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GUIA DE COMPORTAMENTO CANINO: O problema do seu cão pode ser você EVANDER BUENO DE LIMA PhD GUIA DE COMPORTAMENTO CANINO: O problema do seu cão pode ser você 1a EDIÇÃO SÃO PAULO TODAS AS MUSAS 2016 Editor: Flavio Felicio Botton Supervisão Editorial: Fernanda Verdasca Botton Capa e diagramação: Studio Vintage Br Ilustrações: Betto Rodrigues Evander Bueno de Lima © É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização dos autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Kátia Aguilar CRB – 8/8898 L628g Lima, Evander Bueno de. Guia de comportamento canino: o problema do seu cão pode ser você/Evander Bueno de Lima; Prefácio de: Daniele dos Santos Martins; Ilustrações de: Betto Rodrigues. São Paulo: Todas as Musas, 2016, 98p. Bibliografia ISBN 978-85-64137-75-2 1. Cães – Comportamento – Medicina veterinária 2. Medicina veterinária – Cães 3. Cães - comportamento I. Lima, Evander Bueno de; II. Martins, Daniele dos Santos; III. Rodrigues, Betto. CDD 636.7 Catálogo Sistemático Cães – Comportamento – Medicina veterinária 636.7; Medicina veterinária - Cães 636.089; Cães – comportamento 636.7. Direitos de edição: Editora Todas as Musas C.N.P.J. 12.650.462/0001-33 www.todasasmusas.org todasasmusas@gmail.com Dedico este livro a minha família e a minha esposa. Nunca acreditaram em nós e, de cada prato de comida vazio, de cada migalha de arroz que repartíamos, nos tornamos fortes e vencemos todas as adversidades. Isto nada e ninguém nunca poderá nos tirar. Não há dificuldade maior do que a determinação humana. Sonhamos, persistimos, trabalhamos e conquistamos. Somos do tamanho de nossos sonhos. A Gabriela dos Santos Bueno, minha amada esposa que me faz um homem melhor a cada dia de convivência. Sem você nada seria possível. Te amo SUMÁRIO PREFÁCIO, por Daniele dos Santos Martins ....................................................................... 5 QUE O CACHORRO É O “MELHOR AMIGO DO HOMEM” JÁ SABEMOS HÁ MUITO TEMPO, MAS SERÁ A RECÍPROCA VERDADEIRA?, por Marco Antonio Gomes Del’ Aquilla .............. 7 PALAVRA DO EDITOR, por Flavio Botton ........................................................................... 9 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 13 COMO PENSAM OS CÃES ............................................................................................... 19 LIDERANÇA: O LÍDER DA MATILHA ................................................................................ 21 TESTE DE PERSONALIDADE ........................................................................................... 25 ÓRGÃO VOMERONASAL .................................................................................................. 29 CÃES TÊM CIÚMES? ....................................................................................................... 31 ANTROPOMORFISMO ...................................................................................................... 37 EDUCANDO O CÃO COMO MEMBRO DA FAMÍLIA. ENSINANDO OS LIMITES. ................. 41 ENSINANDO A NÃO ENTRAR EM CASA. .......................................................................... 43 ENSINANDO A NÃO PEGAR OBJETOS COMO CHINELOS, SAPATOS, ETC. ...................... 45 ENSINANDO A URINAR NO LOCAL CORRETO ................................................................. 47 AFECÇÕES CAUSADAS POR CRUZAMENTOS INDISCRIMINADOS EM CÃES ................... 51 ALGUMAS RAÇAS E SUAS PREDISPOSIÇÕES GENÉTICAS .............................................. 53 SOCIALIZAÇÃO DOS CÃES .............................................................................................. 56 TESTE DE QI CANINO ..................................................................................................... 59 TESTE DE CAMPBELL ..................................................................................................... 77 TESTE DE VOLHARD ...................................................................................................... 85 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS .................................................................................... 95 5 PREFÁCIO Profa. Dra. Daniele dos Santos Martins Mestra e doutora em Anatomia dos Animais Domésticos e Silvestres pela Universidade de São Paulo. Formada em Medicina Veterinária, é Presidente da Comissão de Ética no Uso de Animais CEUA/FZEA/USP e docente responsável pelas disciplinas de Bem-Estar Animal, Animais Silvestres e Criação de Animais de Laboratório, Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (USP). Desde que nasci, já havia em minha casa um cão, o “Freeway”, um pequinês de cor preta, que morou conosco até os meus 7 anos e que devia ter por volta de 14 anos quando se foi. A melhor lembrança que tenho desse pequeno peludo, o famoso cão (pelo menos na minha família) que batia “palmas” na hora “do parabéns”, era a de eu e minha irmã colocando-o para dormir no carrinho de boneca, com direito a cobertor e touca. Tenho certeza de que foi ele que me ensinou a ter um carinho especial pelos cães. Quando comecei a me questionar sobre algumas coisas, fui tentar entender como nós havíamos conseguido treinar Freeway a “bater palmas” e a ficar quieto no carrinho de boneca. Foi assim, acredito eu, que começou meu interesse pelo comportamento animal. A palavra comportamento pode ser entendida como uma designação genérica de uma reação frente a um estímulo presente e relacionada à presença ou influência de alguma coisa ou algo, podendo muitas vezes ser confundida com treinamento. O comportamento consiste em atos que o animal exibe, uma ação que é modificada no cão, dependendo da sua função: animal de família, visto como um filho; um cão de guarda; um cão de companhia; um cão esquecido no quintal entre outras possibilidades. Esta mudança ocorre desde a domesticação da espécie, que se deu simultaneamente em várias partes do globo durante o Mesolítico, o que ocasionou, no Neolítico, o aparecimento por seleção de várias raças. Desde então, o cão passou a ser utilizado para várias e diferentes tarefas, dentre elas, acompanhar o homem, que usufruiu da sua conveniência, descobrindo que muitas vezes ambos podem sofrer dos mesmos males. Assim, desde sua evolução, o homem enxerga os cães todos da mesma forma, devendo eles ter o mesmo comportamento sempre e, porque não dizer, sendo previsíveis. Entretanto, temos que levar em consideração o temperamento ligado à raça ou a falta dela, 6 comportamento aprendido pelo animal no período de socialização, comportamento aprendido pela vivência do animal e comportamento humanizado, que delineamos em nossos animais. E é nesta premissa que este livro apresenta uma valiosa contribuição para entendermos essa humanização a qual estamos submetendo nossos cães. Devemos sempre partir do princípio de que, por mais que eles pareçam nossos filhos, eles são de outra espécie e isso deve ser levado em conta. Falo isso sempre pensando no bem-estar do animal, que tem como princípio as 5 liberdades: o animal deve ser livre de fome e sede; livre de medo e estresse; livre de dor e doenças; livre de desconforto e ter a liberdade de expressar seu comportamento natural. Esta última liberdade mostra o quão importante é entendermos qual é o comportamento natural do cãoe o que estamos fazendo com nosso animal quando o submetemos ao processo de humanização. A recomendação para leitura do presente livro encontra barreira em um aspecto educacional rotineiramente enfrentado pelos médicos veterinários, pois eles não são ensinados a analisar possíveis transtornos comportamentais em cães e qual seria sua posição na família humana. Eles recebem apenas ensinamentos quanto a tratar a doença, sem pensar no fundo psicológico que a mesma desencadeou. Tive o prazer de ser uma das primeiras a receber a edição e a apresentação de um Teste de dominância a ser realizado por proprietários e/ou médicos veterinários. Isso me deixou particularmente curiosa, uma vez que o teste mostra de forma clara e objetiva como podemos avaliar nossos animais. A finalidade do livro é tratar de maneira natural que o problema do seu cão pode ser você, por meio de capítulos que falam sobre antropomorfismo e liderança, bem como procuram demonstrar cientificamente o que realmente está acontecendo quando você acredita que o seu cão está demonstrando ciúmes. O livro oferece ainda ao leitor ensinamentos sobre comandos básicos, tais como não entrar em casa ou não pegar pertences. Por tais razões, considero a leitura desta obra necessária para todos aqueles que, como eu, são apaixonados por cães e buscam sempre a melhor maneira de mantê-los em nossa família, e para os colegas de profissão, médicos veterinários, considero uma importante leitura para atualizarmos nossas consultas e diagnósticos. 