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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/350671835 Sobre gênero e a invenção de um pronome não-binário Preprint · April 2021 CITATIONS 0 READS 615 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: UFBA - PÓS-GRADUAÇÃO: ESTUDOS DA TRADUÇÃO E COMUNIDADES DE PRÁTICA View project Proyecto 24 ALFAL - Morfología y sus Interfaces View project Danniel Carvalho Universidade Federal de Alagoas 101 PUBLICATIONS 184 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Danniel Carvalho on 03 May 2021. 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A partir de um levantamento em páginas de redes sociais, verifico a existência de três tipos de pronomes degenerificados: (a) manipulação linguística de elementos pronominais existentes, redefinindo seus significados sociais; (b) incorporação popular de elementos pronominais já existentes na língua; e (c) criação um elemento pronominal específico para a referência não binária. Os dados levam à conclusão de que a implementação de um pronome degenerificado é um investimento político e, independemtemente da estratégia que uma língua lance mão, deve ter o suporte sociopolítico para obter sucesso. Palavras-chave: pronome não-binário; generificação linguística; falocentrismo; política linguística. Abstract: This paper discusses the social and political roles in the implementation of non-binary or degendered pronouns in some languages, in order to observe a typology in its genesis. Based on a survey of social network pages, I verify the existence of three types of degendered pronouns: (a) linguistic manipulation of existing pronoun elements, redefining their social meanings; (b) popular incorporation of pronominal elements already existing in the language; and (c) creation of a specific pronominal element for the non-binary reference. The data lead to the conclusion that the implementation of a degendered pronoun is a political investment and, regardless of the strategy that a language uses, it must have socio-political support to be successful. Keywords: non-binary pronoun; linguistic genderization; phallocentrism; linguistic policy. Draft – 03/05/2021 Apresentação Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no emprestado. Entre aquêles a êstes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade: se mostrava nua; as ‘metrópoles’ queriam-na vestida; era preciso que o indígena as amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou engendrar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na bôca mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes; depois de breve estada na metrópole, recambiava-os, adulterados. Essas contrafações vivas não tinham mais nada a dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos palavras: ‘Partenon! Fraternidade!’, e, num ponto qualquer da África, da Ásia, lábios se abriam: ‘... tenon! ... nidade!’ (SARTRE, 1968 [1961], p. 3-4) A passagem que abre o presente texto é também o trecho de abertura do prefácio que o filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu para o livro “Os condenados da Terra” de Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo martinicano conhecido por sua crítica ao colonialismo em sua obra, a qual pode ser lida, por exemplo, nas entrelinhas de “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 1987 [1970]), por ter sido uma das inspirações de Paulo Freire na escrita de sua mais conhecida obra (cf. GORDON, 2008). Sartre ilustra, com sua característica inclemência narrativa, a divisão global da conhecida Era do Ouro da expansão colonial do século XVI, em que o mundo era dividido em homens e todo o resto, os quais incluíam negros, indígenas e mulheres, como bem aponta Ramón Grosfoguel (2012). Enquanto os homens “dispunham do Verbo”, os demais apenas tinham autorização de usá-lo, repeti-lo, sem consciência de seu ato. Essa metáfora sartriana serve-me na construção do presente texto como mote para a discussão da tese de que as estruturas linguísticas são enviesadas pelo masculino em detrimento do não-masculino que, no caso da cultura ocidental, é reduzido ao feminino. Trata-se, portanto, do que Jacques Derrida (1975) define como falogocentrismo, isto é, a tradição constituinte de Draft – 03/05/2021 um sistema significativo ao redor de gênero (SHAKTINI, 1985), mais especificamente ao redor da marca de masculinidade (LIVIA, 2001). Essa mesma cultura ocidental, entretanto, tem visto nos últimos anos uma variedade de formas de identidade socioculturais, entre elas as de gênero. Essa multiplicidade pode ser entendida como uma pulverização da dicotomia de gênero, naqual sua rigidez é revista. Essa multiplicidade de corpos, entretanto, não impulsionou na mesma intensidade e frequência as adaptações linguísticas que reclama. O fenômeno mais marcante da inaptidão linguística ocidental diante da diversidade de corpos é a manifestação linguística das diferentes identidades de gênero. Em outras palavras, línguas que manifestam o gênero biossocial gramaticalmente não garantem as diversas possibilidades de identificação de gênero. Como será visto adiante, a tradição linguística distribui as línguas entre as que dispõem de distinção na representação de gênero enquanto categoria de classificação nominal e aquelas que não possuem esse instrumento. Ou seja, as línguas do mundo são divididas tipologicamente entre línguas que têm gênero linguístico (identificado através dos valores feminino e masculino, e sua ausência classificada como neutro) e línguas que não têm gênero linguístico. Como