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FICHAMENTO LIBERDADE ANTES DO LIBERALISMO[footnoteRef:1] [1: SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Tradução Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1999. (UNESP/Cambridge). ] PREFÁCIO: · Em meados do século XVII, no contexto da revolução inglesa, uma teoria ganhou proeminência e posteriormente foi usada como fundamento das críticas dirigidas à oligarquia dominante na Inglaterra do século XVIII e na defesa dos colonos no processo revolucionário americano (p. 9). · Entretanto, esta teoria, a qual o autor dá o nome de “neorromana”, foi perdendo forças no século XIX especialmente em função do desenvolvimento da teoria liberal, que tomava o conceito de liberdade de uma forma que rivaliza com o desta perspectiva. Mas isso não quer dizer que a teoria neorromana tenha desaparecido por completo, é possível encontrar suas influências nos manifestos cartistas, na crítica de Stuart Mill à sujeição das mulheres e na teoria de Marx sobre a exploração capitalista (p. 10). · Esta análise busca compreender esta teoria, inserindo-a no contexto no qual foi produzida e desenvolvida, questionando a hegemonia liberal no que tange ao conceito e à compreensão da liberdade (p. 10). 1. A TEORIA NEORROMANA DOS ESTADOS LIVRES I. · No contexto de irrupção da guerra civil inglesa, em 1642, começaram a surgir diversas ideias distintas acerca da estrutura política, em meio àquilo que o autor caracteriza como uma “crise constitucional”. A primeira iniciativa de formação desta nova ideologia partiu dos mais radicas opositores de Carlos I, que afirmavam ser o povo o soberano e, portanto, caberia ao Parlamento o direito de decisão sobre a ação política inglesa, pois estes foram eleitos. Nos príncipes “o poder é apenas secundário e derivativo (p. 15-16). · Os partidários do rei buscaram sustentar a tese clássica do direito divino dos reis, insistindo "que Deus ‘expressara na Escritura que tanto a Soberania como a pessoa investida de Soberania são dele, por ele e a partir dele imediatamente.’” Outros mais cautelosos, porém, defendiam que tanto Rei quanto Parlamento estavam “firmemente unidos” e detinham, juntos, o poder absoluto; ou ainda, que “‘a soberania de nossos reis’ é limitada pela ‘Autoridade concorrente dos dois outros Estados no Parlamento’”, como defendia Philip Hunton (p. 16). · Mas uma outra via para o problema se viu surgir no mesmo contexto, que compreendia que o portador da soberania é o Estado em si, ou seja, não está nem na pessoa do monarca nem no Parlamento ou em sua união. O jurista Samuel Pufendorf é um clássico exemplo de defensor desta perspectiva, mas sem dúvidas foi Thomas Hobbes o principal teórico britânico a defender que o Estado constitui-se como uma pessoa, sendo chamado de soberano “aquele que leva esta Pessoa” (p. 16-18). · Neste mesmo contexto começam a surgir teorias acerca da liberdade em sua relação com o poder do Estado. Nelas, este é visto como um garantidor dela, enquanto impede que um súdito invada a liberdade do outro, impondo sobre todos a mesma força da lei. Encontrada também no direito romano, essa tese foi discutida por vários monarquistas, sendo Hobbes o mais influente, sustentando que a lei deixa a liberdade natural do indivíduo inalterada, pois sua coerção incide somente sobre as ações que os homens já tinham a liberdade de omitir (p. 18-19). · Materialista e determinista, Hobbes afirma que a lei não age contra a vontade, mas a coloca em conformidade com a coletividade. Assim, quando uma lei coage o indivíduo a agir contrariamente à sua vontade primeira, ele simplesmente está abandonando esta vontade e desenvolvendo outra vontade que esteja em conformidade com a própria lei, por temor das consequências daquele primeiro ato. Os grilhões artificiais da lei se assemelham, portanto, aos reais, mas não detém os homens concretamente, apenas pelas vias do temor da punição (p. 19-21). · A conclusão hobbesiana é que a liberdade só é plena perante o “silêncio da lei”, ou seja, quando não há nenhuma regra prescrita pelo soberano. Havendo alguma regra, “ela vai cuidar de aterrorizá-lo à conformidade.” Esta concepção de liberdade foi desenvolvida em contraposição à clássica teoria do Estado livre (civitas libera), preponderante nos ideais políticos romanos e resgatada pelos renascentistas italianos, especialmente por Nicolau Maquiavel. A concepção neorromana alcança a Inglaterra no mesmo