7 QUE O CACHORRO É O “MELHOR AMIGO DO HOMEM” JÁ SABEMOS HÁ MUITO TEMPO; MAS SERÁ A RECÍPROCA VERDADEIRA? Prof. Dr. Marco Antonio Gomes Del’ Aquilla PhD, Pesquisador Neurocientista LINC - Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas UNIFESP A relação quase simbiótica entre cães e humanos existe há milênios; estima-se que se passaram cerca de 100 mil anos desde a domesticação dos primeiros lobos, o que se traduz em um longo e proveitoso período de convivência amistosa. Essa relação foi e continua a ser tão profícua simplesmente por que se revelou vantajosa para a sobrevivência de ambas as espécies; enquanto os humanos propiciavam proteção e convívio social, os cães os ajudavam em suas tarefas de caça. Sucessivas mudanças adaptativas fizeram com que os cães se tornassem progressivamente mais propensos a viver com humanos e, claro, humanos com os cães. Com o passar do tempo, esses animais passaram de utensílios de caça a um companheiro multitarefas: guardiões, soldados, policiais, guias, coterapeutas, “filhos”, mas principalmente Amigos, aqui escrito mesmo com letra maiúscula, dada sua importância nas nossas vidas. Nos últimos anos, a etologia canina vem ganhando espaço no meio científico. Vários e importantes estudos têm sido publicados focando, principalmente, no que se refere a uma psicologia canina vista de forma pura e isolada. Este livro nos traz uma importantíssima contribuição no entendimento do comportamento canino sob uma óptica totalmente inovadora. O autor nos agracia com o brilhantismo de suas ideias, brindando o leitor com um pouco de sua experiência. A corajosa abordagem por ele apresentada tira o homem da sua romântica e confortável posição de exclusivo benfeitor dessa relação. Esta obra apresenta, de forma clara, precisa e calcada em uma sólida fundamentação teórica, que nós, humanos, somos os verdadeiros beneficiários e que esses benefícios recebidos se estendem para muito além do materialismo 8 servil. O antropomorfismo, distanciado de uma abordagem meramente ilustrativa e descritiva, visto aqui sob uma perspectiva crítica, porém prática, nos coloca em “xeque” e leva o leitor a uma reflexão sobre seu papel e possíveis “malefícios” nesse convívio ancestral, se não cuidados os devidos papéis de cada uma das espécies. O que os cães esperam e o que os homens desejam? Um trabalho que desconstrói algumas certezas já há muito edificadas e acomodadas. Página a página descortinam-se problemas e são apresentadas reflexões e soluções frente às quais nossos manuais de “bem viver entre espécies” se tornam questionáveis. Fundamentado em importantes testagens e apresentando orientações e dicas de treinamento, o livro se revela, também, um fundamental guia prático e de fácil consulta para o leitor. Confesso que, ao ter o privilégio de ser umas das primeiras pessoas a ler este livro, foi muito difícil acordar na manhã seguinte. Fui, madrugada adentro, me deliciando a cada capítulo em que eram revelados princípios de uma etologia revisitada e de como a compreensão de nossas atitudes e comportamentos, muitas vezes idiossincráticos, pode nos ajudar a entender as forças e as fraquezas da relação do homem com seu cão. Simplesmente uma leitura essencial para todos que amam seus Amigos. 9 PALAVRA DO EDITOR Prof. Dr. Flavio Botton Doutor e Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Editor da Editora Todas as Musas Um grande amigo, de longa data, revisor de textos que trabalhava em seu apartamento, certa vez teve um problema sério com vizinho que possuía um animal de estimação, um cãozinho, não sei de que raça. O vizinho dele, do apartamento de cima, trabalhava fora durante todo o dia e, às vezes, à noite. Todos já imaginam como segue esse relato. O pobre animal, abandonado pelo dono, gania, chorava e latia por toda a tarde, dificultando muito o trabalho do revisor que precisa de uma concentração acima do normal na leitura que faz de qualquer texto. Meu amigo começou a reclamar com síndicos, porteiro e com o dono do animal. Em muitas discussões, ele foi acusado de não gostar de animais! Ao contar para mim as ocorrências, dizia indignado: “O sujeito abandona o cachorro o dia todo chorando e eu é que não gosto de animais!”. Quando li pela primeira vez o livro de Evander Bueno de Lima, lembrei-me tanto desse meu amigo... Como teria sido bom poder presentear aquele homem que achava que amava o seu cão com “o problema do seu cão pode ser você”. O tenente Evander me fez pensar em um procedimento fundamental para o qual eu não estava preparado. Se nós gostamos tanto de animais, nós precisamos aprender sobre eles! Parece óbvio, mas não é. E nem um pouco. Bastaria perguntar aos donos de animais quantos livros sobre o assunto “animais de estimação” eles já leram. As minhas grandes paixões são a literatura e arte. Confesso, sem falsa modéstia, que já li uma infinidade de obras sobre esses assuntos e tiro grande proveito disso no meu relacionamento pessoal e profissional com a arte e com a literatura. Sendo assim, como podemos pensar que alguém tem grande paixão pelos animais ou um imenso amor pelo seu próprio animal e nunca procurou se informar sobre ele? Tenho certeza de que muitas pessoas irão dizer que “meu cachorro é que nem gente”, não é preciso aprender sobre relacionamento com gente, “eu já sei tudo”. Dirão também: “o amor dele é incondicional”. 10 Para os que dizem isso, a leitura do livro de Evander Bueno de Lima é de uma urgência premente. E, agora, após a leitura, eu sei que eles estão duplamente enganados. Enganam-se a si mesmos e prejudicam tremendamente os seus animais. O primeiro engano é não perceber que cães não são gente. Eles são animais e são maravilhosos por isso. Mas são animais diferentes de nós e, para usufruir e ser generoso e honesto com eles, é preciso entendê-los. Apenas um especialista, alguém que tenha estudado o comportamento do animal pode nos ensinar isso. Assim o faz o professor doutor Evander Bueno de Lima, com uma prosa técnica e bem fundamentada, mas gostosa e fácil de ler. O segundo engano é testar o amor incondicional deles. Descobrir que o amor é incondicional é testá-lo sobre todas as condições, sejam elas de abandono do animal, de submetê-lo a ambientes sem estímulos, sem atividades e sem atenção. O amordo animal pode ainda assim continuar, mas o dono não pode se orgulhar disso, muito pelo contrário, deve se envergonhar horrivelmente. Aquele dono, vizinho de meu amigo revisor, ao chegar ao seu apartamento falava, aos berros, com o pobre cão abandonado: “Papai chegou, neném, vem aqui!!”. E (todos sabemos que é sempre assim) o animalzinho corria aos pés dele e se deleitava com os cinco minutos de atenção, após horas intermináveis de abandono. Tivesse ele lido o capítulo sobre antropomorfismo deste livro... E se tantos outros donos que projetam seus anseios, medos e deficiências em seus animais, ah, se eles tivessem se perguntado: “consigo fazer de uma tartaruga um cachorro?”. Tudo seria mais fácil, pelo menos para os animais, mas, sobretudo, teriam sido mais honestos com eles mesmos. Ter um animal de estimação e ler sobre como entender as necessidades dele é de extrema importância, de uma importância que eu nunca havia sido capaz de dimensionar até conhecer o professor Evander. A Editora Todas as Musas orgulhosamente coloca nas mãos de seus amigos e leitores a obra do professor doutor Evander Bueno de Lima, desejando uma boa leitura e um relacionamento mais saudável entre homens e animais. Guia de Comportamento Canino 11 APRESENTAÇÃO Minhas experiências em comportamento animal, mais especificamente com o canino, sem que se percebesse, tiveram seu início em minha infância na cidade de São João da Boa Vista -SP, com meus primeiros cães. Primeiro, o Aritana, um pastor alemão que, naquela época, era bravo, na minha concepção. Segundo, o Stivie, SRD (sem raça definida), dócil e amigo, que recebia minha mãe ao chegar do trabalho todos os dias na praça do bairro. Havia também Menina, outra SRD, amável e companheira, que me fazia companhia, seguindo-me quando eu ia até à casa de minha saudosa avó. Esses animais me ensinaram desde cedo a importância do respeito à hierarquia, a cumplicidade do encontro e a responsabilidade da proteção, respectivamente. Essas características são inatas desta adorável espécie, que, com sua inteligência e companheirismo, fizeram apaixonar-me, cada dia mais, pelo meu trabalho e por estes seres tão especiais. Logo após me formar na faculdade de medicina veterinária, durante minhas consultas clínicas, muitas vezes me deparei com proprietários pedindo ajuda em relação ao comportamento de seus cães. Problemas de agressividade, latidos excessivos, fobia de chuva, trovões ou tempestades, medo de fogos de artifícios. Foi, enfim, uma grande diversidade de comportamentos que me fizeram buscar livros e tornar-me um estudioso da área para poder melhor entender o comportamento canino e melhor ajudar meus clientes para que conseguissem um convívio harmonioso e equilibrado dentro da casa. Neste tempo, descobri que entender como os cães pensam e ensinar isto aos clientes em minhas consultas ou mesmo aos colegas veterinários, adestradores ou cinófilos por meio de seminários ou palestras, foi a melhor forma de ajustar esta convivência. Isto também me levou a escrever este guia, que tem apenas a intenção de compartilhar os caminhos iniciais do comportamento canino de uma forma básica e prática, podendo ser praticada por todos aqueles que pretendem ter um ou mais cães em casa. Dessa forma, espero despertar as mesmas concepções e emoções que percebo em minhas consultas de comportamento. O que é preciso é basicamente que se traga do inconsciente ao consciente a noção de que tudo o que está sendo dito é simples, fácil e óbvio. Basta apenas a mudança do comportamento do proprietário para que o animal mude no mesmo momento. Evander Bueno de Lima 12 Guia de Comportamento Canino 13 INTRODUÇÃO Atualmente, o animal de estimação que temos em nossos lares deixou de ser uma simples companhia para nossos filhos ou mesmo um imponente cão de guarda para a nossa casa e tornou–se algo muito mais profundo e afetivo, quase como um membro da família. Os animais, em especial os cães, vêm ocupando um lugar cada vez mais importante nos lares de toda a população. O cão talvez seja o mais antigo animal domesticado pelo ser humano. Teorias postulam que ele surgiu da domesticação do lobo cinzento asiático pelos povos daquele