apontado por estudo recente feito acerca da disciplinarização das categorias gramaticais (CARVALHO, 2021), gênero como expressão binária de classificação tornou-se o único instrumento na análise linguística para classificar o que a visão de mundo ocidental definiu como marcas de gênero. Essa decisão taxonômica refletiu por algum tempo o que se entendia por distinção das formas humanas na terra, percepção altamente marcada por uma cultura falocêntrica dominante até os dias de hoje. Contudo, vozes antes inaudíveis pelo soar de pigarros masculinos a qualquer tentativa de removê-lo de seu lugar de poder ou, pelo menos, compartilhá-lo com os demais corpos existentes, passam a ser ouvidas, mas ainda reguladas pelas normas de gênero ancestrais. No presente texto, discuto a possibilidade de não marcação de gênero na referenciação dos diferentes corpos. Parto de uma analogia cara à teoria e descrição linguística para a formulação da hipótese de trabalho, a saber: valores de gênero atribuídos aos pronomes pessoais podem ser entendidos como logofóricos, no sentido de serem uma atribuição reportada, consistindo, portanto, um instrumento representacional (SELLS, 1987; AMEKA, 2017). Enxergo, assim, correspondência entre marcação de gênero e a noção de logoforicidade estabelecida nos estudos gramaticais, capturada da ideia de discurso indireto ou reportado, ou, ainda, nas Draft – 03/05/2021 palavras de Jakobson (1971, p. 130), uma “fala dentro da fala, uma mensagem dentro da mensagem”.1 Assim como no discurso indireto, entendo que gênero, como categoria gramatical, é um elemento representado na língua a partir do ponto de vista de uma comunidade linguística, sendo assim um traço reportado, que dependerá do conhecimento de seu mundo. Ao tempo que não possui uma funcionalidade gramatical definida, como número e pessoa2 (gênero é tradicionalmente definido como um instrumento engatilhador de concordância (ver CORBETT, 1991; AIKHENVALD, 2016)), esse traço gramatical parece refletir estritamente a percepção de mundo de seus falantes. Como será visto adiante, a distribuição dos valores feminino, masculino e comum/neutro são estabelecidos a partir do ponto de vista da tradição ocidental, refletida na estrutura de sua gramática e mantida como instrumento didático até os dias atuais. Essa tradição condicionou a existência dessa categoria/traço como universal linguístico.3 A representação linguística vem sendo discutida desde tempos imemoriais pela dicotomia arbitrariedade versus motivação simbólica. É Saussure (2006 [1916]), entretanto, quem confere caráter teórico à questão da opacidade (arbitrariedade) ou da transparência (motivação) dos objetos linguísticos. Essa arbitrariedade, pelo menos aparentemente, não se aplica, em termos de referência, a categorias como número e pessoa, mas parece estar sempre associada quando se trata de gênero. Gênero enquanto categoria pode não ter realidade material,4 como nos nomes cujos referentes são entes inanimados, ou pode ter realidade material relativa, como nos animados, em especial humanos.5 Relativa, pois, como toda representação (BHABHA, 1995), a realidade de gênero depende dos olhos que a veem e a arbitrariedade dessa visão apresenta um movimento bastante enviesado por uma tradição falogocêntrica. Esse falocentrismo epistêmico pode ser percebido em diversas estratégias de 1 Todas as traduções feitas no texto são de minha responsabilidade, salvo quando apresentados já traduzidos nas referências bibliográficas finais. 2 O próprio argumento da representação extralinguística de número e pessoa como categorias gramaticais sine qua non e “natural” é questionada em Carvalho (2021). Carvalho et al. (2020) discutem uma possível função semântica de gênero gramatical como suplementar ao de número, funcionando como elemento de perspectivização. Não desenvolverei aqui os argumentos apresentados nesses trabalhos e manterei, para os fins da presente discussão, a imprescindência desses traços na gramática das línguas. 3 Considerarei a hipótese da universalidade de gênero como uma forma de taxonomia na qual os nomes de uma língua são distribuídos em classes. Para uma discussão sobre gênero e classe, ver Aikhenvald e Mihas (2019) e Carvalho (2020). 4 Faço aqui uma provocação ao usar a expressão realidade material platônica para resgatar suas “imperfeições”, como apontado pelos idealistas, cujo pensamento é recobrado posteriormente por racionalistas e neoidealistas (como Descartes e Hegel, respectivamente), que influenciaram sobremaneira parte do pensamento linguístico dominante do século XX. 5 A noção de animacidade da ideia eclesiástica de corpo e alma (anima do latim). Draft – 03/05/2021 representação referencial de gênero, entre elas as pronominais. Uma vez que as estratégias de representação de gênero nos sistemas pronominais das línguas são dominadas pela polarização dos tradicionais valores binários de gênero, passa a existir em algumas sociedades do mundo um movimento na tentativa desfazer a dicotomia de gênero na representação dos diferentes corpos: a busca por pronomes desgenerificados. Não utilizarei aqui a denominação “pronome neutro” por acreditar que ela mantém o entendimento de uma polarização de gênero, pois a ideia de um gênero neutro alude à coisificação do não pertencimento a algum gênero. No entanto, o expediente de um pronome não binário, entendido como instrumento na “neutralização” de uma língua generificada6, traz à tona seu movimento falogocêntrico.7 No intuito de lançar um debate sobre o condicionamento de normas sociais na adoção/implementação de um pronome não-binário, discuto brevemente o papel social da marcação linguística de gênero, em especial a arbitrariedade de suas funções neutralizadoras em certas sociedades ocidentais. Para tal, apresento alguns exemplos de distribuição de gênero nas línguas do mundo e como isso é feito a partir de apenas dois valores, feminino e masculino, até a tentativa de algumas línguas em introduzir formas não binárias a esses sistemas. A partir disso, apresento algumas tentativas da introdução de um pronome não binário com o intuito de despolarizar os valores de gênero em algumas línguas e porque uma tentativa no Brasil não foi incorporada no vernáculo. Finalizo o texto com algumas reflexões sobre a adoção de uma justiça de gênero nas línguas em detrimento de uma sua neutralização. 