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FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS Paulo Augusto Seifert Código Logístico 57351 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6433-5 9 788538 764335 Filosofia das Ciências Sociais IESDE BRASIL S/A 2018 Paulo Augusto Seifert Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S46f 2. ed. Seifert, Paulo Augusto Filosofia das ciências sociais / Paulo Augusto Seifert. - 2. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 184 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6433-5 Filosofia das ciências sociais / Paulo Augusto Seifert. - 2. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 18-47185 CDD: 100 CDU: 1 © 2007-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem auto- rização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: DAVID, Jacques-Louis. A morte de Sócrates. 1787. 1 óleo sobre tela; color: 130 x 196 cm. Metropolitan Museum Art, Nova Iorque, Estados Unidos. Paulo Augusto Seifert Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em Teologia pelo Seminário Concórdia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Atualmente é professor- -adjunto da Universidade Luterana do Brasil e editor associado das revistas Theophilos, Logos (Canoas) e Caesura. Tem experiência na área de filosofia, com ênfase em história da filosofia. Sumário Apresentação 9 1. Conhecimento, crença e fé 11 1.1 Sabemos o que julgamos saber? 11 1.2 O que é epistemologia? 13 1.3 Noções básicas em epistemologia: conhecimento, crença e fé 16 2. Conhecimento e ceticismo 23 2.1 Anatomia do ceticismo 23 2.2 A dúvida cartesiana 24 2.3 Como responder ao cético? 31 2.4 Condições para o conhecimento 32 3. Teorias epistemológicas 37 3.1 Fundacionalismo 37 3.2 Coerentismo 47 3.3 Antifundacionalismo 49 3.4 A epistemologia e as ciências sociais 51 4. Relação entre ciências sociais e ciências naturais 53 4.1 Quantos tipos de ciência há? 53 4.2 Diferença de grau e de tipo 60 4.3 Naturalismo 62 4.4 Antinaturalismo 64 5. Natureza humana e liberdade 67 5.1 É possível uma ciência da natureza humana e da sociedade? 67 5.2 Possibilidade e necessidade 69 5.3 Tipos de liberdade 74 6. Determinismo, indeterminismo e ciência 81 6.1 O problema 81 6.2 Determinismo 83 6.3 Indeterminismo 89 7. Explanação científica 91 7.1 Explanação e leis 91 7.2 Indutivismo 92 7.3 Esclarecimentos conceituais 96 7.4 Dedutivismo 98 8. Holismo e individualismo 103 8.1 Totalidades e partes 103 8.2 Entes sociais e indivíduos 104 8.3 Holismo metodológico 105 8.4 Individualismo metodológico 107 9. Causalidade e realidade 113 9.1 O que significa dizer que A causou B? 113 9.2 Critérios de causação 116 9.3 Condições necessárias e suficientes 118 9.4 Ciência e realidade 119 10. O sujeito e o objeto 127 10.1 Objetividade e subjetividade 127 10.2 Sobre o que é e o que deve ser 129 10.3 A origem dos valores 132 10.4 Os valores e os estudos sociais 140 11. O comportamento significativo 143 11.1 Peter Winch e a ideia de uma ciência social 143 11.2 A organização da sociedade 145 11.3 Motivos, razões e propósitos 150 12. Estudo de caso: a teoria da ciência de Lakatos 155 12.1 Falsificacionismo dogmático 156 12.2 Falsificacionismo metodológico 158 12.3 Falsificacionismo sofisticado 161 Gabarito 167 Referências 181 9 Apresentação Ciência é hoje sinônimo de conhecimento, não só etimológica, mas também descritivamente. Nós nos acostumamos a considerar que as explicações que provêm da ciência são melhores e mais verdadeiras do que aquelas do senso comum. Ou, por outro lado, que a ciência comprova aquilo que já se sabia de maneira empírica ou intuitiva, e, assim fazendo, atesta o conhecimento popular. Como na sentença, por vezes utilizada em meios de comunicação, a ciência provou aquilo que nossas avós sabiam. Embora isso seja também um elogio ao conhecimento das avós, a força da sentença se encontra no sujeito e no verbo. Ora, o termo ciência, nesses contextos, designa uma atividade organizada, metódica, experimental, executada por pessoas treinadas em determinadas áreas e metodologias. Essa confiança na ciência e nos cientistas é relativamente recente na história da humanidade, data de aproximadamente 500 anos, e vem crescendo desde o surgimento do que se chama ciência moderna. Parte significativa da confiança está relacionada com os efeitos práticos, com os sucessos obtidos por diversas ciências em melhorar a vida das pessoas. Não podemos duvidar, sensatamente, que a vida é, em geral, melhor hoje do que era há mil anos ou mais. Por outro lado, problemas gerados pelo desenvolvimento científico, como poluição, aquecimento global, novas doenças, serão resolvidos, pensam muitos, com mais ciência. Desde o século XIX, costuma-se dividir as diversas ciências em naturais e sociais. Se ciência, então, é sinônimo de conhecimento, ciências sociais são aquelas que nos possibilitam um conhecimento mais preciso da sociedade, isso é, das instituições e dos fenômenos sociais. Vivemos, e precisamos 10 viver, em sociedade; para tanto, saber como agir e interagir com os outros é fundamental, e todos temos, em maior ou menor grau, saberes sociais. Nesta obra, consideramos o saber social organizado nas ciências sociais de uma perspectiva filosófica. Nosso assunto é justamente se e em que medida as ciências sociais fornecem conhecimento confiável sobre a sociedade. A estrutura aqui observada é a seguinte: inicialmente, há considerações gerais sobre teoria do conhecimento, que ocupam os Capítulos 1 a 3; a partir do Capítulo 4, a especificidade das ciências sociais é levada em conta. Nesse capítulo, apresentamos as duas concepções gerais acerca da relação entre ciências sociais e ciências naturais. Os Capítulos 5 e 6 tratam de questões filosóficas e metafísicas que dizem respeito aos seres humanos, a saber, se somos livres em nossas ações. Dos Capítulos 7 a 10, tópicos importantes para as ciências sociais são considerados: como explicações científicas são produzidas (Capítulo 7); a relação entre indivíduos e sociedade (Capítulo 8); a relação entre ciência e realidade (Capítulo 9); a relação entre quem conhece e aquilo que é conhecido (Capítulo 10). Para finalizar, nos dois últimos capítulos, discutimos duas visões contrastantes de como fazer ciência social: a de que o conhecimento da realidade social exige uma epistemologia e metodologias exclusivas, diferentes das aplicadas nas ciências naturais (Capítulo 11); e a de que a epistemologia e o método científico são basicamente os mesmos, independentemente do objeto estudado (Capítulo 12). Esperamos que você tenha, por meio destes textos, contato inicial com um conjunto de questões, algumas simples e outras extremamente complexas, mas todas interessantes acerca da possibilidade e necessidade de um conhecimento científico da realidade humana e social. 1 Conhecimento, crença e fé 1.1 Sabemos o que julgamos saber? O famoso filósofo grego Platão conta, em seu livro intitulado A república, uma história conhecida como o Mito da Caverna. De acordo com essa alegoria, um grupo de pessoas vivia pre- so dentro de uma caverna e, em razão de certas circunstân- cias, tudo o que eram capazes de ver se restringia às sombras projetadas no fundo da caverna. Essas sombras eram de seus próprios corpos, bem como de objetos e dos corpos de outras pessoas que viviam fora da caverna. As imagens desses obje- tos e corpos eram projetadas no fundo da caverna em razão de uma fogueira que se encontrava na entrada dela. Como as pessoas lá dentro só viam tais sombras, elas julgavam que as sombras correspondiam ao real,e aquilo lhes parecia ver- dadeiro. Quando uma delas consegue se libertar e sair da caverna, fica inicialmente aturdida pela luz do sol e pela visão dos objetos reais. À medida que se acostuma, percebe então serem as coisas que ela vê fora da caverna o verdadeiramente real, e aquilo que via quando estava dentro da caverna eram apenas sombras. Essa alegoria sugere que nem sempre aquilo que acre- ditamos ser verdadeiro realmente o é, e podemos estar enganados naquilo que nos parece óbvio. Todos nós julga- mos que sabemos certas coisas, especialmente aquelas que nos são familiares, aquelas das quais temos experiências constantes, repetidas, cotidianas. Tais experiências nos parecem confiáveis. Mas será que elas realmente são? Um Vídeo 12 Filosofia das Ciências Sociais exemplo simples pode nos mostrar que talvez não, ou que, pelo menos em algumas situações, tal confiabilidade pode ser posta em dúvida. Aprendemos que há boas razões científicas para dizer que, contrá- rio às aparências, o Sol não se move em torno da Terra, mas o inverso é verdadeiro. A Terra des creve um movimento elíptico ao redor do Sol. Mas não é isso o que percebemos. Percebemos que o Sol ora está em um lugar, ora em outro. Quanto à Terra, não vemos nem sentimos que ela se move. Contudo, como a ciência nos ensina, aquilo que vemos é falso, e aquilo que nem vemos e sentimos é, nesse caso, verdadeiro. Não deveríamos nos fixar em nossas próprias percepções e nelas acre- ditar? Acreditar somente naquilo que podemos ver ou sentir? Acontece que nós temos também experiência de que nossos sen- tidos nos enganam e que, por vezes, vemos coisas que não estão realmente ali, ou nos enganamos sobre as características dos objetos que percebemos. Quem já não passou pela experiência de, no en- tardecer, julgar que certo objeto visto era um pequeno animal (um cachorro, digamos) e, ao se aproximar, perceber que era um arbusto? Cada um de nós pode lembrar diferentes momentos em que nos en- ganamos quanto a sensações que tivemos; pode-se lembrar ainda da experiência de sonhos ou pesadelos intensos, de cujo caráter ilusório só nos damos conta ao despertarmos. E, se a situação é assim no que diz respeito a sensações comuns, fica ainda mais complicado quando se trata de teorias científicas, seja em ciências naturais ou em ciências sociais. Por exemplo, se tomarmos uma ciência social como a história, podemos estender essa dúvida da qual estávamos falando e perguntar: como saber o que aconteceu em um passado distante (Antiga Roma, por exemplo) se dependemos dos testemunhos de outras pessoas, e de seu testemunho escrito, já que não mais estão vivas, e testemunhas não são muito confiáveis, e textos podem ter sido adulterados, e assim por diante? Conhecimento, crença e fé 13 1.2 O que é epistemologia? 