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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS (DUDU DE MORRO AGUDO) RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB TECENDO REDES EDUCATIVAS NITERÓI/RJ - 2020 FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS (DUDU DE MORRO AGUDO) RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB TECENDO REDES EDUCATIVAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFF, como requisito obrigatório para obtenção de título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Estudos dos Cotidianos da Educação Popular (ECEP). Orientadora: ProfªDrª. Nivea Andrade Niterói-RJ 2020 Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164 S586r Silva assis, Flávio Eduardo da Rap na Baixada, rap no mundo : O RapLab tecendo redes educativas / Flávio Eduardo da Silva assis ; Nivea Maria da Silva Andrade, orientadora. Niterói, 2020. 107 p. : il. Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2020.m.07513064792 1. Rap. 2. Narrativa. 3. Juventude. 4. Rodas de Conversa. 5. Produção intelectual. I. Silva Andrade, Nivea Maria da, orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD - FLÁVIO EDUARDO DA SILVA ASSIS (DUDU DE MORRO AGUDO) RAP NA BAIXADA, RAP NO MUNDO - O RAPLAB TECENDO REDES EDUCATIVAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFF, como requisito obrigatório para obtenção de título de Mestre em Educação. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________ Dra. Nivea Maria da Silva Andrade – UFF Orientadora ____________________________________________________________ Dr. Valter Filé (José Valter Pereira) – UFF Membro Interno ____________________________________________________________ Dra. Adriana Facina Gurgel do Amaral – UFRJ Membro Externo ____________________________________________________________ Dr. João Luiz Guerreiro Mendes – IFRJ Membro Externo AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus e a meu pai Xangô, em quem deposito minha fé particular. Quem ilumina os caminhos trilhados e distribui gratuitamente forças para superar os obstáculos. À minha mãe e meu pai (in memoriam), Lúcia e Guilherme, parceiros da vida, pelo apoio incondicional, pelo incentivo, paciência e pela criação que tive. Pela visão de mundo que me ajudaram a desenvolver, lutando sempre contra as injustiças, por um mundo melhor e mais amoroso. À Fernanda Rocha, minha companheira, pelas fortes palavras de incentivo que não me deixaram esmorecer por nem um minuto, pela paciência e compreensão durante este intenso processo que passamos juntos. Aos meus filhos Beatriz Dias e Eduardo Rocha por renovarem minhas esperanças a cada dia. Ao meu amigo de outras vidas, Samuca Azevedo, sempre presente, colaborador e disposto a ouvir e refletir comigo durante horas sobre as tracks dessa dissertação. À CAPES por tornar possível o desenvolvimento desta e tantas outras importantes pesquisas. À UFF e a todos os funcionários que me deram grande suporte durante esses dois intensos anos, em especial a Secretaria da PPGEdu e os terceirizados. À minha orientadora, que realmente me orientou nesse mergulho sem precedentes na minha vida, Dra Nivea Andrade, obrigado pela competência, humildade, amizade e coerência com os princípios de uma educação libertadora, obrigado por estar ao meu lado em todos os momentos desta pesquisa. Seus elogios me fizeram acreditar que era possível, e suas cobranças me encheram de coragem para mergulhar cada vez mais fundo nos estudos com os cotidianos. Você é uma pessoa iluminada. Aos membros da banca pela pronta disponibilidade e contribuições assertivas e cuidadosas: Valter Filé, Adriana Facina e João Guerreiro, muito obrigado. Aos educadores Antônio Feitoza e Cleber Gonçalves, profissionais da educação que, mesmo diante de tantos desafios, não esmorecem e continuam na luta. Aos sujeitos dessa pesquisa que me acolheram de forma afetuosa em todos os nossos encontros e com os quais vivi experiências únicas que levarei por toda a minha vida. Aos amigos do Quilombo Enraizados pelo incentivo, pela torcida e pela ajuda: DJ Dorgo, Imperatriz, Moonjay, Lisa Castro, Laica, I Go, Marcelo Peregrino, TK, Caslu, Fitu, Átomo, Ninja, Ocibar, Einstein NRC, LC e tantos outros. Aos amigos que conheci no Mestrado, com os quais aprendi, ensinei e dividi momentos únicos, em especial Beto, meu camarada pra vida, que mostrou os pontos de fuga nos momentos mais tensos dessa caminhada. Às amigas do grupo de pesquisa JICs que me deram as mãos em todos os momentos: Patrícia Temporim, por me acolher desde o primeiro dia, indicando os caminhos menos nebulosos; Bia e Julia pela paciência na minha preparação para a qualificação. Aos amigos do hip hop, em especial Mad, Slow da BF, FML, Átomo, DJ Moska, Luck, DMC e Cacau, por compartilharem suas histórias e vivências do hip hop na Baixada Fluminense. RESUMO Esta pesquisa busca narrar o desenrolar dos encontros com jovens moradores das periferias do Rio de Janeiro, dentro e fora do ambiente escolar, para a prática do RapLab, uma atividade que provoca a produção do conhecimento em rede através do rap, numa experimentação de composição coletiva a partir de uma roda de conversa onde discute-se um tema proposto pelos próprios jovens. São esses encontros, que embolam arte com educação, rua com escola, educandos e educadores que pretendo narrar no decorrer da pesquisa, onde tento refletir sobre: Como essa composição coletiva se desenvolve? Quais os seus efeitos e desdobramentos possíveis? O que também importa nessa pesquisa é a movimentação da juventude periférica e suas táticas contra a subalternidade, seu protagonismo, entre outras inúmeras situações que aparecem durante esses encontros. Ouço e leio a todo tempo que nos estudos com os cotidianos as certezas não existem, mas é na prática que percebemos os encantos e desesperos de se pesquisar com os cotidianos. Tenho aprendido que pesquisar com os cotidianos é se preparar para os entroncamentos e bifurcações, é caminhar pelo desconhecido, é ir sem saber pra onde está indo e por isso ter de redobrar as atenções, principalmente nos detalhes, nas sobras. É olhar, quando possível, para onde ninguém quer olhar, é tatear, ouvir, falar, silenciar, dar importância para o que muitos acham que não tem importância. A metodologia utilizada são as conversas, apesar de admitir que, como diz Nilda Alves, "em relação ao método, tenho que começar por admitir que estou sempre cheio de dúvidas e sobre ele tenho muito que aprender" (ALVES, 2001. p14). A pesquisa utilizou o apoio teórico em autores como Nilda Alves, Paulo Freire, Spivaki, bellhooks, entre outros. Palavras-chave: conhecimento em rede, rap, narrativa, rodas de conversa, juventude. ABSTRACT This study seeks to narrate the unfolding of encounters, both within and outside of the school environment, with young residents of Rio de Janeiro’s peripheries as a part of RapLab, an activity and methodology that promotes knowledge networks through the experience of collectively composing a rap song based on group discussions of a theme chosen by the youth. I aim to detail these encounters, which intertwine art and education, the street and the classroom, learners and educators, through a reflectionon the following questions: How does this collective composition develop? What are its positive effects and outcomes? This study also takes into account the maneuvering of youth from the periphery and their strategies of agency and against subalternity that emerged during these encounters. I always hear and read that in research with everyday life there are no certainties, but rather that it is in practice that we perceive the joys and despairs of doing research with everyday life. I have learned that research with everyday life is preparing ourselves for crossroads and bifurcations, is walking towards the unknown, is going without knowing to where, and that’s why we redouble our attention, especially of details and the obscured. It’s looking, whenever possible, where no one else has looked before and feeling, listening, speaking, silencing and giving importance to that which many feel is unimportant. This project utilized conversations as a methodology, despite admitting that, just as Nilda Alves states, “as far as method is concerned, I have to begin by admitting that I am always full of doubt and still have much to learn” (ALVES, 2001. p14). This study uses a theoretical framework based on the work of Alves, Paulo Freire, Spivak, bellhooks, and others. Key-words: knowledge networks, rap, narrative, group discussions, youth LISTA DE IMAGENS Figura 1 - Cena do filme 'Na Ondas do Break' [Beat Street], de 1984 ........................................ 18 Figura 2 - Foto publicada no Jornal O São Gonçalo, em 26 de novembro de 2001, com alguns dos primeiros jovens integrantes do Enraizados, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Bolinho, K2 e Pluto. .......................................................................................................................................... 34 Figura 3 - Foto publicada no Jornal O Dia, em 14 de maio de 2006, com alguns dos primeiros integrantes do Enraizados em Morro Agudo, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Velho, Kall Gomes, Short, Suellen Casticini, Léo da XIII, Lisa Castro e Átomo. ......................................... 35 Figura 4- Jovens participantes do RapLab, durante a campanha Jovem Negro Vivo .................. 42 Figura 5 - Equipamentos utilizados durante a atividade RapLab................................................. 