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1 Teoria da Norma e do Ordenamento Jurídico PUC Minas/São Gabriel Compêndio da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre – Hans Kelsen) Parte 1 – Teoria da Norma Júlio Aguiar de Oliveira Introdução Antes de iniciar o estudo da Teoria Pura do Direito, com o foco na teoria da norma e do ordenamento jurídico, proponho a realização de duas tarefas: 1) uma breve exposição da biografia de Kelsen e 2) a leitura e análise dos dois prefácios da Teoria Pura do Direito (TPD), o prefácio da primeira edição, de 1934, e o prefácio da a segunda edição, de 1960. O objetivo dessas tarefas preliminares é situar a TPD – e seu autor – no tempo e no espaço (algo relevante para uma compreensão adequada da TPD). Hans Kelsen (1881 – 1973) Hans Kelsen nasceu no dia 11 de outubro de 1881 na cidade de Praga, pertencente, àquele momento, ao Império Austro-Húngaro. Seus pais foram Adolf Kelsen e Auguste Löwy, ambos judeus. Adolf Kelsen (1850-1907) era natural de Brody, na Galícia, transferiu-se ao 14 anos para Viena, depois para Praga (1878) e, posteriormente, regressou a Viena. Era empresário, tendo sido dono de uma fábrica de lâmpadas. Auguste Kelsen (de solteira, Löwy, 1858-1950) nasceu em Neuhaus, na Boêmia e faleceu em Bled, na Iugoslávia. Quando Hans Kelsen tinha três anos de idade, sua família mudou-se para Viena. 2 Em Viena, Kelsen realizou os estudos primários e, em seguida, cursou o Ginásio Acadêmico (Akademische Gymnasium Wien). Após a conclusão do ginásio, em 1900, cumpriu um ano de serviço militar como voluntário. Mais tarde, durante a 1a Guerra Mundial, trabalhou como auditor jurídico no Exército, tendo alcançado o posto de Capitão-Auditor. Entre 1901 e 1906, estudou Direito na Universidade de Viena. Em 1906, recebeu o título de Doutor em Direito, tendo defendido uma tese sobre a teoria do Estado de Dante Alighieri. Este trabalho, “A Teoria do Estado de Dante Alighieri” (Staatslehre des Dante Alighieri), foi publicado em 1905 numa coleção de monografias organizada por Edmund Bernatzik (1854-1919), professor de Kelsen e a quem, mais tarde, em 1919, viria a suceder na cátedra de Direito do Estado e Direito Administrativo da Universidade de Viena. A partir de 1906, Kelsen começa a trabalhar em sua tese de habilitação. Entre 1908 e 1910 passa vários semestres em Heidelberg, onde frequenta os seminários de Georg Jellineck (1851-1911) e Gerhard Anschütz (1867-1948). Em 1911, Kelsen concluiu sua habilitação para Direito do Estado e Filosofia do Direito na Universidade de Viena com a tese “Problemas Centrais da Teoria do Direito do Estado a partir da teoria da norma jurídica” (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze), obra que marca o surgimento da Teoria Pura do Direito. Em 1912, casou-se com Margarete Bondi, que foi sua companheira por toda a vida e com quem teve duas filhas, Anna Renate (1914-2001) e Maria Beate (1915-1994). Entre 1911 e 1917 lecionou Teoria da Constituição e da Administração na Academia de Exportação (Exportakademie des k.k. österrichisschen Handelsmuseum). Durante a 1a Guerra Mundial, trabalha como assessor jurídico do Ministro da Guerra, General Stöger-Steiner. Em 1918, tornou-se professor extraordinário da Faculdade de Direito da Universidade de Viena e, em 1o de agosto de 1919, assume, nessa mesma instituição, a cátedra de Direito do Estado e Direito Administrativo. Em 1918 colaborou com Karl Renner na redação da Constituição Austríaca e, em 1919, foi nomeado juiz do Tribunal Constitucional, cargo que ocupou até 1930, quando rejeitou ser reconduzido para um novo exercício. 3 Em 1930 tem início um longo período de peregrinações. Nesse ano, deixou Viena e assumiu o cargo de professor de Direito Internacional Público na Universidade de Colônia (Alemanha). Em 1933, com a chegada ao poder dos Nazistas, foi afastado da Universidade em virtude da famigerada Gesetzes zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums, de 7 de abril de 1933 (Lei para a restauração do serviço público – que estabeleceu o afastamento do Serviço Público Alemão todos os funcionários de ascendência não-ariana e também aqueles considerados oponentes do regime nazista). Conseguiu, no entanto, sair da Alemanha e estabelecer-se em Genebra, onde lecionou no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais. Em 1934, publicou a primeira edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre). Em 1936, assumiu uma cátedra da Universidade Alemã de Praga, mas, já em 1938, por conta de movimentos políticos hostis a professores de ascendência judaica, foi obrigado a abandonar a Universidade. Em 1940, considerando o avanço das forças alemãs na 2a Guerra, Kelsen e sua esposa resolveram emigrar para os Estados Unidos, onde desembarcam, na cidade de Nova York, no dia 21 de junho daquele mesmo ano. Nos Estados Unidos, Kelsen proferiu conferências em Harvard, porém, não obstante a fama de sua Teoria Pura do Direito, somente em 1942 conseguiu uma posição permanente de professor: em 1942, foi contratado pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, inicialmente, como professor visitante e, a partir de 1945, como professor permanente da cátedra “International Law, Jurisprudence, and Origin of Legal Institutions”, na qual trabalhou até a aposentadoria, em 1952. Após a aposentadoria, Kelsen continuou ativo, publicando trabalhos em diversas áreas, proferindo conferências e recebendo homenagens em várias Universidades em diversos países. No dia 5 de janeiro de 1973, morreu Margarete, poucos dias depois, em 19 de abril, aos 91 anos de idade, Kelsen morreu. Em 1979, foi publicada a obra “Teoria Geral das Normas” (Allgemeine Theorie der Normen). Ao longo de sua carreira acadêmica, Kelsen recebeu 12 doutorados honoris causa (Utrecht, Harvard, Chicago, México, Berkeley, Salamanca, Berlin, Viena, Nova York, Paris, Salzburgo, Strasburgo) e 3 títulos de professor honorário (Viena, Rio de Janeiro, México). 4 Cronologia - 1881. 11 de outubro: nasce na cidade de Praga. Filho de Adolf Kelsen (1850 -1907) e de Auguste Löwy (1859-1950). - 1884. A família se muda para Viena. - 1900. 9 de julho: Conclusão do Ginásio (Matura am Akademischem Gymnasium Wien). - 1900. Inicia o período de um ano de serviço militar. - 1901. Inicia o estudo de Direito na Universidade de Viena. - 1905. Converte-se ao catolicismo. - 1906. Alcança o título de “Doutor em Direito” na Universidade de Viena com a tese “A Teoria do Estado de Dante Alighieri” (Die Staatslehre des Dante Alighieri). - 1907. 12 de julho. Morre seu pai, Adolf Kelsen. - 1911. 9 de março. É aprovado em seu exame de habilitação para Direito do Estado e Filosofia do Direito na Universidade de Viena com a tese “Problemas Centrais da Teoria de Direito Público” (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre) . - 1911. Leciona na Academia de Exportação de Viena. - 1912. 20 de maio. Hans Kelsen e Margarete Bondi convertem-se à fé protestante. - 1912. 25 de maio. Casamento de Hans Kelsen com Margarete Bondi, do qual nascem duas filhas (Anna Renate – Viena 1914-Nova Iorque 2001 e Maria Beate – Viena 1915 – Kensington/EUA 1994). - 1919. 30 de março. Tribunal Constitucional Provisório Nomeado juiz da Corte Constitucional Austríaca. - 1919. 1o de Agosto. Professor de Direito do Estado e Direito Administrativo da Universidade de Viena. - 1920. Nomeado juiz do Tribunal Constitucional Austríaco. - 1930. Encerra sua participação como juiz do Tribunal Constitucional Austríaco. - 1930. Professor na Universidade de Colônia(Alemanha). - 1933. Perde seu posto de professor na Universidade de Colônia em virtude da famigerada Gesetzes zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums, de 7 de abril de 1933 (Lei para a restauração do serviço público – que estabeleceu o afastamento do Serviço Público Alemão de todos os funcionários de ascendência não-ariana e também daqueles considerados oponentes do regime nazista). 5 - 1934. Leciona no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra (Suíça). - 1934. Publicação da primeira edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre). - 1936. Professor na Universidade Alemã de Praga. - 1938. Abandona a Universidade Alemã de Praga em virtude da escalada da hostilidade sofrida em virtude de sua ascendência judaica. - 1940. Emigra com sua mulher para os Estados Unidos. - 1942. Professor Visitante na Universidade de Berkeley, Califórnia. - 1945. Livre docente na Universidade de Berkeley. - 1952. Aposentadoria. - 1973. 