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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G965 Guerreiras de natureza [recurso eletrônico] : mulher negra, religiosidade e ambiente / organização Elisa Larkin Nascimento. - São Paulo : Selo Negro, 2014. recurso digital : il. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira ; 3) Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-8455-004-3 (recurso eletrônico) 1. Negras - Brasil - História. 2. Negras - Brasil - Condições sociais. 3. Discriminação racial - Brasil. 4. Discriminação de sexo contra as mulheres - Brasil. 5. Cultos afro-brasileiros. 6. Negros - Brasil - Religião. 7. Brasil - Civilização - Influências africanas. 8. Livros eletrônicos. I. Nascimento, Elisa Larkin. II. Série. 14-14971 CDD: 305.48896081 CDU: 316.356.4(81)(=013) 13/08/2014 15/08/2014 Compre em lugar de fotocopiar. Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores e os convida a produzir mais sobre o tema; incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar outras obras sobre o assunto; e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros para a sua informação e o seu entretenimento. Cada real que você dá pela fotocópia não autorizada de um livro financia um crime e ajuda a matar a produção intelectual de seu país. GUERREIRAS DE NATUREZA mulher negra, religiosidade e ambiente Copyright © 2008 by autores Direitos desta edição reservados por Summus Editorial Editora executiva: Soraia Bini Cury Assistentes editoriais: Bibiana Leme e Martha Lopes Capa, projeto gráfico e diagramação: Gabrielly Silva Selo Negro Edições Departamento editorial Rua Itapicuru, 613 – 7o andar 05006-000 – São Paulo – SP Fone: (11) 3872-3322 Fax: (11) 3872-7476 http://www.selonegro.com.br e-mail: selonegro@selonegro.com.br Atendimento ao consumidor Summus Editorial Fone: (11) 3865-9890 Vendas por atacado Fone: (11) 3873-8638 Fax: (11) 3873-7085 e-mail: vendas@summus.com.br Versão digital criada pela Schäffer: www.studioschaffer.com http://www.selonegro.com.br/ mailto:selonegro@selonegro.com.br mailto:vendas@summus.com.br http://www.studioschaffer.com/ Dedicamos este volume à memória de três militantes do movimento afro-brasileiro. Arinda Serafim, atriz e empregada doméstica, ajudou a fundar o Teatro Experimental do Negro (1944) e a Associação das Empregadas Domésticas (1950). Dra. Guiomar Ferreira de Mattos, advogada, teve papel destacado na organização do Conselho Nacional das Mulheres Negras (1950) e da Associação das Empregadas Domésticas (1950). Marietta Campos Damas, técnica administrativa, foi um esteio da luta afro-brasileira nas décadas de 1950 e 1960, esposa de Léon Damas, co- fundador e poeta da Négritude. Na pessoa dessas guerreiras, saudamos todas as mulheres africanas e afrodescendentes que dedicam a vida à melhoria das condições de seus povos. Agradecemos à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a oportunidade de realizar este trabalho. A PUC-SP abrigou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) de 1981 até 1984, no conjunto de seus programas voltados a reflexão e ação comunitárias. A Uerj cedeu o espaço físico para a realização do curso Sankofa a partir de 1985 e, durante a gestão do reitor Hésio Cordeiro, criou o Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-Americanos (Proafro), sob a direção do professor doutor José Flávio Pessoa de Barros, diretor do Centro de Ciências Sociais (CCS) da universidade. Inserimos o trabalho do Sankofa no Setor de Ensino do Proafro no período de 1993 a 1995. Agradecemos, ainda, ao RioArte, que sob a direção de dois iluminados intelectuais de saudosa memória, o poeta Gerardo Mello Mourão e o crítico Tertuliano dos Passos, ofereceu apoio à realização do curso entre 1985 e 1990. Hélio Portocarrero, na qualidade de presidente do RioArte, manteve esse apoio durante a sua gestão. Igualmente agradecemos aos professores Abdias Nascimento e Vanda Maria de Souza Ferreira, titulares da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro). Além de apoiar a realização do curso Sankofa e de dois fóruns sobre a questão racial no ensino, em 1991 e 1993, a Seafro ensejou a condução de seminários e programas de capacitação de professores no interior do estado do Rio de Janeiro, em municípios como Campos, Cabo Frio, Três Rios e outros, como parte do projeto Sankofa. Agradecemos, sobretudo, ao engajamento e à dedicação de nossos professores, que colaboraram com o projeto ao longo de vários anos. Além dos autores de textos incluídos neste volume, já participaram do corpo docente do Sankofa vários escritores e intelectuais da área artística como Djalma Corrêa, Estêvão Maya Maya, Eduardo de Oliveira, Maria de Lourdes Teodoro, Rogério Andrade Barbosa e Júlio Emílio. Nas ciências sociais, contamos com os professores Muniz Sodré, Joel Rufino dos Santos, Juana Elbein dos Santos, João Baptista Borges Pereira, Neuza Santos Souza, Adilson Pinto Monteiro, Rimes Soares e Eliane Santos de Souza. Os convidados africanos muito contribuíram com sua participação, a começar por Kofi Awoonor, poeta, romancista, crítico literário e historiador, embaixador de Gana no Brasil