45 Figura 6 - Estudantes experimentando a Mashine ....................................................................... 47 Figura 7 - Estudantes participando do RapLab ............................................................................ 51 Figura 8 - Personagem criado por um dos jovens que participou da atividade, inspirado na roda de conversa e na composição da música ...................................................................................... 53 Figura 9 - Jovens se apresentando na escola enquanto outros alunos assistem .......................... 67 Figura 10- Jovens participantes do RapLab cantando no show ................................................... 88 Figura 11 - Encontro RapLab na Gávea ....................................................................................... 94 Figura 12 - Meninas gravando durante o RapLab ........................................................................ 98 Figura 13- Mad, DMC e Simone Oliveira, no Quilombo Enraizados. Novas histórias sobre o hip hop na Baixada Fluminense ....................................................................................................... 100 SUMÁRIO INTRO ..................................................................................................................................... 10 TRACK 01 - HISTÓRIAS DO HIP HOP ............................................................................ 16 TRACK 01:01:00 – O HIP HOP NA BAIXADA FLUMINENSE ...................................... 21 TRACK 01:02:00 - EU SOU DE MORRO AGUDO ........................................................... 28 TRACK 01:03:00 - ENRAIZADOS: UMA ESCOLA DE HIP HOP? ................................ 33 TRACK 02 - O RAPLAB COMO UM PROVOCADOR DE CONVERSA PARA UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: (COMO TERMINA UMA CONVERSA?) ................. 44 TRACK 02:01:00 - O RAP E A EDUCAÇÃO: QUANDO APRENDER FAZ SENTIDO 54 TRACK 02:02:00 - CONVERSAS E DISPUTAS NO AMBIENTE ESCOLAR ............... 59 TRACK 02:03:00 - TESSITURA DE NOVOS CONHECIMENTOS ................................ 63 TRACK 03 - JOVENS SUBALTERNIZADOS E A ARTE COMO TÁTICA CONTRA A SUBALTERNIDADE (PESQUISADOR E MILITANTE) ............................................ 69 TRACK 03:01:00 – A LINGUA: DANDO UM PAPO DIRETO E RETO ......................... 84 TRACK 03:02:00 – AS PRETAS E OS PRETOS ............................................................... 90 SAMPLEANDO ...................................................................................................................... 99 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 103 10 INTRO RIO 2017 NA BAIXADA HÁ DECADÊNCIA NO TRANSPORTE, ESQUECIMENTO JÁ É NATURAL NA ZONA "MORTE" O CAOS IMPERA E PRA GENTE NINGUÉM LIGA JUVENTUDE PERTURBADA NÃO SABE SE É DANDARA OU FRIDA. SOFRIDA. ÀS QUATRO A DONA MARIA NO JAPERI VIDA CORRIDA. TRAMPAR OU SORRIR? UPP TÁ AÍ, TEMOS QUE DISCUTIR. VEIO PROTEGER OU PRA TIRAR MINHA VIDA? A POLÍCIA ESCULACHA SEM DÓ, E O PIOR, O B.O. TEM GENTE QUE DUVIDA. O BOYZINHO TÁ NA PRAIA SOB O SOL DO SAARA OS HOMENS [POLICIAIS] ME PARAM COM O CANO NA CARA LEMBRA O FATO? 174. RETRATO. CENTRAL. CANDELÁRIA, NOVA IGUAÇU, VIGÁRIO GERAL UM RIO DESIGUAL ENTRE O ÓDIO E O AMOR 2017 E AQUI NADA MUDOU. NADA MUDOU, SANGUE NA VIELA MAIS UMA MORTE, CHORO NA FAVELA. A AMBULÂNCIA NÃO SOCORREU NÃO RESISTIU, ELE FALECEU. DESDE MENOR ACOSTUMADO CARICATURA, RETRATO-FALADO REALIDADE DIFERENTE DA TV NÃO É O QUE ELES MOSTRAM PRA VOCÊ DIFÍCIL CRESCER ENTRE MONSTROS, FAZENDO O BEM, E NÃO SE CORROMPER. POLÍTICO ROUBA MERENDA, SER CONDENADO É LENDA. SEGURANÇA É MAIOR CAÔ, OS CANAS BATEM EM PROFESSOR. 11 E AÊ DOUTOR ENGRAVATADO, ANDA DE CARRO IMPORTADO ROUBA O DINHEIRO DO POVO E EU PEGO O BUSÃO LOTADO. CHEGA!!! NÃO VOU MAIS ME OMITIR VOU CUSPIR TUDO O QUE EU GUARDO, CÊS VÃO TER QUE ME ENGOLIR. Dei muitas voltas pra começar a escrever esta introdução, não sabia como e por onde começar, pois são muitas as ideias permeando minha cabeça simultaneamente para encontrar uma forma de apresentar este início de pesquisa. Optei pela redundância de começar pelo começo, do que primeiro me veio à cabeça, soltando os fios um a um, tentando fazer com que aos poucos este mosaico se torne inteligível, por isso inicio apresentando o trecho de uma música composta coletivamente por onze jovens (Inbute, Léo da XIII, Soneca, Baltar, Torrxs, Oreo, 15, Marcão Baixada, Ruiva, Olem X e Einstein NRC) moradores da Baixada Fluminense1 e da Zona Norte, onde, durante uma roda de conversa, falaram sobre seus bairros a partir de suas experiências e vivências, orientados pelo desafio de projetar como seria a vida nestes locais após os Jogos Olímpicos que aconteceram no Rio de Janeiro em 2016. Durante o processo, esses jovens, que considero importante frisar que não são quaisquer jovens, mas jovens moradores de periferia, lugares onde os direitos básicos quase sempre são negados, produziram conhecimento sobre seus bairros, juntos. Discutiram, disputaram, trocaram, aprenderam e ensinaram uns com os outros, produziram conhecimento em rede (ALVES, 2005). Antes de mais nada, gostaria de dizer que me esforcei para escolher um trecho da música "Rio 2017", mas concluí que apenas um trecho não refletiria a complexidade da mensagem desta música, por isso preferi deixá-la na íntegra. Esta música éa sobra da conversa que foi estabelecida entre esses jovens. É o resultado do que depois de muita disputa, sobrou. É a parte democrática do processo de aprendizado, onde, se não todos, pelos menos a maioria concordou e assim, só assim, eternizaram essa discussão na letra desta música. Música esta que é um misto de sentimentos e significações, ao mesmo tempo que é crítica é um protesto. É também um grito de socorro, uma homenagem, uma proposta de esperança e um chamamento para a luta contra toda e qualquer força hegemônica. 1Baixada Fluminense é o nome que se dá à região em redor do município do Rio de Janeiro, englobando 13 municípios, totalizando cerca de 4 milhões de habitantes. 12 Gostaria de chamar a atenção para o fato de esta ser uma música que só foi possível ser tecida por esses onze jovens, naquele espaçotempo2. Essa prática, que provoca a produção do conhecimento em rede através do rap, chama-se RapLab, e são esses encontros que embolam arte com educação, rua com escola, educandos e educadores que pretendo narrar no decorrer desta pesquisa, tentando analisar e responder: De que maneira esta prática compõe coletivamente? Quais os seus efeitos e desdobramentos? Seria possível educadores fazerem uma conexão entre essa composição e o chamado currículo escolar? Os depoimentos de Cleber Gonçalves e de Mariana Paixão, professores de CIEPs em Morro Agudo, Nova Iguaçu e Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, após a realização desta atividade em suas escolas, me fazem acreditar que sim, contudo, não pretendo com esta pesquisa, de forma alguma, considerar o RapLab como uma atividade mágica que solucionará os problemas da educação no país. Muito pelo contrário, a ideia aqui é apresentar uma atividade que talvez possa somar com outras milhares no projeto de educação democrática. Tento aqui escrever para todos, "narrar a vida e literaturizar a ciência" (ALVES, 2001), no desejo de que esta pesquisa seja lida e compartilhada por artistas do hip hop, educadores e educandos, e que possa contribuir de alguma forma com a comunidade escolar, aproximando a cultura hip hop e a educação, evidenciando que esta é uma relação intrínseca. Os primeiros encontros do RapLab dentro das escolas se deram por conta do convite dos educadores Cleber Gonçalves e Antônio Feitoza, que desejavam proporcionar uma experiência diferenciada para os estudantes da escola em que trabalham. Considero importante também, me apresentar, mesmo que rapidamente, para explicar o porquê do desejo em trabalhar com o rap nesta pesquisa. Me chamo Flávio 2No campo dos cotidianos utilizasse comumente palavras escritas de forma aglutinada, como: ‘aprenderensinar’, ‘espaçostempos’, ‘práticasteorias’,entre outras. A professora Nilda Alves nos explica que:“Para mostrar a única possibilidade de existência desses termos − um tem relação com o outro e só existe nesta relação – os juntei em uma única palavra.” (ALVES, 2001). “Dessa maneira busca superar a dicotomia herdada do período no qual se “construiu” a ciência moderna” (ALVES, 2003). 