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Ciência, tecnologia e valores CAPÍTULO 23 As irmãs Cholmondeley (c. 1610), pintura de autoria desconhecida. Essa pintura inglesa do século XVII, de autor desconhecido, traz em seu canto inferior esquerdo a curiosa inscrição: “Duas irmãs da família Cholmondeley que nasceram no mesmo dia, se casaram no mesmo dia e tiveram filho no mesmo dia”. Apesar da distância no tempo, a obra que retrata as irmãs gê- meas não idênticas (os olhos não são da mesma cor e há peque- nas diferenças nas feições) possibilita refletir sobre diferenças ou semelhanças genéticas, remetendo a temas atuais relacionados à existência humana. Hoje, existem vários organismos geneticamente modificados, como algumas variedades de vegetais resistentes a pragas ou que permitem colheitas maiores, uma linhagem de porcos (chamados de P33) que podem vir a fornecer tecidos para transplantes em humanos, cabras que produzem leite com proteína antimicrobiana e uma grande va- riedade de organismos que fornecem hormônios, enzimas e outras substâncias para experiências biomédicas. Qual é o limite para experiências como essas? Quais serão as consequências evolutivas de manipulações? Quais são os riscos das experiências para a vida humana? Questões como essas impõem a necessidade de uma revisão de valores, principalmente os éticos. RE PR O D U Ç Ã O – G A LE RI A T A TE , L O N D RE S 300 Os principais objetivos deste capítulo são: distinguir senso comum e ciência; caracterizar método cientí� co; compreender a importância da comunidade cientí� ca; identi� car valores relacionados à ciência; e analisar a responsabilidade social do cientista. Sugerimos que ao longo do estudo alguns termos sejam destacados: ciência; senso comum; método cientí� co; comunidade cientí� ca; valores cognitivos, éticos e políticos; e responsabilidade social. Propomos o debate de uma das fundamentais questões bioéticas: autorizar a manipulação genética de embriões humanos pode levar à eugenia? Para enriquecer a discussão, vale apresentar aspectos da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1997. “[...] Artigo 2 a) A todo indivíduo é devido respeito à sua dignidade e aos seus direitos, independentemente de suas características genéticas. b) Esta dignidade torna imperativa a não redução dos indivíduos às suas características genéticas e ao respeito à sua singularidade e diversidade. [...] Artigo 4 O genoma humano em seu estado natural não deve ser objeto de transações � nanceiras. [...] Artigo 6 Nenhum indivíduo deve ser submetido a discriminação com base em características genéticas, que vise violar ou que tenha como efeito a violação de direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana.” Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.pdf>. Acesso em 28 mar. 2016. 1 Que caminho devo tomar? Lewis Carroll (1832-1898) era professor de matemática na Universidade de Oxford quando escreveu Alice no País das Maravilhas. A seguir, a transcrição do diálogo entre Alice e o Gato Cheshire, personagens da obra. — Gato Cheshire... quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo tomar? — Isso depende muito do lugar para onde você quer ir — disse o Gato. — Não me interessa muito para onde... — disse Alice. — Não tem importância então o caminho que você tomar — disse o Gato. — ... contanto que eu chegue a algum lugar — acrescentou Alice como uma explicação. — Ah, disso pode ter certeza — disse o Gato — desde que caminhe bastante. In: DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos; Edusp, 1972. p. 165. O trecho acima foi selecionado pelo professor de medicina ambiental René Dubos. Veja seu comentá- rio ao relacioná-lo com pesquisas científicas: A resposta do Gato tem sido frequentemente citada para exprimir a opinião de que os cientistas não sabem para onde o conhecimento está levando a humanidade e, além disso, não se importam mui- to. Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos sociais porque os seus valores são intelectuais e não éticos. [...] Mas é provável que a ciência possa contribuir para formular valores e, assim, estabele- cer objetivos, tornando o homem mais consciente das consequências de seus atos. A necessidade de conhecimento das consequências, no ato de tomar decisões, está implícita na observação do Gato de que Alice chegaria certamente a algum lugar se caminhasse bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-se bem indesejável, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir. Idem, ibidem. Com base nesses textos, iniciamos o capítulo concordando com a interpretação de Dubos: a ciência não é um saber neutro, desinteressado, pu- ramente intelectual e à margem do questionamento social e político acerca dos fins de suas pesquisas. 