no período de 1976 a 1986. Seu sucessor, Michael Hamenoo, também sankofou, ao lado dos colegas Francisco Romão de Oliveira e Silva e Ismael Diogo da Silva, de Angola. Este último era cônsul-geral de Angola no Rio de Janeiro quando participou do curso do Ipeafro; hoje é também embaixador da República de Angola no Brasil. Quatro de nossos professores merecem menção especial, pois já se juntaram aos ancestrais. O professor e crítico Ironides Rodrigues, que proferiu aulas no Sankofa, trazia uma história de engajamento e reflexão desde 1944, quando lecionava nos cursos de alfabetização e cultura geral do Teatro Experimental do Negro (TEN). Lélia Gonzalez foi uma destacada pensadora e ativista amefricana – termo cunhado por ela para descrever os afrodescendentes em todas as Américas. A explicação e o desenvolvimento do conceito de amefricanidade constituem a base da produção teórica de Lélia, que era diretora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio quando faleceu, em 1994. Perdemos ainda, no ano seguinte, a historiadora, escritora e militante do movimento negro Beatriz Nascimento, que fazia seu doutorado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Francisco Romão de Oliveira e Silva participou do curso Sankofa no Rio de Janeiro na qualidade de embaixador da República de Angola no Brasil. Quando faleceu em Angola, no ano de 2004, exercia o cargo de vice-ministro das Relações Exteriores. À professora Telma Rosina Simone da Gama, do CCS/Uerj, nosso comovido abraço pelo infalível incentivo e apoio. Agradecemos a ajuda de Carlos Henrique Bemfica na pesquisa e revisão dos manuscritos, bem como na atual fase dos trabalhos do Ipeafro. Léa Regina Dias da Silva também merece nossos agradecimentos pelo apoio ao Ipeafro nesses últimos anos. O Ipeafro existe – e, portanto, também o curso Sankofa – graças à inspiração e ao esforço monumental de Abdias Nascimento, que ao longo da vida tanto criou e construiu para o avanço da causa afro-brasileira. Elisa Larkin Nascimento Rio de Janeiro, julho de 2007 SUMÁRIO Apresentação à nova edição Carlos Moore Introdução à nova edição Elisa Larkin Nascimento Primeiras palavras Mãe Beata de Yemonjá Apresentação Mirian Goldenberg Introdução Elisa Larkin Nascimento 1. Mulher negra Lélia Gonzalez 2. Grandes mães, reais senhoras Gizêlda Melo Nascimento 3. Religiões afro-brasileiras Helena Theodoro 4. Mulher negra, cultura e identidade Helena Theodoro 5. O candomblé Sueli Carneiro e Cristiane Cury 6. O poder feminino no culto aos orixás Sueli Carneiro e Cristiane Cury 7. Lições das vozes silenciadas: mulher, cultura afro-brasileira e desenvolvimento sustentável ElisaLarkin Nascimento 8. Natureza, morada dos orixás Aderbal Moreira 9. A intolerância religiosa e os meandros da lei Hédio Silva Jr. 10. A força cultural das florestas Dandara 11. Bantos, índios, ancestralidade e meio ambiente Nei Lopes 12. Sassanhe: o “cantar das folhas” e a construção do ser J osé Flávio Pessoa de Barros José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão Teixeira 13. Como a Jurema nos disse: representações e drama social afro-indígena José Flávio Pessoa de Barros e Clarice Novaes da Mota Siglas e abreviações Referências bibliográficas APRESENTAÇÃO À NOVA EDIÇÃO POR QUE AS MATRIZES AFRICANAS? A reedição da coleção Sankofa acontece em um momento de singular importância para os estudos brasileiros sobre a África e as diásporas africanas. Hoje, os estudos africanos não atendem apenas a uma demanda exclusiva do movimento social negro, mas de toda a sociedade, e tornam- se indispensáveis para o conhecimento do mundo no qual vivemos e dos mundos que nos precederam. Fruto do ativismo de educadores negros e seus aliados, a Lei nº 10.639/2003 coloca a sociedade inteira diante da obrigatoriedade de assumir o legado africano como uma precondição essencial para desenvolver o conhecimento. Era precisamente isso – assumir essa precondição e atender a essa demanda – que se almejava com a produção da coleção Sankofa na década de 1980. Por que assumir o legado africano como precondição essencial do conhecimento? Os temas abordados nestes quatro volumes vêm nos mostrar: as histórias e as culturas africana e afro-brasileira dizem respeito não apenas aos descendentes africanos, mas à humanidade como um todo e ao Brasil como nação. No primeiro volume, vamos conhecer por que a noção da África como berço único da humanidade, arcaica e moderna, é um dos dados que se impõem com força cada vez maior nos estudos interdisciplinares sobre os seres humanos e as redes sociais complexas que estes têm constituído ao longo de seus quase três milhões de anos de existência. Entenderemos por que é necessário conhecer a África para compreender a origem das primeiras civilizações e a formação do mundo antigo e contemporâneo. Teremos uma introdução à saga de resistência dos povos africanos ao domínio colonial e ao sistema escravista mercantil, que implantou as nações modernas das Américas, e exploraremos as implicações dessa dinâmica nas relações entre Brasil e África. O segundo e o terceiro volumes abordam aspectos básicos de como a matriz africana fundamenta a