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KELSEN doutrina

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KELSEN
O pensamento de Hans Kelsen representa o máximo engenho e o auge da construção do modelo juspositivista, que, lastreado na operacionalização das normas estatais, fez da prática jurídica uma técnica que se reputou universal. De fato, no pensamento de Kelsen está à possibilidade de compreensão mais singela e, por isso mesmo, mais espraiada do fenômeno jurídico: a sua identidade científica é total e inexorável com a norma estatal. A universalidade da compreensão do fenômeno jurídico advém de uma técnica universal.
Hans Kelsen (1881-1973), nascido em Praga mas criado em Viena, no pós-Primeira Guerra, a convite do socialista Karl Renner, foi um dos principais responsáveis pela redação da Constituição da Áustria, concebendo inclusive a técnica de controle de constitucionalidade por meio de um tribunal específico, do qual se tornou magistrado. Judeu, perseguido pelo nazismo, apoiou a República de Weimar e teve de abandonar sua cátedra em Colônia, na Alemanha, passando a parte final de sua vida nos EUA. 
Sua obra principal é a Teoria pura do direito, publicada em 1934, com uma segunda edição alterada de 1960. Além dessa, muitas outras obras importantes constituem a trajetória do pensamento kelseniano, como Teoria geral do direito e do Estado e a Teoria geral das normas, obra publicada postumamente, que reúne a sua peculiar produção dos últimos anos de vida.
A PUREZA DO DIREITO
A TEORIA PURA DO DIREITO, a obra maior de Kelsen, é aquela que expõe os pressupostos mais importantes de sua visão jusfilosófica. 
A primeira grande postulação kelseniana reside na distinção entre o fenômeno jurídico e a ciência do direito. Sem tal dicotomia é impossível recortar o exato quadrante da teoria pura kelseniana. Kelsen separa a manifestação bruta do direito, como fenômeno social, do entendimento científico que se possa fazer a respeito dessa manifestação. Para Kelsen, são coisas distintas o direito e a ciência do direito.
Tal separação das duas esferas de apreciação sobre o direito é fundamental para o entendimento da teoria kelseniana. Na prática, o direito se mistura a todos os demais fenômenos sociais. Há juízes que julgam de acordo com suas inclinações sociais e políticas, operadores do direito que procedem a macetes nos autos processuais, testemunhas que faltam com a verdade, juristas corruptos. Tudo isso está no mundo dos fatos. Nem por isso, cientificamente, o direito será considerado a partir da política, ou como logro, ou como mentira ou como atividade corrupta. A ciência do direito paira noutro patamar. Ela trata de explicar por que o juiz pode julgar, por que há tais regras do processo, por que tal pessoa é considerada, formalmente, uma testemunha em um processo. A ciência do direito abstrai dos fatos concretos e trabalha em um outro nível, muito próximo das normas estatais. Dirá Kelsen na Teoria pura do direito:
A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. é teoria geral do direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. procura responder a esta questão: o que é e como é o direito? mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito. é ciência jurídica e não política do direito. [...]
de um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o direito. quando a teoria pura empreende delimitar o conhecimento do direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.
Ao mesmo tempo, para Kelsen, os atos brutos constituiriam simplesmente uma manifestação imediata do direito: um juiz prolata uma sentença, um guarda apita em meio ao trânsito. Mas esses atos somente são entendidos como jurídicos porque há uma mediação de sentido que provém das normas estatais. Num teatro, um ator vestido com toga passa-se por juiz; no entanto, ele não é juiz para o direito, porque as normas estatais não lhe doaram o sentido da competência formal para o julgamento.
Assim sendo, já se expõem, de início, os dois quadrantes fundamentais para o entendimento da teoria kelseniana:
 O direito como fenômeno bruto é distinto do direito enquanto ciência; ao mesmo tempo, os fatos brutos somente são entendidos juridicamente desde que perpassados por um sentido normativo. Para o cientista do direito, há um pressuposto do entendimento que é haurido da intelecção das normas estatais. Não são os fatos, de modo bruto, que revelam o que é o direito, mas sim a interpretação normativa dos fatos. Diz Kelsen
O que transforma este fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa.
A teoria pura do direito, proposta por Kelsen, é, na verdade, a postulação da própria cientificidade do direito. Kelsen propugna que seu modelo de entendimento normativo seja chamado por ciência jurídica. Reputa sua teoria por pura em razão de não tratar dos dados concretos da realidade jurídica, que são parciais e não dão conta de explicar a estrutura formal do direito. A ciência do direito não será, para Kelsen, uma sociologia do direito, nem tampouco uma filosofia do direito. Não é especulativa nem empírica no sentido de atrelada a fatos. 
A teoria pura do direito é normativa: o entendimento normativo ilumina juridicamente os fatos. Por isso, a ciência do direito é uma ciência técnica, lastreada numa apreensão em segundo grau dos fatos. O fato somente é considerado cientificamente para o direito enquanto iluminado por um sentido normativo.
São clássicas as palavras de Kelsen, no prefácio à primeira edição da Teoria pura do direito, nesse sentido:
Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto.
É importante que se faça a distinção entre direito e ciência do direito para entender que Kelsen não apregoa, como o vulgo imagina, que o direito seja puro, somente normativo. Pelo contrário, o direito é contraditório, haurido imediatamente das contradições sociais e de seus operadores. A postulação de Kelsen é menor que isso: a ciência do direito é que deve ser entendida como pura. Claro, menor que a pretensão a um direito puro, mas, ainda assim, vítima de uma pureza teórica que, ao final, torna a ciência do direito aquilo que o direito não é. Fica explícito, ainda no referido prefácio kelseniano, seu clamor à objetividade técnica como quadrante da ciência do direito:
Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suastendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão.
· Para Kelsen, o direito só pode ser entendido cientificamente a partir de uma especificidade que é normativa, do campo do DEVER-SER. Assim sendo, a proposta kelseniana reside numa ciência normativa, isto é, do DEVER-SER. O direito não é analisado pelo campo de sua manifestação concreta, como ser. O que ele é, em termos factuais concretos, pode ser uma reflexão da sociologia ou da história, mas não da ciência do direito. Tal ciência alcança e se limita ao âmago normativo do direito. Para Kelsen, entre as questões sociais, que são analisadas como fenômenos reais, e as normas jurídicas, interpretadas como imputação, há uma diferença de nexos: ser e dever-ser, como duas instâncias próprias. A norma jurídica é o que distingue a pureza do conhecimento jurídico.
Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o são na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de norma jurídicas.

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