continente há cerca de 100.000 anos. Ao longo dos séculos, por meio da domesticação, realizou-se uma seleção artificial dos cães pelas suas aptidões, características físicas ou tipos de comportamentos. O cão é um animal social que, na maioria das vezes, aceita o seu dono como o chefe da matilha. Ele possui várias características que o tornam de grande utilidade para o ser humano, possui excelente olfato e audição, é um bom caçador e um corredor vigoroso, é inteligente, relativamente dócil e obediente ao ser humano e possui também excelente capacidade de aprendizagem. Desse modo, o cão pode ser adestrado para executar grande número de tarefas úteis ao homem, como a caça, pastorear rebanhos, guarda para vigiar propriedades ou proteger pessoas, farejar diversas coisas (drogas, pólvora, câncer, Evander Bueno de Lima 14 sangue, hormônios, ferormônios, etc), resgatar afogados ou sobreviventes em terrenos adversos, guiar cegos, puxar pequenos trenós. Mas, hoje em dia, uma das suas principais atribuições é servir como cão de companhia, momento em que se pode gozar do prazer do seu amor incondicional. Estes, com certeza, são alguns dos motivos que estimularam a criação da famosa frase: “O cão é o melhor amigo do homem”. Não se tem conhecimento de uma amizade tão forte e duradoura entre espécies distintas quanto a do homem e a do cão. Atualmente, o cães tem também sido amplamente utilizados como coterapeutas para diversas afecções e isto faz, certamente, com que eles tenham um papel cada vez mais significativo em nossas vidas por meio da terapia assistida por animais (TAA). Existem instituições como o Instituto de Etologia Aplicada e Psicologia Animal (IEAP), na Suíça, que se trata de uma fundação privada de pesquisa e educação, que tenta convencer desde ministros da saúde de países do primeiro mundo até líderes de pequenas comunidades na África do Sul a investir em programas de TAA, já que foram comprovados os benefícios dessa terapia à nossa saúde. Há também um projeto realizado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), onde tive o prazer de iniciar os serviços que tinham por objetivo utilizar um cão da MARINHA DO BRASIL para trabalhar com crianças autistas. Esse projeto gerou diversas publicações científicas comprovando mais esta maravilhosa aptidão, em que o cão/animal consegue ultrapassar barreiras e abrir portas intransponíveis ao terapeuta humano. Independentemente do motivo pelo qual o cão está na sua casa ou no seu trabalho, entender como seu animal pensa e age torna-se fundamental para um convívio harmonioso e, principalmente, faz com que o animal se adapte à casa e à família, evitando assim comportamentos indesejáveis como a coprofagia (comer fezes), urinar e defecar por toda a casa, latir excessivamente e desnecessariamente, destruir objetos, ter medo de trovões ou fogos de artifícios, roubar comida da mesa, demonstrar hiperatividade entre outras. Todos esses comportamentos podem ser potencializados se o proprietário não entender porque seu animal o está realizando e podem, por outro lado, ser atenuados ou mesmo evitados se os donos agirem de maneira correta perante os seus animais. O principal motivo que me leva a escrever sobre este assunto é a observação casuística, empírica e científica que acumulo nestes anos de estudos e trabalhos com comportamento canino. Em minha experiência, 99% (casuística empírica do autor) dos problemas relatados em minhas consultas sobre os problemas enfrentados em casa com estes animais, na verdade, não são deles, mas sim de seus donos, os quais, após algumas horas de conversae Guia de Comportamento Canino 15 demonstrações de comportamento canino, acabam aceitando o quão culpados são, embora alguns, mesmo depois, continuem agindo e educando de forma errada seus animais. Note que usei o termo culpa propositalmente, pois a intenção é, desde o início, mostrar que o cão é um animal extremamente responsivo àquilo que o submetemos e praticamente todo o seu comportamento está diretamente ligado à forma pela qual nos relacionamos com ele. Esse relacionamento pode potencializar uma ação ou comportamento ou extingui-lo, momento em que um bom adestrador será de grande valia para ajudar no equilíbrio dessa relação interespécie, pois o meio forma o indivíduo. É muito comum fazermos a seguinte pergunta ao cliente: “você consegue fazer de uma tartaruga um cachorro?” Imagine a cena: uma tartaruga na coleira e você passeando com ela ou jogando uma bolinha para ela buscar e ficar esperando ela trazer de volta. Ou ainda, sua tartaruga tomando conta da sua casa como um cão de guarda. Seria muito cômica a cena, não é mesmo? Talvez seja uma cena perfeita para desenhos animados, mas ela nunca ocorrerá na vida real. A impossibilidade de isso acontecer se dá devido à anatomia da tartaruga e, principalmente, pelo fato de seu cérebro não estar moldado para estas atividades. Da mesma forma, pergunto: “conseguem fazer de seu cão um ser humano?” Infelizmente, nessa hora sempre existem pessoas que acreditam que seus cães “só faltam falar”. Por outro lado, a grande maioria dos clientes dão risadas e começam a entender o significado de humanizar os animais e compreendem que estão dando características que não pertencem a eles. Isto pode trazer desiquilíbrios dentro de um lar, o que torna a convivência, que deveria ser prazerosa, em algo perturbador para o cão e para os seres humanos da família. O antropomorfismo é exatamente isto: dar características humanas ao animal. Homem é homem, cão é cão, não temos como fazer de um o outro nem vice e versa. Isto não significa que devamos viver afastados desses amáveis seres, pois, hoje em dia, o animal de estimação, aqui representado pelo cão, se tornou um ente querido em nossos lares. Porém, para manter a relação saudável, não podemos esquecer-nos das distintas naturezas dessas espécies. Evander Bueno de Lima 16 Nesse relacionamento, o desequilíbrio começa a acontecer quando algo na casa, ou ao menos uma pessoa, passa a mudar para se “adaptar ao animal”. Na verdade, o que deveria acontecer é que o animal deveria se adaptar às pessoas e ao ambiente em que está sendo inserido. Assim, o proprietário do animal exerceria o papel de líder da matilha. É muito importante não se esquecer da sua natureza, pois quando digo que o cão deve se adaptar ao lar, temos que buscar respeitar as exigências psicológicas e físicas de seu cão. Isto, pode apostar, faz uma enorme diferença no comportamento do animal e, sem medo de errar, posso afirmar que este talvez seja o limite entre a saúde e a doença, pois um ambiente pobre Guia de Comportamento Canino 17 em atividades e opções pode ser o início de uma vida perturbadora e triste para nosso amigo, desencadeando problemas como ansiedade, estresse, transtornos obsessivos compulsivos, entre outros. Exemplificando. Se, na minha casa, sempre deixei a porta da cozinha aberta e agora estou fechando-a para que o novo membro da família não entre e fique no quintal/lavanderia, estou inconscientemente ensinado o contrário a ele. Estou explicitamente dizendo ao cão que, quando a porta estiver aberta, ele pode entrar. Veja então que o limite não deve ser físico, mas sim psicológico. Temos que ensiná-lo qual é o limite e quando ele pode entrar, educando-o, mostrando firmeza e liderança no comando. Não se esqueça principalmente de que existe a forma certa e correta de fazê-lo para que aquilo que você pretende ensinar não fique confuso na cabeça do animal. Para isto, temos que entender como a mente do animal funciona, como o cão pensa e age, de acordo com tudo que acontece ao seu redor. Lembre-se sempre: o cão deve se adaptar ao nosso lar e não o contrário. Evander Bueno de Lima 18 Enfim, pensando em oferecer condições para que se consiga um bom equilíbrio familiar entre o animal e seus donos, escrevo este livro para todos aqueles que são apaixonados por esta espécie, mostrando a forma básica de raciocínio canino, com a intenção de buscar ações que alcancem o equilíbrio nessa relação e tragam benefícios para a toda família. É sempre importante ressaltar que, na sociedade de hoje, como já dissemos, o animal de estimação virou um membro da família e quando falo sobre “equilíbrio para toda a família”, é obvio que o animal está inserido neste contexto. Ele precisa ter suas necessidades respeitadas e atendidas e elas são basicamente e psicologicamente as mesmas que as nossas. O animal necessita de atividades físicas, interações sociais, ambiente rico em atividades e alimentação adequada entre outras coisas. Guia de Comportamento Canino 19 COMO PENSAM OS CÃES Como entender um cão, se eu não sei como ele pensa? Como posso dominá-lo ou deixar de ser dominado por ele, se ele sempre faz aquela carinha do gato de botas1 com a qual consegue tudo o que quer de mim? Esta é uma pergunta que muito frequentemente meus clientes fazem e eu posso ver a agonia em seus olhos, tentando realmente aprender o que e como fazer para começar a entender a educar seu cão. Para isto, é importante que, no mínimo, tenhamos uma noção básica sobre como ele pensa. Se avaliarmos o cérebro de um cão juntamente com o cérebro humano, vamos perceber que, morfologicamente, ambos são muito semelhantes. Muitos pesquisadores afirmam que a diferença entre eles é quantitativa e não qualitativa. Nosso cérebro, porém, possui uma capacidade infinitamente maior para utilizar o raciocínio lógico (área frontal do cérebro), enquanto os cães possuem enorme capacidade para utilizar a sua parte instintiva, o sistema límbico (área central do cérebro). Essa característica dá ao animal uma enorme capacidade de raciocínio associativo