cultura brasileira e da importância da luta anti-racista dos negros para a história brasileira, inclusive na área da educação. Os dois livros mostram o papel fundamental da mulher negra e da religiosidade de origem africana na formação da cultura brasileira e nas perspectivas de sustentação do meio ambiente. No quarto volume, conheceremos uma das contribuições que os intelectuais africanos oferecem ao desenvolvimento do saber no mundo contemporâneo. Este conjunto de obras aparece em um momento no qual já foi nitidamente desenhado o tipo de estruturas socioeconômicas planetárias que pretendem ditar as normas em todos os âmbitos, especialmente no da educação. O mundo globalizado que tomou forma a partir da queda do projeto comunista e do fim da Guerra Fria é um mundo hegemônico não somente do ponto de vista econômico e político, mas também (e sobretudo) do ponto de vista ideológico. Embora se apresente como um mundo antiideológico – aliás, como o mundo do fim das ideologias –, na realidade ele massifica e difunde globalmente uma cultura ideológica que se apresenta como inclusiva. Trata-se da imagem fracionada de uma diversidade rasa e fácil, transmitida nos pulsos eletrônicos dos meios de comunicação de massa, incapaz de remeter à riqueza e à profundidade das diferentes culturas e experiências históricas. O recente revisionismo da narrativa histórica sobre a África faz parte dessa visão hegemônica cujo impacto contribui para manter a subalternização e a dominação dos povos e descendentes africanos. A coleção Sankofa realiza um trabalho no sentido contrário – o de reafirmar e aprofundar as bases históricas de uma narrativa cujos protagonistas são o próprio povo africano e sua produção intelectual e científica – e oferece referenciais para uma formação intelectual capaz de contemplar as verdadeiras dimensões de nossa diversidade, contribuindo assim para a elaboração do pensamento contemporâneo. Carlos Moore Salvador, 2008 INTRODUÇÃO À NOVA EDIÇÃO Após treze anos, voltamos a editar a coleção Sankofa (desta vez em quatro volumes), no intuito de atender à demanda que aumentou bastante desde a primeira edição. Continuam escassos, se comparados à amplitude dessa demanda, os recursos disponíveis para subsidiar o ensino da história e da cultura afro-brasileiras, apesar de estar em vigor, há quatro anos, a lei que o torna obrigatório. Tal demanda não é apenas quantitativa, mas principalmente qualitativa. Precisamos de obras que abordem esses temas de um novo ponto de vista. Carecemos de pesquisas e reflexões construídas sobre novas bases epistemológicas. As informações reunidas nos volumes da coleção Sankofa atendem a essa demanda específica, e temos certeza de que serão de grande valor para uma população que está inserta em um mundo cada vez mais globalizado e procura fundamentar uma nova articulação de sua identidade. Refiro-me à população brasileira, e não apenas aos negros brasileiros. Para estes, porém, a recuperação de identidade ganha uma dimensão especial, pois a distorção, a escamoteação e a falta de referências sobre a história e a cultura africanas desembocam no desconhecimento de suas raízes, que são também as raízes do Brasil e dos países da diáspora. A falta de conhecimento sobre suas origens contribui para que muitos afrodescendentes tenham baixa auto-estima, o que impede seu acesso pleno às oportunidades e mina sua capacidade de lutar por direitos. Essa situação levou o movimento social afro-brasileiro a exercer forte pressão política. Esse movimento, que vem se articulando desde a Convenção Nacional do Negro, realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos de 1945 e 1946, quando intelectuais e ativistas negros advogaram medidas afirmativas no contexto da Assembléia Constituinte de 1946, expandiu-se bastante nas décadas de 1970 e 1980. No final do século XX, com a terceira Conferência Mundial contra o Racismo, o movimento abriu nova brecha com a modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003), que tornou obrigatória a temática história e cultura afro-brasileiras.1 A primeira edição desta coleção marcou um momento rico nesse processo, pois foi publicada pela Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-brasileiras (Seafro), único órgão executivo estadual de primeiro escalão voltado para a articulação e implementação de políticas públicas de combate ao racismo.2 O projeto Sankofa incluía a distribuição dos livros às bibliotecas públicas e às redes de ensino municipais e estadual do Rio de Janeiro, bem como a realização de fóruns e atividades de preparação de educadores para o ensino da história e da cultura afro-brasileiras. Essas iniciativas aconteceram uma década antes da promulgação da Lei nº 10.639, de 2003. Essa primeira versão da coleção Sankofa, em dois volumes, reunia os textos de apoio para o curso Sankofa, ministrado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (Ipeafro) no período de 1983 a 19953, bem como o resultado dos dois fóruns que o Ipeafro realizou em conjunto com a Seafro, nos anos de 1991 e 1993. A segunda edição da coleção teve três volumes e trouxe novos ensaios.4 A presente coleção