1.2.1 Epistemologia geral Questões como as anteriores são tratadas pela epistemologia. Quando são questões gerais que se referem a qualquer área da ciência, da moral, da religião, da Filosofia, constitui o que se pode chamar de epistemologia geral. Por exemplo, a questão acerca da natureza e dos limites de nosso conhecimento (o que podemos saber?; o que podemos provar?) é desse tipo. Os filósofos costumeiramente distinguem três tipos básicos de conhecimento, relacionados à forma como usamos o termo conhecer ou saber: (1) conhecimento proposicional ou conhecimento de que algo é assim ou assado. Quando alguém diz: “eu sei que Jesus Cristo era judeu”, está usando o verbo saber em seu sentido proposicional1; (2) conhecimento direto ou por familiaridade, conhecimento esse ligado geralmente à observação de algo. Se alguém diz: “Eu conheço Salvador”, está nos dizendo, mesmo que indiretamente, que lá esteve, visitou a cidade, e assim por diante. Aqui, o termo conhecer é usado em sentido não proposicional; (3) conhecimento como habilidade, aquele relacionado com a capacidade de fazer algo. Se eu digo “sei nadar”, estou afirmando possuir uma certa habilidade. Essas são formas diferentes de conhecimento. Como se relacionam? Um desses tipos é mais fundamental, dele dependendo os outros? 1 Proposição é o termo usado pelos filósofos para distinguir uma certa espécie de sentença de outras, a saber, proposição é aquela sentença passível de atribuição de um valor de verdade. Pode-se dizer de uma proposição que ela é verdadeira ou falsa; aplica-se a ela o princípio do terceiro excluído. Assim, uma sentença como “Está cho- vendo agora” pode ser verdadeira ou falsa; é, portanto, uma proposição. Já a sentença “Feche a janela” não pode ser verdadeira nem falsa, pois é uma ordem, não afirma nem nega algo; é, portanto, uma sentença não proposicional. Da mesma forma, quando expressamos sentimentos, estamos usando a linguagem de modo não proposicional. Por exemplo, quando o enamorado diz à amada: “você partiu meu coração em peda- ços”, essa sentença não é verdadeira nem falsa. 14 Filosofia das Ciências Sociais Mesmo que não se assuma explicitamente que o chamado conhecimento proposicional é o mais fundamental, geralmente as discussões epistemológicas giram em torno desse tipo. E se faz especialmente uma distinção em dois subtipos: conhecimento proposicional a priori e conhecimento proposicional a posteriori. O conhecimento a posteriori é o conhecimento empírico, aquele dependente da experiência perceptual. Embora não se possa simplesmente equiparar percepção com sensação (pense na alegação de que há percepção extrassensorial ou de que há intuição), a experiência sensorial é tida, nesse contexto, como o modelo privilegiado de experiência e fundamento do conhecimento empírico. Assim, por exemplo, quando se pede pelas evidências de que algo é verdadeiro, a pessoa frequentemente está solicitando que se apresentem elementos ligados às sensações, como algo que se viu, ou ouviu, ou se tocou, e assim por diante. O conhecimento a priori é o conhecimento racional independente da percepção, aquele co- nhecimento cuja comprovação não precisa fazer referência alguma a uma experiência sensorial ou de outro tipo, se houver. Aquilo que nós sabemos antes (no sentido lógico) de qualquer experiência, ou, como alguns preferem dizer, o conhecimento inato em nós. Um dos mais importantes debates na epistemologia ocorre em referência a essa distinção entre o a priori e o a posteriori, ou, como também é chamado, as verdades de razão e as verdades de fato. Um exemplo de verdade de razão é “algo é igual a si mesmo”; um exemplo de verdade de fato é “Machado de Assis escreveu Dom Casmurro”. Esse debate opõe os empiristas aos racionalistas. Segundo o empirismo, todo e qualquer conhecimento depende, em última análise, da experiência sensorial. Se não for possível, em re- lação a qualquer fato ou objeto que se diz conhecer, apontar para alguma experiência a ele relacionado, tal suposto conhecimento é ilusório ou fantasioso. Conhecimento, crença e fé 15 As verdades de razão não são inatas, mas adquiridas, e consis- tem em relações de ideias, não em um saber acerca da realidade. Já para o racionalismo nem todo conhecimento depende da expe- riência sensorial; pelo contrário, as verdades mais fundamentais so- bre a realidade são não sensoriais, e as percepções devem ser julgadas por meio dessas verdades, ou desses conhecimentos fundamentais. Assim, em oposição aos empiristas, os racionalistas concebem as verdades de razão como inatas, e elas se referem à realidade tal como é, e não apenas às nossas ideias. O que significa que podemos obter algum conhecimento sobre o mundo também raciocinando, sem necessidade de ter experiências ou fazer experimentos. A mesma distinção é expressa em outros pares de opostos, como verdades necessárias/verdades contingentes, juízo analítico/juízo sintético. 1.2.2 Epistemologia aplicada Quando questões como as mencionadas são tratadas em rela- ção a alguma área específica das ciências, ou a um tópico específico de uma ciência determinada, constitui o que podemos chamarde epistemologia aplicada. Por exemplo, a questão acerca do papel da memória no conhecimento histórico, ou o assunto deste livro, epis- temologia das ciências sociais. A epistemologia aplicada não difere essencialmente, portanto, da epistemologia geral, nem aplicada aqui significa algo técnico. Apenas que há problemas epistemológicos que afetam qualquer área de conhecimento e outros que dizem res- peito a determinadas áreas, mas não a outras. Há uma diferença, por exemplo, no que se refere à epistemologia da matemática e no que se refere à epistemologia da religião. Uma importante questão diz respeito a se existe alguma diferença epistemológica, e qual é, no que se refere às ciências naturais (como a Física, a Química, a Biologia) e às ciências sociais (como a Sociologia, a História, a Antropologia). 16 Filosofia das Ciências Sociais 1.2.3 Episteme e doxa Epistemologia é um termo que provém do grego e pode ser traduzido por discurso sobre o conhecimento ou teoria do conhecimento2. A palavra grega episteme significa conhecimento, mas em um sentido forte (como era usual para os gregos, mas não o é para nós), o que hoje chamaríamos de conhecimento absoluto, aquele do qual somente um tolo duvidaria. Os gregos usavam esse termo para diferenciá-lo de um outro tipo de saber, aquele que chamavam de doxa, termo cuja tradução apropriada é opinião. E justamente, desde lá, consiste a tarefa fundamental da epistemologia, seja geral ou aplicada, em determinar a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), especialmente opinião verdadeira. Os gregos perceberam que ter uma opinião que corresponde aos fatos não é necessariamente conhecer os fatos. Como assim? 1.3 Noções básicas em epistemologia: conhecimento, crença e fé Para um melhor entendimento do que se discute em epistemo- logia, convém diferenciar inicialmente as noções ligadas aos ter- mos conhecimento, crença e fé. As distinções e relações que seguem não são exaustivas nem pretendem cobrir todo o espectro do uso e significado de tais termos, mas somente esclarecer alguns pontos importantes e fundamentais para que possamos adequadamente di- ferenciar ciência e opinião. 1.3.1 Crença e conhecimento O termo crença pode ser usado em um sentido lato (amplo) e/ou em um sentido estrito. No sentido lato, inclui o conhecimento; no estrito, frequentemente é usado em contraposição a conhecimento. Quando digo que conheço algo (por exemplo, que sei que 3 . 3 = 9), 2 Composto de duas outras palavras: episteme + logos. Conhecimento, crença e fé 17 então é também verdade que acredito nisso. Não faz sentido dizer que sei que 3 . 3 = 9, mas ao mesmo tempo dizer que não acredito que 3 . 