e, basicamente, toda sua forma de pensar e agir estará vinculada a essa forma de raciocínio. Isso passa despercebido para a grande maioria dos proprietários de animais. Um cão vivendo dentro de casa com uma família de humanos pensa da mesma maneira que os seus ancestrais, os lobos. Embora existam autores que acreditem que os cães nos veem como seres humanos, eu prefiro ainda acreditar na maioria dos artigos científicos publicados em revistas de alta conceituação técnica em suas áreas, pois eles conseguem provar por estudos etológicos / neuropsicológicos, deixando a subjetividade de lado, que é preciso conviver com os cães seguindo a sua natureza. Assim, entre supor que ele raciocine que sou um humano e ele é um cão, prefiro pensar que ele não tem esse raciocínio discriminatório. O nosso relacionamento vai realmente se embasar na sua socialização e tudo o que ocorrer com ele, entre nós e com o ambiente, pois, como seres vivos, somos uma eterna 1 O GATO DE BOTAS é um personagem dos filmes de Shrek. Como muitos personagens de Shrek, ele faz uma referência a um conto clássico, O Gato de Botas, de Charles Perrault. No desenho, o gato faz uma feição de animal abandonado e pedinte para conseguir o que quer, levando-nos a uma compaixão e empatia incontroláveis, fazendo-nos ceder aos seus desejos. http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Gato_de_Botas http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Perrault Evander Bueno de Lima 20 adaptação a estímulos externos, controlados por uma “sopa” de neurotransmissores que faz cada ser vivo um ser único. Guia de Comportamento Canino 21 LIDERANÇA: O LÍDER DA MATILHA Há muito de romantismo e antropomorfismo em torno do cão. Existem estudosfeitos com ressonância magnética, que buscam mapear as atividades cerebrais do cão no momento em que se estimulam atividades lúdicas, para se fazer uma analogia com o cérebro humano. Porém, por mais semelhanças que se encontre, o cão raciocina e age por associação, utilizando-se basicamente de uma lei da psicologia comportamental operante, que veremos mais adiante, denominada LEI de THORNDIKE2 ou LEI DO EFEITO. Ao lado disto, está também a associação da liderança do grupo. Ou ele manda ou é mandado, ou ele é o líder da matilha ou subordinado. É basicamente e determinantemente assim, pois todo o relacionamento vai depender desta hierarquia e tudo o que acontecer estará diretamente relacionado a isto. Será assim, mesmo que não percebamos, mas, para eles, isso está presente 24 horas por dia. Se, naturalmente, ele for um animal submisso, sua rotina será a de sempre conquistar seu dono, executando associações que fazem com que o proprietário acredite veemente que seu cão “só falta falar”. Por outro lado, se o cão tiver um instinto3 dominante, o que por sua vez proporcionará a este animal uma personalidade4 mais forte e territorialista, ele sempre estará desafiando o dono. Nesse caso, o conhecimento básico, por parte do proprietário, de que forma esses animais pensam é fundamental para uma vida familiar equilibrada e 2 EDWARD LEE THORNDIKE, psicólogo norte-americano. Iniciou seus estudos de psicologia na Universidade de Harvard (EUA). Um dos aspectos da psicologia que particularmente o fascinava era o estudo do aprendizado dos animais. Thorndike esteve na origem do surgimento do condicionamento operante. 3 INSTINTO designa, em psicologia, etologia, biologia e em outras ciências afins, as predisposições inatas para a realização de determinadas sequências de ações (comportamentos), caracterizadas, sobretudo, por uma realização estereotipada, padronizada, pré-definida. Devido a essas características supõe-se uma forte base genética para os instintos, ideia defendida já por Darwin. Os mecanismos que determinam a influência genética sobre os instintos não são completamente compreendidos, uma vez que se desconhecem as estruturas genéticas que determinam sua heritabilidade. O termo instinto foi usado nas primeiras traduções da obra de Freud para o inglês a fim de traduzir o termo alemão trieb. Esse uso do termo instinto não corresponde ao conceito psicanalítico e foi por isso substituído pelo termo mais próprio de pulsão (ing. drive). 4 PERSONALIDADE é o conjunto de características psicológicas que determinam os padrões de pensar, sentir e agir. A formação da personalidade é um processo gradual, complexo e único a cada indivíduo. Da mesma forma, a formação da personalidade é processo gradual, complexo e único a cada animal. Evander Bueno de Lima 22 saudável, em que os líderes são as pessoas da casa e não o cão. Ter um animal que pode morder as pessoas da casa por não ter sido educado e socializado da forma correta faz, com o passar do tempo, que isto se torne um perigo constante dentro de nossos lares, principalmente se houver crianças ou outros animais. A convivência, que deveria ser algo prazeroso, pela companhia desses maravilhosos e encantadores membros da família, torna-se um incômodo e um transtorno muito grande para todos da casa. E vale ainda ressaltar que a culpa não é do animal. Afastar a forma de pensar dos cães de seus ancestrais ou daquilo que eles naturalmente são seria negar parte da ciência que prova, nos dias de hoje, pelo seu mapeamento genético, sua hereditariedade. Sem que seja preciso nos alongar no assunto, eu diria que a grande diferença está no fato de uma espécie estar totalmente domesticada e a outra ser ainda selvagem. E assim se dá também com matilhas selvagens que mimetizam comportamentos das alcateias. Em nossos lares, o instinto do animal funciona da mesma forma como se ele estivesse na mata, vivendo de forma selvagem. Assim, ao chegar a nossa casa, ele estará avaliando se será o líder e a quem tem que desafiar. A competitividade e a luta (na maioria das vezes psicológica) para firmar seu território estão no instinto do líder. Imaginemos o encontro de um cão líder de uma matilha com outro que está com intenção de “tirar seu reinado”. Engana-se quem pensa que eles irão logo para uma briga física. Na verdade, existem algumas fases antes de eles se atacarem fisicamente, se machucarem e ficarem dependendo da gravidade dos machucados para sobreviverem. Para evitar esse confronto físico, o cérebro, ao longo de sua evolução, se moldou para sempre defender a vida e isto, na lei da natureza, é fundamental para a sobrevivência da espécie. Eles não se arriscam de imediato sem antes terem a certeza de que vão ganhar a briga e de que o outro, ao final, vai perceber que estava errado em sua avaliação. Se, toda a vez que o líder fosse desafiado, ele tivesse que utilizar o confronto físico, é claro que, com o tempo, ele não resistiria. Por mais forte que ele fosse, em curtos espaços de tempo, levando algumas mordidas, mesmo que sejam de raspão, ao final, aquele simples arranhão viraria uma grande ferida, onde as moscas depositariam suas larvas e lá se desenvolveria uma miíase que iria devorá-lo por inteiro. O primeiro confronto é o visual. Um animal encara o outro, olhando-o fixamente nos olhos. O primeiro a desviar o olhar já dá indícios de submissão. Na maioria das vezes, o confronto acaba nesse ponto. Fala mais alto o instinto dos animais: o desafiante desiste de Guia de Comportamento Canino 23 continuar na briga pela liderança da matilha e opta por esperar por uma oportunidade melhor. Porém, vamos imaginar que o desafiante não tenha se intimidado com o olhar intenso e assustador de seu adversário e nenhum dos dois deixa de encarar o outro, mantendo o olho no olho do oponente. O líder da matilha não vai entregar sua família sem muita luta e o desafiante está convicto de que aquele grupo vale a pena e que ele vai ganhar a briga. Nessa hora, o confronto físico vai se aproximando e o corpo inteiro se prepara para um confronto que pode ser fatal, pois as mencionadas tentativas inconscientes de defesa da vida pelo cérebro não estão adiantando. O confronto não se dá mais apenas do olhar, mas passa ser também sonoro, incluindo a exposição dos dentes caninos e a captação de feromônios e de todos os hormônios que possam estar envolvidos na briga e na defesa da vida. Esses hormônios são emitidos pelo sistema nervoso autônomo simpático e são captados pelo órgão vomeronasal (veremos isso detalhadamente mais adiante). Se, após estas ações (olhar, sonoro/exposição de caninos e órgão vomeronasal), nenhum dos dois desistir, o cérebro ainda lançará uma última tentativa antes das dilacerações de um confronto físico: o blefe. Normalmente, uma mordida sem intensidade, mas com ferocidade, parte do líder da matilha para tentar afastar o desafiante. Porém, se o desafiante ainda estiver convicto da necessidade da briga, o blefe será recíproco e então o confronto físico começa. O mais forte vencerá, podendo a matilha ter um novo líder ou não. Essa sequência de momentos tensos de confronto tem um limiar muito tênue entre uma fase e outra. Elas podem ser muito rápidas, de apenas alguns segundos, ou podem demorar um tempo maior. Porém, nenhum cão saudável irá atacar sem fornecer esses avisos antes. Os ataques que fogem deste ritual da natureza geralmente indicam uma afecção comportamental determinada pelo gene da agressividade, identificado normalmente em cães de raças de cores escuras (pois sua formação embriológica está relacionada conjuntamente aos genes da cor). Em todos esses anos em que trabalho com terapia comportamental, identifiquei alguns casos e, na maioria das vezes, em cães da raça Cocker Spaniel (caramelo ou preto). Vale ressaltar que esta incidência tem aumentadomuito devido ao cruzamento indiscriminado de criadores irresponsáveis em busca de dinheiro com a venda desses animais (veremos mais sobre isso mais adiante também). Sempre afirmo, em aulas ou palestras que ministro, que não existe cão saudável agressivo, o que existe são animais predispostos ao territorialismo e que têm essa Evander Bueno de Lima 24 característica potencializada. Da mesma forma, há animais que não foram socializados e manifestam com maior intensidade, por isso, afecções comportamentais (gene da agressividade, disfunções hormonais), o que é completamente diferente de condenar uma ou outra raça como sendo agressiva. Um ambiente saudável, independente do drive5 do animal, molda a personalidade de um cão, deixando-o sempre sociável, mesmo sendo um cão operacional da Polícia Militar ou um cão de guerra das Forças Armadas. 