baseia-se nesses três livros, atualizados e com novos conteúdos, e agrega um quarto, a antologia de ensaios Afrocentricidade – Uma abordagem epistemológica inovadora. O primeiro volume, A matriz africana no mundo, introduz o leitor à história e às civilizações africanas da antigüidade e ao legado do grande cientista senegalês CheikhAnta Diop. Oferece também uma introdução à história da resistência pan-africana e às relações do Brasil com a África, contando com dois textos novos, um de Carlos Moore e outro de Anani Dzidzienyo. O segundo volume, Cultura em movimento – Matrizes africanas e ativismo negro no Brasil, focaliza a matriz africana no Brasil, o movimento social afro-brasileiro e a questão prioritária da ação deste: a educação. Aborda a Lei nº 10.639/2003, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e traz informações atualizadas sobre esses temas. O presente volume, Guerreiras de natureza – Mulher negra, religiosidade e ambiente, é enriquecido com a apresentação de Mãe Beata de Yemonjá; o ensaio de Aderbal Moreira sobre o culto aos orixás e a preservação da natureza; e o ensaio de Hédio Silva Jr. sobre a ação jurídica contra a intolerância religiosa. O movimento negro organizado vem protagonizando uma série de iniciativas de defesa da religiosidade de origem africana diante do ataque acirrado de novas seitas cristãs. Até muito recentemente, o Estado brasileiro aliava-se à Igreja Católica oficial na perseguição ao candomblé, com direito a batidas policiais nos terreiros e à apreensão de objetos sagrados, que passavam a ser guardados nos museus da polícia. Hoje, com a proliferação das igrejas evangélicas, essa perseguição adquire outros contornos, obrigando o movimento social afro- brasileiro a liderar atos públicos e ações judiciais, entre outras iniciativas. Uma vitória marcante foi a instituição de 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, por meio da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. A coleção Sankofa ganha agora um quarto volume, Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora, que introduz ao público brasileiro a proposta articulada pelo professor Molefi K. Asante com base nos referenciais clássicos da tradição e do saber africanos e liga-se estreitamente à obra do grande cientista senegalês Cheikh Anta Diop. Com este trabalho, esperamos continuar a contribuir para a renovação e o enriquecimento da reflexão e do conhecimento acerca da história e da cultura afro-brasileiras. Elisa Larkin Nascimento Rio de Janeiro, setembro de 2007 NOTAS 1 | Ministério da Educação (MEC)/ Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. (Parecer CNE/CP 003/2004). In: MEC/Secad. Ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília: MEC/Secad, 2006, p. 229-57. Também disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s- Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf>. 2 | Leonel de Moura Brizola, então governador do Rio de Janeiro, criou a Seafro em 1991. Em 1995, o sucessor de Brizola a extinguiu. Vale lembrar que os conselhos estaduais e municipais de defesa dos direitos dos negros são órgãos consultivos. 3 | Alguns desses textos, mais tarde, desdobraram-se em livros: Lopes (2003), Lopes (2006), Nascimento, A. (2002c), Nascimento, E. L. (2003b). 4 | O Conselho Editorial da Uerj aprovou a coleção de três volumes, mas a EdUerj publicou somente o primeiro (Nascimento, E. L., 1996). http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf PRIMEIRAS PALAVRAS Fazer parte deste livro, ainda mais participando de sua apresentação, muito me honra. Seu título literalmente me envolve e faz que me sinta pertencente a ele, pois ser mulher no mundo contemporâneo é uma tripla jornada – que dirá ser mulher afro-brasileira, religiosa e iyalorixá. Sinto-me tocada especialmente por rememorar um passado não tão distante de ações de luta do movimento negro carioca ao ler importantes artigos de companheiros e companheiras. Esses textos, além de narrar tantas questões que fazem parte deste nosso universo afro-brasileiro – político, religioso ou de gênero –, falam da vida de tantas Marias, Beatas, Lélias, Clementinas, Olgas, Aninhas e Menininhas que o preconceito machista, racial e de gênero procura invisibilizar, seja tentando calar nossa voz com estratégias que nos desmobilizam, fragmentando nossa organização, seja com essa violência de várias formas velada, tão tipicamente brasileira. Ver tais artigos me faz voltar à militância do movimento negro e de mulheres no Rio de Janeiro na década de 1980, quando fui iniciada nos movimentos sociais. Ao ser uma mulher de candomblé e manter viva e preservada minha tradição religiosa, considero-me uma guerreira quilombola, e o candomblé foi e é o responsável pela manutenção de vários aspectos da cultura, da religiosidade e do pensar o coletivo negro. Por ser uma iyalorixá, mulher, mãe e filha de Yemonjá, tenho em mim um legado muito necessário à vida humana, pois quando vim ao mundo já sabia que me estava orientado o dever de cuidar e acolher todos que me procurassem. Percebi que nossa história de mulher é vivida quase como uma roda-viva, em que temos de nos obrigar