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DO PAPEL DO ESTADO NA MUNDIALIZAÇÃO CAPITALISTA E EM PADRÕES DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL DISTINTOS1 Wendell Magalhães2 Segundo Osorio (2014), o Estado, tanto antes quanto hoje, na etapa da mundialização capitalista, segue necessário, por razões diversas, à expansão e reprodução do capitalismo. E como uma de suas principais funções úteis a este sistema, Osorio (2014, p. 175) destaca “a manutenção de uma ‘ordem’ e de uma ‘paz social’ dentro das fronteiras estabelecidas, as quais submetam o trabalho às condições exigidas pelo capital”. Num sistema mundial polarizado, dividido entre economias imperialistas e economias dependentes, tal função é imprescindível e pede com que o Estado atue de diferentes maneiras, a depender do território e da economia que ele é responsável. Isso não só pelo fato do capital exigir diferentes condições de trabalho a depender do território e da economia que ocupe, dada a sua necessidade de extração de valor excedente em cada lugar, mas também pelos diferentes valores de uso produzidos aí por essas economias. Como bem nos lembra Osorio (2012, p. 46, grifo nosso), Não dá no mesmo valorizar o capital produzindo salsichas e produzindo canhões, assinala Marx, para enfatizar que o valor de uso da valorização define as características do capitalismo que será gerado. Os processos produtivos de um ou outro valor de uso são diferentes, e diferentes são os consumidores e os mercados de tais produções, assim como as políticas estatais que daí se originam. Uma economia que sustenta sua valorização em produtos bélicos estimulará a geração de conflitos e de guerras para criar mercados para seus produtos [, por exemplo]. Percebemos, então, que a dimensão do valor e do valor de uso, que se encontra apreendida pela categoria padrão de reprodução do capital, é crucial para o entendimento da atuação do Estado em contexto específico e espaço geoterritorial determinado no sistema mundial capitalista. Esta atuação se mostra efetiva, mais diretamente, através das chamadas políticas econômicas. Estas, segundo Osorio (2012), têm um campo de atuação extenso, cobrindo praticamente a totalidade do terreno que o capital percorre a fim de efetivar o seu ciclo e sua reprodução. Por meio de seus instrumentos, portanto, é possível facilitar a fluidez do ciclo do capital e a satisfação das necessidades que este ciclo implica, cuja repetição é 1 Este material é parte adaptada de minha dissertação de mestrado, intitulada Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de medição de análise (2019); mais especificamente de sua seção 3.2.2.4 Da lei do valor mundializada e do papel mediador do Estado em sua conformação num padrão de reprodução do capital específico. 2 Bacharel e Mestre em Economia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). responsável por conformar um padrão de reprodução. Por isso, o capital está sempre a zelar para que seus interesses prevaleçam no aparato estatal através de políticas econômicas que contribuam para com o melhor funcionamento de seu padrão de reprodução.3 No nível de análise subentendido pela categoria padrão de reprodução do capital, porém, o capital deve aparecer não como o capital em geral, mas como contendo frações e setores distintos. E, assim como no âmbito da concorrência econômica, na luta pela apropriação de valor excedente, estes setores e frações disputam entre si, no âmbito do Estado não é diferente. Como diz Osorio (2012, p. 72), “a política econômica não pode resolver da mesma maneira as necessidades de reprodução de todas essas frações e setores”. A disputa, portanto, se deve, fundamentalmente, ao fato de que, enquanto os setores e frações menos favorecidos e menos representados no aparato estatal se veem mais prejudicados em seus interesses, “no nível do Estado os setores mais favorecidos contam com maiores cotas de poder e as fazem sentir na aplicação de políticas econômicas que melhor propiciem seu desenvolvimento ou sua reprodução particular”. A apreensão desta disputa entre setores e frações do capital – de modo que, ao mesmo tempo que se capta seus conflitos, não se deixa de captar a sua articulação enquanto classe (s) dominante (s) em momentos históricos específicos, com determinada representação no Estado por parte de cada componente desta articulação – pode se dar, segundo Osorio (2014), pelo conceito de bloco no poder, tal como trabalhado por Poulantzas (1969). Nesse sentido, com esse conceito se é possível abarcar a chamada unidade-confrontação das classes dominantes, o que significa poder capturar a dialética que implica na necessidade de uma base comum de exploração e dominação que sustente estas classes, mas que não descarta seus conflitos provenientes da forma distinta com que tratam de satisfazer seus interesses específicos em um padrão de reprodução do capital determinado; e da disputa pelo excedente da produção por parte de cada uma dessas frações e setores do capital.4 A forma, por sua vez, como os setores e frações do capital mais favorecidos assim se fazem perante o aparato estatal se refere ao estabelecimento da hegemonia por