3 = 9. Por outro lado, faz sentido dizer que acredito que Maria tem menos de 30 anos, mas não o sei, ou, como algumas pessoas também se expressam, que não tenho certeza. Qual a diferença? Segundo muitos filósofos, quando digo que sei que uma cer- ta sentença é verdadeira, três elementos pelo menos devem estar presentes: primeiro, que eu penso ser ela verdadeira; segundo, que ela é de fato verdadeira; e terceiro, que há evidência suficiente para produzir o assentimento de qualquer pessoa racional (a quem as mesmas evidências estejam disponíveis). Por exemplo, se digo que sei que Maria tem menos de 30 anos e apresento como evidências sua certidão de nascimento, o testemunho de seu pai, sua carteira de identidade e outras provas similares, então qualquer pessoa racional deveria concordar comigo. Isso, entretanto, não exclui a possibilida- de de que eu esteja errado. Se restringirmos a aplicação do termo conhecimento tão somente àquelas sentenças em relação às quais é impossível logicamente que estejamos errados, pouca coisa poderíamos dizer que as conhece- mos. Por exemplo, consideremos a sentença: e penso, existo; ou, na sua formulação clássica: penso, logo existo. Para qualquer um que afirma uma tal sentença, é impossível, sob qualquer circunstância imaginável ou concebível, que ele esteja errado; pois não há como alguém dizer “penso, mas não existo”. Ao dizer isso, a pessoa se con- tradiz, isto é, diz algo e logo após diz o contrário do que disse. Isso não faz sentido. É como se nada dissesse. Contudo, tal peculiaridade não ocorre com a maioria das coisas que dizemos ou nas quais acre- ditamos. Quando digo “Maria tem menos de 30 anos”, isso pode ser falso, ou poderia ser diferente, ou pode ter sido verdadeiro no passa- do, mas agora não é mais. Em suma, posso estar enganado. Assim, se evidências posteriores alterarem a situação, eu não poderia continuar dizendo que sei, ou sabia, que Maria tem menos 18 Filosofia das Ciências Sociais de 30 anos, mas deveria então dizer que, dadas as evidências disponíveis naquele momento, eu estava justificado em dizer que sabia. Por exemplo, se alguém mostrar que a certidão de nascimento de Maria é falsificada, e que o testemunho de seu pai depende do testemunho de sua mãe, já falecida (pois ele só veio a conhecer a menina quando já crescida, digamos, com um ano e meio), então teria eu agora evidências que excluem as anteriores nas quais baseava minha crença, mesmo que seja efetivamente verdadeiro e objetivamente considerado que Maria tem menos de 30 anos. Esse importante aspecto evidencia como o segundo elemento mencionado antes (a saber, que, quando dizemos saber algo, que esse algo seja realmente verdadeiro) é problemático. A diferença fundamental, portanto, entre conhecimento e crença (no sentido estrito) está no grau de evidência disponível. Uma cren- ça não é necessariamente algo em que acredito sem ter nenhuma razão para tal, mas algo em que acredito sem possuir evidências su- ficientes (e estou disso ciente) para compelir ao assentimento qual- quer pessoa racional. Daí ser adequado falar em graus de crença. Esses graus de crença seriam estabelecidos de acordo com sua rela- ção às evidências, o que se chama de princípio de proporcionalidade. Repetindo, o grau de uma crença, isto é, a força probatória que a sustenta, está em proporção direta com as evidências, com as razões que são apresentadas em seu favor, e inversamente proporcional às contraevidências, as razões apresentadas contra ela. Quanto maior a evidência a favor, mais forte (objetivamente) a crença. Agora, nem todas as crenças podem ou devem ser provadas; nem todas as crenças exigem evidências. Porque, se fosse necessário pro- var cada uma de nossas crenças, essa seria uma tarefa infinita: seria necessário apresentar a prova de uma crença, a prova da prova, a prova da prova da prova, e assim por diante, sem fim. O que fazer então? Parece haver três alternativas possíveis. Primeiro, manter que há crenças autoevidentes, isto é, cuja verdade é Conhecimento, crença e fé 19 conhecida por si mesma e não necessita, portanto, de prova alguma. Já mencionamos um exemplo: “penso, logo existo”. Alguns filósofos argumentaram que somente quando nossas crenças se baseiam em tais verdades autoevidentes podem elas ser consideradas conheci- mento, no sentido próprio do termo. Ou, como preferem alguns, na esteira da concepção grega, conhecimento absoluto. Somente nesses casos especiais não haveria diferença entre crer e conhecer. A segunda alternativa consiste em, numa certa altura do pro- cesso de prova, simplesmente nos darmos por satisfeitos com as evidências apresentadas, e aceitar a crença mesmo não tendo cer- teza absoluta de que é verdadeira. Essa aceitação pode se dar de dois modos: ou se aceita a crença plenamente, ou se aceita a crença provisoriamente3. Se a crença for aceita plenamente, julga-se que ela é verdadeira e confiável, e somente se volta a considerá-la se alguém apresentar uma contraevidência forte. Muitas das crenças que as pessoas têm são desse tipo: crenças acerca das propriedades dos objetos (de que cor são, que cheiro têm, qual seu tamanho etc.), crenças baseadas na memória (o que ocorreu ontem, o que os outros disseram etc.), crenças baseadas no costume(que o Sol aparecerá novamente, que o leite alimenta, que o fogo queima etc.). Se a crença for aceita provisoriamente, não se recusa a crença, mas se julga que há necessidade de investigá-la mais, mesmo se ela própria é tomada como ponto de partida da investigação. Nesse caso, é possível proceder de duas maneiras: (1) buscar ativamente contraevidências, isto é, provas de que a crença está errada; (2) buscar ativamente novas evidências a favor da crença. As teorias científicas são normalmente, ou pelo menos inicialmente, desse tipo. Por exemplo, quando os astrônomos no século XVI passaram a aceitar a teoria copernicana (o heliocentrismo), a crença em tal teoria era inicialmente provisória. Usando elementos 3 Conforme a classificação proposta por Mikael Stenmark, no texto “Racionalidade e compromisso religioso”, publicado na revista Numen, v. 2, n. 2, jul. dez. 1999. 20 Filosofia das Ciências Sociais da própria teoria no processo de investigação, os cientistas encontraram poucas contraevidências e muitas evidências novas a favor da teoria; assim, a crença em tal teoria passou a ser plena. Isso é o que os filósofos chamam de conhecimento provável ou conhecimento probabilístico. A terceira alternativa possível diante da questão acerca dos fundamentos de nossa crença consiste em simplesmente reconhecer que algumas crenças não têm fundamento nem são autoevidentes: ou as consideramos verdadeiras ou as consideramos falsas. Alguns as chamam de crenças fundamentais, e se justificam somente por fé. Um exemplo desse tipo de crença é a de que existem objetos físicos reais, independentes da forma como os percebemos, e com características realmente similares àquelas que as nossas sensações desses objetos nos fazem crer. Isso se chama crença na existência do mundo exterior. Há filósofos que, ao considerar o valor epistemológico dessa crença, argumentaram que ela não pode ser provada nem é autoevidente. Logo, concluíram que aceitamos tal crença porque temos fé na sua verdade. 1.3.2 Crença e fé Conforme o argumento anterior, fé seria um tipo de crença. Mas precisamos estar atentos aqui, especialmente tendo em vista as associações usuais com o termo fé. Esse contexto pode levar a ambiguidades epistemologicamente indesejáveis; mas, mesmo assim, ele é apropriado, bastando que tenhamos certos cuidados. Por fé muitas vezes se entende aquela crença que envolve intensidade no assentimento, e liga-se emocionalmente à pessoa, de modo que, se estiver errada ou se for atacada, provocará sério desapontamento. Geralmente, o termo está ligado a crenças religiosas, mas não é exclusivo delas. Conhecimento, crença e fé 21 Levando em consideração o que foi dito até aqui, sendo a fé uma forma de crença, embora mais intensa, não se deve julgar de ime- diato que fé é algo irracional. Esse tópico, sobre a racionalidade ou irracionalidade da fé (e, quando é discutido, geralmente os filósofos estão se referindo à fé religiosa), é complexo, pois o termo fé é nor- malmente aplicado a um conjunto bastante amplo de sentenças (por exemplo, quando se fala na fé cristã), e pode ser o caso de serem algumas dessas sentenças racionais e outras irracionais. Se conside- rarmos o conceito de fé de um ponto de vista estritamente epistemo- lógico, e no contexto da discussão feita aqui, a fé não é racional nem irracional. No limite, uma crença seria irracional se a pessoa que a mantém não fosse capaz de produzir evidência alguma em seu favor, e há diversas contraevidências disponíveis. Mas uma crença pode ser racional sem que seja aceita por todas as pessoas racionais que a discutem. Ela não constituiria assim um conhecimento, a não ser em um sentido derivado. Considerações finais Podemos, então, concluir que uma das tarefas principais da epis- temologia consiste em esclarecer o uso da ideia de conhecimento, quais os critérios que precisamos utilizar para não confundi-lo com crença em sentido estrito ou com fé, quais os seus componentes, como obtemos conhecimento e qual o seu alcance. Não devemos su- por, no entanto, que as respostas a essas questões serão exatamente correspondentes em qualquer área de conhecimento. Por essa razão, quando procuramos compreender epistemologicamente as ciências sociais, sem dúvida temos de considerar questões epistemológicas gerais, mas não precisamos supor previamente que não há diferen- ças importantes entre essa e outras áreas de conhecimento. 22 Filosofia das Ciências Sociais Atividades 1. Considerando o que você viu até o momento sobre episte- mologia, explique que uso ou aplicação pode ter tal estudo. 2. Faça uma lista de 20 crenças que você aceita, das quais 10 você julga ter conhecimento e 10 você aceita por fé. Discuta sobre essa lista com outras pessoas para verificar semelhanças e diferenças. 3. Por que é importante ter uma definição de conhecimento? 2 Conhecimento e ceticismo Vídeo 2.1 Anatomia do ceticismo Ceticismo não deve ser confundido com discordância de opiniões, embora o cético discorde daquele que afirma saber algo. A discordância de opiniões pode existir sem o menor vestígio de ceticismo. A certeza da falsidade de uma crença ou explicação baseada na certeza da veracidade de uma crença ou explicação oposta constitui antes um tipo de dogmatismo. Ocorre que a coexistência de dogmatismos excludentes suscita dúvida em relação à possibilidade mes- ma de se alcançar a verdade acerca do tópico, como mostra, por exemplo, a história da cosmologia no mundo grego ou a história das religiões nas sociedades em que o pluralismo religioso é permitido.Situação similar ocorreu no início da Idade Moderna, em que se verificavam diversos conflitos em áreas diferentes: na religião, os movimentos reformistas; na ciência, a disputa entre geocentrismo e heliocentrismo; na Filosofia, a disputa entre os defensores da Filosofia praticada na época (cujo método fora elaborado no período medieval) e os proponentes da nova Filosofia. Quando concepções céticas se apresentam, especial- mente se a dúvida é argumentada, e não apenas fruto de um desespero teórico, é preciso aceitá-las ou responder a elas. Pois não são apenas dúvidas particulares (por exemplo, se o objeto que vejo sobre a mesa é uma caneta ou um lápis), mas dúvidas gerais sobre a confiabilidade das maneiras pe- las quais adquirimos, testamos e raciocinamos sobre nos- sas crenças (por exemplo, se nossos sentidos nos dão acesso 24 Filosofia das Ciências Sociais direto à realidade). Uma das formas históricas mais interessantes e influentes de considerar o desafio cético encontramos na epistemo- logia de Descartes. 