a ser mantenedoras de vários espaços da vida das pessoas. Minha mãe foi assim, minhas tias também, a mulher que me iniciou no candomblé também viveu para servir e acolher. Hoje em dia, quando observamos a grande quantidade de mulheres negras que trabalham em diversos setores da sociedade, em espaços profissionais do cuidar, percebemos que ainda nos olham como aquelas que muito têm a oferecer e pouco a receber. Ainda hoje é negada a humanização, inclusão e inserção social da mulher de forma igualitária com o gênero masculino. Nossos direitos defendemos com lutas paralelas, como se mulher não fosse da espécie humana e não tivesse necessidade de conquistar e viver seus direitos. Muito me orgulha ser vista como uma referência de mulher afro- brasileira, pois o conhecimento e o saber são múltiplos – e só poderia esperar de você, Elisa, tal sensibilidade. Nem todos sabem tudo, e é muito bom beber novas águas em outras fontes. As ações e o saber ancestral dos terreiros e suas mulheres ainda não foram de todo esgotados, pois essa nascente jamais secará – enquanto houver livros e pessoas com tais iniciativas, continuaremos vivas lutando e guerreando não só por nós mulheres negras e guerreiras, mas também pela sociedade mais ampla, que muito ganhará com tais reflexões e ações. Gotas de água juntas se transformam em chuva. Axé, Aiyaba omi bobo.1 Mãe Beata de Yeomjá (Beatriz Moreira da Silva) Rio de Janeiro, outubro de 2007 NOTA 1 | Força de todas as rainhas das águas. APRESENTAÇÃO Em um momento em que a universidade brasileira se abre para um debate intenso sobre as questões de gênero e raça, em suas diferentes perspectivas, é muito bem-vindo Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente, organizado por Elisa Larkin Nascimento. Reunindo artigos de pesquisadores renomados, este volume focaliza três objetos de reflexão: a especificidade da situação vivida pelas mulheres negras no Brasil; as religiões afro-brasileiras e suas mitologias; e algumas propostas alternativas de tratamentos de saúde. Temas aparentemente distantes mas que combinam uma análise crítica sobre a sociedade brasileira e algumas reflexões sobre os caminhos possíveis para as mudanças necessárias. Coerente com o trabalho de resgate da tradição africana do curso Sankofa, do qual os textos são originários, este volume permite entrar em um mundo desconhecido por muitos brasileiros, mas fundamental para a compreensão de nossa cultura. Em um primeiro momento, mergulhamos na análise da terrível situação socioeconômica em que vivem as mulheres negras brasileiras, em suas lutas para se impor no movimento de mulheres e, também, para enfrentar o machismo dos homens negros. Dados concretos sobre as ocupações, os salários e o analfabetismo permitem compreender que a luta contra a discriminação está longe de terminar. É interessante a análise sobre o conflito das mulheres negras com as militantes feministasbrancas que só puderam lutar por sua liberação porque contaram com o trabalho das empregadas domésticas (em sua grande maioria negras). Os autores, ao denunciarem a sociedade brasileira como racista e sexista, baseiam-se tanto em dados estatísticos como em expressões usadas cotidianamente (“mulata”, “neguinha gostosa”, “neguinha suja”, “moreninha” ou “crioula”). Num segundo momento, os artigos analisam as religiões afro-brasileiras, particularmente o papel que elas desempenham na vida das mulheres negras. Por fim, uma abordagem do saber popular relacionado às plantas e ao seu poder curativo. Esses artigos finais podem ser lidos sob a ótica do eterno debate natureza versus cultura. Guerreiras de natureza propicia ao leitor uma consciência maior da desigualdade sexual e racial em nosso país, contribuindo assim para a necessária mudança. Tornando nítidos problemas que são invisíveis para a grande parte da população brasileira, a obra está cumprindo o papel que se propõe: resgatar idéias e expressões capazes de refletir diversos momentos na evolução recente do pensamento afro-brasileiro. É uma leitura imprescindível não apenas para antropólogos, sociólogos, historiadores, militantes, professores e estudantes, mas para todos aqueles que não aceitam desigualdades e discriminações de qualquer natureza. Mirian Goldenberg Rio de Janeiro, junho de 2000 INTRODUÇÃO Este livro germinou na confluência de dois eventos ocorridos em 1993, no mês das iyabás, orixás femininas: o Seminário da Internacional Socialista de Mulheres sobre o tema “Mulher e Desenvolvimento Sustentável”, realizado em Washington, DC; e o Primeiro Simpósio de Fitoterapia, realizado pelo Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Preparar uma contribuição sobre o tema do protagonismo da mulher afro-brasileira e das comunidades-terreiros do candomblé, que propiciam alternativas naturais de tratamento de saúde, levou-nos a uma reflexão sobre a riqueza da convergência destes três ambientes: a questão de gênero e a religiosidade afro-brasileira em relação viva e íntima com a urgente dinâmica do meio ambiente. O livro reúne trabalhos aparentemente díspares, tratando de várias dimensões desse universo. Sua harmonia está na convergência