período, ecoando nas ideias de Richard Beacon e Francis Bacon. Posteriormente, contrasta com as teses contratualistas e é instrumentalizada nos séculos XVII e XVIII, respectivamente, por críticos dos Stuarts e da oligarquia whig de Sir Robert Walpole. Esteve presente, ainda, na defesa dos colonos americanos no processo de independência dos Estados Unidos (p. 21-23). · Os ideais republicanos dos neorromanos ingleses adquirem enorme força no período conturbado que vai do regicídio de 1649 à restauração em 1660, enquanto a Inglaterra se autoproclamava uma “Comunidade e Estado livre.” Editoriais em jornais e obras como A Comunidade de Oceana, de John Milton, eram escritas contendo as premissas neorromanas, mas logo perderam força com a decadência da república após a morte de Oliver Cromwell e a restauração monárquica (p. 23-26). II. · Os teóricos neorromanos quase sempre abordam o conceito de liberdade dentro do campo político, considerando-o a partir de sua relação com o poder do Estado. Esta liberdade significa, em suma, a ausência de constrangimentos sobre os direitos naturais que são concedidos ao homem por Deus, algo que revela certa influência da teoria política da Reforma, já que não há entre os clássicos e os renascentistas defensores desta perspectiva esta consideração de liberdade como garantia de direitos. Em Maquiavel, por exemplo, a liberdade era um ganho derivado de uma vida sob um Estado organizado (p. 26-28) · Dessa forma, para estes novos neorromanos, como Milton e John Nedham, “o fim de todo governo é (ou deveria ser) o bem e a comodidade do povo, num gozo seguro de seus direitos, sem pressão e opressão” (p. 28). · Contudo, os neorromanos não tinham como propósito central detalhar quais eram estes direitos. Por vezes se referiam à liberdade de discurso, à liberdade de movimento e à liberdade de contrato, ou ainda, resumiam à tríade “vidas, liberdades e propriedades”, como faz Henry Neville e, posteriormente, faria John Locke em seu Dois Tratados do Governo Civil (p. 29). · Mas ao mesmo tempo sua visão geral sobre o significado real de liberdade constitui o cerne de seu pensamento, distinguindo-os da visão “monarcômaca” dos defensores do absolutismo, que consideravam que o povo, originalmente livre e soberano, delega parte de sua soberania e liberdade ao governo para que este aja em benefício dele. Por esta contraposição, muitos consideravam os neorromanos como republicanos, mas alguns deles consideravam que seu ideal de liberdade poderia ser efetivado, inclusive, sob um regime monárquico devidamente regulamentado (p. 29-31). · Nesta visão sobre a liberdade, duas suposições fundamentais precisam ser analisadas. A primeira delas se refere à relação necessária existente entre indivíduo e corpo coletivo, ou seja, qualquer compreensão de liberdade individual ou de algo que a ameace deve ser levada em conta na teorização sobre a liberdade das nações. Esta perspectiva está ancorada na compreensão clássica de que existe uma relação entre o corpo individual e o corpo coletivo, a excelência daquele significa o progresso deste (p. 31-32). · Desse modo, um Estado livre é aquele no qual o corpo político age em plena conformidade às vontades individuais; a capacidade de autogoverno é atributo tanto dos cidadãos quanto dos membros do governo. Em outras palavras, deve-se haver um consentimento geral, que os homens aprovem a existência das leis em referência. Como Nedham afirma, os povos antigos eram livres porque “nenhuma lei podia ser imposta a eles sem que antes houvesse um consentimento nas assembleias do povo” (p. 32-34). · Alguns críticos apontam nesta teoria uma certa fundamentaçãometafísica confusa e perigosa, mas os neorromanos afirmam que esta vontade do povo nada mais é que a reunião das vontades individuais, e não têm a ingenuidade de afirmar que esta convergência é total, alcança apenas uma maioria. Seus partidários reconhecem o impasse das minorias, mas acreditam que esta é a melhor das possibilidades políticas, e que “o governo se torna impossível se todos retêm ‘um direito, por sua discordância, de atrapalhar as resoluções do corpo todo’”, como afirma Algernon Sidney (p. 34-35). · Aliado a este problema, outro impasse surge, relativo ao alcance da participação ativa de cada indivíduo na elaboração e execução das leis. Se deve haver um consenso, pelo menos entre a maioria, todas as pessoas devem estar igualmente “‘de posse do poder’ e ‘adequadamente qualificadas