2.2 A dúvida cartesiana René Descartes (1596-1650), cientista e filósofo francês, é con- siderado por muitos historiadores como o fundador da Filosofia moderna. Uma das principais razões para lhe atribuir tal designativo está justamente na ênfase posta por ele no problema epistemológico. Embora não fosse um cético, Descartes fez uso sistemático da dúvi- da no intuito de obter conhecimento seguro. Aqui mostra sua origi- nalidade: diferente de seus predecessores, que procuraram refutar as dúvidas céticas por meio de argumentos contrários, ele propõe levar o princípio cético até suas últimas consequências e reconhecer como conhecimento seguro somente aquilo que resiste a qualquer dúvida possível, e assim fundamentar a ciência em solo seguro e inabalável. Em uma de suas principais obras, intitulada Meditações (1641), ele apresenta seu plano filosófico e diz: Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus pri- meiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verda- deiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente des- de os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas ciências.(DESCARTES, 1983, p. 85) Na consecução de tal propósito, Descartes elabora um méto- do que ficará conhecido na história do pensamento como dúvida cartesiana ou método da dúvida. Consiste ele em testar nossas pre- tensões de conhecimento contra o pano de fundo de hipóteses de dúvida, hipóteses essas que colocariam em evidência, especialmente, as fontes (ou princípios) por meio das quais nós justificamos nosso conhecimento, e não aspectos particulares daquilo que se supõe ou Conhecimento e ceticismo 25 afirma saber. Questionar cada uma de nossas opiniões particulares sobre cada objeto ou evento particular seria uma tarefa infinita e impossível, caso necessária. Contudo, como bem percebe e argumenta o filósofo francês, tal procedimento é desnecessário, pois, se formos capazes de mostrar que as fontes ou os princípios de nossas opiniões são duvidosos ou seguros, todo o restante que deles decorre ou neles se fundamenta seguirá o resultado dessa investigação. Por exemplo, se alguém não está certo de que o objeto que vê a uma certa distância é uma bicicleta ou uma motocicleta, essa é uma dúvida particular, cuja resolução usualmente supõe que, no geral, o sentido da visão nos fornece informações confiáveis sobre a realidade, e que pode, conforme o caso, ser auxiliado por algum outro sentido (do tato, digamos). Uma dúvida mais ampla seria aquela acerca da confiabilidade da visão como tal; ou, ainda mais geral, dos sentidos (já que a visão é apenas um deles). Para que nós entendamos adequadamente o que Descartes pretendeu fazer, três pontos são importantes. Primeiro, os argumentos que ele apresenta são nada mais que hipóteses de dúvida. Não está ele afirmando ou supondo que isso é realmente o caso. Segundo, as hipóteses de dúvida são abrangentes e referem-se não a conhecimentos particulares, mas aos princípios do conhecimento. Terceiro, constituem uma dúvida metódica, dirigida a entender em que nossas opiniões se baseiam ou como se justificam, e não uma dúvida prática, relacionada a nossas ações. Quanto a estas, Descartes adota uma postura prudencial, julgando conveniente orientar as ações pelos usos e costumes da sociedade em que se vive. Como ele constrói essas hipóteses de dúvida? O procedimento é relativamente simples: usar como ponto de partida algo geralmente aceito, acrescentando algumas modificações, conforme necessário, para o propósito da dúvida metódica, e então ampliar o alcance da situação inicial. O único limite para essa experiência de pensamento 26 Filosofia das Ciências Sociais (ou experimento mental) está na admissibilidade lógica da supo- sição, por mais absurda que possa parecer ao senso comum ou do ponto de vista moral. Importa também perceber que uma hipótese de dúvida, assim construída, não é um argumento positivo, que efetivamente preten- de estabelecer uma conclusão. Se assim fosse, o propósito mesmo da dúvida metódica seria de início abortado, pois, em lugar de estender a dúvida o mais longe possível para verificar quais crenças resis- tem, já começaria apresentando algumas crenças como certas, isto é, aquelas propostas na hipótese de dúvida. Assim, quando lemos as suposições cartesianas, não devemos nos deixar levar pela ideia de que Descartes estaria realmente afirmando que, por exemplo, tudo é um sonho; basta que seja possível. Essa é outra diferença significati- va entre o método por ele utilizado e a forma em que o ceticismo se apresentou anteriormente na história da epistemologia. 2.2.1 Hipótese do engano dos sentidos Essa é a hipótese cética mais usual e relacionada à experiência comum. Em algum momento, todos nós passamos pela experiên- cia de crer, mesmo momentaneamente, em algo que subsequente- mente se mostrou ser uma ilusão sensorial. Não nos enganamos muitas vezes quando julgamos acerca do tamanho dos objetos que se encontram distantes de nós? E quanto à sua cor? Não ouvimos por vezes palavras que não foram ditas? E, conforme as condições ambientais ou de nosso corpo, não sentimos os objetos ora de uma forma, ora de outra? Aquilo que sob uma luminosidade nos parece preto, sob outra nos aparece azul. Aquilo que, conforme nossas disposições corporais, parece-nos doce em uma ocasião, em outra nos parece amargo. E assim por diante. A hipótese do engano dos sentidos consiste em ampliar essa experiência comum e indagar: se os sentidos nos enganam algumas vezes, o que nos garante que não nos enganam sempre ou na maioria das vezes? Conhecimento e ceticismo 27 Além do mais, a ciência física que estava sendo elaborada a partir do século XVI, e da qual Descartes é um dos criadores e defensores, mostrava com clareza que a confiabilidade posta nos sentidos, e a crença nas informações sobre o mundo deles derivadas, parecia equivocada; muitas das teorias e dos desenvolvimentos na astronomia e na óptica, por exemplo, explicavam os fenômenos por meio de descrições que contrariam nossos sentidos. Uma importante distinção, reconhecida largamente, ainda hoje, foi feita entre as qualidades secundárias e as qualidades primárias dos objetos físicos. Aquelas propriedades dos objetos diretamente acessíveis à percepção, às propriedades sensoriais imediatas (especialmente as ligadas a um único sentido), foram sendo desqualificadas como propriedades essenciais explicativas dos objetos. As qualidades secundárias são as cores, as sensações táteis, os cheiros, os sons, os gostos, que deixam de ser considerados propriedades intrínsecas das coisas para serem concebidos como uma espécie de ação exercida pelas coisas sobre nós, seres sencientes. Assim, por exemplo, quando vejo um objeto azul (um sofá, digamos), o azul que vejo não se encontra no sofá, mas na interação dos elementos que o compõem com a minha estrutura perceptiva. Para muitos dos pensadores da Idade Moderna, tal interação é explicada como uma forma de ação causal exercida pelo objeto sobre nossa sensibilidade. E, se nenhum ser percipiente existisse, não haveria cores, sons, sabores etc. Segundo Galileu Galilei (1987), muitas sensações, que são qualidades de objetos, possuem existência somente em nós. Galileu utiliza como exemplo a sensação de calor, e argumenta que o calor não é uma propriedade real do fogo, mas a ação de suas propriedades reais (como figura, número, movimento) sobre nós. “Mas que exista, além da figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, 28 Filosofia das Ciências Sociais eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo [no caso, o corpo humano], o calor torna-se simplesmente um vocábulo” (GALILEI, 1987, p. 121). Essas propriedades reais foram chamadas de qualidades primárias, sendo as principais a figura, o número e o movimento, e somente essas podem ser estudadas cientificamente. Não que as conhecemos independentemente dos sentidos, mas temos delas noção mais clara em razão do exercício de reflexão e argumentação sobre os dados sensoriais. Apesar de a hipótese do engano dos sentidos pôr em dúvida muito do que consideramos verdadeiro em relação aos objetos fí- sicos, permanecem ainda confiáveis aquelas sensações mais próxi- mas, como a que tenho ao ver minhas mãos digitando este texto no computador. Além do mais, sobra todo o conhecimento relativo às qualidades primárias e o relativo ao que independe dos sentidos, como as verdades lógicas e as verdades matemáticas. 