13 Eduardo, sou conhecido no mundo hip hop como Dudu de Morro Agudo, por residir no bairro Morro Agudo, em Nova Iguaçu. Sou rapper desde os 14 anos de idade e coordeno uma instituição de hip hop chamada Instituto Enraizados, com sede também em Morro Agudo, onde são comuns os encontros com - e entre - jovens e a prática de produção colaborativa. Inicialmente, quando me veio a ideia de iniciar o mestrado, não pensava em pesquisar o RapLab como um espaçotempo de produção de conhecimento em rede, pois acreditava se tratar de uma outra coisa, talvez um método ou uma técnica de composição (o que também pode ser). A partir do momento que começamos a praticá-lo também dentro de escolas, passei a acreditar que poderia ser uma ferramenta para auxiliar os professores e estudantes em suas aulas (o que também pode ser). Mas ao iniciar a pesquisa fui aprendendo com a ajuda de Nilda Alves, que na pesquisa com os cotidianos "preciso executar um mergulho com todos os sentidos no que desejo estudar", além de se fazer necessário "ampliar o que é entendido como fonte e a discussão sobre os modos de lidar com a diversidade, o diferente e o heterogêneo", e que "o conjunto de teorias, categorias, conceitos e noções que herdamos da ciência moderna, são limites" (ALVES, 2001, p.15). Fazendo o movimento de teoriapraticateoria, mergulhando mais fundo nos encontros e dialogando com autores como Paulo Freire, que me apresentou a educação como prática de liberdade, fui percebendo que a riqueza do RapLab está também no processo, nas conversas, nas diferentes lógicas e nas múltiplas reflexões, na impossibilidade de definir seu rumo, e que apesar de ter um planejamento, este não é engessado, possibilitando que os encontros aconteçam sempre de forma diferente, mesmo que com as mesmas pessoas. Ouço e leio a todo tempo que nas pesquisas com os cotidianos as certezas não existem, mas é na prática que você vai percebendo os encantos e desesperos de se pesquisar com os cotidianos. Tenho aprendido que pesquisar com os cotidianos é se preparar para os entroncamentos e bifurcações, é caminhar pelo desconhecido. Como expliquei no resumo, é ir sem saber pra onde está indo e por isso ter de redobrar as atenções, principalmente nos detalhes, nas sobras. É olhar, quando possível, para onde 14 ninguém quer olhar, é tatear, ouvir, falar, silenciar, dar importância para o que muitos acham que não tem importância. Como diz Nilda Alves, "em relação ao método, tenho que começar por admitir que estou sempre cheio de dúvidas e sobre ele tenho muito que aprender" (ALVES, 2001. p14), contudo vou me utilizando das conversas com os jovens, cujos resultados são sempre imprevisíveis. Nesta pesquisa dialogo com diferentes autores, que pensam a partir de perspectivas bem diferentes, inclusive são de regiões diferentes, Spivaki, da Índia, bellhooks, dos Estados Unidos, Paulo Freire e Nilda Alves que apesar de serem do Brasil, ainda assim tem suas diferenças, entre outros. Nilda Alves se diferencia bastante de todos eles, onde a bellhooks não tem uma perspectiva marxista, mas dialoga com Paulo Freire, que é marxista, assim como a Spivaki. Mas eu acredito, assim como Nilda Alves nos ensina, que precisamos virar de ponta a cabeça, beber em todas as fontes, pois nos cotidianos a teoria não pode ser apoio, mas algo que a gente vai além, sendo assim, posso trabalhar com esses autores. No primeiro capítulo, que tratamos aqui como “Track 01” para fazer alusão a um termo usado nas produções musicais de hip hop, que serve para enumerar as faixas musicais de um disco, tento contextualizar a cultura hip hop arriscando fazer de forma resumida uma apresentação da cultura hip hop desde sua criação, no bairro do Bronx, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, até chegar em Morro Agudo, Nova Iguaçu, no Brasil, assim como apresentar alguns dos personagens que, segundo a história oficial, fundamentaram esta cultura. Conto uma das diversas possíveis histórias do hip hop na região da Baixada Fluminense, as peculiaridades dos bairros de periferia, as táticas (CERTEAU, 1998) da juventude do hip hop, e o processo de produção do conhecimento em rede pelos participantes do Instituto Enraizados. Apresento com mais detalhes como se dá a prática do RapLab e como a pesquisa com os cotidianos foi transformando o meu entendimento sobre o que era esta prática. No Track 02 conto como o RapLab foi parar dentro da escola e narro uma série de encontros com os jovens, onde fui percebendo a horizontalidade nas rodas de conversa, o protagonismo dos mesmos, as táticas para burlar as regras, além de aprender 15 a valorizar o conhecimento que os estudantetraziam de suas vivências; o esforço dos educadores Cleber Gonçalves e Antônio Feitoza que buscam um projeto de educação democrática ao criaram maneiras de levar os estudantes para perambular (ANDRADE, 2014) pela cidade, acreditando que o aprenderensinar é possível em toda parte, não somente dentro dos muros da escola, gerando assim um currículo escolar que vai muito além do capital cultural (BOURDIEU, 1998). No Track 03 narro os encontros com os jovens fora do ambiente escolar, e com a ajuda de Spivaki (2010), tento discutir a arte como tática contra a subalternidade e se os encontros do RapLab podem potencializar a emancipação desses jovens. Tento também entender os movimentos da juventude - e o papel do pesquisador - contra a subalternidade. Também busco com a ajuda de Fanon (2008) e bellhooks (2017) olhar mais atentamente para as táticas da juventude preta contra o racismo. 16 TRACK 01 - HISTÓRIAS DO HIP HOP O hip hop, como todo movimento entrelaçado à história da diáspora africana, carrega consigo muitas histórias em torno da sua criação, localizadas no Atlântico negro como nos lembra Paul Gilroy (GILROY, 2001). Histórias que não têm origem em um ponto fixo no tempo e no espaço, mas sempre se encontram. Por isso trarei aqui alguns personagens da cultura hip hop, que aparecem em várias narrativas difundidas entre os praticantes desta manifestação cultural. No filme documentário Hip Hop Evolution (2016), o DJ Grand Wizzard Theodore, do grupo Fantastic Five, narra a sua versão do hip hop, contando que este foi criado por Kool Herc na década de 70, nos guetos dos Estados Unidos, mais precisamente no bairro do Bronx: "No South Bronx, onde morávamos, as pessoas estavam sofrendo. Havia pais solteiros vivendo da assistência social. As pessoas não trabalhavam, não havia empregos. Não dava pra ir em certas áreas. Nessa, naquela... Havia assassinatos, assaltos. Pessoas eram mortas pela polícia, pessoas pegando prisão perpétua. Era aquele ponto de ebulição de dar à luz a alguma coisa do nada. E de toda a turbulência e agitação, nasceu o hip hop". Kool Herc nasceu em Kingston, Jamaica, e foi morar em Nova Iorque, nos Estados Unidos, no fim dos anos 60. Ele já trabalhava com música em seu país de origem, onde os Sound Systems eram comuns. Os Sound Systems são equipes de som compostas por grandes caixas de som empilhadas, muito parecidas com as equipes de som dos bailes funks da década de 90 no Rio de Janeiro. Em Nova Iorque, Herc começou a levar a cultura jamaicana para as ruas do Bronx, sendo, segundo esta narrativa, o responsável pelo surgimento das Block Parties3, da popularização dos Sound Systems e da inserção dos toasters nas suas festas. Os toasters eram os mestres de cerimônia, os artistas responsáveis por apresentar as atrações e animar as festas, muito comuns na Jamaica, eles rimavam sobre assuntos polêmicos como sexo, drogas e a violência nas ruas de Kingston (LEAL, 2007, p.20-28). Kool Herc, ainda segundo a narrativa do documentário, também foi o responsável por uma técnica performática, utilizando dois discos vinis idênticos, onde ele mixava as músicas num loop, dando a impressão de uma música instrumental 3Block Parties são festas de rua. 17 infinita. Ele batizou essa técnica de breakbeat, técnica esta que em seguida foi aderida por vários outros DJs, como Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa. Este último foi considerado o responsável por unir os quatro elementos que caracterizam esta manifestação cultural: o rap, o break, o DJ e o graffiti. Segundo consta na história oficial, Bambaataa foi também quem batizou esta manifestação com o nome de hip hop. A narrativa difundida pelo documentário conta ainda que em 1973, Kool Herc fez a festa de aniversário de 16 anos de sua irmã, sendo esta considerada a primeira festa de hip hop do mundo, tornando-se manifestação muito popular no Bronx. No dia 12 de novembro do mesmo ano, o DJ Afrika Bambaataa fundou a Universal Zulu Nation, considerada por muitos como a primeira organização de hip hop, cujo objetivo era promover encontros, palestras e aulas, com o intuito de transformar positivamente o comportamento dos integrantes das gangues de rua (LEAL, 2007). Ainda seguindo esta narrativa cronológica, Sérgio Leal (2007), também conhecido no hip hop brasileiro como DJ TR, conta que em 1983, o break dance, um estilo de dança vindo do Bronx, chegou em São Paulo, e um ano depois, a partir também da estréia do filme "Na Onda do Break" nos cinemas, se espalhou por todo o Brasil, tomando conta do imaginário de parte da juventude. "Em solo brasileiro [...] os nomes que primeiro saltam à língua quando se quer falar de continuadores do hip-hop afro norte-americano são Nelson Triunfo, Thayde e DJ Hum, Ataliba e a Firma e Racionais MCs” (MESSIAS, 2015, p.26). Conforme nos conta Cesar Alves (2004), Nelson Triunfo nasceu em Pernambuco, mas na década de 70 morou na Bahia, no Distrito Federal e em São Paulo, onde, após se envolver com a soul music, formou o grupo Black Soul Brothers e logo depois formou o grupo de dança Funk & Cia. 18 Figura 1 - Cena do filme 'Na Ondas do Break' [Beat Street], de 1984 Fonte:Hulle Brasil Nelson Triunfo, em entrevista cedida ao escritor Alessandro Buzo4, conta a sua história do início do hip hop no Brasil: Entre 1983 e 1984, muitos guardas implicavam com a gente, por isso não tínhamos um lugar definido para dançar, mas geralmente ficávamos na região central. [...] Na maioria das vezes, ficávamos ali nos arredores das ruas 24 de maio, Barão de Itapetinga e Dom José de Barros, ali na Praça da República. Às vezes, dançávamos na Sé. [...] A roda de break nas ruas, cresceu e logo apareceu na mídia, em jornais e revistas. Ainda em 1984, essa repercussão levou a gente para a televisão, quando eu e outros b.boys5 participamos da abertura da novela Partido Alto, misturando movimentos de break com passos de samba. [...] Em 1985, tive um problema de saúde, machuquei o joelho e precisei me afastar um pouco da dança. Foi quando o João Break e o Luizinho, irmão dele, levaram o break para a estação São Bento do metrô. E ali se formou o embrião do hip hop brasileiro, porque o espaço começou a se popularizar e a atrair muita gente que hoje é referência nacional, como os Racionais, Thaide, o Dj Hum, os grafiteiros Osgemeos, o Marcelinho Back Spin e muitas outras pessoas. (BUZO, 2010, p25-26) Embora essas narrativas tenham essas datas, elas tem origem e redes muitos anteriores, como por exemplo em movimentos e manifestações musicais da diáspora negra da década de 70, como o soul music, que tem a ver com toda a discussão de uma cultura negra. Quando esses jovens brasileiros, na década de 80, se aproximaram do break 4 Alessandro Buzo é um escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta brasileiro. Disponível em: http://editoranos.com.br/nossos-autores/alessandro-buzo. Acesso em: 17 mar. 2019. 