com autoridade suprema.’” Uma das grandes influências teóricas relativas à tentativa de resolução desta questão é Thomas More, que em sua Utopia sugere a forma de uma república federada: “seus cidadãos vivem em cinquenta e quatro cidades autogovernantes que administram seus próprios negócios por meio de magistrados anualmente eleitos, escolhidos entre eles mesmos” (p. 35-36). · Nesta defesa pela participação ativa dos cidadãos, contudo, os neorromanos comumente não defendem uma ação direta por parte deles em conjunto, considerando inclusive que “as massas tendem a ser ‘exorbitantes e excessivas’”, como descreve Milton; pouco sóbrias e ponderadas para o autogoverno, segundo Neville. Assim, optam pela representação, ou seja, pela transferência do poder a um grupo de indivíduos virtuosos e ponderados escolhidos pelo povo. E nesta escolha está também a necessidade de elaborar leis que estimulem a virtù e afastem os homens da sua natural corruzione (p. 37-38). · Mas deste problema surge outro ainda mais complexo, que se refere ao modo como esta representatividade se daria concretamente na política britânica, dividindo os teóricos neorromanos em partidários da Câmara dos Comuns – como Francis Osborne, Nedham e Milton – e defensores da manutenção da nobreza e da Câmara dos Lordes – como James Harrington e Sidney. Harrington destaca a necessidade de um equilíbrio de poder que só pode ser obtido à medida que ele se encontra dividido nas mãos das duas casas, ficando a atividade legislativa a cargo dos nobres e a executiva, do populacho. Esta concepção de um poder misto e equilibrado foi fortemente influente nas propostas dos comunitários do século XVIII e na constituição dos Estados Unidos (p. 37-39). III. · A segunda suposição central desta tese, que fortalece a evidente relação entre corpos individuais e corpos políticos e se revela nas comparações teóricas que os neorromanos estabelecem entre Estados livres e Estados não-livres, está na concepção da ausência da liberdade do corpo político como escravidão ou servidão. (p. 40). · Para esta vinculação teórica os Discorsi de Maquiavel são sua principal fonte, nos quais há a afirmação de que as cidades que em sua origem não eram livres viveram em servidão. Seguindo esta premissa, por exemplo, John Hall compara as realizações da Roma Antiga, responsável por produzir boas leis e ampliar a liberdade dos cidadãos, com os Estados monárquicos modernos, “que definham numa Servidão brutal.” Os neorromanos recorrem também aos moralistas e historiadores romanos, mas como a fonte destes, por sua vez, era o Digesto, esta constitui a principal fonte das premissas políticas em análise (p. 40-41). · O conceito de escravidão dentro do código jurídico romano é tomado como um dos pontos mais fundamentais do direito das gentes, pois a ideia de liberdade é justamente apresentada em contraste com ele. Escravo é “alguém que, contrariamente à natureza, é tornado propriedade de alguém mais” (p. 42). · Sendo assim, a condição de liberdade não tem relação direta com a ausência de uma opressão efetiva, sendo este paradoxo inclusive trabalhado na comédia romana, como na peça Mostellaria, de Plauto: o personagem Tranio, escravo, gaba-se constantemente de nunca ter sofrido opressão direta de seu proprietário, que estava quase sempre em viagem. A escravidão, portanto, está vinculada à sujeição ao poder de um outro (p. 42-43). · Esta concepção da condição de escravidão como “estar in potestate, dentro do poder de alguém mais” é constantemente reafirmada pelos moralistas e historiadores romanos, como Sêneca, Lívio e Salusto, que acrescentam a ela o termo obnoxius, que significa “perpetuamente sujeito ou propenso a maus tratos ou punição.” Em seu De Beneficiis, por exemplo, Sêneca afirma que os escravos “estão obnóxia, à mercê de seus senhores, a quem eles são atribuídos” (p. 43-45). · Os autores neorromanos, possivelmente através da história de Roma de Lívio, alcançam este conceito de escravidão e o tomam como central na sua análise sobre a perda de liberdade civil nos corpos políticos modernos. Lívio afirma que um Estado livre é uma comunidade autogovernante na qual “o Imperium das leis é maior do que o de qualquer homem.” Por outro lado, uma comunidade não-livre se iguala à condição de um indivíduo escravizado: ela vive “in potestate, dentro do poder ou sob domínio de uma outra nação ou Estado” (p. 45-46). · Além de Lívio e Salusto, a figura de Maquiavel salta como