dos temas, que não exigem uma linha unitária de abordagem. Ao contrário: a nosso ver, cada dimensão se enriquece e se completa em sua relação com as outras, numa expressão singular do valor da diversidade. Todos os trabalhos versam sobre assuntos abordados no contexto do curso de extensão cultural e universitária Sankofa, que coordenei durante o período de 1983 a 1995. Termo de origem akan (África ocidental, região da atual República de Gana), sankofa significa a recuperação e valorização da rica tradição cultural africana – com seu alto nível de conhecimento – e do alto grau de desenvolvimento atingido pelas sociedades africanas. Seu símbolo é a imagem de um pássaro com a cabeça voltada para trás, estilizada no ideograma da escrita africana adinkra. Esse símbolo, válido em todo o mundo africano, também remete ao conhecimento e à divulgação do papel dos africanos e seus descendentes na construção das sociedades de todas as Américas. No Seminário da Internacional Socialista de Mulheres, apresentei a tese, contida no ensaio de minha autoria incluído neste volume, de que as mulheres afro-brasileiras, junto com as mulheres em todo o mundo e, mais especificamente, as do sul do planeta, formam uma grande força no desenvolvimento de novas alternativas para nosso relacionamento com o ambiente. O saber popular sobre o valor medicinal das folhas, desenvolvido no contexto da religiosidade afro-brasileira, constitui um campo de desempenho crítico, contrapondo-se ao sistema industrial farmacêutico da economia mundial globalizada cujos produtos ficam cada vez mais inacessíveis aos povos. A tese ganha profundidade ao lado do trabalho de José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão Teixeira, que mergulham no estudo de uma expressão desse saber do candomblé sobre o poder curativo das folhas. Entretanto, o papel das mulheres negras como portadoras desse saber precisa ser contextualizado historicamente nas sociedades em que atuam. Os ensaios de Lélia Gonzalez, Helena Theodoro Lopes, Gizêlda Melo do Nascimento e Sueli Carneiro em parceria com Cristiane Cury foram escritos numa época em que essas reflexões se iniciavam. As mulheres negras se empenhavam para integrar os problemas específicos da mulher afro-brasileira no pensamento e na ação do movimento feminista – então composto majoritariamente de intelectuais brancas de classe média. O texto de Lélia Gonzalez foi escrito anos antes da reunião mundial de Beijing em que as mulheres afro-brasileiras marcaram época com sua delegação atuante e organizada. Assim, abrimos o volume abordando o contexto histórico, social e econômico das mulheres negras no Brasil. Gizêlda, Helena, Sueli e Cristiane desdobram essa análise, focalizando o contexto cultural e o papel de liderança das mulheres negras na comunidade e religiosidade afro-brasileiras. As culturas e os povos indígenas se destacam com eloqüência quando consideramos a necessidade de articular formas de vida humana em harmonia com a natureza. Dandara, Nei Lopes e José Flávio Pessoa de Barros, em parceria com Clarice Novaes da Mota, abordam esses intercâmbios entre as culturas africanas e indígenas no Brasil, explorando minuciosamente o universo da parceria entre matrizes culturais não- européias na convivência harmônica com o meio ambiente. O texto de Aderbal Moreira, escrito uma década depois e aqui reproduzido do panfleto que sua organização criou e dirigiu com intuito didático para o povo de santo, explicita novos elementos e novas dimensões dessa convivência no contexto religioso. É atualíssimo o depoimento de Hédio Silva Jr. sobre a lei e sua experiência na defesa jurídica do direito do povo de santo ao livre exercício de sua religiosidade. Como critério editorial, procuramos respeitar as formas particulares de grafia e expressão dos autores, ao mesmo tempo mantendo um padrão básico de ortografia para dar unidade ao volume. No caso das transcrições de textos da língua ioruba, seguimos rigorosamente o original de cada autor. Quanto aos vocábulos de origem ioruba incorporados à língua portuguesa, utilizamos a ortografia brasileira. Finalizando, queremos render aqui uma homenagem a Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, duas mulheres afro-brasileiras que há pouco deram seus passos de dança e se juntaram aos ancestrais (na expressão de Wole Soyinka). Ficou a herança de duas mulheres guerreiras, na melhor tradição das Candaces1 nubianas. Axé muntu2, irmãs! Elisa Larkin Nascimento Rio de Janeiro, 2000 NOTAS 1 | As Candaces são uma linhagem de rainhas-mães, soberanas e guerreiras, do Sudão antigo. 2 | Muntu é a palavra banta para axé, gente, força vital. 