1. “No need for anxiety or pronoun envy”8 Qualquer que seja o ponto de partida para se entender o que seja uma língua, sua constituição reflete a relação de poder da sociedade que a utiliza. Essa afirmação pode soar categórica, reconheço, mas não é falaciosa. Seja a partir de um viés discursivo ou do que constitui sua estrutura, o entendimento do que estabelece uma língua como tal é reflexo de quem determina o que faz ou não parte sua. Desde que se pôde recuperar os 6 Generificação é a atribuição ou designação de um valor de gênero a algoou alguém; o processo social pelo qual há o encaixamento de corpos aos valores binários feminino/masculino. 7 A expressão neutering no inglês, por exemplo, cuja origem é o termo latino neuter, significa “castração”, entendida como remoção dos órgãos reprodutivos em animais. 8 Passagem da matéria do jornal Harvard Crimson, de 26 de novembro de 1971, página 17, cujo excerto é transcrito por Livia (2001, p. 3): “There is [...] no need for anxiety or pronoun envy” (Não há necessidade para ansiedade ou inveja pronominal). Draft – 03/05/2021 primeiros textos em que se verificou as discussões iniciais acerca do que constitui uma língua, encontramos referência a essas relações de poder. Por exemplo, o gramático latino Marco Terêncio Varrão (116 a.C. – 27 a.C.) utiliza quatro critérios determinantes para a estruturação da língua: a natureza da entidade linguística (natura), seus usos e tradição (usus/consuetudo), sua organização estruturada (ratio) e a autoridade ancestral grega na atribuição dos valores linguísticos (auctoritas). Esta última, segundo Varrão (1990), possibilitaria a dispensa dos demais critérios na atribuição dos valores como os de gênero. Assim, os valores feminino e masculino no latim e no grego são autorizados devido à sua relação direta à morfologia dos corpos dos seres vivos (pelos menos do que se conhecia sobre isso à época). Essa tradição da autoridade gramatical greco-latina perpetuou-se no mundo ocidental, servindo de parâmetro na descrição e análise das línguas no decorrer da história. Sua referência ao padrão linguístico indo-europeu norteou toda a discussão sobre linguagem desde então. E é no século XIX que ganha força científica com o surgimento da hipótese darwiniana e o fortalecimento da tese de uma língua primordial (protolíngua), o que afluiu nos modelos de análise linguística que conhecemos hoje. A tradição ocidental nos estudos da linguagem baseia-se fundamentalmente no corpo gramatical proposto nas Categorias de Aristóteles, na qual se definem as possíveis predicações sobre o “ser”, aquele cujas características compõem as categorias gramaticais (CARVALHO, 2021). Entre as predicações mais persistentes na descrição das línguas indo-europeias é a consistente marcação de gênero gramatical, sendo sempre relacionada a critérios de origem sexuada. O título dessa seção foi retirado das páginas do livro Pronoun envy: literary use of linguistic gender (“Inveja pronominal: usos literários do gênero linguístico”), de Anna Lívia, publicado em 2001, no qual a autora reflete sobre o uso genérico do masculino em línguas como o inglês e o francês. A “inveja pronominal” apontada no texto de Livia faz menção à reação do departamento de Linguística da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, encabeçado por Calvert Witkins, renomado linguista estadunidense cujo foco de pesquisa eram os aspectos morfossintáticos das línguas indo-europeias, em 1971, diante dos protestos das estudantes da referida instituição acerca do uso generalizado do pronome he (ele) para referir-se ao deus cristão. O argumento de Watkins e colegas em sua resposta (que dá título à esta seção) se baseia na tese estruturalista de que, nas línguas indo-europeias, a forma masculina é a não marcada na dicotomia masculino/feminino (CÂMARA JR., 1971). Segundo Lívia, essa Draft – 03/05/2021 “inveja” motivou, nas décadas seguintes, os estudos feministas, os quais “tornam questões linguísticas centrais aos textos [feministas] – experimentando novas formas, rejuvenescendo formas antiquadas e pouco usadas, ou simplesmente eliminando gênero linguístico para referentes animados” (LIVIA, 2001, p. 3). O argumento de Witkins ilustra bem como o pensamento linguístico continuou seguindo a auctoritas na formulação de hipóteses sobre a estruturação da língua e que essa auctoritas é masculina e europeia. Uma forte evidência da autocritas ocidental na generificação das línguas colonizadas é apresentada pela socióloga e feminista nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, em sua tese de doutorado transformada em livro sob o título The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses (“A invenção das mulheres: uma perspectiva africana sobre os discursos