19 de abril: Morre aos 91 anos de idade A Teoria Pura do Direito – Prefácios de 1934 (1a edição) e 1960 (2a edição) No primeiro parágrafo do prefácio da primeira edição da TPD, Kelsen escreve: “Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão”. (p. XI) É interessante observar nesse primeiro parágrafo: a) A primeira edição da TPD já se apresenta como a síntese de um trabalho de mais de vinte anos. Kelsen tem, por essa ocasião, 52 anos. b) Pureza significa a eliminação de toda ideologia política e dos elementos de ciência natural da teoria do Direito. 6 c) A teoria pura do Direito é uma teoria que objetiva limitar-se à descrição do seu objeto (isto é, do direito positivo). O que é a Teoria Pura do Direito e de onde vêm seus opositores? “Ela pode ser entendida como um desenvolvimento, uma desimplicação de pontos de vista que já se anunciavam na ciência jurídica positivista do séc. XIX. Ora, desta mesma ciência procedem também os meus opositores. Não foi, pois, por em propor uma completa mudança de orientação à Jurisprudência [ciência do Direito], mas por eu a fixar a uma das orientações entre as quais ela oscila insegura, não foi tanto a novidade, mas antes as consequências da minha doutrina que provocaram este tumulto na literatura”. (p. XII) “O postulado metodológico que ela visa não pode ser seriamente posto em dúvida, se é que deve haver algo como uma ciência do Direito. Duvidoso apenas pode ser até que ponto tal postulado é realizável. A este respeito não pode seguramente perder-se de vista a distinção muito importante que existe, precisamente neste ponto, entre a ciência natural e as ciências sociais. Não que a primeira não corra qualquer risco de os interesses políticos a procurarem influenciar. A história prova o contrário e mostra com bastante clareza que até pela verdade sobre o curso das estrelas uma potencia terrena se sentiu ameaçada. Se é lícito dizer-se que a ciência natural pôde ir até ao ponto de levar a cabo a sua independência da política, isso sucedeu porque existia nesta vitória um interesse social ainda mais poderoso: o interesse no progresso da técnica que só uma investigação livre pode garantir. Porém, da teoria social, nenhum caminho tão direito, tão imediatamente visível, conduz a um progresso da técnica social produtora de vantagens indiscutíveis, como o que da física e da química conduz às aquisições que representam a construção de máquinas e a terapêutica médica. Relativamente às ciências sociais falta ainda – e o se estado pouco evoluído não é das razões que menos concorrem para tal – uma força social que possa contrabalançar os interesses poderosos que, tanto aqueles que detêm o poder como também aqueles que ainda aspiram ao poder, têm numa teoria à medida dos seus desejos, que dizer, numa ideologia social. E isto sucede particularmente na nossa época que a guerra mundial e as suas consequências fizeram saltar dos eixos, em que as bases da vida social foram 7 profundamente abaladas e, por isso, as oposições dentro dos Estados se aguçaram até ao extremo limite. O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado. Assim, pois, nada parece hoje mais extemporâneo que uma teoria do Direito que quer manter a sua pureza, enquanto para outras não há poder, seja qual for, a que elas não estejam prontas a oferecer-se, quando já se não tem pejo de alto, bom som e publicamente reclamar uma ciência do Direito política e de exigir para esta o nome de ciência ‘pura’, louvando assim como virtude o que, quando muito, só a mais dura necessidade pessoal poderia ainda desculpar”. (p. XIV) No prefácio da segunda edição, Kelsen apresenta, já no primeiro parágrafo, o sentido da novidade da segunda edição em relação à primeira. Ele escreve: “A segunda edição da minha Teoria Pura do Direito, aparecida pela primeira vez há mais de um quarto de século, representa uma completa reelaboração dos assuntos versados na primeira edição e um substancial alargamento das matérias tratadas. Ao passo que, então, me contentei com formular os resultados particularmente característicos de uma teoria pura do Direito, agora procuro resolver os problemas mais importantes de uma teoria geral do Direito de acordo com os princípios da pureza metodológica do conhecimento científico-jurídico e, ao mesmo tempo, precisar, ainda melhor do que antes havia feito, a posição da ciência jurídica no sistema das ciências. Antepus a esta segunda edição o prefácio da primeira. Com efeito, ele mostra a situação científica e política em a que Teoria Pura do Direito, no período da primeira Guerra Mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, e o eco que ela então encontrou na literatura. Sob este aspecto, as coisas não se modificaram muito depois da segunda Guerra Mundial e das convulsões políticas que dela resultaram. Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um Direito justo e, consequentemente, um critério de valor para o Direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do Direito natural que, com esta pretensão, sai a opor-se ao positivismo jurídico”. (XVII-XVIII) 8 - Prefácio à segunda edição de “Problemas Centrais da Teoria do Direito do Estado” (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre) (1923): “O objetivo ao qual a obra Hauptprobleme se dirige, e que desde então também determinou todos os meus trabalhos é uma teoria pura do direito como teoria do direito positivo. Eu me esforcei, já no meu primeiro trabalho, para assegurara pureza da teoria ou – o que quer dizer a mesma coisa – a autonomia do direito como objeto de conhecimento científico em duas direções: primeiramente contra as exigências da chamada visão ‘sociológica’, que quer, por meio do método científico causal, se apoderar do direito como se este fosse parte da realidade dada pela natureza; e também contra a teoria do direito natural, que arrasta a teoria do direito do âmbito das proposições jurídicas positivas para o dos postulados ético-políticos, pois ignora o fundamento relacional presente exclusiva e unicamente no direito positivo”. (Kelsen, HP, 1923, p. V). I. Direito e Natureza (Recht und Natur) 1. A “pureza” (Die “Reinheit”) - Objeto da Teoria Pura do Direito: o Direito positivo em geral. - Objetivo da Teoria Pura do Direito: conhecer o seu objeto. - Princípio metodológico fundamental: “garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”. (p. 1) - A pureza da ciência, para Kelsen, depende de uma definição estrita do objeto da ciência (Direito positivo em geral) e de um compromisso com a neutralidade (relativismo axiológico). Esse relativismo axiológico é – na sua visão – uma condição necessária para reivindicação, por parte de uma teoria, do status de científica. 9 2. O ato e o seu significado jurídico (Der Akt und seine rechtliche Bedeutung) – 3. O sentido subjetivo e o sentido objetivo do ato. A sua auto-explicação (Der subjektive und der objektive Sinn des Aktes. Seine Selbstdeutung) - O sentido jurídico de um ato não pode ser percebido diretamente pelos sentidos. - O sentido subjetivo que o indivíduo liga ao seu ato não necessariamente corresponde ao sentido objetivo desse mesmo ato, pelo qual lhe é conferido caráter jurídico. 4. A norma (Die Norm) a) A norma como esquema de interpretação (Die Norm als Deutungschema) - “O que transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua faticidade, não é o seu ser natural, mas o sentido objetivo que está ligado a esse fato”. (p. 4) - “O sentido jurídico específico é recebido pelo fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo: a norma funciona como esquema de interpretação. (p. 4) - “A norma que empresta ao ato o significado de ato jurídico é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por sua vez, recebe a sua significação jurídica de outra norma”. (p. 4). (Esse procedimento de fundamentação da validade da norma jurídica de escalão inferior por meio da norma jurídica de escalão superior só se encerra na Norma Fundamental). b) Norma e produção normativa (Norm und Normerzeugung) - O conhecimento jurídico dirige-se a normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos). - Direito é um sistema de normas que regulam o comportamento humano. 