2 Senso comum O senso comum é o conhecimento que nos situa no cotidiano para compreendê-lo e agir sobre ele. Mais propriamente, trata-se de um conjunto de crenças, já que quase sempre se constitui pela tradi- ção, de modo espontâneo e não crítico. Em diversas situações, a ciência precisou se posicionar contra o que parecia evidente; por exemplo, a convicção da imobilidade da Terra e do movimento do Sol em torno dela. No entanto, não há como desprezar esse conhe- cimento tão universal que é o senso comum, por representar também o esforço para resolver proble- mas do dia a dia, buscando soluções muitas vezes bastante criativas. Tampouco desconsiderar o grande volume de saberes já construídos ao longo da história humana e cuja aplicação mostrou-se fecunda. De fato, antes de a física ser incorporada ao método científico inaugurado no século XVII, diversos povos já sabiam como flutuar embarcações, construir palácios, aquedutos, sistemas de irrigação etc. Antes de nascer a biologia como ciência, os médicos já identificavam inúmeras doenças e seu tratamento. Antes do surgimento da química, oficinas de meta- lurgia e de tingimento aperfeiçoavam suas técnicas. Calvin e Haroldo (1986), de Bill Watterson. Mesmo que a investigação científica tenha contribuições a dar para a gastronomia, no cotidiano basta a experiência proporcionada pelo senso comum, o que Calvin aparentemente não tem. C a lV in & h o BB es , B il l w a TT er so n © 1 98 6 w a TT er so n /d is T. B y u n iV er sa l u C li C K 301 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Distinção entre senso comum e ciência Por que esses exemplos ainda não constituíam conhecimento científico, pelo menos no sentido que passamos a entendê-lo desde o século XVII? Vejamos algumas diferenças entre senso comum e ciência, de acordo com a especificidade de cada um desses conhecimentos.1 Particular/geral O conhecimento proporcionado pelo senso comum é particular por se restringir a pequenas amostras da realidade, que servem de base a ge- neralizações muitas vezes apressadas e imprecisas. Os dados observados costumam ser selecionados de maneira pouco rigorosa, de modo que seja atribuído a todos os objetos o que vale para um deles ou para um grupo insuficiente de objetos observados. As leis científicas, porém, são gerais no sentido de valer para todos os casos que se assemelham aos casos observados, o que é possível porque as explicações da ciência são sistemáticas e con- troláveis pela experiência, permitindo alcançar conclusões gerais. Afirmações como “O peso de qualquer objeto depende do campo de gravitação” ou “A cor de um objeto depende da luz que ele reflete” ou, ainda, “A água é uma substância composta de hidrogênio e oxigênio” são válidas para todos os corpos, todos os objetos coloridos ou para qualquer porção deágua, e não apenas para aqueles que foram objeto da experiência. Fragmentário/unificador O conhecimento espontâneo é fragmentário, pois nem sempre reconhece conexões em situações em que elas poderiam ser verificadas. Por exemplo, pelo senso comum não é possível perceber qualquer rela- ção entre o orvalho da noite e o “suor” que aparece na garrafa retirada da geladeira; nem entre a combustão e a respiração, que é uma forma de combustão discre- ta relacionada à queima dos alimentos no processo digestivo para obter energia. Já o conhecimento científico é unificador, por possibilitar conexões, às vezes de modo bastante abrangente, como ocorreu com Isaac Newton. Se- gundo relatos, Newton teria intuído a lei da gravi- tação universal ao associar a queda de uma maçã à “queda” da Lua. Ou seja, a Lua não cai sobre a Terra porque está a uma distância em que sofre atração terrestre, mas não o suficiente para cair sobre ela: se por acaso se aproximasse um pouco mais, haveria de cair. Essa é uma maneira simples de explicar o caráter unificador da teoria da gravitação universal, que nos permite associar fenômenos aparentemente tão díspares como o movimento da Lua, as marés e a trajetória de projéteis. Subjetivo/objetivo O senso comum é frequentemente subjetivo, porque depende do ponto de vista individual e pes- soal, pois pode ser condicionado por sentimentos ou afirmações arbitrárias. Por exemplo, a dificuldade em reconhecer o valor profissional de alguém que nos inspire antipatia. Ao observar o comportamento de povos com costumes diferentes dos nossos, tende- mos a julgá-los