admirável pela ótica dos neorromanos, pois como destaca Harrington, foi ele que concedeu ao mundo moderno a concepção de liberdade encontrada na história romana de Lívio. O mesmo Maquiavel, contudo, é visto com repulsa pelos teóricos “monarcômacos” de meados do século XVII como Henry Parker, que considera sua visão política como “desprezível” (p. 47). · A partir destas fontes, os autores neorromanos falam de duas formas de escravidão pública. A primeira envolve o contexto no qual o corpo político se encontra “forçosa ou coercitivamente privado de sua capacidade de agir à vontade na buscas do fim que escolheu”, que é o caso da tirania em sua clara expressão. Com referência a esta concepção, apontam o equívoco de Carlos I quando, em janeiro de 1642, envia homens à Câmara dos Comuns para impedi-la de deliberar sobre a política britânica e tenta prender seus membros. Milton considera que atos como este fazem com que a vontade do rei se torne o Direito da Nação, e não há nada que salve o povo da escravidão (p. 47-48). · Contudo, a escravidão é fruto não apenas da tirania, mas pode também vir de atos em conformidade com a lei quando o corpo político é “dependente da vontade de alguém que não o corpo de seus próprios cidadãos.” Há dois casos específicos em que isso pode acontecer, sendo o primeiro quando um Estado se encontra dependente de outro por colonização ou conquista, sendo aquele considerado em condição de escravidão. Esta condição foi pouco abordada pelos neorromanos, mas foi central na luta das Treze Colônias pela sua independência, estando presente, por exemplo, nos Dois Panfletos sobre Liberdade Civil de Richard Price (p. 49). · A segunda maneira de um Estado ser escravizado sem que haja uma tirania propriamente dita é quando sua lei interna permite “quaisquer poderes discricionários ou privilegiados por parte daqueles que o governam.” Milton destaca que um Estado não pode ser livre se ações que objetivam alcançar seus fins necessitam da aprovação ou do favor de uma única pessoa, assim como o Nobre Vêneto do Plato Redivivus de Neville considera que a voz negativa de um rei sobre as decisões do Parlamento leva o Estado a perder sua liberdade. Estas considerações são ataques diretos à prerrogativa de veto legal sobre as determinações do Parlamento que possuía Carlos I (p. 50-51). · Por fim, esta discussão culmina na importante questão de se um regime monárquico pode garantir a liberdade de um povo. Alguns como Sidney e Neville consideram que sim, e que é até preferencial que o governo seja organizado a partir da figura do rei – “cabeça” do corpo político – unida a um senado aristocrático e uma assembleia representativa democrática, fazendo eco à consideração de Maquiavel sobre a liberdade poder se fazer presentetanto na república quanto no principado (p. 51-52). · Todavia, autores menores como Hall e Osborne defendem radicalmente o republicanismo, afirmando que o regime monárquico é uma “doença de governo” e considerando quaisquer figuras reais como tiranas. Acreditam que o rei irá sempre “violar as imunidades mais sagradas de seus súditos”, independentemente da estrutura política por debaixo dele. Para eles, portanto, “apenas uma república pode ser um Estado livre” (p. 52-54). 2. ESTADOS LIVRES E LIBERDADE INDIVIDUAL I. · A teoria neorromana dos Estados livres, ao se opor ao Antigo Regime francês e ao domínio colonial britânico sobre as colônias na América e considerá-los como exemplos de escravidão, foi logo considerada subversiva e atacada diretamente por outros teóricos. A mais influente destas críticas veio de Hobbes, que no Leviatã afirma que sua preocupação é unicamente a liberdade dos Estados, “não é a liberdade de homens particulares.” Posteriormente esta visão ganhou força e ecoou, por exemplo, em Benjamin Constant e Isaiah Berlin (p. 55-56). · Contudo, mesmo sendo verdade que a preocupação central dos neorromanos seja a liberdade das cidades, isso não reflete toda sua tese, há outros aspectos em sua defesa que não podem ser esquecidos e revelam as causas dela. Em Salusto e Maquiavel, por exemplo, a alegação primordial da defesa da liberdade da comunidade é a garantia da glória e da riqueza. O exemplo clássico faz referência a Roma, que “uma vez tendo atingido o status de liberdade, passou a progredir e a crescer.” Estes ideais são posteriormente resgatados por Nedham e Harrington (p. 56-58). · Entretanto, apesar deste resgate, neles encontramos já “uma