2.2.2 Hipótese do sonho Assim como a hipótese anterior, a do sonho é extraída de uma experiência comum. Há sonhos cuja intensidade faz parecer durante algum tempo que o sonhado, mesmo depois de acordarmos, real- mente ocorreu; em alguns casos, permanece uma sensação corporal relacionada a algum evento no sonho. Somos, no entanto, capazes de fazer a distinção entre a vigília e o sonho, pelo menos para pro- pósitos da vida usual. Contudo, conforme a intensidade e repetição de alguns sonhos,podem esses exercer uma influência importante sobre a vida desperta, que pode ser positiva ou perniciosa. Essa força dos sonhos fez com que se julgasse serem alguns deles mensagens divinas ou premonições, antecipações do real. O que mostra que a separação entre o sonho enquanto fantasia e a vida cotidiana en- quanto realidade não é radical. E, quando refletimos sobre o sonho, percebemos que aquilo que acontecia enquanto sonhávamos era, Conhecimento e ceticismo 29 dentro do próprio sonho, real. Se nos damos conta de que é um so- nho, já estamos pelo menos semidespertos. A hipótese do sonho consiste em ampliar o alcance dessa expe- riência e indagar: o que me garante que não estou agora, ou sempre, sonhando? O que garante a você, leitor, que isto o que está fazendo agora (lendo este texto) não seja parte de um sonho? Pois mesmo as coisas comuns que fazemos no cotidiano são muitas vezes tam- bém sonhadas. Assim como no cotidiano vejo mesas, livros, canetas, computador, também vejo as mesmas coisas em alguns de meus so- nhos. Então, como eu sei que agora estou desperto, e não sonhando? Se penso cuidadosamente nisso, diz Descartes, não há critérios suficientemente claros para distinguir a vigília do sono. Digamos que acordo, e isso me permite fazer a diferença; mas pode ser também ilusório, e esse despertar faz parte de um sonho maior, e dentro desse sonho maior temos sonhos menores e aparência de vigília. Essa hipótese não é absurda, logicamente considerada; é perfei- tamente possível que seja verdadeira. O cinema contemporâneo, graças aos recursos tecnológicos hoje disponíveis, tem produzido filmes que trabalham essa possibilidade, como Matrix. No famoso romance O mundo de Sofia, a personagem principal, Sofia, descobre em um determinado momento que não é uma me- nina que realmente existe (como achava até aquele momento), mas uma personagem em uma história. Essa descoberta não faz com que ela se torne uma pessoa real, mas faz com que ela procure meios de sair de dentro da história. E se esse fosse o caso de cada um de nós? Como tal descoberta afetaria nossas crenças? Admitindo-se a hipótese do sonho, embora muitas de nossas crenças comuns (especialmente aquelas relativas ao que conside- ramos que seja a realidade sensível do cotidiano) sejam abaladas, permanecem ainda garantidas as crenças relacionadas às quali- dades primárias, às crenças matemáticas, às regras do raciocínio. Por exemplo, o sonho deixa intacta a crença de que 3 x 3 = 9; mesmo 30 Filosofia das Ciências Sociais que eu admita a possibilidade de que esteja agora sonhando, e não posso então estar seguro de que os objetos físicos ao meu redor têm as características que me parecem ter, ou mesmo que existam, o meu conhecimento matemático não se altera, e uma multiplicação não muda sua regra, esteja eu acordado ou sonhando. 2.2.3 Hipótese do Gênio Maligno Essa hipótese é construída com base em uma determinada con- cepção de Deus, a concepção teísta. De acordo com o teísmo, Deus é um Ser existente, infinito, onisciente, onipotente, onibenevolen- te, que criou e mantém todos os demais seres. Imagine-se, sugere Descartes, que haja um Ser que corresponda a essa descrição com exceção de um atributo: o da veracidade. Assim, imaginemos que haja um Deus onisciente, onipotente, onipresente, que se deleita em nos enganar. Toda vez que julgamos saber algo, esse Gênio Maligno (Descartes assim o chama) está a nos iludir. Dessa forma, se pensamos que a árvore que vemos é verde, é o Gênio Maligno que produz esse pensamento em nós, enquanto na realidade a árvore é azul; se pensamos que os objetos físicos pos- suem dimensão, é o Gênio Maligno que produz em nós esse pensa- mento, e não há realmente objetos físicos; se pensamos que 4 x 4 = 16, esse pensamento é em nós produzido pelo Gênio Maligno, com o propósito de nos enganar, e o resultado correto poderia ser 14 ou 18. E assim por diante, em relação a cada tipo de conhecimento, seja das propriedades secundárias ou das propriedades primárias dos objetos, da existência mesma dos objetos, da verdade das relações matemáticas. De todos esses conhecimentos podemos nos sentir se- guros e não perceber onde estaria o erro. Contudo, se a hipótese do Gênio Maligno é possível (logicamente falando), essa certeza é fútil. Essa hipótese de dúvida é mais abrangente que as anteriores. Será que ela é total e de nada é possível haver conhecimento? O que resta? Resta o sujeito que está pensando nessas coisas. Será que o Gênio Conhecimento e ceticismo 31 Maligno é tão poderoso a ponto de me fazer crer que penso e existo, quando na verdade não existo nem penso? Aqui, Descartes julga ter encontrado a primeira verdade, indubitável, resistente a qual- quer argumento cético: “Penso, logo existo” (sentença conhecida na história como o Cogito, em razão de sua versão em latim: Cogito, ergo sum). Essa verdade não pode ser enganação do Gênio Maligno, pois, para ser enganado, preciso1 pensar que algo é verdadeiro, e, se penso, pelo menos enquanto penso, existo. A isso se acrescentam os pensamentos outros que tenho. Isto é, se penso que a árvore é verde, posso estar certo de que penso que a árvore é verde, embora não de que a árvore é verde. O problema dessa descoberta, por mais interessante que seja, está em sua limitação. A certeza aqui adquirida não vai além do pensar presente e da minha existência enquanto penso. Mesmo a memória de haver tido um pensamento há pouco (pensei há pou- co que a árvore é verde) está sob influência do Gênio Maligno. Como isso nos ajudaria em relação ao conhecimento da realida- de, às ciências? Como sair do pensamento para o mundo real, como construir uma ponte entre esses dois mundos? Embora a solução proposta por Descartes não tenha sido largamente acei- ta, a forma como ele colocou o problema estabeleceu o pano de fundo das investigações epistemológicas durante muito tempo (REID, 2002) e ainda exerce influência. 2.3 Como responder ao cético? O cético merece uma resposta, não apenas porque aquele que crê deve estar preparado a dar as razões de sua crença a quem o ques- tiona, mas porque, em certo sentido, o cético somos nós mesmos. A resposta dependerá de que tipo de ceticismo se trata; contudo, 1 Aqui se usa a primeira pessoa do singular, mas não é uma referência pessoal. É um eu abstrato, aplicável a qualquer indivíduo que refaça esse argumento. 32 Filosofia das Ciências Sociais o que não devemos fazer é repetir dogmaticamente nossa crença. O dogmatismo (a afirmação convicta de uma crença mesmo diante de objeções razoáveis) fornece alimento ao ceticismo; são ambos, como disse Hume (1984, p. 220), razões “da mesma espécie, embora contrárias em suas operações e tendências. Desse modo, quando [o dogmatismo] é forte, encontra no [ceticismo] um inimigo com a mesma força; e, como suas forças de início eram iguais, elas conti- nuam iguais, enquanto uma das duas subsiste”. Sem dúvida podemos propor uma resposta geral ao ceticismo, mostrando que, a não ser que fique calado, o cético faz uso em sua argumentação das regras comuns de raciocínio, pressupondo-as, portanto. E, ao fazê-lo, já enfraquece sua própria posição. Mas isso é insuficiente, como foi insuficiente, mas não inútil, a demonstração cartesiana do Cogito. Se quisermos responder ao cético, devemos considerar atentamente seu argumento, e ceder aonde for preciso ceder. E, se não nos tornarmos também céticos e ainda defender- mos, como parece razoável, a possibilidade de conhecimento, que aprendamos a atitude cética, saudável no caminho da ciência e con- tra a superstição, e não imaginar que sabemos o que não sabemos2. 2.4 Condições para o conhecimento Como distinguir o conhecimento efetivo da aparência de co- nhecimento? Se examinarmos a história da ciência, um ponto logo chama atenção: aquilo que era considerada uma teoria científica aceita em uma determinada época, em um tempo posterior foi subs- tituída ou complementada por outrateoria. Um exemplo fácil de compreender, mesmo para quem não tem formação científica estri- ta, pode ser encontrado na Astronomia. 2 Para uma exposição detalhada e bem argumentada dos benefícios e malefícios do ceticismo, ver a Seção XII, “Da filosofia cética ou acadêmica”, do livro Investigação sobre o entendimento humano, de David Hume (1984). Conhecimento e ceticismo 33 Durante muito tempo, acreditava-se que a teoria geocêntrica descrevia o mundo tal como ele é. Não que essa crença fosse um mito, um preconceito popular que a ciência física viria a refutar, como muitos outros mitos; essa era uma teoria científica. E um de seus enunciados principais era: o Sol gira ao redor da Terra. No en- tanto, como hoje se sabe, tal teoria foi substituída pelo heliocentris- mo, no qual um dos enunciados principais é: a Terra gira ao redor do Sol. Esse é um caso em que há incompatibilidade básica entre duas teorias alternativas, pois as sentenças mencionadas não são perifé- ricas a cada teoria respectivamente, mas fazem parte de seu núcleo central. Assim, se uma teoria constitui conhecimento efetivo, a outra constitui apenas aparência de conhecimento. Então, voltando à per- gunta inicial, e adaptando-a ao exemplo: como determinamos que o heliocentrismo constitui conhecimento, enquanto o geocentrismo apenas aparência de conhecimento? Uma resposta natural seria: porque sabemos agora que a teo- ria heliocêntrica é verdadeira, ao passo que a teoria geocêntrica é falsa. E isso parece sensato, pois a verdade é uma das condições necessárias do conhecimento. Como já se tornou usual dizer, para que eu possa falar “sei que p”3, e não apenas “acho que p”, três condições precisam ser satisfeitas: (1) “eu acredito que p” (crença); (2) “p é verdadeiro” (verdade); (3) “tenho razões (ou evidências) adequadas para crer que p” (justificação). E, à pri- meira vista, não parece complicado estabelecer a segunda con- dição; mais complicado seria estabelecer a terceira. Parece óbvio que se alguém diz “a árvore é verde” (p), p é verdadeiro se for realmente o caso em que a árvore é verde. Assim, o que nós de- veríamos fazer é verificar se p é verdadeiro. Contudo, isso não é tão simples, especialmente quando lidamos com hipóteses e teorias. Além do que, a noção de verdade tem sido compreendida 3 A letra “p” substitui uma sentença qualquer, por exemplo, ”a laranja é doce’”, “o valor de uma mercadoria reflete a quantidade de trabalho envolvida em sua produção”. 