5 Bboys são dançarinos de break dance, um dos elementos do hip hop. 19 estadunidense foi porque eles já traziam consigo essa dimensão da corporeidade, de uma dança negra que foi muito discriminada por estar relacionada ao mexer o corpo, que data da chegada dos africanos no Brasil, a partir do Atlântico negro, onde “as formas culturais estereofônicas, bilíngües ou bifocais foram originadas pelos – mas não mais propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória (GILROY, 2001, p.35)”. Essas histórias do hip hop tem a ver com demandas de corporeidade, de musicalidade, que são bem anteriores a chegada do hip hop oficialmente no Brasil na década de 80, com raízes na diáspora negra.A estação de metrô São Bento, em São Paulo, hoje é considerada pelos praticantes como o berço do hip hop brasileiro, onde além da dança, se desenvolveram também os outros elementos do hip hop, como o graffiti, o DJ e o rap, e onde, como já foi dito, pela ótica da história oficial, iniciaram os pioneiros do hip hop no país, como Thaíde, que começou sua carreira como dançarino de break e depois migrou para o rap, atualmente também é apresentador de TV. [Na] década de 1980, o adolescente Altair Gonçalves [que mais tarde assumiria como nome artístico Thaíde] despertou de sua sonolência graças à chamada de uma reportagem no já tradicional Comando da Madrugada [...]. Do alto do beliche no barraco que dividia com seus pais, mais três famílias, várias crianças e cachorros [...]. A reportagem tinha como tema um dos hoje clássicos bailes blacks que aconteciam nos anos 70 e 80. No centro, um grupo formava uma roda onde exibia um verdadeiro espetáculo de movimentos robóticos e bem ensaiados, tendo à frente uma figura de sotaque nordestino e ostentando uma enorme cabeleira blackpower [Nelson Triunfo] (ALVES, 2004, p7-8). Percebe-se que o hip hop aparece tanto no Bronx quanto em São Paulo como uma possibilidade de protagonismo para os jovens das periferias e rapidamente vai se espalhando em rede, conectando outros e outros jovens, que juntos treinam, ensinam e aprendem as técnicas de dança, DJ, graffiti e rap. Ele se espalha justamente porque se conecta às redes desses jovens, que são anteriores a uma invenção do hip hop, que tem a ver com essa relação diaspórica. No Rio de Janeiro, no início da década de 90, o hip hop ganhou maior projeção a partir do rap, com a criação da ATCON (Associação Hip Hop - Atitude Consciente). Em 1992, no Rio, organizara-se pela mobilização popular e contra o racismo, a ATCON - Associação Atitude Consciência e daí surgiu o grupo Consciência Urbana, liderado por Big Richard; NAT; Poesia Sobre Ruínas; Damas do Rap; Filhos do Gueto; Gabriel O Pensador e Geração Futuro, 20 liderada por MV Bill. (MESSIAS, 2015, P.26) Essa é uma dentre tantas outras histórias, mas achei importante resgatar um pouco dessa dimensão para fazer o movimento de pensar o hip hop na Baixada Fluminense. 21 TRACK 01:01:00 – O HIP HOP NA BAIXADA FLUMINENSE É um desafio enorme fazer uma história do hip hop na Baixada Fluminense, quase uma aventura, visto que a história dita oficial sobre o hip hop no Estado do Rio de Janeiro, que foi publicada em alguns livros e revistas, não passa por esta região. Se resume, como foi dito no capítulo anterior, na criação da ATCON nos anos 90, na cidade do Rio de Janeiro. É bom lembrar que a ATCON tem sua importância, principalmente enquanto movimento político, contudo “sua característica se baseia quase que 100% no elemento rap (LEAL, 2007, p.50)” e assim as histórias do hip hop na Baixada Fluminense ficaram mais uma vez à sombra do Rio de Janeiro. Tive que mergulhar em águas profundas para fazer essa conexão com o passado. Para isso precisei conversar com pessoas que viveram os primórdios do hip hop na Baixada Fluminense e que ainda hoje estão em atividade, praticando suas artes. São eles: Wladimir Augusto Silva de Souza (Mad) 50 anos; Luiz Cláudio Pontes os Santos (Slow da BF), 46 anos; Julio Cesar de Oliveira da Silva, (DJ Moska) 40 anos; Fagner Medeiros de Lima (FML), 37 anos. A ideia aqui é tecer uma narrativa, de forma cronológica, a partir das conversas que tive individualmente com esses importantes personagens, e então montar o mosaico a partir das interseções destas conversas até conectar com a tal história oficial, em meados dos anos 90. Inicialmente eu queria pensar essa historia única, entretanto a conversa com eles me ajudou a entender que esta não existe, pois a cada passo que eu dava em direção ao passado do hip hop na Baixada Fluminense, que em parte é meu passado, eu o via em movimento. Abri mão de tentar tornar esta a história oficial do hip hop da Baixada Fluminense, para torná-la mais uma das histórias, porque para além de uma única história há uma série de pessoas que estão trabalhando para que essas manifestações culturais aconteçam. Entendi os perigos da “história única, que cria estereótipos. E o problema dos estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história” (ADICHIE, 2009). Sendo assim, durante as conversas fui guiado de volta ao passado e logo no início garantiram-me que é quase impossível saber quem realmente foi o precursor ou quem foram os precursores do hip hop na Baixada Fluminense, assim como é 22 impossível afirmar, ainda que haja uma narrativa oficial, que a origem geográfica do hip hop está no Bronx ou em qualquer outro lugar, pois assim como toda a música negra, a origem é diaspórica, se dá no Atlântico negro (GILROY, 2001). Se o processo de educação se dá em rede, entendo então que um foi aprendendo com o outro, entendendo com o outro, ouvindo o outro, se auto influenciando, e ainda que o Bronx tenha sido muito importante, as influencias de outras temporalidades e de outros espaços geográficos para o desenvolvimento do hip hop foi muito grande. Paul Gilroy nos conta que “a cultura hip hop foi fruto mais da fecundação cruzada das culturas vernaculares africano-americanas com seus equivalentes caribenhos do que do florescimento pleno formado das entranhas do blues. O catalisador imediato para o seu desenvolvimento foi a relocação de Clive “Kool DJ Herc” Campbell de Kingston para a rua 168 no Bronx. A dinâmica sincrética da forma foi ainda complicada por uma contribuição claramente hispânica e uma apropriação dos movimentos de break dance que ajudaram a definir o estilo em seus estágios iniciais” (GILROY, 2001, p.211) Na Baixada Fluminense não foi diferente, pois se hoje é difícil transitar por este extenso território por conta da precariedade dos transportes públicos, imaginemos como era difícil também a comunicação entre esses jovens no início dos anos 80, período que eles narram suas histórias. Acreditam que certamente existiram jovens, como eles à época, em bairros afastados, praticando isoladamente um dos elementos do hip hop, sendo influenciados por suas redes e demandas, por que o hip hop chegava nas juventudes por diversas vias, desde as escolas, os bailes, os novos vizinhos e parentes vindos de outras cidades, fita k7, VHS e TV a cabo para os mais abastados. O DJ, o break e o rap chegaram na Baixada Fluminense pelas vias musicais, de forma separada, e por último chegou o graffiti. No início dos anos 80, segundo Mad, a ideia do hip hop difundido nos Estados Unidos, com quatro elementos, ainda não era tão popular por aqui, apesar da juventude brasileira já se relacionar com eles. No fim dos anos 80, com a popularização dos discos lançados em São Paulo, ficou mais nítido que, nos Estados Unidos, esses quatro elementos faziam parte de uma mesma cultura. Mad, morador do bairro Chatuba, em Mesquita, no passado dançou break e cantou rap. Atualmente é formado em produção cultural no Instituto Federal do Rio de Janeiro e pesquisa o movimento soul na Baixada Fluminense. Conta que uma das 23 poucas diversões para os jovens da Baixada Fluminense nos anos 70 era o baile soul, mas que ele chegou no baile já na virada do soul para o eletrofunk, em 1982. A primeira vez que eu cheguei no baile devia ser meado de 82, tinha um grupo de dança que eu não esqueço o nome, era Dance Funk New [...] Tinha um concurso de dança que movimentava a cidade, no Mesquita Futebol Clube, [...] Vinha grupo de diversos bairros dali de Mesquita, da Chatuba, da Coréia, de Banco de Areia, de Santo Elias, que iam disputar entre si ali e iam ganhar o troféu, não vou dizer do melhor, mas o destaque do momento. [...] E eu entrei no baile e elesdançavam um passe, e num determinado momento da música eles param o passe e começam a dançar [como] um robô, meio arcaico, muito arcaico. Aí