5 DRIVE são os diferentes tipos de instintos inerentes aos cães. Esses instintos influenciam o comportamento dos cães, definindo a maneira pela qual eles irão reagir a uma situação específica e sua personalidade. Os drives podem ser influenciados pela genética e podem ser moldados pelo ambiente, educação e socialização que receberão. Guia de Comportamento Canino 25 TESTE DE PERSONALIDADE Sempre obtive êxito com um teste empírico aplicado nos cães para julgar se são geneticamente afetados pelo gene da agressividade ou se são apenas potencializados a serem agressivos. O relato que faço em seguida não tem a intenção de fazer deste teste um modelo. Procuro apenas compartilhar uma prática que sempre deu certo no meu trabalho. Trata-se de um confronto psicológico montado de forma muito rápida. É tão simples que o proprietário do animal, mesmo estando presente, não percebe que foi realizado. Com o teste, já tenho dados o suficiente para saber o quão trabalhosa será a consulta de comportamento, a dinâmica necessária, os cuidados que terei que usar e a personalidade do cão. Sobre a personalidade do animal, nunca é demais enfatizar que, na maioria das vezes, o animal tem os comportamentos potencializados pelo ambiente em que vive, seja pela inércia de seu dono ou por ter sido educado de forma errada (e muitas vezes isso é feito de propósito). Vejamos como é feito, sempre seguindo a natureza do cão e o desafio de liderança, que já foi mencionado. Começo olhando em seus olhos e observando qual será sua reação. Se o cão latir sem desviar seu olhar, digo apenas um “não” um pouco mais forte, levantando minha mão em sua direção e me insinuando a avançar em direção a ele. Observo quanto tempo ele demora em desviar o olhar dos meus olhos. Isto acontece de forma muito rápida, não dura mais que uns 10 segundos. Apenas esse procedimento já é o suficiente para que eu consiga classificar a sua reação em três categorias: A primeira denota uma personalidade bastante dócil e de fácil manuseio. O animal demonstra isso desviando seu olhar do meu no momento em que olho para ele, podendo ele voltar a me olhar, mas apenas para verificar se continuo a olhá-lo. Se eu continuo, ele automaticamente desvia novamente o olhar, junto com o desvio da sua cabeça. A segunda denota uma personalidade mais forte, mais territorialista. Com este cão, terei mais trabalho e precisarei de muito mais paciência e cuidado para manuseá-lo. É preciso criar um laço afetivo forte para ficar tranquilo, seguro e com a certeza de que não vou ser mordido. Quando olho nos seus olhos, ele me encara por um tempo maior, podendo rosnar, latir e desviará os olhos dos meus sem que sua cabeça gire, ficando firme em minha direção, de prontidão para a mordida blefe. A terceira reação que o cão poderá ter será a de confronto. Ele não desviará o olhar e vai me morder, sem blefar. Este animal provavelmente é portador do gene da agressividade. Evander Bueno de Lima 26 Será muito importante que os proprietários se conscientizem que, se o espaço desse animal for invadido, haverá uma grande chance de quem o fizer ser mordido e se machucar. É muito importante, quando vamos realizar este teste, estarmos completamente seguros de que, se algo sair errado, não seremos atacados. Se houver a dúvida, o cão perceberá o temor, sua coragem para nos intimidar irá aumentar e, em contrapartida, o nosso medo irá crescer. Nesse contexto, obviamente, não conseguiremos um resultado confiável. Nas consultas, o proprietário sempre está segurando seu animal. Quando sou chamado a um canil, há uma grade entre nós e o animal. Se tiver que entrar em seu ambiente, sempre coloco uma manga de treinamento, que ele poderá morder se quiser e eu poderei enfrentá-lo “psicologicamente” sem medo, gritando com ele e sem tirar os meus olhos dos olhos dele. Alguns leitores poderão questionar se esta terceira reação é realmente indicativa do gene da agressividade ou se estou diante de um verdadeiro cão Alpha. Eu acredito, porém, que mesmo um lobo ou cão selvagem, quando sozinho, enfrentando um animal bem maior que ele, terá o seu cérebro protegendo a vida, aconselhando-o a evitar o confronto. Isso não acontece na presença do gene da agressividade. Certa vez, quando estava ministrando disciplinas ligadas à medicina veterinária e comportamental de cães de guerra para os fuzileiros navais no primeiro curso de “Cães de Guerra da Marinha do Brasil”, na base de Aramar, fui chamado para comparecer ao 8o Distrito Naval para atender uma cadela da raça Rottweiller que ninguém conseguia tirar de sua baia, devido à sua suposta agressividade. Lá chegando, realmente havia um animal que aparentava extrema agressividade. Porém, após fazer o teste de agressividade, percebi ser apenas um cão que estava sendo potencializado a agir daquela forma. Entrei com a manga de treinamento em sua baia, sem desviar, em nenhum momento, o olhar dos olhos dela e dizendo em tom alto a palavra “não”. Ela recuou e consegui passar a coleira em seu pescoço, agradando-a e a levando para passear. Começamos aí a formar um vínculo entre nós. Vale lembrar que o adestrador dela estava fazendo o curso para se tornar mais um excelente profissional e cinófilo, como é da tradição daquele curso. Houve ainda outra oportunidade, agora ministrando o mesmo curso, mas para o Batalhão de Infantaria da Força Aérea Brasileira (BINFA), de São José dos Campos-SP. Cheguei sozinho ao canil e dei de frente com um cão da raça Rottweiller dentro de uma baia. O cão parecia o verdadeiro Cérbero6 e, como instigou minha curiosidade, fui ao seu 6 CÉRBERO - Na mitologia grega, Cérbero ou Cerberus (em grego, Κέρβερος – Kerberos = “demónio do poço”) era um monstruoso cão de múltiplas cabeças que guardava a entrada do inferno (mundo Guia de Comportamento Canino 27 encontro para aplicar o teste de agressividade. O cão se classificou com louvor na segunda categoria. Mais tarde, no momento em que estava ministrando a aula de comportamento canino, havia um aluno da Polícia Militar do Estado de São Paulo que, não acreditando em mim e sem saber que já havia feito o teste naquele cão, me desafiou a pegá-lo, dizendo que era impossível controlar aquele animal. Descobri então que o cão havia chegado no dia anterior ao canil. Fora necessário um caminhão com dois cambões7 e dois adestradores segurando o animal, que aparentemente fora expulso até da porta do inferno (que absurdo, e sendo trazido por duas pessoas que se diziam profissionais do adestramento). Ao fim, foram três horas de aula com o Cérbero ao meu lado, sem focinheira, sem cambão e se parecendo mais com o Snoopy8 incompreendido que com qualquer outra coisa. Um excelente exemplo didático para a ocasião. Bem, como todo desafio conquistado merece uma recompensa, no final da aula, tivemos um belo churrasco e, obviamente, como é da tradição militar, o boy 9 “pagou” muita flexão de braços,castigo obrigatório nas Forças Militares. inferior), o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem, e despedaçando os mortais que por lá se aventurassem. 7 CAMBÃO – Instrumento útil que, usado por quem sabe, pode segurar cães e contê-los com segurança para quem o faz. 8 SNOOPY – Apareceu pela primeira vez em 1950, criado nos Estados Unidos pelo cartunista Charles Schulz. Era inicialmente personagem de tiras de jornais, mas alcançou um sucesso tão grande que se tornou desenho animado em 1965. 9 BOY – Palavra da língua inglesa que significa menino. No meio militar brasileiro, é usado como gíria, denotando inexperiência, independente da patente. Usado pejorativamente também para uma pessoa que está tendo atitude infantil, seja no julgamento ou ação. Evander Bueno de Lima 28 Guia de Comportamento Canino 29 ÓRGÃO VOMERONASAL O órgão vomeronasal, ou órgão de Jacobson, encontra-se conectado à cavidade bucal pelo ducto incisivo (com exceção dos equinos). A função desta estrutura é aumentar a sensibilidade de quimiorrecepção nas espécies domésticas e selvagens. Esta estrutura ajuda a detectar mensagens na forma de odor e também a medir interações sociais, tais como acasalamento, cuidados com a prole e agressividade com rivais. Mais especificamente, componentes líquidos e aerossóis de baixa volatilidade, denominados feromônios, podem ser detectados, influenciando as funções hormonais e reprodutiva, assim como o comportamento sexual de machos e fêmeas. Os feromônios distinguem-se dos hormônios, que são liberados internamente e exercem influência sobre o metabolismo do indivíduo. Já os feromônios são liberados externamente, com atividade sobre indivíduos da mesma espécie. Os feromônios podem adentrar no órgão em questão via lambedura, ingestão oral ou inalação direta. Os sinais concebidos pelo epitélio vomeronasal são enviados para um bulbo olfatório acessório, que, na maior parte das espécies, age como o primeiro centro de integração neural para o sistema sensorial