parte de algum ou alguns destes. Segundo Osorio (2014), que, assim como com o conceito de bloco no poder, trabalha com este conceito à luz do trabalho de Poulantzas (1969), a condição hegemônica por 3 O capital aqui é o capital em geral, ou seja, estamos nos referindo ao capital num nível de abstração elevado. É só nesse nível de abstração que podemos conceber o Estado expressando, mais diretamente, seu caráter classista constitutivo em favor da burguesia que o comanda. Ou seja, como, em essência, uma “condensação da rede de relações de exploração e dominação que o capital estabelece na sociedade”, tal como fala Osorio (2014, p. 45), ou mais especificamente, como diz Marx e Engels ([1848] 1998, p. 42) em relação ao poder executivo desse Estado, “um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. 4 Cf. OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. 1 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2014, p. 46-49. parte de uma classe, fração ou setor é alcançada “no bojo de agudas disputas que chegam a envolver não apenas os participantes do bloco dominante, mas também as classes dominadas, mediante a busca de apoio e de força nestas últimas”. Essa condição hegemônica, por sua vez, é conquistada mediante o consenso ou a coerção. Quando se trata de alcançá-la mediante o consenso das classes não só dominantes, mas também das dominadas, temos uma situação, segundo Osorio (2014), de hegemonia social. É esta que permite ao projeto de um setor ou fração particular do capital se apresentar como o projeto de toda a sociedade.5 Nessa disputa pela hegemonia, cabe nos perguntar qual o papel do padrão de reprodução do capital. Osorio (2014, p. 47) nos responde isso dizendo que “geralmente o setor dominante que se encontra favorecido pelas tendências da reprodução do capital tratará de ganhar a direção do Estado [ou seja, a hegemonia] no seio do bloco no poder”. O padrão de reprodução do capital, no entanto, impõe limites quanto aos setores e frações do capital que podem hegemonizá-lo. Isso porque cada padrão de reprodução do capital exige do seu agente hegemônico, segundo Osorio (2014, p. 62), “determinados montantes de capital, particulares alianças com o capital internacional etc.”. Assim como impõe limites à conformação da hegemonia pelos distintos setores e frações do capital, cada padrão de reprodução do capital exige formas distintas de intervenção Estatal. Isso não se dá, porém, mecanicamente, mas dialeticamente. Cada padrão de reprodução do capital não impõe, automaticamente ou diretamente, determinada intervenção estatal. O Estado, aqui nessa visão, tem suaautonomia que, como diz Osorio (2014, p. 81, grifo do autor), em síntese, “reflete uma condensação de forças na qual a classe ou fração hegemônica impulsiona seu projeto, mas o faz dentro de um marco de relações determinado pela presença e ação de outras classes, frações e setores dominantes, e também das classes dominadas”. Cada padrão de reprodução do capital exige, portanto, diferentes políticas econômicas, dado que estas constituem uma das principais formas que o Estado intervêm direta ou indiretamente na economia. Tais políticas econômicas constituem, no entanto, um leque de opções a serem usadas dependendo das necessidades específicas de cada padrão de 5 Ibid., p. 47. O que se convencionou chamar de populismo na América Latina caminhou nesse sentido ao designar processos que envolviam a figura de líderes como Vargas, Perón ou Cárdenas, nos quais interesses burgueses industriais que estes líderes fundamentalmente representavam eram apresentados como os de toda a nação e de todo o povo. A hegemonia, portanto, da fração industrial do capital serve aqui para conclamar toda a população à unidade nacional, isto é, à unidade de interesses para a realização da política de desenvolvimento capitalista nacional. Ver mais sobre isso em BAMBIRRA, V. O capitalismo dependente latino-americano. 2. ed. Florianópolis: Editora Insular, 2013. reprodução, que assim as têm conforme o tempo e espaço específico a que se refere. A decisão que daí se provêm reflete, por isso, o estado da configuração dos interesses hegemônicos vigentes em dado momento e em dado lugar. As políticas econômicas, assim, como variadas que são a depender das correntes de pensamento econômico de que são tributárias, se diferenciam, basicamente, entre aquelas com maior ou menor ênfase no Estado ou no mercado. Não pretendendo ser exaustivo, Osorio (2012) elenca entre aquelas que colocam ênfase na ação estatal a política econômica keynesiana, a estruturalista e a neoestruturalista. Já aquelas que colocam ênfase na ação do mercado, estão a política econômica liberal, a neoliberal e a monetarista. A diferenciação entre suas ações se dá, por sua vez, através da aplicação de seus instrumentos, quais sejam: no campo monetário, a taxa de juros; no campo fiscal, os impostos e gastos públicos; no campo do comércio exterior, o tipo de câmbio e o nível de tarifas de importação; no campo do investimento estrangeiro, os impostos sobre lucros e dividendos e os empréstimos estrangeiros; no campo do consumo, os impostos de compra e venda e os gastos com seguridade