1 MULHER NEGRAa Lélia Gonzalez Situação da população negra Da independência do Brasil aos dias atuais, todo um pensamento e uma prática político-social, preocupados com a chamada questão nacional, têm procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da nação brasileira. Assim, não foi por acaso que os imigrantes europeus se concentraram em regiões que, do ponto de vista político e econômico, detêm a hegemonia quanto à determinação dos destinos do país; sobretudo a região Sudeste. Por isso mesmo, podemos afirmar que existe uma divisão racial do espaço em nosso país (Gonzalez, 1979), uma espécie de segregação, com acentuada polarização, extremamente desvantajosa para a população negra: quase dois terços da população branca (64%) concentram-se na região mais desenvolvida do país, enquanto a população negra, quase na mesma proporção (69%), concentra-se no resto do país, sobretudo em regiões mais pobres, como é o caso do Nordeste e de Minas Gerais (Hasenbalg, 1979). Caracterizando sumariamente a formação social brasileira, diríamos que ela se estrutura em termos de acumulação capitalista dependente ou periférica,com conflito de interesses de classes antagônicas e sistema político de dominação rigoroso. Uma de suas contradições básicas é justamente “a cristalização de desigualdades extremas entre ‘regiões’ brasileiras, onde se pode distinguir uma região dominante e outras regiões dominadas, unidas num processo estruturalmente articulado, e a conseqüente reprodução dos níveis de pobreza e miséria em que vivem suas populações” (Faria, 1983, p. 46). Acontece que o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro marcou, nas duas últimas décadas, a consolidação da sociedade capitalista em nosso país. Altas taxas de crescimento da economia e acelerada urbanização, estimuladas pela intervenção direta do Estado, resultaram num tipo de “integração” das regiões subdesenvolvidas às exigências da industrialização do Sudeste. Como sabemos, a lógica interna que determina a expansão do capitalismo industrial em sua fase monopolista entrava o crescimento equilibrado das forças produtivas nas regiões subdesenvolvidas. Estabelece-se, desse modo, o que Nun (1978) caracterizou como desenvolvimento desigual e combinado que, entre outros efeitos, remete à dependência neocolonial e a um “colonialismo interno”. Por isso mesmo, os aspectos positivos do desenvolvimento econômico brasileiro (cuja fase culminante, de 1968 a 1973, ficou conhecida como “milagre brasileiro”) foram neutralizados por determinados fatores que confirmam o que disse antes. De acordo com Hasenbalg e Valle Silva (1984), destacam-se entre esses fatores: Deterioração das condições de vida dos estratos urbanos de baixa renda. Não esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes de mão-de-obra do campo para os centros urbanos determinou não o crescimento populacional destes últimos, mas sua “inchação”, com a conseqüente formação de bairros periféricos e favelas (na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757 mil favelados em 1970; em 1980, esse número aumentou para 1,74 milhão, passando a constituir aproximadamente 34% da população do município) onde se pôde constatar: aumento da mortalidade infantil e dos acidentes de trabalho, deterioração e crescimento insuficiente da infra-estrutura urbana de transportes, problemas habitacionais e de saneamento básico, altos índices de evasão escolar no primeiro grau, atendimento médico-hospitalar insuficiente do sistema previdenciário etc. Desnecessário dizer que esse subproletariado é constituído majoritariamente por negros. Concentração de renda. Apesar das mudanças na estrutura de classes durante esses vinte anos (de 1964 a 1985, período do regime militar), os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos (não esqueçamos que, ainda em 1980, um terço da população economicamente ativa – PEA – ganhava até um salário mínimo), sobretudo no que se refere ao campo. Continuando sua análise, Hasenbalg e Valle Silva informam que, em 1970, os 50% mais pobres participavam em 14,9% dos rendimentos obtidos pela PEA; em 1980, essa participação baixou para 12,6%; o 1% mais rico passou de 14,7% para 16,9%, superando consideravelmente sua apropriação se comparada àquela recebida pelos 50% mais pobres. No campo, entretanto, é que esses percentuais se tornam gritantemente desiguais: o rendimento dos 50% mais pobres cai de 22,4% para 14,9%, enquanto o do 1% mais rico elevou-se de 10,5% para 29,3%. Pelo exposto, o desenvolvimento econômico brasileiro resultou num modelo de modernização conservadora excludente, segundo esses analistas. Poderíamos considerá-lo, também, com base na noção de desenvolvimento desigual e combinado, em que a formação de uma massa marginal, de um lado, assim como a dependência neocolonial e a permanência de formas produtivas anteriores, de outro, constituem-se como fatores que tipificam o sistema. Vale notar que a noção de massa marginal diz respeito à força de trabalho que, como superpopulação relativa, torna-se supérflua em face do processo de acumulação hegemônico, representado pelas grandes empresas monopolistas. As questões relativas ao desemprego e ao subemprego incidem justamente sobre essa superpopulação. É nesse sentido que o racismo, como articulação ideológica e conjunto de práticas, denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro, desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na condição de massa marginal (em termos de capitalismo industrial monopolista) e de exército de reserva (em termos de capitalismo industrial competitivo, satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio). Não