10 - Norma significa que algo “deve-ser”. - Normas comandam, permitem ou conferem poder para algo (competência). - “Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém”. (p. 6) - A TPD se afasta do imperativismo (Austin): “Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui”. (p. 6) - A norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. - “A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofunda. É um dado imediato na nossa consciência”. (p. 6). Notar que, neste momento, Kelsen insere uma nota de pé de página na qual aproxima sua compreensão do conceito de dever-ser da compreensão do conceito de “bom” proposta por George Edward Moore, na obra Princia Ethica (1922). - “No entanto, este dualismo de ser e dever-ser não significa que ser e dever-ser se coloquem um ao lado do outro sem qualquer relação. Diz-se: um ser pode corresponder a um dever-ser. Afirma-se, por outro lado, que o dever-ser é ‘dirigido’ a um ‘ser’. A expressão: ‘um ser corresponde a um dever-ser’ não é inteiramente correta, pois não é o ser que corresponde ao dever-ser, mas é aquele ‘algo’, que por um lado ‘é’, que corresponde àquele ‘algo’, que, por outro lado, ‘deve-ser’ e que, figurativamente, pode ser designado como conteúdo do ser ou como conteúdo do dever-ser”. (p. 6-7) - “O processo legiferante é constituído por uma série de atos, que, na sua totalidade, possuem o sentido de normas. Quando dizemos que, por meio de um dos atos acima referidos ou através dos atos do procedimento legiferante, se ‘produz’ ou ‘põe’ uma norma, isto é apenas uma expressão figurada para traduzir que o sentido ou o significado do ato ou dos atos que constituem o procedimento legiferante é uma norma. No entanto, é preciso distinguir o sentido subjetivo do sentido objetivo. ‘Dever-ser’ é o 11 sentido subjetivo de todo o ato de vontade de um indivíduo que intencionalmente visa a conduta de outro. Porém, nem sempre um tal ato tal ato tem também objetivamente este sentido. Ora, somente quando este ato tem também objetivamente o sentido do dever- ser é que designamos o dever-ser como ‘norma’”. (p. 8) - O famoso exemplo da ordem do gangster e a primeira menção à norma fundamental (Grundnorm). Neste parágrafo, Kelsen já apresenta um esboço completo da teoria do ordenamento normativo como uma estrutura escalonada de normas, que, mais tarde, no capítulo “Dinâmica Jurídica”, será apresentada em detalhes: - “A ordem de um gangster para que lhe seja entregue uma determinada soma de dinheiro tem o mesmo sentido subjetivo que a ordem de um funcionário de finanças, a saber, que o indivíduo a quem a ordem é dirigida deve entregar uma determinada soma de dinheiro. No entanto, só a ordem do funcionário de finanças, e não a ordem do gangster, tem o sentido de uma norma válida, vinculante para o destinatário; apenas o ato do primeiro, e não o do segundo, é um ato produtor de uma norma, pois o ato do funcionário de finanças é fundamentado numa lei fiscal, enquanto o ato do gangster se não apoia em qualquer norma que para tal lhe atribua competência. Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-ser, tem também objetivamente este sentido, que dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. (...). Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (Grundnorm). Portanto, não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui a validade – em sentido objetivo – da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade”. (p. 9) - Exclusivamente a fim de assegurar um espaço para a norma fundamental (Grundnorm) no âmbito do conceito de norma, Kelsen, no último parágrafo deste tópico, registra: 12 - “Finalmente deve notar-se que uma norma pode ser não só o sentido de um ato de vontade mas também – como conteúdo de sentido – o conteúdo de um ato de pensamento.Uma norma pode não só ser querida, como também pode ser simplesmente pensada sem ser querida. Nese caso, ela não é uma norma posta, uma norma positiva. Quer isto dizer que uma norma não tem de ser efetivamente posta – pode estar simplesmente pressuposta no pensamento”. (p. 10) d) Vigência e domínio de vigência da norma (Geltung und Geltungsbereich der Norm) - “Com a palavra ‘vigência’ (Geltung) designamos a existência (Existens) específica de uma norma”. (p. 11) - “A ‘existência’ de uma norma positiva, a sua vigência [validade], é diferente da existência do ato de vontade (Willensakt) de que ela é o sentido objetivo”. (p. 11) - “É errôneo caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como ‘vontade’ ou ‘comando’ – do legislador ou do Estado -, quando por ‘vontade’ ou ‘comando’ se entenda o ato de vontade psíquica”. (p. 11) - Vigência (Geltung) e eficácia (Wirksamkeit) - “Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia (Wirksamkeit), isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos em certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será 13 considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia, como sói dizer-se é a condição da sua vigência”. (p. 11-12) - Neste último parágrafo, Kelsen aborda uma das questões mais difíceis da TPD: a relação entre validade e eficácia. Embora a norma seja um dever-ser, esse dever-ser tem como condição de existência um ser (isto é, um mínimo de eficácia). Mais tarde, no capítulo “Dinâmica Jurídica”, Kelsen voltará a enfrentar essa questão. - “No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma. Uma norma que preceituasse um certo evento que de antemão se sabe que necessariamente se tem de verificar, sempre e em toda parte, por força de uma lei natural, seria tão absurda como uma norma que preceituasse um certo fato que de antemão se sabe que de forma alguma se poderá verificar, igualmente por força de uma lei natural”. (p. 12) - “Vigência e eficácia de uma norma jurídica também não coincidem cronologicamente”. (p. 12) - “(...) uma norma jurídica deixará de ser considerada válida quando permanece duradouramente ineficaz”. (p. 12) - A eficácia é condição de vigência (validade). - “E de notar, no entanto, que, por eficácia de uma norma jurídica (...) se deve entender não só o fato de esta norma ser aplicada pelos órgãos jurídicos, (...), mas também o fato de esta norma ser respeitada pelos indivíduos subordinados à ordem jurídica (...). Na medida em que a estatuição de sanções tem por fim impedir (prevenção) a conduta condicionante da sanção – a prática de delitos - , encontramo-nos perante a hipótese ideal da vigência de uma norma jurídica quando esta nem sequer chega a ser aplicada, pelo fato de a representação da sanção a executar em caso de delito se ter tornado, relativamente aos indivíduos submetidos à ordem jurídica, em motivo para deixarem de praticar o delito”. (p. 12) 14 - “A referencia da norma ao espaço e ao tempo é o domínio de vigência espacial e temporal da norma. Este domínio de vigência pode ser limitado, mas pode também sem ilimitado”. (p. 13) - “Além dos domínios de validade espacial e temporal pode ainda distinguir-se um domínio de validade pessoal e um domínio de validade material das normas”. (p. 15) - “O domínio material de validade de uma norma jurídica global, porém, é sempre ilimitado, na medida em que uma tal ordem jurídica, por sua própria essência, pode regular sob qualquer aspecto a conduta dos indivíduos que lhe estão subordinados”. (p. 16) - Em última instância, e aqui estamos diante de uma importante questão demarcadora do positivismo kelseniano, a norma jurídica pode ter qualquer conteúdo. Os limites, aqui, são limites de natureza exclusivamente lógica. Isto é, não faz sentido uma norma jurídica que proíba ou obrigue alguém a realizar ou não realizar uma conduta impossível ou uma conduta necessária (exemplos: Levitar, pena de um a dois anos de detenção./Recusar-se a levitar quando devidamente solicitado, pena de um a dois anos de detenção/ Respirar, pena de um a dois anos de detenção./ Recusar-se a respirar quando devidamente solicitado, pena de um a dois anos de detenção). d) Regulamentação positiva e negativa; ordenar, conferir poder ou competência, permitir (Positive und negative Regelung; gebieten, ermächtigen, erlauben) - “A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva e por uma forma negativa. A conduta humana é regulada positivamente (...) quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato”. (p. 16-17) - “A conduta humana é ainda regulada num sentido positivo quando a um indivíduo é conferido, pelo ordenamento normativo, o poder ou competência para produzir, através de uma determinada atuação, determinadas consequências pelo mesmo ordenamento 15 normadas, especialmente – se o ordenamento regula a sua própria criação – para produzir normas ou para intervir na produção de normas”. (p. 17) - “Negativamente regulada por um ordenamento normativo é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma outra norma proibitiva – sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo”. (p. 18) e) Norma e valor (Norm und Wert) - “O juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um juízo de valor positivo. Significa que a conduta real é ‘boa’. O juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como, de acordo com uma norma válida, deveria ser, (...), é um juízo de valor negativo. Significa que a conduta real é ‘má’. Uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como devida, constitui um valor positivo ou negativo”. (p. 19) - Há aqui uma nota de pé de página na qual Kelsen se contrapõe a Schlick (filósofo vienense fundador da escola filosófica do positivismo lógico), pelo fato de que, para Schlick, uma norma é uma simples tradução de um fato da realidade. No início do próximo capítulo (“Direito e Moral”), Kelsen volta a se contrapor a Schlick, deixarei – deste modo – para registrar essa questão com um pouco mais de detalhe no próximo capítulo. - “Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso (...). É a realidade que se avalia”. (p. 19) Aqui, Kelsen insere uma nota de rodapé, na qual remete para o apêndice (que consta da 2a edição da TPD, mas que infelizmente não aparece na ediçãobrasileira) a discussão acerca da possibilidade de as normas serem objeto de valoração de outras normas, isto é, “a questão de saber como é que o direito positivo pode ser valorado como justo ou injusto”. 16 - “Na medida em que as normas que constituem o fundamento dos juízos de valor são estabelecidas por atos de uma vontade humana, e não de uma vontade supra-humana, os valores através delas constituídos são arbitrários”. (p. 19) 5. A ordem social (Die Gesellschaftsordnung) a) Ordens sociais que estatuem sanções (Sanktionen statuirende Geselschaftsordnungen) “Uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas, é uma ordem social. A Moral e o Direito são ordens sociais deste tipo”. (p. 25-26) - O princípio, que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. (p. 26) - Finalmente, uma ordem social pode – e é este o caso da ordem jurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem, como a privação dos bens acima referidos, ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra”. (p. 26) - “A conduta prescrita não é a conduta devida; devida é a sanção. O ser-prescrita uma conduta significa que o contrário desta conduta é pressuposto do ser-devida da sanção. A execução da sanção e prescrita, é conteúdo de um dever jurídico, se a sua omissão é tornada pressuposto de uma sanção. Se não for esse o caso, ela apenas pode valer como autorizada, e não também como prescrita. Visto não podermos admitir um regressum ad infinitum , a última sanção nesta séria apenas pode ser autorizada, e não prescrita”. (p. 27) - “Na medida em que o mal que funciona como sanção – a pena no sentido mais amplo da palavra – deve ser aplicada contra a vontade do atingido e, em caso de resistência, através do recurso à força física, a sanção tem o caráter de um ato de coação. Uma ordem 17 normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ordem coercitiva. Mas os atos de coerção podem ser estatuídos – e é este o caso da ordem jurídica, como veremos – não só como sanção, (...), mas também como reação contra situações de fato socialmente indesejáveis que não representam conduta humana é, por isso, não podem ser consideradas como proibidas”. (p. 28) b) Haverá ordens sociais desprovidas de sanção? (Gibt es sanktionslose Gesellschaftsordnungen ?) - A resposta curta é: Não. - “É por isso duvidoso que seja sequer possível uma distinção entre ordens sociais sancionadas. A única distinção de ordens sociais a ter em conta não reside em que umas estatuem sanções e outras não, mas nas diferentes espécies de sanções que estatuem”. (p. 30) c) Sanções transcendentes e sanções socialmente imanentes (Transzendente und gesellschaftlich immanente Sanktionen) - “Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana”. (p. 30) - “Completamente distintas das sanções transcendentes são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade, e que, por isso, podem ser designadas como sanções socialmente imanentes”. (p. 31) 6. A ordem jurídica (Die Rechtsordnung) a) O Direito: Ordem de conduta humana (Das Recht: Ordnung menschlichen Verhaltens) 18 - “Uma teoria do Direito deve, antes de tudo, determinar conceitualmente o seu objeto. Para alcançar uma definição do Direito, é aconselhável primeiramente partir do uso da linguagem, quer dizer, determinar o significado que tem a palavra ‘Recht’ (‘Direito’) na língua alemã e as suas equivalentes nas outras línguas (law, droit, diritto, etc.)”. (p. 33) - “Com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como ‘Direito’, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana. Uma ‘ordem’ é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamenta dessa ordem”. (p. 33) - “As normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana”. (p. 33) - Kelsen, na passagem citada, coloca definitivamente no centro da sua teoria o conceito de “ordem” ou “sistema”. O foco da TPD, portanto, não se encontra na norma jurídica tomada isoladamente, mas no sistema normativo. b) O Direito: uma ordem coativa (Das Recht: Eine Zwangsordnung) - “Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas – particularmente contra condutas humanas indesejáveis – com um ato de coação, isto é com um mal – como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra a sua vontade, se necessário empregando até a força física – coativamente, portanto. Dizer-se que, com o ato coativo que funciona como sanção, se aplica um mal ao destinatário, significa que este ato é normalmente recebido pelo destinatário como um mal”. (p. 36-37) 19 - O direito é uma ordem coativa da conduta humana. - “Mas uma ordem jurídica pode, através dos atos de coação por ela estatuídos, reagir não só contra uma determinada conduta humana mas ainda, (...), contra outros fatos socialmente nocivos. Por outras palavras, enquanto o ato de coação normado pela ordem jurídica é sempre a conduta de um determinado indivíduo, a condição de que aquele depende não tem de ser necessariamente determinada conduta de um indivíduo, mas pode também sê-lo uma outra situação de fato considerada, por qualquer motivo, como socialmente perniciosa”. (p. 36) - “Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação (...) é o critério decisivo”. (p. 37) α) Os atos de coação estatuídos pela ordem jurídica como sanções (Die von der Rechtsordnung statuierten Zwangsakte als Sanktionen) - “O Direito é uma ordem coativa, não no sentido de que ele – ou, mais rigorosamente, a sua representação – produz coação psíquica; mas no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos”. (p. 38) β) O Monopólio de coação da comunidade jurídica (Das Zwangsmonopol der Rechtsgemeinschaft) - “Gradualmente, porém, estabelece-se o princípio de que todo o emprego da força física é proibido quando não seja – e temos aqui uma limitação ao princípio – especialmente autorizado como reação, da competência da comunidade jurídica, contra uma situação de fato considerada socialmente perniciosa. (...). Neste sentido, pois, estamos perante um monopólico da coação por parte da comunidade jurídica”. (p. 40) γ) Ordem jurídica e segurança coletiva (Rechtsordnung und kollektive Sicherheit) 20 - “A segurança coletiva visa à paz, pois a paz é ausência doemprego de força física. (...). O Direito é uma ordem de coerção e, como ordem de coerção, é – conforme o seu grau de evolução – um ordem de segurança, que dizer, uma ordem de paz”. (p. 41) δ) Atos coercitivos que não têm o caráter de sanções (Zwangsakte, die nicht den Charakter von Sanktionen haben) - “Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados”. (p. 44) - Na minha opinião, Kelsen, tendo testemunhado a ascensão do nazismo e tendo sofrido diretamente as consequências da aplicação de leis extremamente injustas (como vimos na sua biografia), expressa coragem e retidão intelectual extraordinárias ao escrever esse parágrafo. Ele encerra um desdobramento necessário dos pressupostos juspositivistas defendidos por Kelsen. Desdobramento potencialmente trágico, porém necessário do ponto de vista da coerência interna da teoria. A corrente não-positivista que se desenrola de Gustav Radbruch, do final da 2a Guerra, até Robert Alexy, nos dias de hoje, surge da necessidade de confrontar a validade dessa tese. A compreensão da “Tese da Injustiça Extrema”, defendida por Alexy, e que compreende a famosa “Fórmula de Radbruch” (uma injustiça extrema não é Direito), busca refutar a tese defendida pela TPD