com base em nossos valores e consi- derá-los estranhos, ignorantes ou até desagradáveis. Já o mundo construído pela ciência aspira à objetividade. Chama-se objetivo o conhecimen- to imparcial, que independe de preferências indivi- duais e permite confronto com pontos de vista de outros especialistas. Suas conclusões podem ser testadas e confirmadas por qualquer outro membro competente da comunidade científica. Ambiguidade/rigor Para ser objetiva, a ciência dispõe de uma lingua- gem rigorosa cujos conceitos são definidos para evi- tar ambiguidades, tornando-se cada vez mais precisa à medida que utiliza a matemática para transformar qualidades em quantidades. A “matematização” da ciência adquiriu grande importância no método de Galileu. Ao estabelecer a lei da queda dos corpos, Galileu mediu o espaço percorrido e o tempo que um corpo leva para des- cer um plano inclinado e, ao final das observações, registrou a lei numa formulação matemática. Ins- trumentos de medida, como balança, termômetro, dinamômetro, telescópio etc., também permitem ao cientista ultrapassar a percepção imediata, im- precisa e subjetiva da realidade. É bem verdade que as ciências humanas não dispõem de igual rigor, porque o componente qualitativo de seus objetos não pode ser reduzido à quantidade.2 Diferentemente do senso comum, as explicações científicas são formuladas em enunciados gerais, alcançados pelo exame de diferenças e semelhanças das propriedades dos fenômenos, de modo que um pequeno número de princípios explicativos possa uni- ficar um grande número de fatos. É assim que a ciên- cia se constrói de maneira mais objetiva e rigorosa. 1 Adaptado de NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires: Paidós, 1978. p. 15-26. 2 Consultar o capítulo 26, “O nascimento das ciências humanas”. 302 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 3 Método científico O conhecimento científico é conquista recente da humanidade, datando de cerca de 400 anos. Na Antiguidade grega, ciência e filosofia achavam- -se ainda vinculadas e se separaram apenas no século XVII, com a Revolução Científica iniciada por Galileu. A ciência moderna nasceu ao determinar seu objeto específico de investigação com métodos confiáveis, capazes de estabelecer melhor controle desse conhecimento. O rigor dos métodos científi- cos demarca um conhecimento sistemático, preciso e objetivo que permite a descoberta de relações universais entre os fenômenos, a previsão de acon- tecimentos e também a ação transformadora sobre a natureza de maneira mais segura e previsível. Desde a modernidade, as ciências vêm-se multi- plicando na busca do próprio caminho, ou seja, seu método. Cada ciência tornou-se uma ciência parti- cular ao delimitar seu campo de pesquisa e estabe- lecer procedimentos específicos restritos a setores distintos da realidade: a física trata do movimento dos corpos; a química, da sua transformação; a bio- logia, do ser vivo. Desde o século XX, constituíram-se ciências híbridas, como bioquímica, biofísica, meca- trônica, a fim de resolver problemas que exigem, ao mesmo tempo, o concurso de mais de uma ciência.3 Julgamento de Galileu (1633), pintura de autor desconhecido. A pintura retrata o julgamento de Galileu Galilei pelo Tribunal do Santo Ofício em Roma, no início do século XVII. Galileu foi obrigado pela Igreja Católica a renegar a teoria heliocêntrica. Reza a lenda, porém, que ele teria murmurado, referindo-se à Terra: “E pur, si muove!” (“E, no entanto, ela se move!”). 4 Comunidade científica Uma comunidade científica pode ser entendi- da como o conjunto dos indivíduos que se reco- nhecem e são reconhecidos como possuidores de conhecimentos específicos na área da investigação científica. Membros dessa comunidade avaliam- -se reciprocamente a respeito dos resultados de suas pesquisas, utilizando diversos canais de comu- nicação, como congressos, revistas especializadas, conferências e sociedades científicas. Não faz tanto tempo que as grandes realizações científicas eram fruto de gênios individuais, mas atualmente a ciência resulta de trabalho em equipe, o que é relevante para estabelecer e alterar o mé- todo científico e a produção da ciência. É nesse sentido que o filósofo belga Gérard Fourez (1937) comenta: Afinal, um laboratório terá uma boa performan- ce tanto por seu pessoal ser bem organizado e ter acesso a aparelhos precisos como por raciocinar corretamente. A fim de produzir resultados cientí- ficos, é preciso também possuir recursos, acesso às revistas, às bibliotecas, a congressos etc. É preciso também que, nas unidades