crescente suspeita da ética da glória e da grandeza cívica.” A partir do próprio Salusto, que aponta também uma força corruptora na grandeza alcançada por Roma após a expulsão dos reis, devido às disputas pelo poder, os autores neorromanos olham com cautela para a ideia de que a liberdade garante a glória. Alguns, posteriormente, denunciam explicitamente esta pretensão (p. 58-59) · Enxergam na figura de Cromwell uma similaridade com Lucio Sula, que de acordo com Salusto corrompera o exército romano e o utilizara para dominar o Estado. Cromwell dominou a Irlanda e a Escócia e ordenou o fechamento do Parlamento em 1653, o que distanciou os neorromanos ainda mais desta concepção clássica. Optaram, enfim, por relacionar Estado livre à liberdade dos próprios cidadãos (p. 59). · Esta relação entre liberdade pública e liberdade individual, porém, já está presente nos clássicos e nos renascentistas, que consideram que os Estados livres promovem a ascensão dos homens de virtù. Os neorromanos, Harrington por exemplo, consideram que nessas comunidades “as leis são ‘modeladas por todo homem privado’ para ‘proteger a liberdade de todo homem privado, a qual deste modo vem a ser a liberdade da comunidade’” (p. 60-61). · Desse modo, estes pensadores afirmam que só é possível ser individualmente livre sob um Estado livre. Todavia, até então esta é apenas uma afirmação, é preciso analisar as evidências que são utilizadas no combate à perspectiva hobbesiana. Para isso, vale retomar a correspondência entre corpo político e corpo privado (elo necessário), além da consideração de que nós não perdemos nossa liberdade apenas quando o governo nos coage ou nos priva de algo deliberadamente: a simples prerrogativa de um poder discricionário e de veto já significa submeter os cidadãos à condição de servidão (p. 61-62). · Tanto os pensadores menores quanto os maiores consideram que a simples possibilidade do governo nos coagir arbitrariamente já significa uma condenação do povo à escravidão. Milton usa essa colocação para criticar a pretensão de Carlos I em ter o domínio sobre a milícia. Para ele, se o exército está sob poder do governo, alienado do Direito – representado pelo Parlamento –, logo o exército será senhor do Direito e passível de ser instrumentalizado por um homem, sendo causa da submissão de todos os outros à tirania. Esta ideia foi reafirmada, inclusive, no contexto da Revolução Americana (p. 63-65). · Desse modo, somente sob um regime de autogoverno, onde as leis são elaboradas pelo povo e todos se encontram debaixo de um mesmo Direito, é possível que sejam sustentadas as liberdades individuais. Somente neste regime os homens privados podem viver sob leis que estão voltadas para fins que correspondem aos interesses deles próprios e os protejam, já que são eles mesmos os responsáveis por sua elaboração (p. 65-67). II. · Entre os críticos dos neorromanos, para além das objeções de Hobbes, duas questões importantes surgem. A primeira, de William Paley, tomado como uma das principais referências na disseminação dos valores liberais clássicos, faz referência ao perigo presente na premissa utópica de que só há liberdade verdadeiramente se há participação política efetiva e equânime: enquanto proposta inalcançável na prática, pode inflamar a sociedade. Entretanto, esta crítica acaba não recaindo sobre as premissas e a tese neorromana, mas sobre os limites contextuais que impedem a efetivação do ideal (p. 67-68). · A segunda objeção assume dois aspectos que estão ligados, tendo sua crítica incidindo sobre a perspectiva de liberdade assumida pelos neorromanos. Os críticos, como Paley, demonstram que a liberdade deles se refere apenas à ausência de riscos de interferência e restrições à ação individual, e não à interferência em si. Assumindo um conceito hobbesiano de liberdade, os críticos afirmam que ela é, na verdade, a ausência direta de restrições à ação dos indivíduos (p. 68-69). · E assumindo que “a extensão de sua liberdade como cidadão depende da extensão na qual você é deixado livre de constrangimentos pelo aparato coercitivo da lei para exercer seus poderes à vontade”, necessariamente se deve concluir que “aquilo que importa para a liberdade cívica não é quem faz as leis, mas simplesmente como elas são feitas”. A liberdade individual, portanto, parece não ter relação direta com a forma de governo específica em torno da qual se encontram reunidos os cidadãos (p. 69-70). · Mas os autores