de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. - “Se o conceito de sanção é alargado nestes termos, já não coincidirá com o de consequência do ilícito. A sanção, neste sentido, não tem necessariamente de seguir-se ao ato ilícito: pode precedê-lo”. (p. 45) ε) O Mínimo de liberdade (Das Freiheitsminimum) - “A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo 21 de liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comando ou proibição. Mesmo sob a ordem jurídica mais totalitária existe algo como uma liberdade inalienável – não enquanto direito inato do homem, enquanto direito natural, mas como uma consequência da limitação técnica que afeta a disciplina positiva da conduta humana”. (p. 47-48) - Repare que esse “mínimo de liberdade” não é – como Kelsen mesmo faz questão de sublinhar – uma consequência necessária da dignidade da pessoa humana ou da lei natural. Esse mínimo de liberdade é simplesmente a consequência da impossibilidade fática de uma regulação total da conduta humana. c) O Direito como ordem normativa de coação. Comunidade jurídica e “bando de salteadores (Das Recht als normative Zwangsordnung. Rechtsgemeinschaft und “Räuberbande”) - “Agora podemos dar resposta à questão de saber por que é que não conferimos ao comando de um salteador de estradas, proferido sob ameaça de morte, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário, isto é, de uma norma válida, por que é que não interpretamos este ato como um ato jurídico, por que interpretamos a realização da ameaça como um delito e não como a execução de uma sanção”. (p. 52) - Agora então vem a resposta: - “Se se trata do ato isolado de um só indivíduo, tal ato não pode ser considerado como um ato jurídico e o seu sentido não pode ser considerado como uma norma jurídica, já mesmo pelo fato de o Direito – conforme já acentuamos – não ser uma norma isolada, mas um sistema de normas, um ordenamento social, e uma norma particular apenas pode ser considerada como norma jurídica na medida em que pertença a um tal ordenamento. O confronto com uma ordem jurídica penas seria de considerar se se tratasse da atividade sistemática de um bando organizado que tornasse inseguro um determinado território pelo fato de coagir os indivíduos que aí vivessem, sob a ameaça de certos males, à entrega do seu dinheiro e valores patrimoniais. Nesse caso, a ordem que regula a conduta recíproca dos membros do grupo, qualificado como ‘bando de 22 salteadores’, deve ser distinguida da ordem externa, isto é, dos comandos que os membros ou os órgãos do bando dirigem, sob a cominação de certos males, àqueles que não pertencem ao grupo. Com efeito, somente em relação aos estranhos é que o grupo se comporta como bando de ‘salteadores’. Se a rapina e o assassinato não fosse proibidos nas relações entre os salteadores, não estaríamos sequem em face de qualquer comunidade, não existiria um ‘bando’ de salteadores. Por isso, pode ainda a ordem interna do bando entra muitas vezes em conflito com uma ordem de coerção, considerada como ordem jurídica, em cujo domínio territorial de validade se exerça a atividade do mesmo bando. Se a ordem de coerção que constitui esta comunidade e abrange a sua ordenação interna e externa não é considerada como ordem jurídica, se o seu sentido subjetivo, segundo o qual as pessoas se devem conduzir de conformidade com ela, não é havido como sendo o seu sentido objetivo, é porque se não pressupõe qualquer norma fundamental por virtude da qual as pessoas se devam conduzir de harmonia com tal ordenamento – isto é, por força da qual a coação deva ser exercida sob os pressupostos e pela forma que esse ordenamento determina. Mas – e esta é a questão decisiva – por que é que se não pressupõe essa norma fundamental? Ela não é pressuposta porque, ou melhor, se esse ordenamento não tem aquela eficácia duradoura (dauernde Wirksamkeit) sem a qual não é pressuposta qualquer norma fundamental que se lhe refira e fundamente a sua validade objetiva. Ele não tem claramente esta eficácia se as normas estatuidoras de sanções da ordem jurídica em cujo domínio territorial de validade se exerce a atividade do bando são aplicadas de fato a esta atividade enquanto ela constitui uma conduta contrária ao Direito e os componentes do bando são compulsoriamente privados da liberdade, ou mesmo da vida, por meio de atos que são interpretados como pena de privação de liberdade e pena de morte e, assim, se põe um termo à atividade do bando – ou seja: quando a ordem de coação reconhecida como ordem jurídica é mais eficaz do que a ordem de coação constitutiva do bando de salteadores”. (p. 52-53) - Esse trecho é, com razão, um dos trechos mais famosos da TPD. Aqui aparece a conexão entre a norma fundamental e a eficácia global do sistema normativo, que, neste ponto, aparece qualificada como “eficácia duradoura”. Essa é, de fato, a questão central. No entanto, chamo a atenção para uma interessante questão periférica. Kelsen afirma que se a “rapina e o assassinato não fossem proibidos nas relações entre os salteadores, não 23 estaríamos seque em face de qualquer comunidade”. Essa é uma afirmação que, em qualquer outro lugar, soaria trivial. No entanto, me parece que ao afirmar que a proibição da rapina e do assassinato são condições de existência de uma comunidade, Kelsen entra em contradição com sua afirmação – central para a TPD – de que o Direito pode ter qualquer conteúdo. Sugiro que você leia, mais tarde, e compare com o trecho destacado, o que Alexy, em “O Conceito e Validade do Direito”, escreve sobre o “argumento da correção”. Cito algumas poucas linhas: “O argumento da correção constitui a base dos outros dois argumentos, ou seja, o dainjustiça e o dos princípios. Ele afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individuais quanto os sistemas jurídicos como um todo formulam necessariamente a pretensão à correção. Sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão não são sistemas jurídicos”. (ALEXY, 2011: 43) - Não vou transcrever, mas, neste tópico, merece ainda ser lida com atenção a passagem na qual Kelsen cita Santo Agostinho e, contra Santo Agostinho, defende a tese de que a Justiça não pode ser nem uma característica que distinga o Direito de outras ordens coercitivas, como tampouco pode ser o fundamento de validade do sistema normativo, pelo fato de que, a tese de Santo Agostinho, na concepção de Kelsen, ignora a necessária relatividade dos juízos de valor. Kelsen conclui: - “Se a Justiça é tomada como critério da ordem normativa a designar como Direito, então as ordens coercitivas capitalistas do mundo ocidental não são de forma alguma Direito do ponto de vista do ideal comunista do Direito, e a ordem coercitiva comunista da União Soviética não é também de forma alguma Direito do ponto de vista do ideal de Justiça capitalista. Um conceito de Direito que conduz a uma tal consequência não pode ser aceito por uma ciência jurídica positiva”. (p. 55) d) Deveres jurídicos sem sanção? (Sanktionslose Rechtspflichten?) - A resposta é não. E um não com radicais consequências: - “Nas ordens jurídicas modernas só muito excepcionalmente se encontram normas que são o sentido subjetivo de atos de legislação e que prescrevem uma determinada 24 conduta sem que a conduta oposta seja tomada como pressuposto de um ato coercitivo que funcione como sanção. Se, no entanto, as ordens sociais a que chamamos Direito contivessem de fato em quantidade apreciável normas prescritivas que não estivessem essencialmente ligadas a normas que estatuem atos coercitivos como sanção – o que não é, porém, o caso -, então a admissibilidade de uma definição do Direito como ordem de coerção seria posta em causa. E se das ordens sociais a que chamamos Direito viesse a desaparecer – como profetiza o socialismo marxista – o elemento coação (como consequência do desaparecimento da propriedade privada dos meios de produção), estas ordens sociais mudariam radicalmente de caráter: perderiam – no sentido da definição do Direito aqui admitida – o seu caráter jurídico, do mesmo passo que as comunidades por elas construídas perderiam o seu caráter estatal; ou seja, na terminologia de Marx, o Estado – e com o Estado também o Direito – ‘morreria’”. (p. 60) e) Normas jurídicas não autônomas (Unselbständige Rechtsnormen) - “Se uma ordem jurídica ou uma lei feita pelo parlamento contém uma norma que prescreve determinada conduta e uma outra norma que liga à não observância da primeira uma sanção, aquela primeira norma não é uma norma autônoma, mas está essencialmente ligada à