quando eu vi esse robô, que já era um prenúncio do break, eu fiquei muito impactado com aquilo. [...] A minha mãe perdeu a gente naquele momento, eu e meu irmão entramos no baile uma noite e dali pra frente a gente passou nossa juventude indo pra esse baile que era o Mesquita Futebol Clube. [...] O eletrofunk trouxe pra nós o primeiro elemento do hip hop, que é o break. (MAD, 2019) Slow da BF, que morou em Nilópolis, São João de Meriti e Duque de Caxias quando criança, começou muito cedo a frequentar as feiras de discos e os bailes porque seu pai era DJ (é até hoje). DJ Moska, que morava em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e mudou-se para a cidade de Queimados ainda criança, nos conta que também teve a influência de um DJ, mas nesse caso foi o seu tio, que freqüentava os bailes soul e também fez a transição para o eletrofunk. Todas as músicas que tocavam no baile, também tocavam na sua casa. A presença do DJ foi de total importância tanto nesta transição do baile soul para o eletrofunk quanto nas transições futuras até chegarmos ao modelo de baile funk no qual o hip hop da Baixada Fluminense foi forjado. Os DJs de baile não eram como os DJs de hip hop, porque esse sempre foi uma figura muito difícil. O Mad nos conta que teve vários grupos e nunca teve um DJ. O DJ que estava inserido dentro do contexto do hip hop era aquele que faz scratch6, que faz back to back7, que domina as pickups8, isto é, um DJ de performance. Já os DJs de baile tinham como principal função mixar uma música com a outra e eram eles que traziam as novidades musicais de fora do Brasil, e um disco bastante importante, que fez parte da infância e da formação artística tanto do Mad quanto do Slow e do DJ Moska, foi o disco Planet Rock, do Afrika Bambaata. É importante ressaltar a importância dos DJs nesse contexto, visto que eles entendiam as redes e a demandas das pessoas da Baixada Fluminense e a partir daí 6 Scratch é uma técnica utilizada pelos DJs produzir sons ao movimentar o disco de vinil pra frente e pra trás, arranhando-o com a agulha. 7 Back to back é uma técnica utilizada pelos DJs para repetir um trecho da música a partir de duas cópias do mesmo vinil. 8 Toca discos. 24 apresentavam músicas que se entrelaçavam com essas redes e que tinham a ver com as demandas desses jovens. Os DJs foram personagens fundamentais para o movimento hip hop no Brasil, contudo sem as demandas da juventude da Baixada Fluminense, sem a história da música negra brasileira, sem o movimento soul, talvez o hip hop não encontrasse a força necessária para se desenvolver por aqui, pois ainda que aqui chegue coisas de fora, elas precisam de alguma forma se relacionar com as nossas redes, pois nossas redes estão sendo tecidas há muito tempo. Nos anos de 1984 e 1985 aconteceu no Brasil inteiro a chamada “febre do break”, por diversos motivos, dentre eles a própria demanda da juventude, mas também por causa de filmes como o Beat Street9. Slow da BF chama as pessoas que dançavam break antes dessa data de “foras da curva”, e o Mad era um “fora da curva”. Todas essas rodas de break começaram em 84 e 85. Os casos mais raros são antes disso [...] Todo mundo que fez antes de 84 e 85 era fora da curva. São as pessoas mais importantes porque eles realmente começaram, por algum motivo, antes da Febre do Break. O Luck deve ter começado em 84 e 85, mas em 87 ele já tinha uma crew, já tinha um grupinho. O Genaro também. (SLOW DA BF, 2019) Luck, que atualmente mora no Bronx, em Nova Iorque, é considerado hoje um dos mais importantes nomes do break no Rio de Janeiro, fundou o GBCR (Grupo de Break Consciente da Rocinha), mas é oriundo do bairro Austin, em Nova Iguaçu, onde começou a dançar por volta do ano de 1984 e, em 1986 começou a se desenvolver na dança com a ajuda do Mad, que migrou da Chatuba para Austin, porque os bailes em Mesquita começaram a mudar o formato, segundo ele, não valorizando mais os dançarinos de break. Em 1986 eu vou pra Austin, onde conheço o Luck e o Genaro, conheço o Punk, o Dionísio, uma galera que dançava em Austin, [...] Parecia que era outro tempo, quando eu cheguei em Austin. Parecia que eu estava há dois, três anos atrás, no meu baile [...] nessa época que eu cheguei em Austin o pessoal já não estava mais dançando break em Mesquita, a gente precisava procurar outros ares pra dançar, porque não tinha mais referência de break na minha cidade. A galera já estava naquela onda de trenzinho [...]Quando eu cheguei em Austin, todo mundo veio falar comigo, aí eu virei pros meninos e falei: - A gente é famoso aqui hein?! (MAD, 2019) Em 1987, mesmo antes de saber da existência da cultura hip hop, Slow da BF começava a arriscar suas primeiras composições de rap dentro da escola. Mesmo os dançarinos de break e os DJs da Baixada Fluminense que já estavam em atividade, não identificavam o que eles faziam como elementos que estavam inseridos no modelo de cultura hip hop norte americana. 9 Beat Street é um filme de 1984 que mostrar a cultura do hip hop de Nova Iorque. 25 Eu era muito bom na escola. Eu fazia redação e ficava pensando, antes de saber que existia hip hop, que se eu conseguisse colocar rima nas coisas que eu escrevia, aquilo ia parecer com o que aqueles caras estavam cantando. (SLOW DA BF, 2019) A partir de 1988, alguns dançarinos de break começaram também a cantar rap, e um dos possíveis motivos foi o fato de a “gravadora Eldorado ter lançado a coletânea Hip Hop Cultura de Rua, revelando grandes nomes do rap nacional, como Thaíde e DJ Hum (LEAL, 2007, p.154)”. Essa coletânea se espalhou por todo o Brasil e entrou com força na Baixada Fluminense fazendo com que muitos jovens que praticavam outras manifestações culturais sofressem uma metamorfose e começassem a migrar para o rap, como por exemplo o Cacau Amaral, que tinha uma banda punk fundada em 1985 e então fundou o grupo Baixada Brothers ao lado do DJ DMC, que por sua vez vinha do skate. Aconteceram alguns movimentos na cidade do Rio de Janeiro nessa época, uns encontros na rua da Carioca, liderados pelo DJ Malboro e em seguida na Praça Sans Pena, na Tijuca, liderados por Def Yuri, e o Mad participou, além desses encontros, também de alguns encontros da ATCON anos depois. O primeiro movimento foi na Carioca em 88, depois em 89 aconteceu o movimento da Sans Pena, e como eu trabalhava na Sans Pena, todo sábado estava ali dançando e fazendo um som. E eu lembro que foi depois disso que eu subi num palco pela primeira vez. Num palco de baile funk. (MAD, 2019) Os bailes funks se tornaram a casa do hip hop na Baixada Fluminense, não tinha como diferenciar o funk do hip hop. Era tudo uma coisa só. Era lá que os dançarinos de break se encontravam pra dançar, onde os MCs cantavam suas letras e os DJs mixavam suas músicas, e o entendimento de que aquilo fazia parte de uma mesma cultura chamada hip hop ia ficando mais nítido. Eu comecei a ter noção das coisas quando eu descobri o Thaíde, porque nas letras dele falava de hip hop. Pra mim, foi o cara que me deu o primeiro start do que era essa parada. Ele era um B.Boy que cantava rap e tinha um DJ atuante, e a união dessas coisas que era hip hop. Eu sempre gostei muito de pesquisar, tinhas as revistas antigas, então eu fui descobrindo o hip hop por isso, ouvindo disco, o que os caras falavam e pesquisando literatura, em coisas escritas em jornais e revistas, porque não tinha muita mídia, não tinha internet e eu não ia pra São Paulo. Lá em São Paulo era muito mais forte que aqui. (SLOW DA BF, 2019) Nos bailes funk da Baixada Fluminense, o Miami Bass, isto é, as músicas mais dançantes, mais rápidas, que segundo a históriaoficial vinham do sudeste da Flórida, nos Estados Unidos, era chamado de funk, enquanto as músicas mais lentas, com batidas arrastadas, que vinham de Nova Iorque, eram conhecidas como “rasteiro”. Eram as músicas de artistas como o Ice T, KRS One etc, e que hoje há o entendimento 26 de que tanto o Miami Bass quanto o rasteiro, eram somente rap de regiões diferentes dos Estados Unidos. Durante a década de 90 houve uma disputa entre os MCs de funk e os MCs de hip hop, onde os MCs de funk diziam que cantavam rap e os rappers, que eram os MCs do hip hop, começaram a dizer que cantavam hip hop. Naquela época a gente tinha que se destacar da galera do funk. Começou a separar o Miami Bass da galera que fazia o Def, mais pra Nova Iorque. A galera do funk dizia que cantava rap e a gente dizia que cantava hip hop. Hoje eu discordo de mim mesmo totalmente, em gênero, número e grau. Era tudo rap, a galera fazia uma rima, era periférico, era de uma galera preta. Num momento a gente vai se dividir porque a gente não queria ser igual a essa rapaziada do funk. (MAD, 2019) O elemento do hip hop que demorou a chegar na Baixada Fluminense foi o graffiti, como nos conta Mad: Mas aqui na Baixada Fluminense a gente não desenvolvia um elemento do hip hop, que foi o último a chegar, o graffiti. Esse a gente demorou muito a entender, a gente ouvia falar dessa parada de graffiti, até por que a gente tinha visto “Beat Street”, que trouxe todos esses elementos, mas no Rio de Janeiro não existia grafiteiro. O primeiro grafiteiro que eu vi na minha vida foi o Paulo, que é de Realengo. O cara que começou a pintar, que me fez entender o que era o graffiti, mas a primeira vez que eu fui em São Paulo, em 1990, já tinha grafiteiro, já tinha os riscos, não com essa intensidade, com Spray, porque Spray era uma coisa difícil, mas a galera já estava pintando de uma forma, porque lá tinha