ocidentais de gênero”), publicado em 1997, no qual descreve a virada epistemológica gerada pela imposição das categorias ocidentais de gênero na língua iorubá (maior grupo étnico-linguístico da África ocidental). Segundo Oyěwùmí, a distinção entre masculino e feminino nas relações sociais iorubás é resultado da colonização cultural, uma vez que sua estrutura social é historicamente fundamentada na senioridade (hierarquia etária) e não se fazia, até a colonização europeia, distinções de gênero como as traduções “mulher” e “homem” para obìnrin e ọkùnrin, respectivamente, ou ainda “esposa” e “marido” para aya e ọkọ, deixam observar (OYĚWÙMÍ, 1997, p. 32). Sobre as relações matrimoniais, Oyěwùmí aponta que [t]odos os membros do ìdílé (linhagem) como um grupo foram chamados de ọmó-̣ilé e foram classificados por ordem de nascimento. As anafêmeas9 casadas constituíam um grupo denominado aya ilé e eram classificadas por ordem de casamento. Individualmente, ọmó-̣ilé ocupou a posição de ọkọ em relação ao aya que se aproxima. Como observei anteriormente, a tradução de aya como ‘esposa’ e ọkọ como ‘marido’ impõe construções de gênero e sexuais que não fazem parte da concepção iorubá e, portanto, distorcem esses papéis. (OYĚWÙMÍ, 1997, p. 44) Ainda segundo Oyěwùmí (1997), a lógica ocidental identifica através da visão, como sentido privilegiado, os papeis sociais de certos corpos. Daí surgiria um “raciocínio corporal” na percepção de sociedade como corpo social e político: “[...] 9 Oyěwùmí utiliza a expressão anafemale e anamale para indicar corpos anatomicamente compreendidos pelos ocidentais como mulheres e homens, respectivamente. Nascimento (2019) propõe a expressão anafêmea e anamacho como tradução para o português. Draft – 03/05/2021 todos os conceitos trazem consigo suas próprias bagagens culturais e filosóficas, muitas das quais se tornam distorções alheias quando aplicadas a culturas diferentes das quais derivam” (OYĚWÙMÍ, 1997, p. x-xi). Para a autora, [m]ulheres, primitivos, judeus, africanos, os pobres e todos aqueles que se qualificaram para o rótulo de ‘diferentes’ em várias épocas históricas foram considerados como encarnados, dominados, portanto, pelo instinto e pelo afeto, estando a razão além deles. Eles são o Outro, e o Outro é um corpo. (OYĚWÙMÍ, 1997, p. 3) Oyěwùmí lembra que, além do critério dicotômico ausência/presença, outras formas de classificação dos corpos são caras à tradição ocidental: obsessão com o pênis, tamanho do cérebro, formato do crânio, cor da pele. A possibilidade de intersecção10 ou ausência desses critérios causam estranhamento no pensar ocidental, tornando-se tabu. O híbrido é descartado como possibilidade.11 A força epistêmica da herança indo-europeia cria um empuxo entre os limites da língua e o tecido social quando questionamos o potencial referencial das formas de gênero diante da diversidade de corpos existentes na história da humanidade, com especial atenção à contemporaneidade. Curiosamente, esse debate sobre a generificação linguística é polêmico, mas envolve um número reduzido de vocábulos nas línguas. Constituindo proporcionalmente um pequeno número de itens lexicais nas línguas que possuem alguma manifestação de gênero em sua estrutura: os nomes de seres animados variáveis quanto ao gênero gramatical, em uma língua como o português, correspondem a cerca de 5,6% dos nomes dicionarizadas (SCHWINDT, 2020), enquanto a maioria esmagadora dos itens lexicais nessas línguas correspondem a seres inanimados, tendo, portanto, seu gênero atribuído de forma arbitrária. Por sua vez, a discussão acerca de uma linguagem neutra vemganhando espaço nas mais diversas mídias. Uma rápida busca no Google com essa palavra-chave 10 Segundo Wendy Single-Rushton e Elin Lindström (2013, p. 130-131), interseccionalidade é “um conceito teórico vagamente especificado - um termo guarda-chuva - que reúne um conjunto de ideias sobre a complexa multidimensionalidade e estratificação social e as consequências de sua especificação incorreta”. Para um debate mais aprofundado sobre o tema, ver Crenshaw (1989), Collins (1990), Dorlin (2008), Bilge (2009), Akotirene (2019). 11 A escolha do termo híbrido para integrar esse debate foi feita devido à sua etimologia (do grego hybris), que remete a ultraje, que desafia a Providência (HUXLEY, 1970). Tomo emprestado o termo como manifestação tanto da ideia de hibridismo cultural (BAHBHA, 1994) como da própria ideia do hibridismo corpóreo, cuja representação pode ser identificada em alguns corpos transgêneros, como os das travestis. Draft – 03/05/2021 permite-nos verificar quão diversos são os pontos de vista sobre o tema. Umas das premissas da chamada linguagem “neutra” é a não binaridade em relação à referência na comunicação. Isso significa, em outras palavras, que línguas que possuem alguma manifestação de gênero em sua estrutura, seja lexical, fonológica, morfológica ou sintática, devem passar a perceber corpos que não se identificam com as formas tradicionais de distinção sexual - o feminino e o masculino. Uma neutralidade da linguagem recorre a um expediente universalista, pois o que não é feminino nem masculino deve se encaixar em uma rasura única de gênero. Como nos lembra Berenice Bento (2017, p. 43), “[o]s discursos universalistas têm em comum a produção de um outro pelo esvaziamento das singularidades.” Assim, como já introduzido na apresentação do presente texto, uma linguagem não binária é aquela cujos referentes humanos são desvinculados aos seus papéis sociais de gênero. Muitos críticos, uma boa