segunda; ela apenas estabelece – negativamente – o pressuposto a que a segunda liga a sanção”. (p. 61) - “Do que fica dito resulta que uma ordem jurídica, se bem que nem todas as suas normas estatuam atos de coação, pode, no entanto, ser caracterizada como ordem de coação, na medida em que todas as suas normas que não estatuam elas próprias um ato coercitivo e, por isso, não contenham uma prescrição mas antes confiram competência para a produção de normas ou contenham uma permissão positiva, são normas não autônomas, pois apenas têm validade em ligação com uma norma estatuidora de um ato de coerção”. (p. 64) - “Visto que uma ordem jurídica é uma ordem de coação no sentido que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposições enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção (determinados igualmente pela ordem jurídica). Todo material dado nas 25 normas de uma ordem jurídica se enquadra neste esquema de proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, proposição esta que se deverá distinguir da norma jurídica posta pela autoridade estadual”. (p. 65) - Com este parágrafo, Kelsen encerra o primeiro capítulo da TPD. O Direito é uma ordem de coação. Proposições podem descrever essa ordem. Os enunciados dessas proposições descrevem o Direito da seguinte maneira: dados certos pressupostos (determinados pela ordem jurídica), devem ser aplicados certos atos de coerção (também determinados pela ordem jurídica). Observe que, para TPD, todo material dado no Direito se enquadra nesse esquema de proposição jurídica. - Para encerrar este primeiro capítulo, uma breve observação em relação ao termo “estadual”. Estadual aqui, e não devemos nos esquecer que a tradução da “Teoria Pura do Direito” foi feita para o Português de Portugal, se refere ao que, no Português do Brasil, nós chamamos de estatal. II. Direito e Moral (Recht und Moral) 1. As Normas morais como normas sociais (Moralnormen als soziale Normen) - “Ao definir o Direito como norma, na medida em que ele constitui o objeto de uma específica ciência jurídica, delimitâmo-lo em face da natureza e, ao mesmo tempo, delimitamos a ciência jurídica em face da ciência natural. Ao lado das normas jurídicas, porém, há outras normas que regulam a conduta dos homens entre si, isto é, normas sociais, e a ciência jurídica não é, portanto, a única disciplina dirigida ao conhecimento e à descrição de normas sociais. Essas outras normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a disciplina dirigia ao seu conhecimento pode ser designada como Ética”. (p. 67) - “A tentativa do positivismo lógico de representar a Ética como ciência empírica de fatos provém claramente do legítimo empenho de a subtrair ao domínio da especulação metafísica. Mas tal empenho já é bastante respeitado quando as normas que formam o objeto da Ética são 26 conhecidas como conteúdos de sentido de fatos empíricos postos pelos homens no mundo da realidade, e não como comandos de entidades transcendentes. Se as normas da Moral, assim como as normas do Direito positivo, são o sentido de fatos empíricos, tanto a Ética como a ciência jurídica podem ser designadas como ciências empíricas – em contraposição à especulação metafísica -, mesmo que não tenham por objeto fatos mas sim normas. (Nota de rodapé, p. 405) - “Na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito. A tal propósito deve notar-se que, no uso corrente da linguagem, assim como o Direito é confundido com a ciência jurídica, a Moral é muito frequentemente confundida com a Ética e afirma-se desta o que só quanto àquela está certo: que regula a conduta humana, que estatui deveres e direitos, isto é, que estabelece autoritariamente normas, quando ela apenas pode conhecer e descrever a norma moral posta por uma autoridade moral ou consuetudinariamente produzida. A pureza do método da ciência jurídica é então posta em perigo, não só pelo fato de se não tomarem em conta os limites que separam esta ciência da ciência natural, mas – muito mais ainda – pelo fato de ela não ser, ou de não ser com suficiente clareza, separada da Ética: de não se distinguir claramente entre Direito e Moral. (p. 67) - Concluindo este tópico, Kelsen afirma que as normas morais são normas sociais (“Também os chamados deveres do homem para consigo próprio são deveres sociais. Para um indivíduo que vivesse isolado não teriam sentido”.) 2. A Moral como regulamentação da conduta interior (Moral als Regelungdes inneren Verhaltens) - A distinção entre o Direito e a Moral. - “A distinção entre a Moral e o Direito não pode referir-se à conduta a que obriga os homens as normas de cada uma destas ordens sociais”. (p. 68) - Neste tópico, Kelsen se opõe à tese kantiana de que a moralidade se refere exclusivamente aos motivos da conduta. Para Kelsen, a proposta de distinção entre Moral e Direito com base 27 na alegação de que as normas da Moral regulam a “conduta interior” ao passo que as normas do Direito regulam a “conduta exterior” não é válida. - “Uma conduta apenas pode ter valor moral quando não só o seu motivo determinante como também a própria conduta correspondam a uma norma moral. Na apreciação moral o motivo não pode ser separado da conduta motivada. Por esta razão ainda, o conceito de moral não pode ser limitado à norma que disponha: reprime as tuas inclinações, deixa de realizar os teus interesses egoísticos. Mas a verdade é que somente se o conceito de Moral for assim delimitado é que Moral e Direito se podem distinguir pela forma indicada: referir-se aquela à conduta interna ao passo que este também dispõe sobre a conduta externa”. (p. 70) 3. A Moral como ordem positiva sem caráter coercitivo (Moral als positive Ordnung ohne Zwangscharakter) - “O Direito e a Moral também se não podem distinguir essencialmente com referencia à produção ou à aplicação das suas normas. Tal como as normas do Direito, também as normas da Moral são criadas pelo costume ou por meio de uma elaboração consciente (...). Neste sentido a Moral é, como o Direito, positiva, e só uma Moral positiva tem interesse para uma Ética científica, tal como apenas o Direito positivo interessa a uma teoria científica do Direito”. (p. 70) - “Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sócias prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, viste que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física”. (p. 71) 4. O Direito como parte da Moral (Recht als Teil der Moral) 28 - “Estabelecido que o Direito e a Moral constituem diferentes espécies de sistemas de normas, surge o problema das relações entre o Direito e a Moral. Esta questão tem duplo sentido. Pode com ela pretender-se indagar qual a relação que de fato existe entre o Direito e a Moral, mas também se pode pretender descobrir a relação que deve existir entre os dois sistemas de normas. Estas duas questões são confundidas uma com a outra, o que conduz a equívocos. À primeira questão responde-se por vezes que o Direito é por sua própria essência moral, o que significa que a conduta que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem também é prescrita ou proibida pelas normas da Moral. E acrescenta-se que, se uma ordem social prescreve uma conduta que a Moral proíbe, ou proíbe uma conduta que a moral prescreve, essa ordem não é Direito porque não é justa. A questão, porém, é também respondida no sentido de que o Direito pode ser moral – no sentido acabado de referir, isto é, justo -, mas não tem necessariamente de o ser; que uma ordem social que não é moral, ou seja, justa, pode, no entanto, ser Direito, se bem que se admita a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, deve ser justo. Quando se entende a questão das relações entre o Direito e a Moral como uma questão acerca do conteúdo do Direito e não como uma questão acerca da sua forma, quando se afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é Moral e, portanto, é por essência justo”. (p. 72) - Por que Kelsen não aceita essa tese? - “Na medida em que uma tal tese vise uma justificação do Direito – e é este o seu sentido próprio -, tem de pressupor que apenas uma Moral que é a única válida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que só as normas que correspondam a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor moral absoluto, podem ser consideradas ‘Direito’. Quer dizer: parte-se de uma definição do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça”. (p. 72) 5. Relatividade do valor moral (Relativität des Moral-Wertes) - “(...) a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma determinada conduta humana. Então, nesse sentido 29 relativo, todo o Direito tem caráter moral, todo o Direito constitui um valor moral (relativo). Isto, porém, que dizer: a questão das relações entre o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direito, mas uma questão sobre a sua forma. Não se poderá então dizer, como por vezes se diz, que o Direito não é apenas norma (ou comando), mas também constitui ou corporiza um valor. Uma tal afirmação só tem sentido pressupondo-se um valor divino absoluto. Com efeito, o Direito constitui um valor precisamente pelo fato de ser norma: constitui o valor jurídico que, ao mesmo tempo, é um valor moral (relativo). Ora com isto mais se não diz senão que o Direito é norma”. (p. 74) - “Por tal forma, pois, não se aceita de modo algum a teoria de que o Direito, por essência, representa um mínimo moral, que uma ordem coercitiva, por poder ser considerada como Direito, tem de satisfazer uma exigência moral mínima. Com esta exigência, na verdade, pressupõe-se uma Moral absoluta, determinada quanto ao conteúdo, ou, então, um conteúdo comum a todos os sistemas de Moral positiva. Do exposto resulta que o que aqui se designa como valor jurídico na é um mínimo moral neste sentido, e especialmente que o valor de paz não representa um elemento essencial ao conceito de Direito”. (p. 74) 6. Separação do Direito e da Moral (Trennung von der Recht und Moral) - “É de per si evidente que uma Moral simplesmente relativa não pode desempenhar a função, que consciente ou inconscientemente lhe é exigida, de fornecer uma medida ou padrão absoluto para a valoração de uma ordem jurídica positiva. Uma tal medida também não pode ser encontrada pela via do conhecimento científico. Isto não significa, porém, que não haja qualquer medida. Todo e qualquer sistema moral pode servir de medida ou critério para tal efeito. Devemos ter presente, porém, quando apreciamos ‘moralmente’ uma ordem jurídica positiva, quando a valoramos como boa ou má, justa ou injusta, que o critério é um critério relativo, que não fica excluída uma diferente valoração com base num outro sistema moral, que, quando uma ordem jurídica é considerada injusta se apreciada com base no critério fornecido por um sistema moral, ela pode ser havida como justa se julgada pela medida ou critério fornecido por outro sistema moral”. (p. 76) 7. Justificação do Direito pela Moral (Rechtfertigung des Rechts durch die Moral) 30 - “A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela, na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidadejurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade”. (p. 78) - O problema de uma legitimação acrítica do Direito: - “Com efeito, pressupõe-se como evidente que a ordem coercitiva estatual própria é Direito. O problemático critério de medida da Moral absoluta apenas é utilizado para apreciar as ordens coercitivas da outros Estados. Somente estas são desqualificadas como imorais e, portanto, como não-Direito, quando não satisfaçam a determinadas exigências a que a nossa própria ordem dá satisfação, (...). Como, porém, a nossa própria ordem coercitiva é Direito, ela tem de ser, de acordo com a dita tese, também moral. Uma tal legitimação do Direito positivo pode, apesar da sua insuficiência lógica, prestar politicamente bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável. Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por forma alguma de justificar – quer através de uma Moral absoluta, que através de uma Moral relativa – a ordem normativa que lhe compete – tão- somente – conhecer e descrever”. (p. 78) IV. Estática Jurídica (Rechtsstatik) 1. A sanção: ilícito e consequência do ilícito (Die Sanktion: Unrecht und Unrechtsfolge) a) As sanções do Direito nacional e do Direito internacional (Die Sanktionen des nationalen und des internationalen Rechts) - “Se o Direito é concebido como uma ordem de coerção, isto é, como uma ordem estatuidora de atos de coerção, então a proposição jurídica que descreve o Direito toma a forma de uma afirmação segundo a qual, sob certas condições ou pressupostos pela 31 ordem jurídica determinados, deve executar-se um ato de coação, pela mesma ordem jurídica especificado. Atos de coerção são atos a executar contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência, com o emprego da força física”. (p. 121) - Este primeiro parágrafo do capítulo “Estática Jurídica”, fornece – juntamente com o último tópico do capítulo, “Superação do dualismo de Direito no sentido objetivo e Direito no sentido subjetivo”, a chave de leitura de todo o capítulo. O objetivo de Kelsen é claro: explicar, nos termos de uma concepção do Direito como ordem de coerção, as questões tradicionais da teoria do Direito (ao mesmo tempo em que apresenta e critica as teorias tradicionais). Para Kelsen, todas essas questões podem – ao final de uma análise científica – ser traduzidas em termos de proposições jurídicas que expressam que, sob determinadas condições (pressupostas pela ordem jurídica), devem ser executados determinados atos de coação (também pressupostos pela ordem jurídica). b) O ilícito (delito) não é negação, mas pressuposto do Direito (Das Unrecht (Delikt) nicht Negation, sondern Bedingung des Rechts) - O título do tópico já diz praticamente tudo. Kelsen explica: - “Se uma ordem normativa prescreve uma determinada conduta apenas pelo fato de ligar uma sanção à conduta oposta, o essencial da situação de fato é perfeitamente descrito através de um juízo hipotético que afirme que, se existe uma determinada conduta, deve ser efetivado um determinado ato de coação. Nesta proposição, o ilícito aparece como um pressuposto (condição) e não como uma negação do Direito; e, então, mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja fora do Direito e contra o Direito, mas é um fato que está dentro do Direito e é por este determinado, que o Direito, pela sua própria natureza, se refere precisa e particularmente a ele”. (p. 127) 2. Dever jurídico e Responsabilidade (Rechtspflicht und Haftung) a) Dever jurídico e sanção (Rechtspflicht und Sanktion) 32 - Se o Direito é concebido como ordem coercitiva, uma conduta apenas pode ser considerada como objetivamente prescrita pelo Direito e, portanto, como conteúdo de um dever jurídico, se uma norma jurídica liga à conduta oposta um ato coercitivo como sanção. Costuma-se, na verdade, distinguir norma jurídica de dever jurídico e dizer que uma norma jurídica estatui um dever jurídico. Porém, o dever jurídico de realizar uma determinada conduta não é uma situação de fato diversa da norma jurídica que prescreve esta conduta. A afirmação: um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta, é idêntica à afirmação: uma norma jurídica prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção”. (p. 129) b) Dever jurídico e dever-ser (Rechtspflicht und Sollen) - “O dever jurídico (...) não é, ou pelo menos não é imediatamente, a conduta devida. Devido é apenas o ato de coerção que funciona como sanção. Se se diz: quem está juridicamente obrigado a uma determinada conduta ‘deve’, por força do Direito, conduzir-se do modo prescrito, o que com isso se exprime é o ser-devido – ou seja, o ser positivamente permitido, o seu autorizado e o ser prescrito – do ato coercitivo que funciona como sanção e é estatuído como consequência da conduta oposta”. (p. 133) - Chamo a atenção aqui para uma interessante nota de rodapé na qual Kelsen apresenta e rebate uma crítica de Alf Ross. Em síntese, Ross afirma que a determinação do conceito de dever jurídico da TPD levaria a um regressum ad infinitum. Kelsen responde à crítica observando que, em última instância, o dever jurídico de um órgão de reagir com uma sanção apenas pode ser constituído por uma norma que confira competência a um outro órgão para reagir com uma sanção, mas não que o obrigue a isso. c) Responsabilidade (Haftung) - “Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurídico, mas que dele deve ser distinguido, é o conceito de responsabilidade. Um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção 33 (...) não tem de ser necessariamente de ser dirigida (...) contra o indivíduo obrigado, (...) mas pode também ser dirigido contra um outro indivíduo que se encontre com aquele numa relação determinada pela ordem jurídica. O indivíduo contra quem é dirigida a consequência do ilícito responde por ele. No primeiro caso, responde pelo ilícito próprio. Aqui o indivíduo obrigado e o indivíduo responsável são uma e a mesma pessoa. Responsável