de pesquisa, a comuni- cação, o diálogo e a crítica circulem. O método de produção da ciência passa, portanto, pelos proces- sos sociais que permitem a constituição de equipes estáveis e eficazes; subsídios, contratos, alianças sociopolíticas, gestão de equipes etc. Mais uma vez, a ciência aparece como um processo humano, feito por humanos, para humanos e com humanos. FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 94-95. Mesmo assim, não é possível considerar essas conclusões como indubitáveis. É preciso superar a falsa ideia de conhecimento científico como “certo” e “infalível”, pois há muito de construção nos modelos científicos. Às vezes, até teorias incompatíveis entre si podem ser aceitas; por exemplo, tanto a teoria cor- puscular como a teoria ondulatória permaneceram válidas por explicar aspectos diferentes do fenômeno luminoso. Além disso, a ciência encontra-se em cons- tante evolução, e suas teorias são, de certo modo, provisórias, ainda que comprovadas com recursos de que dispõem até o momento. Participar de uma comunidade científica, no entanto, não significa que a aceitação de qualquer teoria pela maioria exija adesão sem crítica dos demais. Assim justifica o filósofo e cientista anglo- -polonês Jacob Bronowski (1908-1974): 3 Consultar o capítulo 25, “Revolução científica e método das ciências naturais”, no qual são analisadas as características do método das ciências da natureza. Br id g em a n im a g es /K ey st o n e Br a si l – C o le ç ã o P a rt iC u la r 303 Independência e originalidade, discordância,liberdade e tolerância: tais são os primeiros requi- sitos da ciência, e estes são os valores que, de si própria, exige e forma. A sociedade de cientistas deve ser uma democra- cia. Apenas se pode manter viva e crescer por uma tensão constante entre a dissidência e o respeito; entre a independência das opiniões dos outros e a tolerância para com elas. O ponto fundamental do problema ético é fundir as necessidades particulares e públicas. BRONOWSKI, Jacob. Ciência e valores humanos. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1979. p. 68. deve ser explicitado e a série de dados empíricos que sustentam a conclusão pode ser verificada por qualquer membro da comunidade científica. Já ocorreram situações de fraude em que, por di- versas circunstâncias, não houve condições de a teo- ria ser desmascarada. Um exemplo de parcialidade mal-intencionada foi a “descoberta” de um crânio e de uma mandíbula em 1911, na Inglaterra, atribuídos a um ancestral hominídeo. O arqueólogo Charles Dawson (1864-1916) juntou um crânio humano relativamente recente à mandíbula de um símio, escureceu as peças e limou os dentes. Apenas quarenta anos depois, por meio de novas técni- cas de datação, foi constatada a fraude. Não se sa- bem os motivos da parcialidade do arqueólogo, que certamente feriu normas éticas, mas seu interesse não foi cognitivo, ou seja, não visava conhecer a realidade como tal. Autonomia A autonomia depende da possibilidade de inde- pendência das investigações. Conforme seria prefe- rível, instituições científicas deveriam estar livres de pressões externas para definir agendas voltadas para a produção de teorias imparciais e neutras. Exemplo de perda de autonomia foi o caso de Galileu, julgado e condenado pela Inquisição por ter levantado a hipótese heliocêntrica, em oposição ao geocentrismo vigente. Na primeira metade do século XX, na então União Soviética, Joseph Stálin (1879-1953) apoiou Trofim Lysenko (1898-1976), biólogo que contraditava as leis de Gregor Mendel (1822-1884), que até hoje é considerado o “pai” da genética. Por questões ideológicas, cientistas men- delianos soviéticos foram perseguidos e presos, um tipo de censura política à liberdade e à autonomia de cientistas. Neutralidade O conhecimento científico é neutro porque, em tese, não deve atender a nenhum outro valor além do cognitivo. No processo de investigação propria- mente dito, as convicções pessoais no campo da moral e da política não deveriam interferir no anda- mento do processo e nas conclusões científicas. Ou seja, aspectos como nacionalidade, etnia, religião e classe social dos cientistas são irrelevantes para que se alcance a verdade científica. No entanto, quando um desses fatores interfere na pesquisa, isso resulta em prejuízo à ciência, por fazê-la perder a objetividade ao dar maior peso a fatores subjetivos e extrínsecos à investigação, como interesses eco- nômicos, políticos, religiosos etc. Dois dos pesquisadores que estão entre os mais de 4 mil cientistas, médicos e enfermeiros envolvidos em estudo sobre o câncer na Universidade de Cambridge (Reino Unido), 2014. Desde Arquimedes, a ciência foi um trabalho para inventores e gênios solitários, mas atualmente ela é realizada por equipes de grandes laboratórios, financiados por empresas multinacionais, universidades e governos. 