parte formada por leigos dos estudos linguísticos, mas ainda com linguistas em seu meio, entendem que a língua é uma entidade completamente independente de qualquer movimento social. A introdução de estratégias não binárias de referencialidade, para tais críticos, gera um deslustre no sistema linguístico, ou ainda, uma artificialidade, uma “arbitrariedade” em seu funcionamento. Curiosamente, muitas línguas não indo-europeias possuem essa estratégia. O guajiro é um bom exemplo. Essa língua arawak colombiana não apresenta uma marcação de gênero predeterminada a seus nomes. Nomes que se referem a entidades sexuadas, por exemplo, referem-se ao espécime genericamente; se o falante deseja focar no caráter feminino ou masculino do ser humano ou animal a que o termo se refere, ele pode recorrer a certos sufixos determinantes (masculino singular/feminino singular/plural) ou escolher as formas concordantes de gênero apresentadas por outras classes relacionadas ao referido nominal. Uma vez que o gênero não marcado funcionalmente é feminino, ele é o usado por padrão em objetos, mas também em pessoas e animais quando seu sexo não é conhecido ou não quer ser especificado. (REGÚNAGA, 2011, p. 187) A língua guajira nos mostra que a neutralização referencial é, em algumas línguas, o padrão, sendo a distribuição em valores de gênero uma estratégia de especificação do objeto. Isso nos faz refletir sobre o real papel da marcação de gênero nas línguas. Inferimos, portanto, que a preocupação da linguagem não binária seja com a referência aos seres humanos, não aos demais seres animados e muito menos aos Draft – 03/05/2021 inanimados. Sendo assim, umas das mais eficazes estratégias de pulverização de gênero em uma língua seria aquela que se volte à representação pronominal pessoal, e não às demais expressões nominais, uma vez que aquela exige uma identidade referencial de interpretação, enquanto estas são consideradas expressões referenciais per se (CHOMSKY, 1981). 2. Gênero gramatical nos pronomes: da tradição à desconstrução Em seu artigo sobre a distribuição dos valores de gênero gramatical nas línguas do mundo no World Atlas of Language Structures Online (WALS), Anna Siewierska (2013) aponta que, virtualmente, todas as línguas do mundo possuem pronomes pessoais independentes morfofonologicamente (o que os diferenciam de clíticos e afixos) e que a marcação de gênero é mais comum na terceira pessoa do que na primeira e segunda, como ilustrado no Quadro 1. Quadro 1 – Distinção de gênero nos pronomes pessoais Pessoas Número de línguas 1ª e 2ª 212 3ª 104 1ª, 2ª e 3ª 18 Total 124 Fonte: elaborado pelo autor a partir de Siewierska (2013) Das 378 línguas apontadas no estudo de Siewierska, apenas 124 (aproximadamente 1/3 das línguas) possuem algum tipo de distinção de gênero em seus pronomes pessoais, sempre se assumindo os valores feminino e masculino como valores categóricos na distribuição de gênero de entes animados. Na distribuição de gênero nos inanimados, a autora informa que há a possibilidade de agregação desses referentes à classe dos nomes masculinos (como no aramaico), à dos nomes femininos (como em warekena, língua aruaque do noroeste amazônico), ou, ainda, distribuídos de acordo 12 Apenas o irqw e o burunge, ambas línguas cuchíticas faladas no nordeste africano (Tanzânia), são mencionadas no trabalho de Siewierska (2013). Outras línguas, no entanto, apresentam distribuição das marcas de gênero na primeira e segunda pessoa, como o paez, língua colombiana (ver JUNG, 2008), e o mwaghavul, língua chádica nigeriana. Esta última, curiosamente, apresenta apenas a forma masculina para a primeira pessoa (BLENCH, 2010). Draft – 03/05/2021 com o que a autora chama de “de forma arbitrária ou de acordo com algum princípio baseado semanticamente” (como em garifuna, língua aruaque do norte da América do Sul). Das 124 línguas que possuem distinção de gênero, somente 20 delas (16% aproximadamente) apresentam a possibilidade de marcação de gênero na primeira e/ou segunda pessoa. Essa informação nos mostra que a indicação de gênero nos elementos pronominais parece ser um fenômeno de referenciação nas línguas do mundo. O inglês, o português e o russo são exemplos de línguas que possuem estratégias linguísticas para a representação de referentes animados sexuados, tanto lexicalmente, quanto em seus sistemas pronominais pessoais, ilustrados no quadro abaixo, que apresentam os pronomes pessoais nominativos nessas línguas: Quadro 2 – pronomes pessoais em inglês, português e russo Inglês Português Russo singular I eu ja you tu/você ty she ela oná he ele on it - onó plural we nós/a gente my you vocês vy they elas oní eles Fonte: elaborado pelo autor O Quadro 2 mostra uma semelhança quanto à distribuição morfofonológica das pessoas, números e gêneros entre as línguas. No entanto, enquanto o inglês e o russo apresentam um pronome neutro no singular, it na primeira e onó na segunda, o português não apresenta uma estratégia neutra para marcação de seres inanimados ou não humanos, lançando mão dos pronomes com marcação de gênero feminino (ela) e masculino (ele).13 Por outro lado, o português distingue gênero em suas formas do 13 Em trabalhos recentes, Gabriel Othero e colegas têm argumentado em favor de uma aproximação da retomada anafórica de 3ª pessoa não realizada foneticamente à leitura neutra de gênero. Assim, na retomada anafórica pronominal de 3ª pessoa do singular, o português brasileiro leva em consideração efeitos de concordância de gênero. Nesse sentido, essa língua lança mão do pronome ele