34 Filosofia das Ciências Sociais de maneira diferente. Há três principais teorias filosóficas sobre a noção de verdade: (1) teoria da correspondência; (2) teoria da coerência; e (3) teoria pragmática. Vamos aqui apenas mencioná- -las resumidamente. Segundo a primeira (1), uma sentença é verdadeira se corres- ponde aos fatos, é como uma cópia da realidade. Tal explicação, além de simples, concorda com o que normalmente as pessoas, independente de qualquer reflexão epistemológica, responderiam à pergunta: o que é a verdade? Então, o procedimento consiste em comparar aquilo que é dito com aquilo que é real. Mas fatos, e as coisas de que são fatos, são sempre individuais, particulares. E muito do que afirmamos, e que nos interessa em ciência, consti- tui sentenças gerais, como é o caso de hipóteses e teorias. Quando Newton enunciou, em 1686, a terceira lei do movimento, “A uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações de dois corpos um sobre o outro sempre são iguais e se dirigem a partes contrárias” (NEWTON, 1974, p. 20), não estava se referindo a al- gum evento que testemunhou, mas a qualquer evento, inclusive àqueles que viriam a ocorrer. A comparação já não é tão simples. Assim, se essa teoria é correta, precisa especificar como, por meio de que processos, justificamos a correspondência. Já para a segunda teoria (2), o que importa é que as sentenças (ou as crenças expressas pelas sentenças) sejam consistentes, isto é, pos- sam ser verdadeiras ao mesmo tempo. Assim, o sistema de crenças, que inclui teorias, hipóteses, sentenças experienciais, forma um todo coerente. Embora surpreendente à primeira vista, expressa um pro- cedimento também usual. Se duas afirmações opostas são apresen- tadas, julgamos que pelo menos uma delas é falsa. Por exemplo, se alguém, em um discurso, afirma que “um percentual pequeno de in- flação gera emprego” e, mais adiante, que “o desemprego se combate Conhecimento e ceticismo 35 eliminando a inflação”, há uma inconsistência, e pelo menos uma das sentenças é falsa. Por outro lado, se a verdade está na coerência somente, como optar entre alternativas igualmente coerentes? Por fim, a terceira teoria da verdade (3) admite que verdade significa a concordância de nossas ideias com a realidade. Contudo, concordar com a realidade, por sua vez, significa fazer diferença prática na vida, na experiência do sujeito. Deve-se perguntar: qual diferença concreta tal crença terá na vida de alguém? Ou como coloca o filósofo pragmatista William James (1981, p. 92): “Ideias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar, corroborar e verificar. Ideias falsas são aquelas que não podemos [fazer estas coisas]” (tradução do autor). Também essa concepção responde a um hábito. Quando ouvimos um discurso que parece nada ter a ver com a prática, tendemos a considerá-lo falso ou inútil. Por outro lado, como mostra a história das ciências sociais, ideias opostas podem ser assimiladas, validadas, corroboradas e verificadas. Como optar entre elas? Cada uma dessas teorias tem sido elaborada por diferentes epistemólogos de maneira a tentar responder às objeções que são apresentadas. Em geral, procura-se incluir as outras duas como elementos dentro da concepção defendida, de modo que, assim fazendo, não sejam consideradas inconsistentes. Assim, alguém que sustente a teoria da verdade como coerência pode admitir que em alguns casos uma sentença é verdadeira se corresponde aos fatos, mas isso porque é consistente com outra crença mais fundamental, a saber, que a realidade sensível é percebida pelos sentidos. Até o momento, nenhuma delas se mostrou completamente satisfatória, embora a teoria da correspondência continue sendo a mais promissora e provavelmente correta, já que dá conta de procedimentos que normalmente usamos para distinguir a verdade da falsidade. 36 Filosofia das Ciências Sociais Atividades 1. Conceitue a dúvida cartesiana e explique por que ela se dis- tancia tanto da dúvida cética quanto dos argumentos de seus predecessores acerca dela. 2. Defina em que consiste a hipótese do sonho e mencione um exemplo de uma crença comum que poderia ser abalada se essa hipótese fosse considerada. 3 Teorias epistemológicas Se o conhecimento difere da opinião por constituir crença ver- dadeira justificada, uma das principais tarefas de uma teoria episte- mológica, embora não a única, está em explicar como tal justificação se obtém e em que ela consiste. Desde o início da Filosofia moderna com Descartes, tal tarefa tem sido compreendida como fundamen- tal para as ciências, especialmente em razão dos argumentos céti- cos contra a possibilidade de haver conhecimento. E, se o cientista pretende apresentar uma descrição verdadeira da realidade que se oponha e substitua a qualquer forma de superstição, parece óbvio a uma consideração atenta da situação que há necessidade de mostrar não somente que as teorias científicas correspondem (de alguma maneira) aos fatos, mas como tal relação se estabelece. Historicamente, há diversas teorias epistemológicas que procu- ram explicar a possibilidade de conhecimento, as quais diferem em detalhes, mas podem ser agrupadas de acordo com certas ideias significativas. Vamos considerar, então, três desses agrupamentos: o fundacionalismo, o coerentismo e o antifundacionalismo. 3.1 Fundacionalismo1 Teorias fundacionalistas têm uma longa história no pensamento filosófico. Segundo tais teorias, a relação justificadoraentre crenças 1 O termo fundacionalismo vem de fundação, no sentido arquitetônico dessa pala- vra. Seu uso é recente na história da epistemologia. Alguns dos mais importantes fun- dacionalistas (Aristóteles, Descartes, Leibniz, Locke) não usavam essa palavra, embo- ra seu ponto de vista seja adequadamente expresso por ela. A palavra passou a ser utilizada no século XX para designar tais teorias, especialmente no âmbito linguístico anglo-saxão. O termo em inglês é foundationalism, que, por vezes, é também traduzido como fundacionismo. Ambos os termos em português são apropriados. Aqui utilizare- mos o substantivo fundacionalismo e correlatos. Vídeo 38 Filosofia das Ciências Sociais tem a seguinte estrutura: algumas (ou muitas) crenças encontram sua evidência em outras crenças, que por sua vez se baseiam em outras crenças, e assim por diante. Mas não é possível ir ao infinito nessa estrutura; é preciso encontrar o fundamento último, a saber, crenças que não dependem de outras crenças, mesmo que dependam de alguma outra coisa. Uma metáfora frequentemente utilizada é a da construção de uma casa. Não é possível começar uma casa pelo teto; é preciso pôr antes um fundamento. E, adaptando uma sentença de Jesus Cristo, a casa construída sobre fundamentos instáveis (areia) rapidamente cairá, mas aquela construída sobre fundamentos firmes e seguros (rocha) permanecerá. Assim, para as teorias fundacionalistas, uma das tarefas primordiais da epistemologia, qualquer que seja o campo de conhecimento em consideração, está em identificar esses fundamentos firmes e seguros. Por exemplo, suponhamos que alguém hoje acredite que Jesus Cristo foi traído por Judas Iscariotes com um beijo na face. Esse é um conhecimento histórico. Qual o seu fundamento, como ele é justificado? Em se tratando de uma crença quanto a um fato histórico remo- to, não há testemunhas vivas, mas apenas relatos escritos por teste- munhas, ou baseados em suas palavras. Quem acredita no exemplo anterior o faz porque acredita que os relatos são confiáveis, e os que produziram o relato acreditaram que as testemunhas eram confiá- veis, e as testemunhas acreditavam nisso porque se lembravam do que viram. Essa sequência explicativa pode ser complexificada, e tem de ser quando se trata não apenas de uma sentença histórica, mas de uma teoria histórica. Em qualquer dos casos, entretanto, a sequência terá a mesma estrutura de crenças, servindo de base e evidência para outras crenças, até se chegar a uma crença cuja base não é outra crença. Segundo o fundacionalismo, todo conhecimento exibe esse tipo de estrutura. Daí que uma distinção importante é feita entre crenças Teorias epistemológicas 39 básicas e crenças não básicas. Uma crença não básica2 é aquela jus- tificada por meio de outra crença, que por sua vez é justificada por outra crença, e assim por diante, até se atingir uma crença cuja justi- ficação não se encontra em qualquer outra crença. Esta última é uma crença básica. Também as crenças básicas precisam ser justificadas; eu tenho a obrigação de explicar por que creio nelas. A diferença é que não creio nelas com base em outras crenças, mas em algo di- ferente (como uma experiência, uma intuição, uma percepção, na memória etc.). Se a estrutura do conhecimento depende de crenças básicas, im- porta determinar como adquirimos essas crenças básicas, e se as adquirimos corretamente. Não é suficiente dizer que cremos em algo de maneira básica, como se não fosse necessário apresentar razões; é preciso mostrar que essas crenças têm objetividade e não dependem apenas das preferências individuais ou grupais. Em razão dessa exi gência3, o fundacionalismo procura identificar também os fundamentos das crenças básicas, e, justamente nesse aspecto, apa- recem divergências entre concepções alternativas. Os candidatos mais usuais são as verdades autoevidentes (favorecidas pelo racio- nalismo) e as percepções sensoriais imediatas (favorecidas pelo em- pirismo). Como exemplos das primeiras, temos: o todo é maior que a parte; algo é igual a si mesmo; tudo o que ocorre tem uma causa. Como exemplos das segundas, temos: sinto dor de cabeça; aquilo que parece amarelo; lembro-me de ter ido ao cinema. Geralmente, concorda-se que as condições para que uma crença seja básica são: 2 A maioria de nossas crenças são não básicas. Aquilo que acreditamos porque le- mos em jornais, vimos na televisão, mas não presenciamos nem conversamos direta- mente com uma testemunha, constitui exemplo disso. Para a maior parte das pessoas, o que elas acreditam acerca de um governo, por exemplo, depende da credibilidade que elas depositam nos meios públicos de informação. 