é o delinquente potencial. No segundo caso, responde um indivíduo pelo delito cometido por um outro: o indivíduo obrigado e o indivíduo responsável não são idênticos”. (p. 133-134) d) Responsabilidade individual e coletiva (Individual- und Kollektivhaftung) - “(...) podemos falar de responsabilidade coletiva quando as consequências do ilícito se dirijam, não contra um indivíduo em singular, mas contra vários ou todos os membros de um grupo determinado a que o delinquente pertence”. (p. 136) e) Responsabilidade pela culpa e pelo resultado (Schuld- und Erfolgshaftung) - “Quando a ordem jurídica faz pressuposto de uma consequência do ilícito uma determinada ação ou omissão através da qual é produzido ou não é impedido um evento indesejável (...), pode distinguir-se entre a hipótese em que este sucesso é visado ou, pelo menos, previsto pelo indivíduo cuja conduta se considera e a hipótese em que o mesmo evento ou sucesso se verificou sem qualquer intenção ou previsão – ‘casualmente’, como sói dizer-se. No primeiro caso, fala-se de responsabilidade pela culpa, no segundo, de responsabilidadepelo resultado”. (p. 137) f) Dever de indenização (Die Gutmachungspflicht) - “A ordem jurídica pode constituir os indivíduos no dever de não causarem prejuízos a outrem sem estatuir a obrigação ou o dever de indenizar os prejuízos causados com a infração daquele primeiro dever. Um tal dever de indenização apenas existe quando não somente a produção de um prejuízo mas também a não indenização do prejuízo antijuridicamente causado é considerada pressuposto de uma sanção. O fato de que a ordem jurídica obriga à indenização de um prejuízo é corretamente descrito na seguinte 34 proposição jurídica: se um indivíduo causa a outrem um prejuízo e este prejuízo não é indenizado, deve ser dirigido contra o patrimônio de um outro indivíduo um ato coercitivo como sanção, quer dizer, deve retirar-se compulsoriamente a outro indivíduo um valor patrimonial e atribuí-lo ao indivíduo prejudicado, para ressarcimento do prejuízo”. (p. 138-139) - “A sanção da execução civil constitui dois deveres: o dever de não causar prejuízos, como dever principal, e o dever de ressarcir os prejuízos ilicitamente causados, como dever subsidiário que vem tomar o lugar do dever principal violado”. (p. 139) g) A responsabilidade coletiva como responsabilidade pelo resultado (Kollektivhaftung als Erfolgshaftung) - “Quando a sanção não é dirigida contra o delinquente, mas – como no caso da responsabilidade coletiva – contra um outro indivíduo que está, com o delinquente, numa relação pela ordem jurídica determinada, a responsabilidade tem sempre o caráter de um responsabilidade pelo resultado”. (p. 140) 3. Direito subjetivo: atribuição de um direito e atribuição de um poder ou competência (Subjektives Recht: Berechtigung und Ermächtigung) - Neste tópico, não creio necessária a discussão de todos os sub-tópicos. Registro apenas a conclusão geral: - “Em resumo, pode dizer-se: o direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples direito reflexo, isto é, o reflexo de um dever jurídico existente em face deste indivíduo; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico, isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de fazer valer o não cumprimento de um dever jurídico, em face dele existente, através da ação judicial, o poder jurídico de intervir na produção da norma individual através da qual é imposta a sanção ligada ao não cumprimento; ou um direito político, isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de intervir, já diretamente, como membro da assembleia popular legislativa, na produção das normas jurídicas gerais a que chamamos leis, já indiretamente, como titular de um direito de eleger para 35 o parlamento ou para a administração, na produção das normas jurídicas que o órgão eleito tem competência para produzir; ou é, como direito ou liberdade fundamental garantida constitucionalmente, o poder de intervir na produção da norma através da qual a validade da lei inconstitucional que viola a igualdade ou liberdade garantidas é anulada, que por uma forma geral, isto é, para todos os casos, quer apenas individualmente, isto é, somente para o caso concreto. Finalmente, também pode designar-se como direito subjetivo a permissão positiva de uma autoridade”. (p. 162) 4. Capacidade de exercício; Competência; Organicidade (Handlungsfähigkeit; Kompetenz; Organschaft) a) Capacidade de exercício (Handlungfähigkeit) - “O poder jurídico descrito nas páginas precedentes como direito subjetivo – direito privado ou direito político – é apenas um caso particular da função da ordem jurídica que aqui designamos por atribuição de um poder ou competência ou autorização (Ermächtigung)”. (p. 162) - “Atribuição de um poder ou competência ou autorização” é a fórmula encontrada pelo tradutor da TPD para traduzir a palavra alemã Ermächtigung. Em Inglês, optou-se por empowerment, não tendo sido necessária, portanto, a utilização de uma expressão para a tradução de uma palavra. No entanto, considerando a inexistência na língua portuguesa de uma palavra cujo sentido possa equivaler ao sentido de Ermächtigung, acredito que a escolha do nosso tradutor tenha sido justificada. - “A função da ordem jurídica designada como atribuição de poder ou competência (Ermächtigung) refere-se somente à conduta humana. Só a conduta de um indivíduo é que é pela ordem jurídica autorizada. Num sentido muito amplo, uma certa conduta de um determinado indivíduo é autorizada pelo ordenamento jurídico não só quando se atribui por essa forma ao indivíduo um poder jurídico, isto é, uma capacidade de produzir normas jurídicas, mas, de um modo inteiramente geral, quando a conduta do indivíduo é tornada pressuposto direito ou indireto da consequência jurídica, isto é, do 36 ato coercitivo posto como devido (como devendo-ser), ou essa conduta é a própria conduta que representa o ato de coerção”. (p. 163) - “Se por capacidade de exercício se entende a capacidade de produzir as consequências jurídicas através de uma conduta, e ser se vê como consequência de um ato negocial o dever jurídico criado através desse ato, ou seja, o pôr-em-vigência de uma norma individual, podemos entender como capacidade de exercício (no sentido de capacidade negocial) também a capacidade de cumprir deveres jurídicos, quer dizer: a capacidade de, pela sua própria conduta, evitar a sanção. Nisso consiste a consequência jurídica – negativa – do cumprimento do dever”. (p. 166) b) Competência (Kompetenz) - “Em todos estes casos, precisamente como no caso da chamada capacidade de exercício, estamos perante uma autorização (Ermächtigung) para produzir normas jurídicas. Em todos estes casos a ordem jurídica atribui a determinados indivíduos um poder jurídico. Porém, nem em todos os casos de atribuição de um poder jurídico (Ermächtigung) no sentido estrito da palavra, a teoria tradicional fala de capacidade de exercício. Pelo contrário, ela fala em muitos casos, e especialmente em relação com a função de certos órgãos da comunidade, particularmente dos tribunais e das autoridades administrativas, da sua ‘competência’. O poder jurídico conferido a uma ‘pessoa privada’ de produzir normas jurídicas pela prática de um negócio jurídico ou de intervir na produção de normas jurídicas através da ação judicial, do recurso, da reclamação, do exercício do direito de voto, os seus direitos subjetivos no sentido técnico da palavra, não são designados como sua competência. Na medida em que seja tomada em conta a função que consiste no exercício do poder jurídico conferido pela ordem jurídica. A capacidade negocial e o direito subjetivo – privado ou político – de um indivíduo são a sua ‘competência’ no mesmo sentido em que o é a capacidade de certos indivíduos de fazer leis, proferir decisões judiciais ou tomar resoluções administrativas”. (p. 166-167) c) Organicidade (Organschaft) 37 - “Um indivíduo é órgão de uma comunidade porque e na medida em que realiza uma conduta atribuível à comunidade; e uma conduta é atribuível à comunidade quando está determinada na ordem normativa constitutiva da comunidade como pressuposto ou consequência. Este é o conceito primário, fundamental da função de órgão, da função de órgão no sentido mais amplo da palavra”. (p. 167-168) 5. Capacidade jurídica; Representação (Rechtsfähigkeit; Stellvertretung) - Análise crítica da teoria tradicional da capacidade jurídica. 6. Relação jurídica (Rechtsverhältnis)
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