para retomar antecedentes com gênero semântico\biológico masculino; ela para antecedentes femininos e Ø para a Draft – 03/05/2021 plural da terceira pessoa (elas/eles), enquanto o inglês e o russo apresentam uma única forma sem referência a gênero, they e oní, respectivamente.Alternativamente, algumas línguas não apresentam distinção de gênero em seus sistemas pronominais. É o caso da língua basca, que não faz distinção gramatical entre as pessoas pronominais. Gênero nessa língua aparece apenas na morfologia verbal em tratamento familiar. No exemplo em (1), os morfemas -k e -n aparecem na construção verbal representando leitura masculina e feminina, respectivamente, cujo referente é a segunda pessoa: (1) a. gu hiri laguntzera etorriko gatzaizkik 1.pl 2.sg-D ajudar vir-irr 1.pl-COPULA-pl-2(masc)14 “Nós viremos para ajudar você (masc)” b. gu hiri laguntzera etorriko gatzaizkin 1.pl 2.sg-D ajudar vir-irr 1.pl-COPULA-pl-2(fem) “Nós viremos para ajudar você (fem)” (adaptado de LAKA, 1996, p. 96) O mandarim é outra língua sem morfologia de gênero, cujo sistema pronominal, à primeira vista, não apresenta distinção de gênero. Entretanto, no mandarim contemporâneo, o pronome de terceira pessoa 他 ([tā]), cujo radical 人 significa “humano”, teve historicamente uma leitura inclusiva, não generificada, que passou a ter uma tendência a ser acionado com leitura masculina (ver LAI, 2020). Com a abertura ocidental do século XX, o mandarim incorporou um pronome com leitura específica para o feminino, o 她, e o neutro, 它, todos possuindo a mesma pronúncia [tā]. O Nonbinary wiki, página wiki dedicada às identidades de gênero,15 afirma que os pronomes de terceira pessoa em mandarim são inclusivos, pois, apesar de contemporaneamente apresentarem três formas gráficas distintas para a representação de gênero nesses pronomes, sua pronúncia é a mesma, não havendo distinção na prática. No entanto, sua grafia ainda gera discussões sobre a generificação do pronome. Mais retomada anafórica de referentes de gênero semântico neutro (inanimados ou palavras como “cônjuge”, “testemunha” ou “vítima”, por exemplo). Para uma discussão mais aprofundada, ver Othero et a. (2016), Othero e Spinelli (2017, 2019), Othero e Goldnadel (2020). 14 1 = primeira pessoa; 2 = segunda pessoa; D = determinante; irr = irrealis; pl = plural; sg = singular; masc = masculino; fem = feminino. 15 https://nonbinary.wiki/wiki/Main_Page. https://nonbinary.wiki/wiki/Main_Page Draft – 03/05/2021 recentemente, os usos populares do mandarim empregam uma novidade na tentativa de desgenerificação pronominal: o uso de TA. Figura 1 – Representação gráfica de TA na mídia chinesa. Fonte: Lai (2020). Em Hong Kong, uma outra forma pronominal não binária emerge entre falantes não binários ou cuir, 佢 (qú), utilizada na fala coloquial e em alguns contextos escritos informais (envio de mensagens instantâneas e em tabloides, por exemplo). A criação de um pronome não binário foi politizada, em algumas línguas, seja no sentido de passar a possuir um valor político, seja passando a ter valor na norma (linguística e social). No sueco, o pronome de terceira neutro para gênero (hen) foi introduzido oficialmente na língua, suplementarmente ao paradigma pessoal existente, que inclui hon (ela) e han (ele), já sendo encontrado na mídia e na literatura (SÉDEN et Draft – 03/05/2021 al., 2015). A menção ao pronome hen remete a textos da década de 1960 na mídia sueca, segundo Séden et al. (2015), mas sua implementação só passou a ser uma realidade a partir da década de 2010. Hen apareceu pela primeira vez na mídia impressa em 2012, no livro infantil Kivi och Monsterhund (“Kivi e o cachorro monstro”), de Jesper Lundqvist. Em julho de 2014, foi anunciado que hen seria incluído na edição de 2015 do Svenska Akademiens Ordlista (“Glossário da Academia Sueca” - SAOL), que constitui a norma (não oficial) da língua sueca (BENAISSA, 2014). Semelhantemente, o pronome they (eles/elas, com leitura pluralia tantum) no inglês e hän (ele/ela) no finlandês, são utilizados como formas pronominais de gênero neutro. Segundo Dennis Baron (1986), they singular como uma forma neutra de gênero pode ser encontrada ainda no século XVIII, mas seu uso como neutralizador de uma língua sexista ainda se limita a determinados grupos sociais. No Brasil, houve um movimento, ainda que tímido e restrito a determinados círculos, de criação de um pronome “neutro”. Carvalho e Silva (2019) apontam a existência de uma forma pronominal criada a partir da fusão fonética dos pronomes de terceira pessoa masculino (ele - [eli]) e feminino (ela - [ɛla]): o êla ([ela]).16 Segundo os autores, “[ê]la é usado majoritariamente para se referir à indivíduos transgêneros femininos e é utilizado na maioria das vezes por indivíduos masculinos cisgêneros heterossexuais.” (CARVALHO; SILVA, 2019, p. 1080). Seu uso é restrito à linguagem coloquial e seu registro pode ser verificado em algumas mídias sociais. As Figuras 2-5 trazem algumas ilustrações dos usos de êla encontradas em algumas redes sociais, os quais estão destacados. Figura 2 – Êla no site Desciclopédia, sobre a cidade de Ubá 16 Chamo atenção para o uso do circunflexo como marcação gráfica com o intuito de “fechar” a vogal, e não para marcar a sílaba tônica, para, assim, evidenciar uma diferença entre êla e ela. Essa observação vale menção especialmente pelo fenômeno do neopronome (forma pronominal criada para representar seres não binários) ser encontrado predominantemente em registro escrito em português brasileiro. Draft – 03/05/2021 Fonte: http://desciclopedia.org/wiki/Ub%C3%A1 Figura 3 – Êla em depoimento do site Thepictram sobre a cantora Liniker17 17 Liniker se identifica como não-binária. Por sua referência aparecer geralmente no feminino, manterei essa marcação aqui. http://desciclopedia.org/wiki/Ub%C3%A1 Draft – 03/05/2021 Fonte: http://www.thepictaram.club/share/BDhSvhAg2Y- Figura 4 – Êla em uma postagem sobre a dançarina baiana Leocret no site Flogão http://www.thepictaram.club/share/BDhSvhAg2Y- Draft – 03/05/2021 Fonte: https://www.flogao.com.br/saiddy/27747483 Figura 5 – Êla em um fórum do site Yahoo Respostas. https://www.flogao.com.br/saiddy/27747483 Draft – 03/05/2021 Fonte: https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20120304103452AABuxPB Os exemplos acima, extraídos de mídias digitais, utilizadas por diferentes gerações de usuários (o site Flogão, por exemplo, foi fundado no ano 2004), apontam a utilização da forma pronominal sempre com uma conotação híbrida de gênero. Na canção Bate cabelo,18 de 2012, o cantor baiano Márcio Victor, da banda de pagode Psirico, faz menção ao pronome em um trecho do refrão (Ele, êla/Ele, êla (eu estou em dúvida!)). Curiosamente, a canção tem início com a narração rimada da dançarina Léo Kret, como uma introdução da letra, que trata de um movimento feito com a cabeça, iniciada pelo movimento artístico drag queen e comumente executado por pessoas da comunidade LGBTQIA+ em festas e casas noturnas, o bate-cabelo. O início da letra da canção apresenta uma relação de mulheres transgêneras em diferentes localidades do Brasil (Em Salvador tem Leocret/E no Rio tem Juliet /Em Manaus tem a Fofete/Em São Paulo a Paulete), e segue, informando que “Até as mulheres tão fazendo o movimento”. Em minha busca pela letra de Bate cabelo, não encontrei nenhuma transcrição com a acentuação gráfica que distingue a forma êla dos outros pronomes generificados (o acento circunflexo no e), cuja ocorrência pode ser percebida claramente ao ouvir a música. Como pode ser observado, em todos os exemplos encontrados, a menção ao pronome êla não busca uma neutralização da leitura de gênero de seu referente, mas, ao 18 Disponível em https://www.kboing.com.br/psirico/bate-cabelo/ https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20120304103452AABuxPB Draft – 03/05/2021 contrário, implica uma leitura mais marcada do que os demais pronomes generificados no português. Carvalho e Silva (2019) apresentam também resultado de uma consultafeita com 50 usuários na rede social Facebook através da ferramenta online Google Forms, a fim de desenhar o perfil dos possíveis referentes do pronome êla. Repetimos a consulta, que foi respondida por 77 usuários. Uma das perguntas do formulário era “Em caso de resposta positiva da pergunta anterior [Você já usou o pronome êla?], em que contexto você usou o pronome êla e para se referir a quem?”. Obtivemos dez respostas por extenso, que transcrevo integralmente a seguir: Quadro 3 – Situações em que os informantes utilizaram o pronome êla 1. Eu confesso que ainda estou arendendo a usar esses pronomes. Quero chamar as pessoas como elas desejarem mas existe um vicio de linguagem e na hora já falei errado. 2. para me refeir a uma pessoa que era do oficialmente do sexo masculino, mas factualmente é não representa esse sexo. 3. Em conversa com meu grupo de amigos para pessoa transexual feminina 4. Sobre um homem supostamente cis homossexual muito afeminado 5. Com pessoas íntimas para me referir a alguém não-binário 6. Para se referir a bicha efeminada e travestis 7. Quando "não sabia" o gênero da pessoa 8. Para me referir a um homem cis gay 9. Para me refirir a homens gays. 10. A uma pessoa transgênero. Fonte: Elaborado pelo autor. Podemos observar que das dez respostas dadas pelos que já utilizaram o pronome êla alguma vez, a maioria (sete respostas) mencionam terem associado o referente ou a pessoas (mulheres) transgêneras ou a homens efeminados. Isso mostra que há uma tendência à marcação do referente do pronome êla a sujeitos mais feminizados.19 Assim, tanto a normatividade quanto o passado linguístico ampliam ainda mais a nossa compreensão da sexualidade refletida na língua como 19 Sobre a categoria social feminização, ver Yannoulas (2011). Draft – 03/05/2021 contextualmente, culturalmente e historicamente moldados e variáveis (BAKER, 2013; MOTSCHENBACHER, 2021). 3. Justiça linguística de gênero e as dimensões da pronominalização não- binária Pronomes pessoais são o espelho de uma língua. Permitem-nos diagnosticar seu funcionamento, refletindo também a disposição da sociedade que a usa. Tomemos como exemplo o reajuste pronominal que ocorreu no português no período escravista brasileiro. A implementação de um pronome como você no sistema pronominal do português, ocorrida no período do Brasil colônia (FERNANDES, 2009), possivelmente se deu por seu povo (leia-se a população afro-brasileira)20 se ver impedido de “tutear” com o senhoril, visto que o uso de tu pressupõe uma aproximação ou intimidade dos interlocutores em seu uso, o que determinou a promoção de uma outra forma de tratamento (vossa mercê) ao título de pronome pessoal de endereçamento. Partindo do mesmo raciocínio, podemos antever o surgimento de novas formas de referência pronominal pessoal para gênero, já que o que está disponível na tradição gramatical é insuficiente para representar seus referentes. Podemos identificar na discussão e nos dados apresentados ao longo do texto, pelo menos, três estratégias na referenciação dos chamados “pronomes neutros” ou pronomes não binários. A