vomeronasal. A capacidade olfativa do cão é tão surpreendente que ele consegue até diagnosticar o câncer com base no hálito de um paciente. Ele possui cerca de 200 milhões de células receptoras de odores, contra apenas 5 milhões presentes nos homens, o que os torna farejadores 40 vezes mais eficientes que nós. Esses odores, quando capturados pela sua respiração, são capazes de identificar o mais leve aroma e transformá-lo em mensagens químicas mandadas ao cérebro, que possui uma boa parte dedicada à interpretação de cheiros. Em seres humanos, estudos anatômicos têm evidenciado que o órgão vomeronasal regride ao passo que o feto se desenvolve. O mesmo ocorre em outros mamíferos, como os primatas, cetáceos e certas espécies de morcegos. Evander Bueno de Lima 30 Em seres humanos adultos, não há presença de evidências científicas de conexão neural entre o vomeronasal e o sistema nervoso central. Existe, porém, a presença de uma diminuta estrutura no septo nasal de alguns indivíduos e a presença do osso vômer, o que leva um grupo de pesquisadores a acreditar que essa estrutura represente um órgão vomeronasal funcional. Guia de Comportamento Canino 31 CÃES TÊM CIÚMES? Há alguns poucos estudos sugerindo a presença de ciúmes nos cães, normalmente disseminados por algumas mídias sensacionalistas e por relatos de casos que acabam por tomar uma proporção descabida. Esse conjunto tenta criar uma suposta verdade. Porém, a bem da questão, existe uma infinidade de artigos científicos, tanto no Brasil quanto no exterior, que comprova que a única espécie que tem ciúmes é o ser humano. Sendo assim, até que se prove o contrário, sou um fiel adepto da crença de que não existem ciúmes em cães. Pelo que se lê, a grande maioria de pesquisadores, sejam veterinários, médicos, biólogos ou psicólogos, também são contra a ideia da presença de ciúmes nos cães. Acredito ser mais um grande problema de antropomorfismo do que realmente o sentimento em si. São muitos os clientes que me procuram para relatar “sérios” problemas destes supostos ciúmes com seus cães. Volto a afirmar que os cães são, em grande parte, o reflexo de seus donos, que depositam nesses pobres animais todos os seus problemas emocionais. Caberia aí deixar aos psicólogos – especializados em humanos – fazerem seu trabalho. Sempre digo em minhas consultas e aos colegas de profissão que o cão deveria entrar em meu ambulatório e, ao lado, paralelamente, o proprietário deveria sentar no divã do psicólogo ou psicanalista. Assim seria o paraíso para o terapeuta veterinário e a solução do problema do cão. Nesses casos, sempre inicio a conversa pedindo para que o proprietário me responda se ele (a) é ciumento (a) e que me descreva o que ele (a) sente quando está com ciúmes. Em seguida, vem, por parte do proprietário, a descrição de um aglomerado de sentimentos envolvendo amor, ódio, vingança, planejamento para o futuro (“agora, vou fazer desta forma”), autopiedade (“coitado de mim, eu não merecia isto”) entre tantos outros. Pergunto então se ele realmente acredita que o cão tem os mesmos sentimentos, ainda que minimamente. Perceba que, se esses sentimentos não existirem no cão, não se trata de ciúmes, mas sim de um comportamento potencializado, em que o cão ganha, no final, a tão esperada interação social. Os cães são animais sociáveis e por isto querem estar sempre próximos, recebendo atenção. Assim, ao descobrirem que, com este comportamento (que o dono identifica como “ciúmes”), eles acabam ganhando um “tadinho, está com ciúmes, vem cá com a mamãe/papai”, juntamente com afagos e beijos a mais, eles o farão repetidamente. Evander Bueno de Lima 32 Guia de Comportamento Canino 33 Esse comportamento irá potencializar este tipo de situação e palavras, virando um start comportamental, controlado pelo sistema nervoso autônomo, o que nos leva ao condicionamento clássico de Ivan Pavlov10. Lembre-se de que os cães possuem uma inteligência associativa muito grande, mas não planejam seu futuro. Eles não têm autopiedade e vivem com suas memórias e associações dia após dia. Para exemplificar este sentimento, costumo citar as situações em que os animais algumas vezes são expostos a perigos por alguns proprietários, acredito que não por maldade, mas sim por distração. Como por exemplo, deixá-lo preso dentro do carro sob um sol escaldante, enquanto faz compras e, ao voltar, nota-se que o cão está fatigado, estressado e desidratado, sem forças sequer para levantar. Ainda assim, ele consegue abanar sua cauda de felicidade por ver seu dono que o deixou preso nestas condições inóspitas. Vendo isso pergunto: É possível haver neste ser vivo um sentimento diferente de um amor incondicional? E se fosse um ser humano, submetido por outro, a estas mesmas condições, como o receberia? Cães não guardam rancor nem ficam magoados por terem sido repreendidos. O fato de não terem recebido carinho e atenção, no momento em que agrado outro animal ou pessoa, não irá gerar sentimento de animosidade. Acredito que se trata de sentimentos menos complexos, em que a sua demonstração de “ciúmes” é apenas um comportamento de interação social, potencializado por nossas atitudes conscientes e inconscientes. Conscientes, no momento em que se fala: “tadinho, o Tob está com ciúmes, vem aqui”, e isto o faz perceber que a atitude que teve gerou a atenção de que ele tanto gosta. E, inconscientemente, quando eu transfiro para o animal o que eu sentiria se esta situação estivesse acontecendo comigo. 10 Ivan Petrovich Pavlov – Foi premiado com o Nobel de Fisiologia ouMedicina, de 1904, por suas descobertas sobre os processos digestivos de animais. Ivan Pavlov veio, no entanto, a entrar para a história por sua pesquisa em um campo que se apresentou a ele quase que por acaso: o papel do condicionamento na psicologia do comportamento (reflexo condicionado). Na década de 1920, ao estudar a produção de saliva em cães expostos a diversos tipos de estímulos palatares, Pavlov percebeu que, com o tempo, a salivação passava a ocorrer diante de situações e estímulos que anteriormente não causavam tal comportamento (como, por exemplo, o som dos passos de seu assistente ou a apresentação da tigela de alimento). Curioso, realizou experimentos em situações controladas de laboratório e, com base nessas observações, teorizou e enunciou o mecanismo do condicionamento clássico. Evander Bueno de Lima 34 Desta forma, acredito que o animal demonstre um comportamento de ciúmes, mas não que ele tenha o sentimento de ciúmes. É preciso perceber que, de um comportamento associativo, por meio do qual se consegue maior interação social e atenção, até chegar ao sentimento de ciúmes, existe uma distância evolutiva muito grande. Mais uma vez, vejo o antropomorfismo como um grande problema comportamental para os cães, pois essa atitude faz com que eles adquiram um comportamento não específico à sua espécie, promovendo um desiquilíbrio familiar. Quantas famílias não deixam de sair ou passear por causa de seu cão de estimação que não pode ficar sozinhos em casa? E quantas me procuram porque não podem viajar, caso contrário seu animal faz greve de fome? Nesse último caso, sempre pergunto ao cliente se ele já ouviu alguma vez, em algum noticiário no telejornal, um repórter informando que um cão em depressão tenha se matado Guia de Comportamento Canino 35 por fazer greve de fome em protesto a viagem da família? Nunca, não é mesmo? E, realmente, o animal não entra em depressão porque a família foi viajar sem ele e nem fica se sentindo excluído e, por isso, para de comer, tamanha a sua autocomiseração. Na verdade, se os outros membros da família ficarem, por exemplo, duas semanas fora, o cão realmente pode vir a diminuir muito a quantidade de alimento ingerido e até a perder peso. Porém, isso não ocorre por depressão, mas sim porque o cão tem capacidade de ingerir apenas a quantidade calórica que necessita para a manutenção basal do seu organismo. Só que, muitas vezes, nos lares ou canis, o alimento passa a ser um motivo de brincadeira e distração em ambientes pobres de atividades e de interação social com seu dono, e isso leva o cão a ingerir mais alimento industrializado que realmente seu organismo necessita, levando-o ao sobrepeso. No caso da família que utiliza o alimento para a interação com o animal, sempre os estimulando a comerem mais que o necessário, quando eles estão ausentes, essa interação não acontece e o animal come apenas o que o organismo necessita para sobreviver e, por isso, emagrece. Mais uma vez, as nossas dependências psicológicas nos fazem acreditar que o animal emagreceu sentindo a nossa ausência, e mais uma vez, o antropomorfismo está presente de forma prejudicial ao relacionamento familiar. Evander Bueno de Lima 36 Guia de Comportamento Canino 37 ANTROPOMORFISMO Antropomorfismo é a atitude de se atribuir características humanas (ou que se presume serem humanas) a outros animais, a objetos inanimados, fenômenos da natureza, estados materiais, objetos ou conceitos abstratos, como organizações, governos, espíritos ou divindades. O termo é uma combinação de duas palavras, antropos (homem) e morfé (forma), e acredita-se que tenha sido originalmente cunhado pelo filósofo grego Xenófanes, que procurava descrever a semelhança entre crentes religiosos e seus deuses. Atualmente, os animais de estimação estão assumindo um papel diferenciado nas relações intrafamiliares no que se refere, principalmente, a esta humanização exagerada. Entre outras razões, essa relação é impulsionada, segundo Oliveira (2006), também pela relação de mercado entre homem e animal de estimação. Indo ao encontro