5 Ciência e valores Que valores são importantes na atividade cien- tífica? Em primeiro lugar, a ciência visa ao valor cognitivo, isto é, o cientista quer conhecer, sem ter em vista, inicialmente, a aplicação prática do conhecimento. No entanto, veremos que o trabalho científico envolve, além de aspectos cognitivos, valores éticos e políticos. Valores cognitivos Examinaremos inicialmente três características que garantem o valor cognitivo da ciência: impar- cialidade, autonomia e neutralidade. Imparcialidade A imparcialidade consiste em aceitar como cien- tíficas apenas teorias que passaram pelo crivo de rigorosos padrões de avaliação. O método utilizado d a n K iT w o o d /C a n C er r es ea rC h u K /g eT Ty im a g es 304 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Valores éticos e políticos O conhecimento científico precisa ser neutro, além de imparcial e autônomo, a fim de garantir racionalidade e objetividade nas observações e pesquisas. No entanto, sob outros aspectos, a neu- tralidade científica pode tornar-se uma ilusão. Não se trata de incoerência, mas do reconhecimento de que o poder da ciência e da tecnologia é ambíguo, já que pode estar a serviço do conjunto da humani- dade ou restrito a apenas parte dela. Portanto, toda atividade técnica e científica deve indagar quais são os fins que orientam os meios utilizados, o que exige reflexões de caráter moral e político. Exemplos disso são as altas cifras destinadas a pesquisas que dependem de apoio financeiro de instituições públicas e privadas, interessadas em subvencionar trabalhos que as beneficiem, nem sempre focados na saúde e no bem-estar da maioria das pessoas. É o caso da “indústria da guerra”, que, há muito, alimenta a corrida armamentista e exige constante avanço científico e tecnológico. Com base em sucesso obtido com a aplicação de experiências e técnicas científicas em animais, possi- bilidades de clonagem de seres humanos também têm sido objeto de debates acalorados. Por sua vez, o temor de que cientistas se encaminhem para a clonagem hu- mana tem desviado importantes discussões a respeito de pesquisas com células-tronco que não dependem do embrião propriamente dito, mas da medula óssea ou do cordão umbilical. As vantagens das novas pesquisas estariam na prevenção e na cura de diversas doenças. Em resumo, procedimentos metodológicos da ciência tendem a ser neutros quando têm em vis- ta apenas a racionalidade científica, mas não em relação aos fins que orientam as pesquisas nem quan- to aos objetivos a que se destinam suas descobertas. Estas últimas colocam em questão debates éticos e políticos, que devem ser realizados pelos cientistas. Com seu colega, discuta por que um arquiteto precisa estar atento a questões éticas e políticas, além do conhecimento técnico. Acrescente algum fato que ilustre a argumentação. Para refletir 6 Responsabilidade social do cientista Pelo que vimos, a ciência não se resume à neutra- lidade da procura do “saber pelo saber”, porque se encontra permeada por indagações éticas e políticas, o que se configura pela responsabilidade social da qual o cientista não pode abdicar. Essas constatações nos obrigam a refletir sobre a formação do cientista, que não se restringe ao aprendizado de conteúdos, metodologias e práticas de pesquisa. Mais do que isso, o futuro cientista adquire condições de examinar pressupostos de seu conhecimento e de sua atividade quando se desco- bre como pertencente a uma comunidade e capaz de identificar valores subjacentes à sua prática. O papel da filosofia com relação à ciência e suas aplicações encontra-se na investigação dos fins e das prioridades a que a ciência se propõe, na análi- se das condições em que se realizam as pesquisas e nas consequências do uso das técnicas. Cerimônia em frente ao Memorial da Paz, em Hiroshima (Japão), lembra as vítimas da bomba atômica. Foto de 2015. A construção iluminada nessa foto foi a única que restou de pé em Hiroshima (Japão) após a explosão da bomba atômica lançada pelos Estados Unidos em agosto de 1945. Mantida no mesmo estado, hoje faz parte do Memorial da Paz e é símbolo de apelo ao fim das armas nucleares e para que ninguém se esqueça de atos bárbaros praticados por nações civilizadas. Em frente, a população acende lanternas de papel flutuantes com mensagens de paz para lembrar o lançamento da bomba. Essa triste lembrança nos faz pensar na importância da reflexão ética sobre os fins para os quais usamos a tecnologia,o fruto ambíguo da ciência contemporânea. C h ri s m C g ra Th /g eT Ty im a g es 305 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . Leitura complementar “‘Por que dar um lugar à fi losofi a na formação dos cientistas?’