3 Isso é bem expresso por John Stuart Mill (1806-1873) (MILL, 1868), filósofo in- glês e um dos principais fundacionalistas históricos. 40 Filosofia das Ciências Sociais não dependem de outras crenças, são indubitáveis, incorrigíveis, inalteráveis. Assim, por exemplo, se eu acredito que estou com dor de cabeça, não acredito nisso com base em alguma outra crença; creio diretamente. E também ninguém pode me dizer: não é verdade que você está com dor de cabeça4. Como as crenças não básicas são justificadas pelas crenças básicas? A resposta é que a relação de base entre esses diferentes tipos de crença se liga às formas possíveis de nosso raciocínio: a justificação pode ser dedutiva ou indutiva. Toda justificação epistemológica consiste em apresentar um argumento, sendo que um conjunto de sentenças é apresentado como exibindo um certo tipo de relação lógica, em que algumas servem de razão para aceitar outras. Conforme a amplitude do argumento, esse entrelaçamento de sentenças pode ser curto ou longo, mas sua estrutura será sempre similar. Usualmente, admite-se que há duas formas estruturais, mesmo que se discorde acerca da importância ou do valor de cada uma delas na constituição das ciências, naturais ou sociais. Essas formas são: a dedução e a indução. 3.1.1 Dedução Para esclarecer os aspectos básicos da dedução como justifica- tória, utilizemos um exemplo simples. Digamos que alguém acre- dite que os preços dos automóveis irão cair e, perguntado por que acredita nisso, responde: “se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai, e todas as montadoras aumentaram sua 4 A não ser que a pessoa queira dizer que eu estou mentindo. Mas daí se trata de outra situação. O ponto aqui é que não é possível estar enganado quanto a sentir uma dor de cabeça como é possível estar enganado acerca da cor de um certo objeto. Esse tipo de percepção sensorial, tida pelos empiristas como fundamento privilegiado de crenças básicas, é também chamada de experiência imediata (às vezes, também de intuição), isto é, refere-se a nossas próprias sensações internas, independente se a elas correspondem objetos físicos externos. Um argumento fundacionalista típico consiste em concluir que minha crença na existência de objetos físicos depende de minhas crenças acerca dessas sensações imediatas. Teorias epistemológicas 41 produção”. Aqui temos um exemplo de argumento dedutivo, que pode ser assim reformulado: • (1) Se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço uni- tário cai. • (2) A produção de automóveis aumentou. • (3) Logo, os preços dos automóveis irão cair. Em lógica, as sentenças (1) e (2) são chamadas premissas, e a sentença (3) é chamada conclusão. As premissas são as razões para aceitar a conclusão. O que caracteriza qualquer argumento dedutivo válido é a relação de implicação entre as premissas e a conclusão. Dizer que uma sentença implica outra significa que, se uma é verda- deira, a outra também é5. Não há como afirmar uma e negar a outra. Considere o exemplo na nota 5: a sentença “ela é uma adolescente” (A) implica a sentença “ela tem menos de 20 anos” (B), isto é, se alguém disser “ela é uma adolescente e fez 25 anos ontem” (A e não B), essa pessoa está se contradizendo, ou não sabe o significado da palavra adolescente.Compare com o que ocorre se nós invertermos a relação entre as duas sentenças. A sentença “ela tem menos de 20 anos” não implica a sentença “ela é uma adolescente”; aqui, B não implica A. Por que não? Porque é possível que ela tenha menos de 20 anos e não seja uma adolescente; por exemplo, se tiver 5 anos; nesse caso, é verdade que tem menos de 20 e não é verdade que seja uma adolescente, pois é uma criança. Importa observar, contudo, que há aqui, entre B e A, uma outra relação importante: a consistência. Duas sentenças são consistentes quando podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Assim, para que haja implicação, é preciso haver antes consistência: se uma sentença 5 Cuide-se para não fazer confusões linguísticas. No discurso lógico, não se fala que “algo implica em...” ou, menos ainda, que “implica com...”. Nenhuma dessas pre- posições é adequada aqui. Diz-se simplesmente, “A implica B”, em que A substitui uma sentença qualquer, assim como B. Por exemplo, “ela é uma adolescente” implica “ela tem menos de 20 anos”. 42 Filosofia das Ciências Sociais deve ser verdadeira porque outra o é, então ambas podem ser verda- deiras ao mesmo tempo, mas o inverso não ocorre necessariamente: duas sentenças podem ser consistentes e não terem mesmo relação alguma6. Aplicando esses conceitos ao argumento, não se pode acei- tar as premissas (crer nelas) e recusar a conclusão, pois as premis- sas implicam a conclusão; por outro lado, a negação da conclusão é inconsistente com as premissas. A saber, se ela crer o oposto de (3), que “os preços dos automóveis não irão cair”, (1) ou (2), ou ambas, devem ser falsas. Contudo, nem todo argumento dedutivo possui essa relação de implicação. No parágrafo anterior, falou-se de argumento dedutivo válido. Há também argumentos dedutivos inválidos, isto é, aqueles em que se pretende haver uma relação de implicação, mas não há. Mas como fazer a diferença? A diferença está na forma do argumento, não no conteúdo. Para saber se o argumento é válido, temos de prestar atenção em sua forma lógica. Frequentemente nós intuímos a forma lógica de um argumento, e sabemos se é válido ou não. Se queremos, porém, fazer e compreender hipóteses e teorias científicas, precisamos ter um treino mais adequado; parte desse treino pode ser providenciado pela lógica. O procedimento que melhor nos educa nesse assunto é a simbolização, como ocorre na Matemática. Sabemos calcular melhor e mais rápido em razão da notação matemática (1, 2, 3, 4...), independente do que está sendo calculado. No exemplo de dedução apresentado, isso é fácil de fazer. Se nós substituirmos cada sentença simples7 por uma letra, teremos o seguinte: 6 Por exemplo, a sentença “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil” e a sentença “inflação alta produz desemprego” são consistentes, mas uma e outra não tem qual- quer outro tipo interessante de relação. 7 Sentença simples é uma sentença que não pode ser decomposta em duas ou mais sentenças. Por exemplo, “a laranja é doce”. Sentença complexa é aquela que pode ser decomposta em uma ou mais sentenças. Por exemplo: “a laranja é doce, mas muito cara”, que pode ser decomposta em: “a laranja é doce’” e “a laranja é cara”. Teorias epistemológicas 43 • p = a produção de automóveis aumentou (ou a produção de qualquer bem aumenta). • q = os preços dos automóveis irão cair (ou o seu preço unitá- rio cai). As sentenças em parênteses têm o mesmo significado, no contexto, que as outras às quais se referem; portanto, não é necessário simbolizá-las diferentemente. Feito isso, podemos reformular o argumento usando os símbolos e teremos: • (1) Se p, então q. • (2) q. • (3) Logo, p. Dessa forma, podemos ver claramente o que significa dizer que as premissas implicam a conclusão, ou, conforme outra maneira de se expressar, que a conclusão se segue necessariamente das premissas. Pois a primeira premissa diz: se p é verdadeiro, então q também é verdadeiro; e a segunda premissa diz: q é verdadeiro. Daí, a única conclusão possível é: p também é verdadeiro. O esquema simbólico anterior é a forma lógica do argumento. Essa é uma das formas lógicas mais básicas, que usamos constantemente no cotidiano e nas ciências; seu nome é modus ponens (afirmação do antecedente)8. Para mostrar um argumento inválido, podemos usar o mesmo exemplo, apenas invertendo a segunda premissa e a conclusão, colocando uma no lugar da outra. Teremos, então, o seguinte: • (1) Se a produção de qualquer bem aumenta, o seu preço unitário cai; • (2) Os preços dos automóveis caíram; • (3) Logo, aumentou a produção de automóveis. 8 Em qualquer proposição hipotética, do tipo “se... então”, a sentença que vem após o “se” e antes do “então“ é chamada antecedente, e a que vem depois do então é chamada consequente. 