de Miller (2002) e de Carvalho (2012), aquele autor concluiu que proprietários que possuem maior vínculo antropomórfico com seus animais tendem a gastar mais dinheiro com eles. O antropomorfismo é definido também como a atitude de atribuir-se um estado mental humano (pensamentos, sentimentos, motivações e crenças) a animais não humanos. Essa atitude, segundo Serpell (2013), está presente de maneira praticamente universal entre os possuidores de animais, inclusive entre os proprietários de animais de estimação. Nessa perspectiva, enquadram-se aqueles proprietários que veem seus animais de estimação como membros da família, chegando, em muitos casos, a serem tratados como filhos humanos (COHEN, 2002; CORNWELL et al., 2008; HILL et al., 2008; HOLBROOK, 2008; KENNEDY; MOSTELLER, 2008). Nesse caso, o papel desses animais, no contexto familiar, é o de satisfazer às necessidades humanas de companhia, amizade, amor incondicional e afeto (DOTSON; HYATT, 2008). Já Smith (2009), descreve a relação entre homem e animal de estimação como sendo caracterizada por um excessivo cuidado durante um longo período de tempo, em que os animais de estimação estão inclusos nas normas do amor familiar, bem como na idealização de uma grande amizade por parte do proprietário. Evander Bueno de Lima 38 O ato de o cão fornecer amor, segurança e, principalmente, suporte emocional para um membro ou para toda a família, surge como um grande benefício para o ser humano (ECKSTEIN, 2000). Mosteller (2008) corrobora três subtipos de relações, inicialmente descritos por Hirschman (1994), entre homens e os animais de estimação. No primeiro subtipo, os animais são apresentados com uma extensão da pessoa (Self11), de modo que o comportamento do animal é utilizado para representar as características do comportamento do proprietário. Como exemplo, um cão dócil e amável com crianças dá a impressão de que seu dono tem as mesmas características. No segundo, os animais são tratados como extensão da família, não sendo considerados como posse, mas sim como um membro familiar, participando de atividades diárias da família. Assim, assistem televisão, têm acesso a todos os locais do domicílio e, até mesmo, são motivo de festas familiares. No terceiro, o animal é tido como um amigo e desperta grande apego emocional em seu proprietário. Enfim, chegamos a um ponto que acredito ser fundamental para o grande desequilíbrio que muitos proprietários relatam no relacionamento interespécie. Como já dissemos, o grande problema comportamental dos animais domésticos, em sua grande maioria, é, na verdade, problema dos proprietários que, a meu ver, tentam suprir necessidades e carências emocionais humanas por meio de seus cães de estimação. Assim, acabam adotando-os como filhos, colocando sapatinhos e gravatas, e fazendo bolo de aniversário e grandes festas, ingenuamente acreditando que o raciocínio do animal está entendendo tudo e que, sendo assim, ele será mais grato ou dará mais carinho e amor. O período de socialização dos cães tem um enorme reflexo no decorrer de sua vida e no relacionamento que ele terá com outros humanos e animais. Segundo Lantzman (2007), corroborado por Bekoff (2010), o período para termos o estabelecimento de uma relação afetiva sadia deve ser de, no mínimo, 45 dias de convivência com a mãe. Ser separado precocemente de sua família pode desencadear diversas frustrações no animal e isso pode vir, futuramente, a provocar alguns comportamentos fora do normal. Em seres humanos, frustrações de primeira infância podem refletir na forma como eles desenvolverão suas relações futuras que serão, possivelmente, torneadas por um sentimento de carência. Em função desta característica emocional, estes indivíduostendem a adquirir animais que possuam atributos que requeiram maiores cuidados, como os menores animais 11 SELF – Projeção de si mesmo. Guia de Comportamento Canino 39 da ninhada, os isolados, os abandonados, os extremamente jovens e/ou debilitados em função de sequelas físicas ou com algum histórico de sofrimento12. Noto, nas consultas de comportamento, uma enorme necessidade, por parte do proprietário, de colocar nos cães sentimentos inexistentes neles (ciúmes, autopiedade etc.). É como uma válvula de escape, uma fuga da realidade, como uma supressão de ansiedade. E tudo isso acaba se transferindo para seu cão, como uma dependência doentia e desnecessária. Por sorte, a grande maioria dos clientes entende que realmente são eles os grandes culpados pelo comportamento equivocado, necessitando de poucas sessões para notarem o quanto o comportamento que os levou à queixa era, nada mais e nada menos, que uma ação potencializada. Depois de reparada essa ação, percebe-se uma mudança saudável na vida da família. Quando não corrigida a ação, por uma minoria de clientes que acreditam fielmente que seu animal só falta falar, o cão, ao demonstrar o afeto que o dono deseja, também reforça o desenvolvimento de um comportamento ansioso em si próprio, passando a sentir-se bem apenas com a presença do cuidador excessivamente atencioso (BEHAN, 2012). Sempre corroborei a ideia de Behan (2012), em que ele afirma que o seu cachorro é seu espelho. Por esse motivo, quando um cliente entra em minha sala, reclamando que seu cão é muito chato, sempre brinco, antes de se prolongarem as reclamações, dizendo que é melhor esperar a consulta terminar, pois seu cão é, na verdade, seu reflexo. Obviamente, esta afirmação possui muitas variáveis, mas noto realmente haver uma enorme semelhança, quando os proprietários resolvem contar que agem da mesma forma. Essa dependência, que o proprietário/cuidador desenvolve ao perceber que o animal depende dele, intensifica a Teoria do Apego. Essa ideia se caracteriza pela tendência da espécie humana a desenvolver relações de apego, herdadas de uma função biológica de sobrevivência no ambiente evolucionário de adaptação desde o nascimento. O apego é uma disposição para buscar proximidade e contato com uma figura específica e seu aspecto central é o estabelecimento do senso de segurança. Seu princípio mais importante declara que um recém-nascido precisa desenvolver um relacionamento com, pelo menos, um cuidador primário para que seu desenvolvimento social e emocional ocorra normalmente. A Teoria do Apego é um estudo interdisciplinar que abrange os campos das teorias psicológica, evolutiva e etológica. Dessa forma, o proprietário desenvolve uma relação 12 Para maiores informações sobre esse assunto ver: FREUD, (1995); GRAEFF, (1993); MICHAUX, (1968); NORWOOD, (1985) ou RAPPAPORT; FIORI; HERZBERG (1981). Evander Bueno de Lima 40 com o cão na qual tenta suprir todas as necessidades do animal, antes mesmo que elas surjam, não tomando ciência de que, de fato, a necessidade que está latente de suprimento é a do próprio cuidador, uma vez que sua relação de apego não foi contingente na infância. Em outras palavras, ele tenta, dessa forma, preencher a sua própria insegurança (RIBAS; MOURA, 2004). Esse relacionamento e a insegurança do proprietário são transmitidos ao cão. O animal absorve a informação e traduz o que compreende por meio do comportamento ansioso, inquieto, levando aos sinais da Síndrome de Ansiedade de Separação (SAS), requerendo a atenção máxima da figura de apego na qual desenvolveu seu vínculo mais próximo, no caso, o proprietário (MILLAN, 2007). Essa relação homem – cão, envolta de antropomorfismo e humanização demasiada nos cães, com hipervinculação excessiva e frustrações psicológicas primárias humanas, levará ao estabelecimento de alterações psicológicas e comportamentais nos cães. Assim, os proprietários se tornam potencializadores dos sintomas no animal por não compreenderem ao certo a origem de seus próprios sentimentos e por desenvolverem um nível de afeto exacerbado em relação ao seu cão, voltado às suas próprias necessidades, que o impedem de agir e intervir adequadamente na busca da promoção da saúde psicológica do cão (PEREIRA, 2014). Grande parte das ideias sobre o antropomorfismo apresentadas aqui, foram escritas baseando-se no belíssimo trabalho da psicóloga e médica veterinária Dra. Juliana Dias Pereira, uma estudiosa sobre a SAS (Síndrome de Ansiedade de Separação) que demonstra muito talento e competência para escrever sobre o assunto e também do pesquisador Roberto Luiz da Silva Carvalho, Professor da Universidade Federal do Amazonas, que estuda os aspectos sociais e a relação entre animais de estimação e consumo. Guia de Comportamento Canino 41 EDUCANDO O CÃO COMO MEMBRO DA FAMÍLIA. ENSINANDO OS LIMITES. Ao pensarmos em adquirir o nosso cãozinho, já devemos ter em mente a linha do raciocínio associativo e do reforço positivo. Apenas assim, a aquisição se dará de maneira responsável e consciente. Devemos, desde o primeiro momento, planejar sua educação e seu condicionamento à nossa casa e às pessoas que nela habitam. Lembre-se sempre de que, para manter o lar equilibrado com a chegada de um cão, é preciso realizar essa adaptação do animal. Para isto, temos que educá-lo bem e ensinar a ele o que pode e o que não pode ser feito de forma ativa. É preciso colocar em prática a Lei do Efeito, por meio de vários exercícios que vão guiar as suas ações e ajustá-lo à rotina na casa. O mesmo pode ser dito quanto ao seu comportamento, pois o meio em que vive sempre terá uma enorme influência no molde do seu caráter. Algumas coisas jamais podem ser feitas na educação de seu animal. Então, antes de começar a educá-lo, preste muita atenção nos seguintes pontos: - Não use frases longas, isso vai deixá-lo confuso. Utilize palavras curtas e sempre as mesmas para as mesmas