. Poderíamos perguntar tam- bém: ‘Por que um curso de informática para um químico?’, ou: ‘Por que um curso de ciências naturais para um matemático?’. A essas questões não existe uma resposta científi ca: a resposta é do âmbito de uma política universitária. Impõem-se matérias em um programa porque ‘se’ (ou seja, aqueles que têm o poder de impor programas) considera que essas matérias são ne- cessárias seja para o bem do estudante, seja para o bem da sociedade; trata-se sempre do ‘bem’ do modo como os organizadores das formações o representam, de acordo com seus projetos e interesses próprios. Em certos países, o legislador pensou que um universitário diplomado não pode ser pura e simplesmente identifi cado como um puro técnico. Considerou que os universitários, já que a socie- dade lhes dará um certo poder, devem também ser capazes de examinar com certo rigor questões que não sejam concernentes à sua técnica específi ca. Trata-se de uma escolha política e ética, no sentido de que aqueles que a fi zeram julgaram que seria irresponsável formar ‘cientistas’ sem lhes dar uma certa formação nesse domínio humano (isso nos remete ao fato de que a universidade não forma ‘matemáticos’, ‘físicos’, ‘químicos’ etc., de maneira abstrata, mas seres humanos que cumprirão um certo número de funções sociais, as quais os levarão a assumir responsabilidades). Sem dúvida, também, além do interesse para a sociedade em ter cientistas capazes de refl etir, alguns políticos da universidade consideraram que não seria ‘ético’ submeter pes- soas jovens ao condicionamento que é uma formação científi ca sem lhes dar uma espécie de antídoto pelo viés das ciências humanas (dizer que consideramos que algo não é ‘ético’ equivale a dizer que não gostaríamos de um mundo onde essa coisa acontecesse). A propósito dessas decisões políticas, assinalamos um fato empírico. Pesquisas mostraram (Holton, 1978) que, em nossa sociedade, há mais estudantes que se pretendem ‘apolíticos’, ou não interessados pelas questões que fujam ao campo de suas técnicas entre aqueles que se des- tinam às ciências, do que entre aqueles que escolhem outras áreas. Os que escolhem a ciência prefeririam ser menos implicados nas questões relativas à sociedade. Pode-se perguntar por quê? Talvez porque facilmente podemos imaginar os cientistas em uma espécie de torre de marfi m! De qualquer modo, a ‘política’ desta obra é constituir um contrapeso a essa tendência, propondo uma abordagem fi losófi ca. Nasceu junto a uma decisão de política universitária inserindo no programa um curso de fi losofi a e outros cursos de formação humana. Esta prática de ‘contrapeso’ existe também, aliás, no interior das próprias disciplinas científi cas. Desse modo, recusar-se-á a formar um físico teórico sem lhe dar ao menos alguns exercícios de laboratório; é igualmente uma decisão de política universitária. As decisões no campo da política universitária que elaboram os programas são sempre um agregado de compromissos tentando responder ao que diferentes grupos, muitas vezes opostos por suas concepções e/ou interesses, consideram ‘bom’ para aqueles que seguem a formação e/ou para a sociedade... e também – ainda que isso seja muitas vezes dissimulado – para os seus próprios interesses.” FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 25-27. Questões 1. Explique sob que aspecto o filósofo belga Gérard Fourez reconhece a importância do estudo de filosofia em cursos de formação científica. 2. Explique por que para o cientista, ao se perguntar sobre “O que é ciência?” ou “Qual é a importância da ciência?”, sua resposta certamente não será científica, mas filosófica. 3. Escolha uma profissão que exija conhecimentos científicos. Depois, em grupo, discutam que temas filosóficos de natureza ética e política seriam importantes para a formação desses profissionais. Por exemplo, médico, advogado, agrônomo, economista, administrador de empresas etc. 306 O porquê da filosofia em um programa de ciências AT IVIDADES Revendo o capítulo 1 Faça um quadro comparando as características do senso comum e as do conhecimento científico. 