esse entendimento e aqui a gente tava boiando nessas questões dos elementos do hip hop. (MAD, 2019) O grafiteiro FML, morador de Austin, percebeu os elementos do hip hop como fios soltos. Começou ouvindo rap no início dos anos 90, em seguida conheceu a pixação dentro de escola e só então foi conhecer o graffiti, através de uma reportagem no Jornal O Dia, sobre o grafiteiro Fábio Ema, de São Gonçalo, mas FML nos conta que ainda não tinha noção do que era o hip hop. Ouvia rap, mas não tinha noção do que era o hip hop, até eu começar a conhecer essa questão do graffiti em si, que foi através de uma matéria que saiu com o Fábio Ema no jornal. Aí me deu certeza de que eu queria fazer aquilo, eu só não sabia como. Eu achava legal que a ferramenta que era utilizada era o spray, a mesma da pixação, só que aquilo ali, o graffiti, agregava pra comunidade onde ele morava e eu queria fazer algo pela minha comunidade também. (FML, 2019) A partir da segunda metade dos anos 90 o hip hop se alastrou pela Baixada Fluminense fazendo emergir uma série de artistas e grupos organizados que estão em atividade até hoje. Grupos estes que tiveram acesso a filosofia do hip hop norte americano e então adaptaram às suas realidades e começaram a buscar novas formas de 27 valorização para região em que viviam, inclusive através de seus nomes artísticos e de seus grupos, como podemos citar os grupos Fator Baixada, Da Baixa e Baixada Brothers, além do coletivo M2HBF (Movimento Hip Hop da Baixada Fluminense) e o próprio Slow da BF, onde BF significa Baixada Fluminense, que até o ano de 1994 era conhecido como MC Cacau e cantava funk nos bailes de Duque de Caxias. FML nos conta que antes dele, já havia muitos grafiteiros atuantes na Baixada Fluminense, como o Dante, de Mesquita, o KDO, de São João de Meriti, entre outros, mas o que chamou sua atenção foi uma conversa que teve com o Luck no ano de 2017. É até engraçada uma conversa que tive com o Luck, ele dizendo pra mim que morou em Austin, que começou a dançar break em Austin. Algumas pessoas que [...] começaram a dançar com ele, são meus vizinhos. É muito interessante quando a gente começa a descobrir a potência da Baixada Fluminense, quando se ouve falar de hip hop, de berço do hip hop no Rio, todo mundo fala de Lapa, mas aí você começa a descobrir que a área que você mora também é uma potência bem grande dentro do hip hop [...] e hoje eu tenho o prazer de conhecer esse cara. (FML, 2019) Há muito o que narrar desta história, que volto repetir, é uma história entre várias outras, com muitas disputas, conquistas e conflitos. Mas esta pesquisa tem outras pretensões, que buscam percorrer o movimento hip hop que pulsa na prática RapLab, nascida em Morro Agudo, Nova Iguaçu. Por este motivo, preciso me apresentar, reconhecendo junto aos Estudos com os Cotidianos, que pesquisa pode ser feita em primeira pessoa. 28 TRACK 01:02:00 - EU SOU DE MORRO AGUDO Nasci e cresci em Morro Agudo, bairro da cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Na adolescência, não conhecia outros lugares senão por filmes, então achava que as atrocidades que aconteciam no meu bairro eram normais. Hoje, lendo como era a vida no Bronx, em Nova Iorque, percebo que não era muito diferente da nossa vida em Morro Agudo quando eu conheci o hip hop. O rapper GOG, em 1994, já tinha razão quando dizia na música "Brasília Periferia" que: "Periferia é periferia em qualquer lugar, é só observar". Mas afinal de contas, o que é periferia? Recorro aos trabalhos de Tiaraju D´Andrea (2013) e Giselle Tanaka (2013) para refletir um pouco mais sobre esta palavra que habita a fala do rap, que é bem entendida por quem é habitado por ela, mas que talvez possa gerar dúvidas no meio acadêmico. Como nos alerta D`Andrea (2013), este termo, publicizado no Brasil das últimas décadas, é polissêmico e “escorregadio em sua definição” ( D´ANDREA, 2013, p.35). Para Tanaka (2013, p.23) o termo periferia começou a ser utilizado pela academia a partir da década de 70, o que segundo D’Andrea (2013, p.35-44) seria para descrever “o fenômeno urbano e social” que acontecia na cidade de São Paulo, onde o termo foi utilizado com maior profundidade e escala. Contudo, afirma ainda que a partir dos anos 90, o termo passou do campo da ciência ao campo da produção artística, onde foi então resignificado sobretudo pelos jovens de periferia “que potencializaram a utilização desse termo, já com outros significados e figurações”. Em seguida, o termo foi resignificado pela indústria, por volta do ano de 2002, através de filmes como Cidade de Deus (2002). Para estes autores, "a construção do que se convencionou chamar de periferia urbana [...] é uma obra coletiva que foi sendo materialmente construída à margem dos processos formais de produção da cidade, regulados pelo estado" (TANAKA, 2006, p.23), isto é, "os bairros e cidades dormitório, onde predominam residências de população pobre trabalhadora" (TANAKA, 2006, p.45), que “incapaz, pelos baixos salários, de arcar com um aluguel ou de adquirir uma habitação em locais providos de serviços urbanos[...] tem como única opção a autoconstrução na periferia" (TANAKA, 2006, p.46). Na década de 90, jovens artistas da cultura hip hop como os Racionais MCs, Thaide e GOG, contribuíram para resignificar e ampliar o conceito de periferia, pois o 29 "cerne da preponderância do discurso deste movimento cultural foi, sem dúvida, o fato de falarem da periferia sendo moradores de periferia. O falar 'de dentro' foi utilizado como recurso para relativizar outros postos de observação" (D’ANDREA, 2013, p.46). Este falar de dentro, muitas vezes denunciava, trazendo visibilidade para os problemas que somente os moradores desses locais conheciam, ao mesmo tempo que criava uma nova narrativa, pois "[...] o movimento artístico foi um dos que melhor catalisou as impossibilidades da política, passando a fazer política por meio da atividade artística,consolidando periferia como um modo compartilhado de estar no mundo" (D’ANDREA, 2013, p.45). Em 1994, como já foi dito, o rapper brasiliense GOG, narrava em sua música ‘Brasilia Periferia’ que a “periferia é periferia em qualquer lugar, é só observar. Baú sempre lotado, vida dura, cheia de sonhos. Não importa, seja no varejão, na Agrovila ou em Santo Antônio, periferia cresce todo dia, já se perdeu de vista” (GOG, 1994). Alguns anos depois, já em 1997, o grupo Racionais MCs, na música ‘Periferia é Periferia (Em qualquer lugar)’, sampleia, isto é, utiliza trechos de outros grupos de rap para produzir uma nova música, e faz o seguinte refrão para descrever o bairro do Capão Redondo, em São Paulo: “Aqui a visão já não é tão bela, não existe outro lugar, periferia, gente pobre” (RACIONAIS MCS, 1997). E por último, o rapper Thaíde, em 2000, na música ‘Sangue Bom’ faz uma comparação que converge com a que faço no início deste capítulo, quando comparo o bairro do Bronx, em Nova Iorque, com Morro Agudo, em Nova Iguaçu: “o problema que tem na sul, também tem na leste, é o mesmo da norte, igual o da zona oeste [...] por isso não tem essa de área melhor e pá, periferia é periferia em qualquer lugar” (THAIDE E DJ HUM, 2000). Foram músicas como essas que contribuíram para que os jovens de periferia, principalmente os praticantes da cultura hip hop, tivessem um olhar diferenciado e mais atento para os bairros em que moravam, e a partir de então era uma prática comum, falar de suas comunidades, às vezes denunciando as mazelas, outras vezes exaltando as especificidades do local, coisas que somente os crias10 podem dizer, pois, como diz Racionais MCs (1997): “só quem é de lá sabe o que acontece”. É importante dizer que apesar de ter tido uma infância e adolescência 10 “Cria” é uma gíria usada nas periferias do Rio de Janeiro para descrever que alguém nasceu, cresceu e por isso conhece as especificidades de determinado local. 30 recheada de acontecimentos prazerosos, ao lado de pessoas incríveis - e por isso inesquecíveis, experienciando atividades que talvez só pudessem ter sido vividas nas ruas de Morro Agudo, também não é possível negar que no final da década de 80 vivi experiências não tão legais na rua em que morava. Na minha adolescência, vi alguns amigos se envolverem com as drogas consideradas ilícitas. Em pouco tempo, estavam comercializando e em seguida matando uns aos outros. Há um rapaz no bairro que viu o seu melhor amigo ser assassinado. Ele estava ao seu lado quando o mesmo tomou uma saraivada de tiros. O assassino? Um outro amigo de infância. Mais de uma década depois, ele desenvolveu síndrome do pânico, e segundo os familiares, o médico disse que não foi simplesmente por ele ter presenciado a morte de um amigo, mas por ele não ter cuidado do trauma. Eu certamente fui um privilegiado, pois meus pais, apesar disso tudo, ainda tinham como prioridade os meus estudos. Entretanto, eu tinha diversos problemas com a escola. Na escola onde estudei toda a minha infância e adolescência, como era uma das únicas escolas particulares e mais caras do bairro, havia muitos alunos da classe média de Morro Agudo, a maioria meninas e meninos brancos. Quase ninguém da rua em que morava estudava nela, então eu era um dos únicos alunos pretos da escola e sofria uma perseguição sem fim. Era oprimido diariamente por causa da minha cor, do meu cabelo, e outras coisas mais. Dificilmente eu tentava resolver com conversa, quase sempre resolvia com briga, o que me colocava, na visão dos profissionais da escola, como um dos alunos mais indisciplinados