social; no campo da mão de obra ou da força de trabalho, a determinação das taxas salariais; no campo da produção, os subsídios e o controle de preços; no campo do investimento, as taxas de juros, a isenção de impostos, o investimento público etc.6 A atuação destes instrumentos que conformam as políticas econômicas operam no sentido de facilitar o processo de circulação do capital e suas metamorfoses presentes em qualquer padrão de reprodução do capital. Se retomarmos esse processo sob a forma do ciclo do capital monetário (D-M...P...M’-D’) veremos que o Estado, nesse sentido, ajuda a resolver diversos problemas apresentados por esse ciclo no seu decorrer. Assim, explicitando tal situação, Osorio (2014) aponta que, na primeira fase desse ciclo (D-M), ou seja, na chamada primeira fase da circulação, a qual redunda na troca de dinheiro por força de trabalho (FT) e meios de produção (MP), o Estado deverá operar resolvendo problemas como os da soma inicial de capital necessária para se começar o ciclo, o que pode ser feito através de políticas que estimulem os investimentos, incluindo aí a atuação do Estado no sentido de garantir a paz social; da regulação do preço da força de trabalho, através da determinação de salários mínimos e de leis trabalhistas, as quais estabeleçam as formas de organização e defesa dos trabalhadores; da fixação de preços de 6 Cf. OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica, OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias Seibel (Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. algumas matérias-primas básicas e estratégicas, como é o caso das energéticas; do oferecimento de tecnologias necessárias para a efetivação dessa primeira fase do ciclo etc. Na fase, por sua vez, da produção (...P…), o Estado se defronta com a necessidade de auxiliar em problemas que se referem às formas de utilização da força de trabalho, incluindo aí as jornadas de trabalho, a intensidade do trabalho, a organização do trabalho etc. Aqui surgem as regulamentações sobre o direito de greve, sobre as formas possíveis que os conflitos trabalhistas podem assumir etc., assim como o abastecimento de matérias-primas e de fontes energéticas aos processos de trabalho. Por fim, na chamada segunda fase da circulação (M’-D’), a maior importância da intervenção da estatal aparece como a necessidade de criar mercados para as mercadorias produzidas. Nos mercados internos de determinada formação econômico-social em que vige determinado padrão de reprodução do capital, isso se faz através da distribuição progressiva ou regressiva da renda.7 Já nos mercados externos, a atuação do Estado se dá pelo estabelecimento de acordos e pactos no mercado mundial e regional. Além disso, a intervenção estatal nessa fase da circulação é solicitada para se estabelecer os impostos ou isenções sobre os lucros de empresas transnacionais etc. A intervenção estatal no sentido de assegurar o funcionamento de um padrão de reprodução do capital não se limita, no entanto, à sua atuação mais direta nas etapas do ciclo do capital. É preciso, para além disso, que se garanta, segundo Osorio (2014), a infraestrutura adequada em que opera tal padrão de reprodução, como é o caso da construção de estradas, portos, aeroportos etc., além das políticas fiscais que favorecem a formação de parques industriais, zonas francas, zonas para maquiladoras e todos os demais elementos que dizem respeito às necessidades básicas de cada padrão de reprodução do capital em particular. REFERÊNCIAS BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. 2. ed. Florianópolis: Editora Insular, 2013. MAGALHÃES, W. C. Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de mediação de análise. 7 É interessante destacar que, em Marini ([1973] 2011), se expõe que, no contexto da economia dependente, a opção do Estado por uma distribuição de renda regressiva que beneficia a chamada esfera alta da circulação (aqueles que vivem da apropriação de mais-valor) através de subsídios, financiamentos e do mecanismo da inflação, se dá pelas necessidades próprias de uma economia construída de forma sui generis sobre a base da superexploração de seus trabalhadores, voltada preponderantemente para o mercado externo desde suas origens, e com um mercado interno, por isso mesmo, reprimido. Cf. MARINI, Ruy Mauro [1973]. Dialética da Dependência. In: STEDILE, João Pedro e TRASPADINI, Roberta (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p.131-172. 2019. 182 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019. MARINI, Ruy Mauro [1973]. Dialética da Dependência. In: STEDILE, João Pedro e TRASPADINI, Roberta (orgs). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011a. p.131-172. MARX, K.; ENGELS, F. [1848]. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998. OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. 1 ed. São Paulo:Outras Expressões, 2014. OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias Seibel (Orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. POULANTZAS, Nicos. Poder político y clases sociales en el Estado capitalista. México: Siglo XXI, 1969.
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