primeira engloba línguas como o chinês, que manipulou linguisticamente elementos pronominais existentes, redefinindo seus significados sociais. Taiwan é um exemplo extremo dessa estratégia, criando políticas linguísticas de implementação de uma linguagem não sexista, recomendando a utilização de elementos pronominais de referência feminina ou neutra oficialmente. Em 2004, o governo de Taiwan sancionou a Lei de Educação de Equidade de Gênero, que incentiva os alunos a não discriminar outros estudantes com base em seu gênero (SINACORE et al., 2019). Para tanto, o currículo das escolas taiwanesas recomenda o radical feminino mandarim para pronomes de terceira pessoa 她, em vez do radical masculino 他. A segunda tendência é a incorporação popular de elementos pronominais já existentes na língua, como o inglês they com referência singular. Essa estratégia é mais 20 O censo demográfico de 1872 declara que pessoas negras e mestiças correspondiam a 62% da população brasileira (REIS, 2000). Draft – 03/05/2021 branda, mas aparentemente mais efetiva, pois parece regulamentar-se no vernáculo. Isso pode explicar sua longevidade na língua inglesa. No entanto, outras línguas, na tentativa de adotar tal estratégia, estabeleceram não apenas uma desexualização pronominal, mas mesmo uma desumanização e/ou uma infantilização. É o que Natalia Knoblock (2021) identifica em alguns usos do ucraniano, como no discurso político, que utilizam a estratégia pronominal воно (pronome de terceira pessoa neutro) para reclamar uma infra-humanização (nas palavras da autora) ou mesmo despersonificação (TEIXEIRA, 2014) do outro: воно pode ser usado para denotar uma criança. Esse expediente de infantilização como infra-humanização é recorrente no pensamento ocidental como herança de uma percepção do infantil como não humano (ver GONZALES, 1983; LYOTARD, 1997, 1998; KOHAN, 2010). Nas palavras de Walter Omar Kohan, “[c]om efeito, a infância não é apenas ausência de palavra, mas a palavra que não pode ser dita, um resto de palavra indizível que habita toda palavra dita” (KOHAN, 2010, p. 127).21 Já a terceira tendência é utilizada por línguas como o sueco e o finlandês, que criaram um elemento pronominal específico para a referência não binária. Essa estratégia é mais radical e menos funcional que as demais, pois requer a regulamentação de um novo item funcional inexistente na língua. Essa estratégia diligencia uma intervenção política mais marcante e uma conscientização popular de sua implementação. Na língua inglesa há a tentativa de implementação de sistemas pronominais não binários, resumidos no Quadro 4. Entretanto, a utilização dessas formas é, pelo menos, mais restrita que o uso do they singular. Quadro 4 – Formas pronominais de 3ª não binárias distribuídas por suas funções sintáticas, propostas para o inglês Nominativo Acusativo Oblíquo Possessivo Reflexivo zie zim zir zis zieself sie sie hir hirs hirself ey em eir eirs eirself ve ver vis vers verself tey ter tem ters terself 21 Não é à toa que o uso do diminutivo, da diminuição do referente é um recorrente instrumento linguístico de dois extremos afetivos: o xingamento e a expressão de afeto. Em ambos, há uma conotação ao infantil do diminutivo. Draft – 03/05/2021 e em eir eirs emself Fonte: https://uwm.edu/lgbtrc/support/gender-pronouns/ O êla do português brasileiro é outro exemplo dessa terceira estratégia, mas sem o respaldo institucional, necessário para sua implementação. Para além da inexistência desse suporte político, nos deparamos com o já mencionado falogocentrismo como “coluna dorsal das normas de gênero” (BENTO, 2017, p. 60). Isso justifica a marginalização de sua referencialidade, exclusivamente a uma leitura de matiz feminilizante, historicamente apagada nas sociedades ocidentais. A tendência brasileira de os usos de um pronome não binário serem associados à marcação de corpos lidos como feminis ou transgêneros, especificamente gays efeminados, travestis e mulheres transgêneras, ilustra contundentemente esse cenário. As estratégias identificadas não devem ser as únicas disponíveis para um tratamento justo de gênero nas línguas, mas apareceram em nossa pesquisa e fomentam o debate aqui proposto. Outras pesquisas, no entanto, mostram a introdução de novas formas de referenciação pronominal não binária (ou não generificada) usadas, por exemplo, por falantes do inglês londrino, como man (CHESHIRE, 2013), ou yo, em uma variedade da língua inglesa falada na cidade estadunidense de Baltimore (STOTKO; TROYER, 2007). Curiosamente, mas não coincidentemente, todas essas estratégias foram registradas em comunidades jovens, o que pode indicar, segundo Penelope Eckert (1988, 1989),uma orientação no sentido da implementação nessas línguas. A adoção de estratégias justas para gênero deve, portanto, visar a reduzir estereótipos e a discriminação de gênero. O caso do português brasileiro ilustra como a integração de pesquisas sobre estrutura da língua, políticas de linguagem e estilo linguístico pode contribuir para uma justiça linguística de gênero, fomentando a redução da estereotipificação linguística, geradora de discriminação. Referências AIKHENVALD, Alexandra Y. How Gender Shapes de World. Oxford: Oxford University Press, 2016. https://uwm.edu/lgbtrc/support/gender-pronouns/ Draft – 03/05/2021 AIKHENVALD, Alexandra Y.; MIHAS, Elena I. Genders and Classifiers. A Cross- Linguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2019. AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019. 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