2 Explique o que significa objetividade científica. Em seguida, dê exemplos com base em seus próprios estudos de diversas ciências. 3 Qual é a importância do método científico? 4 Quais são o papel e a importância da comunidade cien- tífica? 5 Estabeleça a distinção entre valores cognitivos, éticos e políticos na ciência. Aplicando os conceitos 6 Leia o texto e atenda às questões. A ciência [...] procura remover tudo o que for único no cientista, individualmente considerado: recordações, emoções e sentimentos estéticos des- pertados pelas disposições de átomos, as cores e os hábitos de pássaros, ou a imensidão da Via Láctea [...]. Poentes e cascatas são descritos em termos de frequências de raios luminosos, coefi cientes de refração e forças gravitacionais ou hidrodinâmicas. Evidentemente, essa descrição, por mais elucidativa que seja, não é uma explicação completa daquilo que realmente experienciamos. KNELLER, George. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 149. a) Com base na citação de George Kneller, identifi- que as vantagens e as limitações da ciência em relação a outros tipos de conhecimento. b) Identifique no texto os elementos que indicam o caráter objetivo da ciência. 7 Identifique, na citação a seguir, as características da pesquisa científica contemporânea. A descoberta [da molécula do DNA, em 1953] de [Francis] Crick e [James] Watson foi o ponto cul- minante de oitenta anos de pesquisas realizadas por numerosos cientistas. Durante seu trabalho conjunto de dezoito meses, Crick e Watson avançaram por trinta ou quarenta etapas discerníveis, umas bem- -sucedidas, outras malogradas, no caminho para a solução decisiva, cada etapa derivando ou dependen- do de um fato ou teoria científi ca existente, e cada qual atribuível a um predecessor ou contemporâneo – pessoas como Bragg, Chargaff, Pauling, Donohue, Wilkins e Franklin. BRODY, David Eliot; BRODY, Arnold R. As sete maiores descobertas científicas da história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 373. 8 Leia a citação e responda às questões. Aqueles que pensam que a ciência é neutra do pon- to de vista ético, confundem as descobertas da ciência, que o são, com a atividade da ciência, que o não é. BRONOWSKI, Jacob. Ciência e valores humanos. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp, 1979. p. 69. a) Reescreva o texto de maneira mais clara. b) Explique a que sentido de neutralidade o texto se refere. 9 Leia o texto abaixo e atenda às questões. As estratégias adotadas na pesquisa tecnocien- tífi ca atual têm uma relação de reforço mútuo não somente com os valores do progresso tecnológico, mas também com valores que dão a maior importân- cia ao crescimento econômico. É isto que ameaça os valores democráticos – por ser a pesquisa científi ca cada vez mais colocada sob o controle das corpora- ções (agrobusiness, corporações farmacêuticas e de energia etc.) e agências de governo que são sensíveis aos interesses corporativos. [...] Isso quer dizer que a pesquisa que é muito importante para fortalecer os valores democráticos não está sendo conduzida, ou que recursos inadequados estão disponíveis a ela. Por exemplo, segurança alimentar é essencial para o bom funcionamento da democracia [...]. A pesquisa ne- cessária para o fortalecimento dos projetos de sobe- rania alimentar (e para testar seu potencial total) não é capaz de obter os recursos adequados enquanto aciência do “interesse privado” é dominante. LACEY, Hugh. Entrevista: Hugh Lacey. In: Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro: EPSJV, v. 7, n. 3, p. 625-626, nov. 2009/fev. 2010. a) O que Hugh Lacey entende por ciência do “interesse privado” e a que tipo de ciência ela se contrapõe? b) Reflita sobre o vasto número de pessoas que, em todos os continentes, sofrem com a insegurança alimentar. Na sua opinião, esse problema deveria ser tratado com o auxílio da ciência? Dissertação 10 Redija uma dissertação sobre a questão ética do uso de animais em experiências científicas. Esse proce- dimento é usual há muito tempo; no entanto, com a novidade da discussão sobre o direito dos animais, o tema tem sido objeto de revisão, seja para evitar o sofrimento animal, seja no sentido extremo de extin- ção do procedimento. Antes de redigir a dissertação, faça uma pesquisa em livros ou sites de ciências, como também de ONGs protetoras de animais, a fim de ampliar seus conhecimentos sobre o assunto. Não se esqueça de indicar a referência da bibliografia uti- lizada e de usar aspas quando recorrer a citações. 307 R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 .
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