qual apropria a quantidade de terra que seu esforço permite. O uso é que dá a sua medida de justiça. Na teoria de Locke, há terra em abundância para todos, como se todo o mundo fosse a América de seu tempo, de terras livres. Mas se verifica, em sociedade, uma distribuição desigual da posse da terra, que não atenta apenas aos limites daquilo que é usado pelas mãos do trabalhador. O fato de haver grandes extensões de terra nas mãos de poucos seria ilegítimo na teoria de Locke?
Sua resposta, extremamente burguesa e liberal, é não. A desigualdade da propriedade da terra e dos bens se justifica porque, com o surgimento do dinheiro, a proporção da terra para o uso do trabalhador se altera. Para Locke, o dinheiro é uma conveniência entre os homens, cuja referência para a medida dos bens se dá por consenso. Com o dinheiro, passa a ser possível a dissociação da propriedade em relação ao seu uso pelo trabalhador.
Na teoria lockeana, a propriedade de bens em quantidade maior que aquela que se presta ao uso seria, em estado natural, uma injustiça. Um homem que tivesse muitas frutas, e não conseguisse comê-las todas, fazendo-as perecer sem utilização, estaria numa situação injusta, pois a propriedade está ligada ao uso. Ocorre que, com o dinheiro, passa-se a acumular algo imperecível, como o ouro ou a prata. Com isso, é possível comprar terras, vendê-las, ou mesmo prevenir-se com bens que possam ser vendáveis posteriormente. Assim, com o dinheiro, ter mais comida que aquela que se pode comer não é mais injusto: pode-se vendê-las posteriormente. Se não fosse o dinheiro, a medida da propriedade ainda seria a medida do uso da terra.
Uma coisa o uso afirmar: que a mesma regra de propriedade segundo a qual cada homem deve ter tanto quanto possa usar estaria ainda em vigor no mundo, sem prejuízo para ninguém, conquanto há terra bastante no mundo para o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o acordo tácito dos homens no sentido de lhe acordar um valor não houvesse introduzido (por consenso) posses maiores e um direito a estas.
A propriedade passa a ser mensurada por coisas duradouras, como o ouro e a prata, e não mais em função de coisas perecíveis, como a comida que fosse extraída pelo trabalho nessa própria terra. Isso permite que a propriedade seja não só conseguida pelo trabalho na terra, mas também comprada. A instituição do dinheiro leva, necessariamente, à distribuição desigual da riqueza entre os homens. Locke então palavras de legitimação desse modo muito peculiar de explicar a desigualdade da riqueza entre os homens:
Como, porém, o ouro e a prata, por terem pouca utilidade para a vida humana em comparação com o alimento, as vestimentas e o transporte, derivam o seu valor apenas do consentimento dos homens, enquanto o trabalho ainda dá em grande parte sua medida, vê-se claramente que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcional da terra, tendo encontrado, por um consentimento tácito e voluntário, um modo pelo qual alguém pode possuir com justiça mais terra que aquela cujos produtos possa usar, recebendo em troca do excedente ouro e prata que podem ser guardados sem prejuízo de quem quer que seja, uma vez que tais metais não se deterioram nem apodrecem nas mãos de quem os possui.
Assim sendo, a teoria lockeana do direito natural à propriedade, mascarando a propriedade e o acúmulo de capitais com argumentos de fundamento no trabalho, é uma visão liberal diretamente ligada ao interesse burguês. Para Locke, a propriedade advinda do trabalho, limitada, se transforma em propriedade também advinda da acumulação de dinheiro, ilimitada. Com o dinheiro, como a propriedade não está mais ligada agora ao trabalho nem limitada ao seu uso, a acumulação é possível e os conflitos em razão da propriedade, por não terem mais em vista a relação direta com o trabalho e o uso, explodem.
A propriedade permitida a partir da instituição do dinheiro há de levar os homens necessariamente à vida em Estado, para que haja juízes e regras fixas para o arbitramento das controvérsias sobre a própria propriedade privada.
· Tanto assim que a própria vida política, após o contrato social, ainda tem por meta principal resguardar o direito natural originário à propriedade. O governante que atenta contra a propriedade torna-se ilegal e tirano, pondo-se em estado de guerra contra a sociedade. Há um legítimo direito de resistência em tal caso. Locke é explícito nesse sentido:
·O poder supremo não pode tomar de homem algum nenhuma parte de sua propriedade sem o seu próprio consentimento. Pois sendo a preservação da propriedade o fim do governo e a razão por que os homens entram em sociedade, isso pressupõe e necessariamente exige que o povo tenha propriedade, sem o que será forçoso supor que todos percam, ao entrarem em sociedade, aquilo que constituía o objetivo pelo qual nela ingressaram – um absurdo por demais flagrante para ser admitido por qualquer um. Portanto, dado que os homens em sociedade possuem propriedade, têm eles sobre os bens que, com base na lei da comunidade, lhes pertencem, um direito tal que a ninguém cabe o direito de tolher seus haveres, ou partes destes, sem o seu próprio consentimento.43
O desrespeito à propriedade privada torna o governo tirânico, enseja um estado de guerra, o que devolve a sociedade à condição de natureza, razão pela qual então a força se levanta como meio de resolução do problema, a fim de garantir o direito natural à propriedade. Assim se explica o direito de resistência no pensamento de Locke: o seu mais alto fundamento está justamente na garantia absoluta do direito à propriedade privada.
Todo aquele que usa de força sem direito, assim como todos aqueles que o fazem na sociedade contra a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais a usar e, em tal estado, todos os antigos vínculos são rompidos, todos os demais direitos cessam e cada qual tem o direito de defender-se e de resistir ao agressor.
A máscara dos direitos naturais como fundamento da dignidade humana, ao invés de apontar para uma causa fraterna ou social, como tenta demonstrar sua tenra aparência, tem em Locke a sua mais cristalina fonte de origem e limite: o direito natural moderno é o direito à propriedade privada, como interesse maior da classe burguesa. Nesse sentido, C. B. Macpherson:
O núcleo do individualismo de Locke é a afirmativa de que todo homem é naturalmente o único proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades – proprietário absoluto, no sentido de que não deve nada à sociedade por isso – e principalmente proprietário absoluto de sua capacidade de trabalho. Todo homem tem, portanto, liberdade para alienar sua própria capacidade de trabalho. O postulado individualista é o postulado pelo qual Locke transforma a massa dos indivíduos iguais (licitamente) em duas classes com direitos muito diferentes, os que têm propriedade e os que não têm. Uma vez que todas as terras estejam ocupadas, o direito fundamental de não ser sujeito à jurisdição de outrem é tão desigual entre proprietários e não proprietários, que difere em espécie, não em grau: os que não têm propriedades são, reconhece Locke, dependentes, para seu próprio sustento, dos que têm propriedades, e são incapazes de alterar suas próprias contingências. A igualdade inicial de direitos naturais, que consistia em indivíduo nenhum ter jurisdição sobre outrem, não pode perdurar depois da diferenciação de propriedades.45
· Ao contrário de Hobbes, cuja teoria do contrato social é construída em benefício do Absolutismo, Locke constrói sua filosofia do direito e política em favor da burguesia em ascensão, justificando a revolução liberal burguesa na Inglaterra, e, depois, servindo à luta burguesa nos Estados Unidos da América, na França e em boa parte da Europa do século XVIII.