daquele lugar. Diariamente pensava em formas diversas de como não ir para a escola. Inventava com frequência histórias de que estava passando mal, até que um dia bolei um plano, como contei em um trecho do livro que escrevi: Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, até que cheguei na sexta série e comecei a desandar. Em 1990, com apenas 11 anos de idade, gazetei aula por quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha mãe, que sempre acompanhava minhas presenças na escola através dos carimbos na caderneta escolar, não desconfiava das minhas travessuras porque eu mandei fazer um carimbo de presença idêntico ao da escola. (DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.22) Minha mãe era severa, sempre que eu saía da linha a correção vinha em forma de uma surra. Acho que essa foi a última vez que apanhei. Ela me disse que não me bateria mais. Daí comecei a pensar táticas (CERTEAU, 1998) para que tanto os professores quanto os alunos começassem a me dar uma trégua. Uma dessas táticas era 31 ocupar meu tempo criando músicas sobre o conteúdo das aulas que eu não entendia bem. Isso às vezes me rendia boas notas. Próximo a data das provas eu ensinava outros alunos a compor, mas o resultado não era tão bom pra todos, contudo essa aproximação melhorava minha relação e convivência com eles, além de ser bastante divertido. Eu escrevia sobre tudo o que me angustiava. Na minha família não havia artista, a gente não ia a cinema, teatro, museu etc. Meu único contato com a arte eram os discos que meu pai ouvia dentro de casa, discos de Tim Maia à Roberta Miranda. Até que conheci o Funk Carioca em 1993, e me apaixonei pelo ritmo, pelas letras e pelos artistas, que eram jovens iguais a mim. Em 1993, o funk carioca ficou muito forte e presente na minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte: fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia muita vergonha (DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.30). Conheci o rap em 1994, através de uma fita cassete, bastante influenciado pelas letras dos raps de artistas como o Gabriel O Pensador, Racionais, GOG e Thaíde, como conto em um outro trecho do livro "Enraizados: os híbridos glocais11": Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Distribuidora. O meu tio Humberto trabalhava lá e estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época [eu] ouvia muito rap, GOG, Thaíde, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual. Tudo era na base da fita cassete. Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, me emprestou uma fita do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano[...] e a partir de então começamos ouvir somente CXA. (DUDU DE MORRO AGUDO, 2010, p.45) Como outros adolescentes negros, pobres, moradores de bairros de periferia, bairros estes que eram retratados pela mídia hegemônica como local violento, tinha diversos problemas para me relacionar com o mundo, por conta do racismo, da desigualdade social, da falta de oportunidades, da escassez de opções de cultura e lazer, entre outras coisas. Tive muitas das respostas que buscava ouvindo os raps de grupos como Racionais MCs, grupo este formado também por jovens que moravam em um bairro violentado, neste caso o Capão Redondo, bairro da periferia da Zona Sul de São Paulo. 11 Na expressão de Robertson (2000): glocalização, processo que expõe a complementação e a unidade entre as pressões globalizantes e as locais. Enraizado na rede rizomática: simultaneamente, local e global – ação política local e produção cultural global. (AGUIAR e SCHAUN, 2010). 32 Passei a utilizar o termo "bairro violentado" ao invés de "bairro violento" quando ouvi a explanação de um amigo, o ambientalista Carlos Leandro de Oliveira, conhecido internacionalmente como Carlos Greenbike, moradorda cidade de Queimados. Em forma de crítica, Greenbike chama atenção para a violência sofrida pelo bairro, quando o mesmo foi citado no Atlas da Violência de 2018 como a cidade mais violenta do país. Falando da periferia violentada, os Racionais relatavam seus cotidianos e suas táticas de sobrevivência, denunciavam a violência policial, o descaso do poder público e as diversas mazelas que viviam, mas também contavam as histórias do povo preto, e a partir daí eu começava a sentir orgulho ao invés de vergonha da minha cor e da história dos meus ancestrais. A partir da narrativa de suas músicas, outros jovens como eu, de outras periferias espalhadas pelo Brasil, começavam a olhar para o seu bairro de forma diferenciada. A juventude pobre brasileira experimentava uma espécie de catarse coletiva. As letras de rap nos convidavam a refletir sobre nossa condição e a partir daí, começávamos a criar novas letras de rap que se conectavam com outros jovens. Então o hip hop, a partir do rap (e de outros elementos, mas de outras formas) foi capaz de tecer uma grandiosa rede de produção de conhecimento entre esses jovens que viviam em situações de subalternidade. Com 18 anos de idade comecei a interagir com outros jovens artistas de diversas partes do Brasil e aos poucos íamos aprendendo a lidar com o mundo e consequentemente relatávamos essas experiências em nossas músicas, afim de registrar o nosso ponto de vista sobre aquele espaçotempo. 33 TRACK 01:03:00 - ENRAIZADOS: UMA ESCOLA DE HIP HOP? Vinte e seis anos depois que Kool Herc deu início ao hip hop no Bronx, foi criado o Movimento Enraizados, em Morro Agudo, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, atual Instituto Enraizados, para conectar jovens de periferia que praticavam as artes integradas do Hip Hop (DJ, Break, Rap e Graffiti). Em 1999 eu [Dudu de Morro Agudo] já escrevia umas letras de rap e tinha ouvido alguns grupos como Thaíde e DJ Hum e GOG, mas não sabia nada de hip hop, então decidi criar uma maneira de conhecer umas pessoas que me ensinassem o que era essa cultura. Eu tinha receio de dizer que não conhecia ninguém e as pessoas não me aceitarem, então comprei uma revista e escrevi três cartas para uns endereços que havia na última página da revista, dizendo que fazia parte de uma organização de hip hop chamada Movimento Enraizados, mas na verdade essa organização só existia na minha cabeça. As cartas foram para o Rodrigo Dimenor, de São Paulo, para o Cassiano Pedra, da Paraíba e para o Gil BV, do Piauí. (BUZO, 2010, p.179) Assim nasceu o que hoje é o Instituto Enraizados, a partir de três cartas enviadas para jovens de três estados brasileiros. Aos poucos, jovens como o Dinho K2, o Bolinho, o Fiell e o Wilson Nenem foram se conectando ao Enraizados e uma nova rede de juventudes começou a ser tecida. Inicialmente, mesmo sem saber o que era o hip hop, a gente seguia a mesma lógica das outras organizações de hip hop que apareciam pelo mundo, pois nossos “objetivos básicos se desdobravam em três: criar uma agradável diversão e uma arte séria para os rituais dos jovens; criar novas maneiras de escapar da miséria social; e explorar novas respostas para significado e sentimento em um mundo dirigido pelo mercado” (DARBY, D., & SHELBY, T., 2016, p.15). Antes de o Enraizados se firmar em Morro Agudo fisicamente, a instituição era um tanto quanto virtual, conectava pessoas através de um site na internet. Depois, lentamente, os artistas começaram a propor e participar de atividades. Tudo pra mim era muito novo, cada momento era um grande aprendizado, até que comecei a procurar artistas de hip hop no meu bairro, mais precisamente rappers, e para meu espanto já existiam muitos, como o Kall Gomes e Dr Jack, do grupo Fator Baixada; a Lisa Castro e o Átomo, do grupo Ultimato a Salvação, e o precursor do hip hop na Baixada Fluminense, Genaro, conhecido como B.Boy Gero, que foi responsável pela iniciação de muitos jovens na cultura hip hop. 34 Figura 2 - Foto publicada no Jornal O São Gonçalo, em 26 de novembro de 2001, com alguns dos primeiros jovens integrantes do Enraizados, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Bolinho, K2 e Pluto. Fonte: Jornal O São Gonçalo Começamos a nos reunir em praças, realizar festas nas ruas, elaborar fanzines e produzir discos. As pessoas estranhavam a forma como nos vestíamos, sempre com roupas muito largas, imitando os jovens de São Paulo, que por sua vez imitavam os jovens norte americanos. A maneira como os jovens do hip hop - e consequentemente do Enraizados - se comportavam, se relacionavam e se expressavam, na época, ia na contramão do padrão hegemônico. Da mesma forma que o movimento dos jovens do Rolezinho 12 (PINHEIRO-MACHADO e SCALCO, 2010), no final de 2017, causou desconforto na classe média ao marcarem seus encontros nos Shoppings das grandes metrópoles, os jovens do hip hop causavam estranheza com sua forma de vestir e se comportar num local elitizado. Guardadas as devidas proporções e diferenças, em ambos os casos, os protagonistas eram, em sua essência, jovens negros e moradores de periferias urbanas. Por causa desses comportamentos fora do padrão hegemônico e de uma forma peculiar do fazer artístico, o hip hop e seus integrantes foram vistos durante anos somente como problema. Por conta disto, muitas portas e oportunidades foram negadas durante décadas, mas por outro lado, também por causa destes fatores e de alguns outros 12O rolezinho é um encontro coordenado via redes sociais por centenas de jovens em locais públicos. 