neorromanos não discordam da percepção liberal clássica que, como resume Jeremy Bentham, concebe a liberdade como “conceito meramente negativo”, enquanto falta de constrangimento. Os neorromanos concordam com esta ideia, assim como afirmam que o exercício da força ou sua ameaça são “formas de constrangimento que interferem com a liberdade individual” (p. 70-71). · O que na verdade distancia liberais clássicos de neorromanos é a consideração dos primeiros de que apenas a força ou sua ameaça coercitiva constituem risco à liberdade individual. Os neorromanos, por sua vez, acreditam que a condição de dependência “é em si uma fonte e uma forma de constrangimento”, o que nos leva à necessidade de compreender o que envolve sua concepção de constrangimento (p. 71-72). · Ao rebater a crítica hobbesiana presente no Leviatã de que os cidadãos de Lucca não são mais livres que os cidadãos de Constantinopla simplesmente por estarem sob um regime popular, Harrington destaca que os súditos do sultão sofrem uma coerção não evidente, mas tão incisiva quanto aquela mais direta: o temor da punição, já que a vontade do sultão e a lei são uma só, possuindo o mesmo poder coercitivo. Mais enfaticamente, Sidney afirma: “se não há outra lei num reino que a vontade de um príncipe, não há algo como a liberdade” (p. 72-73). · Para ilustrar este argumento, os neorromanos se voltam para a condição daqueles que têm a responsabilidade da atuação política em prol do bem comum. Sendo esta atividade totalmente dependente da liberdade de falar e agir em conformidade com os ideais da virtù, qualquer limitação os impede de agir nobremente. Neste aspecto, resgatam Thomas More e sua enfática defesa da liberdade de expressão dos membros do Parlamento (p. 74). · More, contudo, já destacou na Utopia a dificuldade de se sustentar esta liberdade nos governos modernos, pois os governantesgeralmente não dão ouvidos aos ideais em prol do bem comum por estarem ocupados com sua busca pelas riquezas e glórias militares. Ademais, os próprios cidadãos que atuam diretamente na política são dependentes da adulação, necessitando de apreço e favores do rei e daqueles que se encontram mais próximos dele, o que os distancia de quaisquer ideais nobres. Esta crítica de More à condição dos cidadãos mais envolvidos no jogo político, vista como semelhante à escravidão, foi tomada como referência nas críticas dirigidas às cortes de Elisabeth I, Jaime I e Carlos II (p. 74-76). · Sidney também desenvolve essa mesma crítica recorrendo a Tácito – que explora a corrupção no Império Romano –, mas seus argumentos também fazem eco à réplica de Harrington a Hobbes. Em situação de governo monárquico, os homens públicos se tornam cada vez mais submissos à vontade do rei, coagidos a agir apenas de modo a agradá-lo e receber seus favores, mesmo que não haja coerção direta. Assim, a busca pelo bem público e pela virtù estará sempre perdida (p. 76-78). · Nesta descrição do típico cortesão bajulador e dependente retorna o termo obnoxius, que como vimos faz referência àqueles “que vivem à mercê de outras pessoas.” Contudo, nesta retomada ele adquire uma noção mais próxima daquele dada por Lívio, descrevendo a conduta servil daqueles que vivem em função das cortes e das oligarquias governantes. Contrapondo-se à figura do obnóxio bajulador e servil se encontra o cavaleiro rural, constantemente defendido como aquele que “é simples e de inspiração simples; é honrado e cheio de integridade; sobretudo é um homem de verdadeira hombridade, de valor e energia confiáveis” (p. 78-80). · Vários dos teóricos neorromanos enxergavam sua tese com grande entusiasmo – Harrington afirmava que sua efetivação era inevitável –, mas em pouco tempo ela caiu em descrédito. A crescente perspectiva utilitarista do liberalismo e a constante reafirmação de que a teoria dos Estados livres é equivocada e confusa, além dos modos da corte terem sido transferidos à burguesia dominante e a figura do cavalheiro rural passar a ser vista como antiquada, tosca e grosseira, fizeram com que eles fossem perdendo espaço. Cada vez mais se acreditava que a ideia de que a liberdade individual depende de uma estrutura política específica caiu em descrédito e passou a ser vista como resultado de uma “confusão que o uso comum da palavra ‘liberdade’ tende a causar”, como afirmou Henry Sidgwick ao anunciar que a teoria neorromana dos Estados livres se encontra “fora de discussão” (p. 80-81). 