ações; - Ao repreendê-lo, não diga seu nome. Por exemplo: “Tob, seu feio, não faça isso”. Lembre-se de que o cão tem um raciocínio associativo. Ser repreendido ouvindo seu próprio nome pode fazer com que ele constitua uma personalidade insegura. Imagine que ele houve: “Tob, não faça isso”, mas também escuta “Vem cá, Tob, meu querido”. “Tob” passa a ser a palavra a qual ele fixará, mas sem saber o que vem depois. É muito comum ver proprietários chamando seu cão e o mesmo relutando para atender até que perceba se vai receber uma ação aversiva ou não. Em contrapartida, quando for recompensá-lo ou agradá-lo, repita bastante seu nome, pois isso ficará fixado como algo positivo. Assim, ele virá sempre que for chamado. Como dissemos, e nunca é demais repetir, para educar o animal, precisamos fazer com que ele se adapte a casa e às pessoas e não ao contrário. Assim, se, por exemplo, antes da vinda do cãozinho, como citado no início do livro, a porta da cozinha ficava aberta quando havia alguém lá e agora, com sua chegada, estamos fechando-a para que ele não entre, na Evander Bueno de Lima 42 verdade estamos ensinando que, quando a porta estiver aberta, é para ele entrar (e começamos errado, pois estamos mudando a rotina da casa). O que devemos fazer é educá-lo, mostrando que ele só pode entrar quando for chamado. Da mesma maneira, ele só pode sair quando dermos o comando a ele. Parece complicado, mas é tão simples e rápido que bastam apenas algumas repetições de treinamento para que ele consiga entender o que queremos. Vários são os exercícios que poderiam ser descritos como exemplificação de adestramentos específicos, mas o intuito dos que se seguem é que sejam apenas uma forma de fixarmos e entendermos melhor como devemos conduzir a educação do animal, deixando sempre claro o quequeremos dele. Existem muitas publicações de adestradores que ensinam várias técnicas de adestramento para serem realizados em casa. Sugiro estes livros ou até mesmo a contratação de um profissional adestrador para que se consiga educar o animal da melhor forma possível. O intuito deste livro é mostrar a forma de raciocínio dos animais, assim como apontar algumas observações sobre seus cruzamentos e algumas técnicas de avaliações comportamentais. Dentro desse intuito, podemos realizar os exercícios que seguem. Guia de Comportamento Canino 43 ENSINANDO A NÃO ENTRAR EM CASA. Sente em uma cadeira na cozinha e deixe o animal para fora com a porta aberta sem se preocupar com ele. No momento em que ele estiver passando a cabeça do batente da porta, é hora de repreendê-lo com energia. Olhe no olho dele e diga a palavra “não” ou mesmo “para fora”, com uma entonação forte de quem realmente está mandando e quer que isso seja cumprido. Ele pode ainda não entender, então se levante e coloque-o de maneira firme para fora da cozinha novamente. Observe bem a reação dele. Se, no momento da bronca ou mesmo poucos instantes depois, ele vier brincando, você está fazendo de forma errada. Ele não está respeitando você e não o está vendo como o líder. Isso quer dizer que ele entenderá essa situação como uma interação social e isso potencializará o ato dele entrar. Ao contrário, se ele ficou um pouco assustado ou confuso com a sua entonação de voz e com a sua atitude, então volte para seu lugar na cadeira e aguarde novamente sem dar atenção a ele até que ele volte e tente entrar novamente. Aguarde sua cabeça passar do batente da porta (alguns adestradores indicam colocar uma linha limítrofe entre um batente e outro) e, quando isto acontecer novamente, tenha a mesma atitude enérgica com a voz e, se preciso, fisicamente. A partir da segunda tentativa, ele começara a entender o limite em que não está atrapalhando o líder e então em poucas outras tentativas, ele estará deitado com a cabeça no limite permitido (no caso o batente da porta). É muito importante, ao fazer esse ou qualquer outro exercício, que as ordens sejam claras e objetivas. Caso contrário, seu animal ficará confuso e você não terá sucesso na educação. Assim, não se deve dizer o “não” enquanto ele estiver andando no quintal e nem quando estiver indo em direção à porta. Lembre-se de apenas se manifestar no momento em que a cabeça dele passar o batente. Desta forma, ele entenderá de imediato qual é o seu limite. No momento em que ele estiver calmo e no seu limite, agrade-o, elogie-o ou mesmo dê a ele um biscoito de cão como reforço positivo. Isto fará ele se sentir mais estimulado em obedecer (Lei do Efeito). Não imagine que conseguindo fazer isso ele jamais entrará em sua cozinha, pois, quando estiver sozinho, ele irá entrar se a porta estiver aberta. A grande intenção dos exercícios é mostrar de quem é a liderança e colocar limites. Acreditem! Essa demonstração de liderança Evander Bueno de Lima 44 sempre estará ocorrendo, seja por parte dos proprietários, seja por parte do animal. Fazendo uma analogia, imagine uma criança que vai pegar um doce na cozinha na hora errada e seus pais dizem não. Se ela conhecer os limites, irá obedecer, porém, depois, se voltar à cozinha e ninguém estiver lá, ela irá comer o tão desejado doce. Guia de Comportamento Canino 45 ENSINANDO A NÃO PEGAR OBJETOS COMO CHINELOS, SAPATOS, ETC. Sente-se em um local e deixe um chinelo próximo a você e, sem dar atenção ao cão, mexa no objeto de forma que ele perceba e que possa se interessar. No momento em que ele for brincar com o chinelo, repreenda-o dizendo “não” de maneira firme e não permita esta brincadeira. Isto fará com que ele comece a perceber um efeito aversivo ao objeto. Isso o levará a uma associação de que não pode brincar com este ou qualquer outro objeto que estaremos usando para o condicionamento. Ao mesmo tempo, ofereça um brinquedo de cão que ele possa morder e recompense-o muito quando ele o pegar. Estimule-o e elogie-o para que ele associe algo positivo à ação e também para que perceba que, com esta ação, estará agradando o seu líder e formando uma interação social. Evander Bueno de Lima 46 Guia de Comportamento Canino 47 ENSINANDO A URINAR NO LOCAL CORRETO Este, com certeza, é um dos grandes problemas que os proprietários enfrentam quando adquirem um cão de estimação, seja o primeiro ou um novo. A micção desordenada em lugares como sofá, tapetes, pés de mesa, brinquedos, enfim, em qualquer parte da casa, deixa, além do cheiro desagradável, uma situação insustentável para um bom relacionamento. Como se sabe, o cão usa a micção para a demarcação de território. É também algo típico de cadelas no cio, pois esse ato deixa no ambiente muitos feromônios. A marcação de território é um comportamento apresentado por machos e fêmeas, mas a maior incidência desse tipo de ação ocorre com os machos. É com essa atitude que eles vão mostrar o quanto de testosterona têm para intimidar algum invasor ou mesmo colocar sua “marca registrada” no ambiente em que vivem. A castração dos cães é um fator que pode amenizar um pouco esse comportamento em cerca de 80% dos casos. Não há, pois, garantia de que a micção desordenada cesse e muitos cachorros seguem executando as ações características de marcação territorial mesmo depois de castrados. O ideal é que a castração seja realizada antes que o animal atinja sua maturidade sexual, já que assim as chances de que ele se torne um marcador de território frenético diminuem consideravelmente. No entanto, como dissemos, a castração não é uma garantia e, portanto, ensinar regras e impor limites para o seu animal continua sendo a melhor saída. Temos que nos atentar para as mudanças que ocorrem no ambiente, pois isso aguça o instinto canino e torna-se quase obrigatória uma nova demarcação com urina. Tudo o que for novo para o cão líder, como objetos ou até mesmo pessoas novas na casa, fará com que ele mostre que essa área já tem dono. Contando com um faro absolutamente aguçado, os cachorros têm, no cheiro de sua urina, o ingrediente perfeito para se comunicar com outros animais, mostrando que naquele local específico quem manda é ele. Por meio do olfato, outros animais que passarem pelo território demarcado poderão notar que não são bem-vindos naquele ambiente. No caso das fêmeas, a receptividade sexual é a principal mensagem enviada com esse comportamento, já que – assim como a urina dos cães machos – as substâncias e os feromônios presentes na urina das fêmeas no cio anunciam, por grandes distâncias, a sua Evander Bueno de Lima 48 disponibilidade para o acasalamento. Em casos assim, o controle do cão é ainda mais importante, já que a cadela pode atrair um grande grupo de machos, que tentarão marcar território a todo custo nas redondezas para garantir seu domínio sobre aquela fêmea. Cachorros que ficam muito sozinhos em casa e se sentem abandonados também podem desenvolver o comportamento de marcação territorial. Nem sempre isso é sinal do aparecimento de alguma complicação psicológica já que, ao ficar rodeado por espaços que contam com a sua “marca registrada”, os cães se sentem mais seguros, construindo e melhorando sua autoconfiança. Entre as principais características deste comportamento instintivo dos cães está o fato de que, na demarcação de território, a urina é liberada pelo animal em quantidade bem pequena – ao contrário de quando o animal precisa, simplesmente, fazer suas necessidades fisiológicas. Outro fator que pode ajudar a diferenciar uma ação de desobediência ou falta de treinamento da marcação territorial é, justamente, o local onde o “recado” é deixado. Móveis, outros cães e até mesmo pessoas podem acabar vítimas de uma urinada do cão que quer marcar território.
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