35 como a falta de recursos financeiros, os jovens artistas do hip hop precisavam se reinventar com freqüência e hackear outras culturas, tecnologias de produção e comunicação, para prosseguirem praticando sua arte. Figura 3 - Foto publicada no Jornal O Dia, em 14 de maio de 2006, com alguns dos primeiros integrantes do Enraizados em Morro Agudo, dentre eles Dudu de Morro Agudo, Velho, Kall Gomes, Short, Suellen Casticini, Léo da XIII, Lisa Castro e Átomo. Fonte: Jornal O Dia Hackear é um termo muito utilizado na informática para definir invasões de redes seguras de computadores, onde muitas vezes jovens ou grupo de jovens que militam por alguma causa, em uma situação de enfrentamento, invadem o sistema de grandes corporações, causando prejuízos financeiros e/ou desgaste na imagem. Mas é também um conceito que ganhou outros significados fora do mundo da informática, atualmente utilizado em outras áreas principalmente para explicar que uma regra foi burlada, ou para desconstruir pensamentos tidos como verdades absolutas, mas sempre nessa relação de disputa de oprimidos contra opressores. Utilizo este termo aqui na mesma perspectiva do que Certeau (1998) chamava de tática onde "o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas". Para Certeau (1998) tática se difere de estratégia, pois a estratégia é utilizada pelos detentores de poder, que podem traçar seus planos isolados em um ambiente, onde são capazes de planejar suas ações sem uma interferência externa, com condições de 36 testar e manipular situações. Já a tática é a ação do oprimido, que precisa jogar com as peças que estão postas à mesa, tendo sempre que improvisar com as possibilidades daquele momento, "a sua síntese intelectual tem por forma um não discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião" (CERTEAU, 1998, p.47). Ainda hoje os jovens integrantes do Enraizados se educam uns aos outros, produzindo conhecimentos técnicos, artísticos e tecnológicos durante as atividades comuns do dia a dia, conforme a experiência e a demanda de cada um, assim como produzem e compartilham, desde o início da instituição, os códigos de convivência nas periferias, pois tudo o que se faz no Enraizados, se ensina.Importa ressaltar que este processo não se faz sem tensão, sem a disputa necessária a um projeto que tem a pretensão de ser democrático. É comum meninas e meninos procurarem o Enraizados buscando aprender alguma técnica artística e ser acolhido por outro(a) menino(a) com o mesmo perfil, onde o que chega, achando que vai somente aprender, acaba também ensinando, não somente o conteúdo relacionado com a arte que ele está interessado, mas este entrelaçado com outros. Essa forma de produção de conhecimento, em rede, sem hierarquia, às vezes são desconsiderados pela ideia hegemônica de educação, contudo Nilda Alves (2001) nos explica, que "há um modo de fazer e criar conhecimento no cotidiano, diferente daquele aprendido, na modernidade, e não só, com a ciência", entretanto "eles só podem começar a ser explicados se nos dedicarmos a perceber as intrincadas redes nas quais são verdadeiramente enredados". (ALVES, 2001, p.1) As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. (Brandão, 1981, p.18) A partir de 2007, após a criação e inauguração do Espaço Enraizados13, em Morro Agudo, a organização se popularizou, ganhando prêmios internacionais e reconhecimento do poder público nas esferas municipal, estadual e federal14, além de inserções em jornais, revistas e na TV. 13 Sede do Enraizados, o espaço que funcionava como Centro Cultural do bairro Morro Agudo, com biblioteca, sala de informática, sala de cursos, estúdio e espaço para shows com estrutura de palco e som. 14 O Movimento Enraizados ganhou os prêmios Cultura Viva e Cultura Hip Hop, do Ministério da Cultura, Diploma Heloneida Studart de Cultura, da ALERJ, prêmio Iguacine, da prefeitura de Nova Iguaçu, além do prêmio Maison de France, em Nancy, na França. 37 Outros jovens, que até então não se identificavam com a cultura hip hop, começaram a se interessar em aprender as técnicas do hip hop, mas para o Enraizados só fazia sentido ensinar as técnicas artísticas se fossem acompanhadas das histórias do movimento e dos valores da organização. Então, surgiu daí, em Morro Agudo, a escola de hip hop "Enraizados na Arte", que foi realizada durante os anos de 2009 à 2014. No Enraizados a gente inventou a prática RapLab e o objetivo era realizar algo diferente do que já havia sido feito com o rap, isto é, algo que fosse além das aulas de escritura de rimas. A ideia era desenvolver algo capaz de fazer com que uma pessoa que nunca teve contato com o rap pudesse experimentar o processo de composição, mas foi somente durante a pesquisa com os cotidianos que percebi que este era um processo de produção de conhecimento em rede. O RapLab é uma prática de aprender e ensinar em rede, contudo eu acreditava que era uma coisa que eu aplicava com um grupo de jovens para ter um rap composto ao fim do encontro, mas fui descobrindo que na verdade existe uma horizontalidade. Existe o afeto. Todo mundo participa desse processo de conhecimento. A prática do RapLab provoca a produção do conhecimento em rede, usando o rap como um espaçotempo de ensinoaprendizagem de trabalho coletivo, e de leitura de mundo, além de nos possibilitar uma experimentação política para um projeto de educação democrática. Fui aos poucos, percebendo que o mais importante era o processo e não o produto. Simultaneamente o RapLab nos permite trabalhar com artefatos tecnológicos como os equipamentos de gravação de áudio, aplicativos, smartphones e computadores para pesquisa na internet. Fui compreendendo que a criação através da tessitura de frases e de rimas é um provocador de conversas para uma educação democrática. Sobre a educação democrática, Paulo Freire nos ensina que: A prática educativa implica ainda processos, técnicas, fins, expectativas, desejos, frustrações, a tensão permanente entre prática e teoria, entre liberdade e autoridade, cuja exarcebação, não importa de qual delas, não pode ser aceita numa perspectiva democrática, avessa tanto ao autoritarismo quanto à licenciosidade. (FREIRE, 1997, p.56) Uma das principais experiências que tive com o RapLab foi num evento de atividades culturais da Campanha Jovem Negro Vivo, promovido pela Anistia Internacional em junho de 2016, no Parque de Madureira. O evento foi realizado com o objetivo de lançar o relatório (2015) "Você matou meu filho: homicídios cometidos 38 pela polícia militar no Estado do Rio de Janeiro", onde era necessário transformar os dados deste relatório em algo que a juventude pudesse compreender, principalmente a juventude negra, que era o público alvo. Era necessário que os jovens participantes da atividade compreendessem o tema proposto, que no caso eram os dados do relatório e transformassem em algo que pudessem repassar para outros jovens. A Anistia Internacional para atingir esse objetivo convidou o Instituto Enraizados para realizar a atividade RapLab em um workshop que durou três horas e contou com a participação de 17 jovens, de diferentes comunidades do Rio de Janeiro, que compuseram coletiva e colaborativamente a música Jovem NegroVivo15. Normalmente decidimos o tema da música através de uma votação entre os participantes, mas neste caso o tema foi definido previamente pela Anistia Internacional. A música seria sobre o "extermínio da juventude negra", por isso, antes de começarmos a atividade, tanto os jovens que se inscreveram para participar do RapLab, quanto o jovens que participariam de outras atividades, assistiram a um vídeo com alguns dados do relatório e a uma palestra com Diogo Silva, campeão pan- americano (2007) e mundial (2009) de taekwondo, sobre racismo, esporte e juventude. É possível realizar enquetes, jogos de memória e outras dinâmicas para problematizar o conhecimento do tema proposto, mas como já havíamos assistido a uma apresentação e a uma palestra, e tínhamos um tempo limitado, decidimos nos reunir em uma sala e iniciar uma conversa sobre o conteúdo da apresentação e da palestra. Os jovens trouxeram experiências pessoais de quando tiveram seus direitos violados, contaram inúmeras histórias, questionaram a ação da polícia em alguns territórios do Rio de Janeiro em detrimento de outros, e a todo tempo, a partir de pesquisas no telefone celular, trouxeram mais informações sobre o tema que estava sendo discutido. Mais do que discutirem e compreenderem o relatório da Anistia Internacional, aqueles jovens estavam produzindo os seus próprios relatos, suas próprias narrativas. É preciso, pois, que eu incorpore a ideia que ao narrar uma história, eu a faço e sou um narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos 15 A música, o vídeo e a letra podem ser acessados nesse link: http://www.enraizados.com.br/index.php/RapLab-participa-de-atividade-com-anistia-internacional-e- lanca-musica-e-video-contra-o-exterminio-da-juventude- negra 39 que chegaram/chegam até mim, neles inserindo, sempre, o fio do meu modo de contar. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem vive o cotidiano do aprender/ensinar. (ALVES, 2001. p.33) Após essa conversa pedimos que eles nos dissessem as dez palavras que mais chamaram a atenção deles durante toda a atividade. Essas palavras foram escritas em forma de lista, uma abaixo da outra, em um quadro, onde todos podiam ver. No RapLab essas palavras servem para orientar os participantes na hora da composição. As palavras ditas pelos jovens foram: ÁFRICA, JOVEM, HISTÓRIA, VÍTIMA, FAMÍLIA, ESTATÍSTICA, BURGUESIA, DISCRIMINAÇÃO, PERIFERIA e
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