3. A LIBERDADE E O HISTORIADOR I. · Uma concepção comum acerca da história do pensamento político a compreende como uma busca por certos aspectos de constância presentes na teoria política e nos textos clássicos, dispostos em um cânone. Essa investigação tem como finalidade última a extração de instrumentos para a compreensão do presente, já que há “um conjunto de perenes questões definitivas” em toda a história das ideias políticas (p. 83-84). · Entretanto, a abordagem deste estudo sobre os neorromanos obedece a uma outra perspectiva, mais contemporânea, que parte do princípio de que as perguntas e respostas que sustentam as teorias, conforme destacou R. G. Collingwood, não são estáticas, mas mudam continuamente. Bastante promovida por John Pocock, concebe que toda e qualquer teoria está alicerçada no seu próprio contexto, e uma boa análise histórica precisa dar voz aos “princípios normativos” vigentes naquele contexto, que afetam as possibilidades e modelam o modo como as linhas de ação política se apresentam (p. 84-86). · Esta nova abordagem, mais próxima da “história real” e portanto mais capaz de atrair um público mais amplo, fora duramente criticada pela historiografia tradicional e apontada como “antiquarismo acadêmico”. Todavia, é importante ter em mente que há inúmeras formas e métodos de análise historiográfica, e talvez seja irrelevante “privilegiar certos tipos de estudo histórico em relação a outros” (p. 86-88). II. · Este estudo em si, sobre a teoria neorromana, se insere como um trabalho de um arqueólogo: é uma busca pelas origens, causas, motivos, propósitos e sustentações dos conceitos políticos que utilizamos. E esta busca está mais focada nas descontinuidades entre estas concepções originais e aquelas das quais nos servimos no presente que suas continuidades; “valores petrificados, num momento, dissolvem-se no ar, no momento seguinte” (p. 88-90). · A teoria neorromana dos cidadãos livres e dos Estados livres sofre este mesmo processo, ao ser ofuscada pela “análise liberal da liberdade negativa em termos da ausência de impedimentos coercivos”, claramente descrita por Isaiah Berlin em Dois conceitos de liberdade. Berlin, em uma análise filosófica sobre a essência do conceito de liberdade, afirma que ela é apenas “desfrutada na medida em que não sou ‘impedido por outras pessoas de fazer o que quero’” (p. 91) · Sendo assim, a liberdade se contrasta à coerção, não podendo ser confundida com “liberação do status de dependência política ou social” ou tomada como dependente de um tipo especifico de organização política. Sua preservação “depende não de quem exerce autoridade, mas simplesmente de quanta autoridade é posta nas mãos de alguém”, não havendo relação direta e necessária entre liberdade individual e democracia. Esta suposição, contudo, funciona como uma petição de princípio, pois a conclusão da dependência e da falta de autogoverno como não prejudiciais à liberdade já está inserida na premissa da liberdade enquanto ausência de coerção (p. 91-93). · Duas considerações podem ser extraídas dessa polêmica: as conclusões tradicionais seduzem facilmente os intelectuais, levando-os a apenas reafirmá-las a partir de novas fontes, e a história do pensamento – assim como a própria filosofia – “está aí para nos impedir de sermos muito facilmente enfeitiçados”, concedendo-nos instrumentos para quebrar a hegemonia do pensamento corrente e explorar novas perspectivas. Isto não significa, porém, que o historiador busca transplantar estes valores superados para o presente, como acreditava Benjamin Constant, nem deve funcionar como um moralista, mas apenas conceder aos leitores caminhos distintos para reavaliar seus próprios valores (p. 93-94). · Nesta análise presente é possível observar, conclusivamente, que apesar da diferença quanto à consideração da necessidade de um Estado autogovernante para a reta garantia da liberdade individual, liberais clássicos e neorromanos concordam que a liberdade parte da ausência de limitações e restrições sobre a ação dos indivíduos. Estes, porém, enxergam no simples constrangimento um atentado a ela: para eles “será sempre necessário que o Estado assegure, ao mesmo tempo, que seus cidadãos não caiam numa condição de dependência evitável da boa vontade de outros.” O Ocidente optou pela primeira visão em razão de certas condições históricas específicas, mas também é possível enxergar nisso uma escolha, tenha sido ela certa ou errada (p. 94-95).