44 Filosofia das Ciências Sociais Nesse caso, a forma lógica desse argumento é: se p, então q; q; logo, p. É chamada de afirmação do consequente. O argumento é inválido, pois, mesmo sendo as premissas verdadeiras, a con- clusão pode ser falsa; (3) também pode ser verdadeira, mas, se for, não o será devido a (1) e (2), o que seria necessário para o argumento ser válido. Pois podemos perfeitamente especificar outras razões para os preços terem caído sem que haja produção maior. Por exemplo, pode ser que ninguém estivesse comprando automóveis novos, e, para acabar com o estoque, as montadoras resolveram abaixar os preços. Outra técnica que nos permite mostrar que essa forma lógica é inválida é a técnica da substituição. Se a forma for válida, qualquer substituição sensata resultará em uma conclusão verdadeira, admitidas as premissas. Se a conclusão nos parecer falsa ou inaceitável, teremos que negar uma ou todas as premissas. Mas, nas formas inválidas, podemos manter as premissas e negar a conclusão. Considere o seguinte exemplo: “se alguém é mãe, então é mulher” (se p, então q); essa pessoa é uma mulher (q); logo, essa pessoa é mãe (p). É fácil de ver que a conclusão não se segue das premissas, pois sabemos que há mulheres que não são mães. 3.1.2 Indução Em argumentos indutivos, a relação entre as premissas e a con- clusão não é de implicação, mas de probabilidade. Diferente da ideia de implicação (ou implica, ou não implica), probabilidade vem em graus: uma conclusão pode ser mais ou menos provável em relação às premissas que a sustentam. Isso porque a conclusão excede o que está contido nas premissas. A razão para tal se encontra no objetivo de obter uma conclusão a partir da qual se possam fazer previsões, ge- ralmente por meio, então, de um argumento dedutivo, o que mostra a conexão entre essas duas formas de raciocínio. Se voltarmos ao exem- plo utilizado no tópico sobre dedução, essa conexão se torna visível. Teorias epistemológicas 45 Consideremos a premissa hipotética (1): “se a produção de qual- quer bem aumenta, o seu preço unitário cai”. No argumento deduti- vo, ela é suposta verdadeira. Mas e se perguntarmos: como sabemos disso? A resposta a essa pergunta, acerca da justificação daquela pre- missa hipotética, pode ser encontrada em um argumento indutivo, construído como segue e tendo em mente que a proposição hipoté- tica pode ser formulada categoricamente9: “sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai”. • (1) Em 1974, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuíram o preço; • (2) Em 1984, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuíram o preço; • (3) Em 1994, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuíram o preço; • (4) Em 2004, a produção de automóveis aumentou e, em razão disso, as montadoras diminuíram o preço; • (5) Logo, sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai. Se quiséssemos reforçar essa conclusão, poderíamos acrescentar outras premissas, relativas a outros tipos de bens, em que a rela- ção aumento de produção e queda de preço foi também observada. Assim, por exemplo:• (1”) Em 1995, o aumento na produção de computadores fez o seu preço unitário cair; • (2”) Em 2005, o aumento na produção de computadores fez seu preço unitário cair; 9 Uma proposição categórica é aquela formulada afirmativa ou negativamente: “todos os homens são mortais”; “nenhum político é corrupto”. Uma proposição hipotética é aque- la formulada condicionalmente: “se os homens são animais, então são mortais”. 46 Filosofia das Ciências Sociais • (5) Logo, sempre que aumenta a produção de um bem, seu preço unitário cai. O acréscimo de (1”) e (2”) torna (5) mais provável do que antes. Mesmo assim, a conclusão tem uma generalidade que vai muito além do observado nas premissas e se refere não só a casos do pas- sado e do presente que não chegaram a ser observados, mas também a casos futuros. Assim, não carrega ela a certeza que uma conclusão de um argumento dedutivo válido possui, e basta acrescentar uma outra premissa verdadeira, não oposta às já existentes, para destruir o argumento. Por exemplo, se acrescentarmos: • (3”) Em 2000, o aumento da produção de hortigranjeiros oca- sionou sua subida de preço unitário. Essa sentença não é o oposto de qualquer uma das outras premissas, mas seu acréscimo no argumento falsifica a conclusão. Tal fato não acontece na dedução: o acréscimo de qualquer outra premissa, desde que não oposta a uma já presente no argumento, não altera o valor de verdade da conclusão. Compare com o seguinte argumento dedutivo simples: todos os homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal. Qualquer outra proposição que eu acrescente, desde que não seja oposta a uma das premissas (não poderia ser Sócrates é um deus), em nada altera a conclusão. Por exemplo, se acrescentarmos: o anjo Gabriel é imortal, ou cachor- ros são mortais, ou Platão é homem; nada disso afeta a conclusão. Considerando a plausibilidade inicial de uma explicação funda- cionalista, e sua tentativa de satisfazer um de nossos desejos mais profundos – o de estarmos certos sobre algo –, sofre ela de uma séria desvantagem: a de que, usando dedução e/ou indução com base em crenças básicas (indubitáveis), pouca coisa se poderia saber, e muito daquilo que justamente recebe o nome de ciência nada mais seria que adivinhação. 3.2 Coerentismo Teorias epistemológicas 47 Teorias coerentistas procuram justificar a aceitabilidade de uma crença sem sair do sistema de crenças e sem estabelecer entre elas diferença quanto a seu papel na justificação do conhecimento. Uma metáfora frequentemente utilizada é a da rede, em que os diversos pontos estão entrelaçados em um todo, não havendo um ponto que sirva de suporte a outro ponto sem, por sua vez, ser suportado por outro ponto, e assim por diante até chegar ao primeiro ponto considerado. Também não importa por onde se começa. Assim, a distinção entre crenças básicas e crenças não básicas, tão importante para o fundacionalismo, perde sentido. Todas as crenças, do ponto de vista de seu lugar na estrutura cognitiva, têm o mesmo estatuto. O que as valida é sua compatibilidade mútua, sua coerência. Embora reflitam um elemento importante da maneira como nós avaliamos aquilo que nos é proposto como verdadeiro, teorias coerentistas não encontram muitos defensores. O elemento é a ideia de que a verdade está, de algum modo, ligada à consistência. Considere o caso de uma investigação policial. Suponha que tenha ocorrido um crime na rua A, e é perguntado ao vigia do prédio B, localizado naquela rua perto do local do crime, se viu alguma coisa e se conhecia a vítima. Ele nega ambas as informações. Posteriormente, o detetive recebe a informação, do garçom de um restaurante a duas quadras do prédio B, que o vigia e a vítima ali jantaram juntos uma vez por mês, regularmente, durante o último ano. De imediato, o detetive se dará conta de que há uma inconsistência entre os dois relatos, o do vigia e o do garçom, e não é possível crer em ambos. Não sabe ele, neste momento, qual dos relatos é falso, e pode ser que ambos o sejam; contudo, sabe que não podem ambos serem verdadeiros, pois são inconsistentes. Aqui a coerência é utilizada como critério negativo para a aceitabilidade de uma crença. Como critério negativo, a coerência é geralmente tida como condição necessária para a justificação; procedemos assim no senso 48 Filosofia das Ciências Sociais comum, e o fundacionalismo concorda com tal procedimento. O coerentismo, contudo, pretende que a coerência seja também um critério positivo, que seja suficiente para justificar uma crença. Assim, mesmo mantendo-se que algumas crenças são dependentes de outras em razão de serem delas inferidas por meio de um proces- so dedutivo ou indutivo, o que as justifica não é essa dependência, mas sua coerência mútua. Dessa forma, para saber se aceito ou não uma nova ideia, hipótese ou teoria, não devo olhar para os fatos, mas para minhas outras crenças (ideias, hipóteses e teorias que já aceito); isso porque fatos são, para o coerentista, outras crenças. Além de ser contraintuitivo10, o coerentismo sofre de outras desvantagens que o tornam, como explicação epistemológica para a justificação do conhecimento, provavelmente falso. Entre essas desvantagens podemos mencionar: • para o coerentismo, é admissível que, em um processo su- ficientemente longo de dedução ou indução, as crenças que servem de premissa para uma determinada conclusão possam tornar-se conclusão de um outro raciocínio em que, entre as premissas, encontra-se a conclusão daquele argumento ante- rior. Isso se chama de raciocínio circular, considerado vicioso pelos fundacionalistas, portanto, ilegítimo; • coerência é uma relação que se dá exclusivamente entre cren- ças, mas, para a justificação de uma crença, não se pode de- pender exclusivamente de sua relação com outras crenças. É também importante, e mesmo fundamental, a relação que tem com a experiência. Caso contrário, qualquer história coe- rente estaria, em razão disso, justificada, isto é, constituiria 10 Uma ideia é contraintuitiva quando se opõe às nossas formas naturais de pensar, ou ao senso comum. Mas ser contraintuitiva não é sinônimo de ser falsa, como mostra o caso da crença de que a Terra gira ao redor do Sol. Se não somos instruídos, ou se não pensamos com cuidado no assunto, naturalmente tendemos a crer que o Sol se move e a Terra está parada, pois isso é o que vemos e sentimos. No entanto, aqui o que vemos e sentimos é falso. Teorias epistemológicas 49 conhecimento. O que é absurdo, como podemos perceber considerando a diversidade de romances na literatura, veros- símeis, mas falsos. 3.3 Antifundacionalismo O termo antifundacionalismo é utilizado para designar um conjunto de teorias epistemológicas divergentes em muitos aspectos, mas concordantes em sua oposição ao fundacionalismo e ao coerentismo, combinado com a aceitação de parte do ceticismo. Engloba desde concepções mais radicais, como o anarquismo epistemológico e metodológico de Feyerabend11, até concepções mais moderadas, que aceitam a fragilidade da razão e da experiência como fontes de conhecimento, como o falibilismo de Peirce12 e o garantismo de Alvin Plantinga13. Assim, em resumo, o antifundacionalismo tende a manter a distinção entre crenças básicas e crenças não básicas. Diferente do fundacionalismo, ele admite que crenças básicas possam ser revistas, corrigidas, alteradas, abandonando o ideal de um conhecimento indubitável, absolutamente seguro, ideal este que, na verdade, alimenta muitas objeções do ceticismo. O que, por sua vez, permite ampliar o seu espectro, incluindo assim crenças 11 Paul Feyerabend (1924-1994), filósofo da ciência austríaco, defendeu a ideia de que tudo vale em ciência, não sendo ela mais racional que a religião ou a moral, e que o sucesso de uma teoria científica é antes resultado de fatores políticos e de propa- ganda do que de sua capacidade de fornecer um conhecimento objetivo do mundo. Uma de
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