é casual, portanto, o fato de a força de trabalho negra permanecer confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração. A sistemática discriminação sofrida no mercado remete a uma concentração desproporcional de negros nos setores agrícola, de construção civil e prestação de serviços. Segundo o Censo de 1980, esses setores absorvem 68% de negros e 52% de brancos. Como já dissemos anteriormente, um terço (33%) da PEA em 1980 recebia até um salário mínimo; se analisarmos essa porcentagem em termos de composição racial, teremos 24% dos brancos e 47% dos negros. Do outro lado do espectro de rendimento, a proporção de pessoas com renda mensal superior a dez salários mínimos era de 3,72%: entre os brancos, esse número era de 8,5%; entre os negros, de aproximadamente 1,5%. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1982, houve um aumento da proporção dos que ganham até um salário mínimo: de 33% passaram para 36%, numa prova patente do empobrecimento do país. Desnecessário dizer que os negros foram os que mais sofreram: de 44% passaram para cerca de 50%, enquanto os brancos foram de 24% para 28%. E é justamente no Nordeste (9 milhões de negros para 3,8 milhões de brancos) que ficam evidenciadas as maiores desigualdades: de cada dez negros integrados na PEA, seis ganham até um salário mínimo. A distribuição de renda, como vemos, não deixa de constituir um dos aspectos das desigualdades raciais em nosso país. Outra dimensão dessas desigualdades se faz presente no acesso ao sistema educacional e às oportunidades de escolarização. O Censo de 1980 revelava a existência de 35% de analfabetos na população maior de 5 anos. Entre os brancos, a proporção era de 25%, enquanto entre os negros era de 48%, ou seja, quase o dobro. Os graus de desigualdade educacional acentuam-se ainda mais quando se trata de acesso aos níveis mais elevados de escolaridade. Em 1980, os brancos tinham 1,6 vezes mais oportunidades de completar de cinco a oito anos de estudos; 2,5 vezes mais de completar de nove a onze anos de estudo; e seis vezes mais de completar doze anos ou mais de estudos (Hasenbalg e Valle Silva). Isso significa que os negros já nascem com menos chance de chegar ao segundo grau e praticamente nenhuma de atingir a universidade. Situação da mulher negra As transformações ocorridas na sociedade brasileira entre 1968 e 1980 tiveram um impacto considerável na força de trabalho feminina, sobretudo nos anos 1970. Conforme assinala Rose Marie Muraro (1983, p. 14): A primeira metade da década foi o auge do “milagre brasileiro”. […] A força de trabalho feminina dobra de 1970 para 1976. Mais interessante ainda: em 1969 havia cem mil mulheres na universidade para duzentos mil homens. Em 1975 este número tinha subido para cerca de quinhentas mil mulheres (para quinhentos e oito mil homens), passando a proporção de 1:2, em 69, para 1:1 em 75. O número de mulheres na universidade havia quintuplicado em cinco anos! Vemos aí como se conjugam, então, os fatores econômicos reforçando os comportamentais e vice-versa. Isto pode explicar, ao menos emparte, que nestes primeiros cinco anos da década, mesmo sem haver movimento organizado, tenha surgido interesse tão agudo para o problema da mulher. Foi nesses cinco anos, mesmo, que se processou a maior transformação da condição da mulher na história de nosso país. Em outro texto, lemos: “Em definitivo, as mulheres não só tendem a conseguir uma melhor distribuição na estrutura ocupacional como também abandonam os setores de atividades que absorvem a força de trabalho menos qualificada e mais mal remunerada para ingressar em proporções crescentes na indústria e nos serviços modernos” (Hasenbalg e Valle Silva, 1984, p. 40). Os trechos acima reproduzidos não se referem, de modo algum, à mulher ou às mulheres negras. Por conseguinte, algumas questões impõem-se à nossa reflexão. A primeira delas diz respeito à situação da mulher negra no interior da população economicamente ativa, à sua inserção na força de trabalho. Como os trabalhadores negros (92,4%), as trabalhadoras negras concentram-se sobretudo nas ocupações manuais (83%), o que significa que quatro quintos da força de trabalho negra têm uma inserção ocupacional caracterizada por baixos níveis de rendimento e escolaridade. As trabalhadoras negras encontram-se alocadas em ocupações manuais rurais (agropecuária e extrativismo vegetal) e urbanas (prestação de serviços), tanto como assalariadas quanto como autônomas e não remuneradas. Já a proporção de mulheres brancas nas ocupações manuais é bem menor: 61,5% (Araújo Costa, Garcia de Oliveira e Porcaro, 1983). Enquanto isso, nas ocupações não manuais, a presença da trabalhadora negra ocorre em proporções muito menores: 16,9%, comparados a 38,5% no caso das trabalhadoras brancas. A análise dessas ocupações – divididas em dois níveis, o médio e o superior – revela aspectos bastante interessantes com relação às dificuldades de mobilidade social ascendente para a mulher negra. Naquelas de nível médio (pessoal de escritório, bancárias, caixas, professoras de primeiro grau, enfermeiras, recepcionistas), a concentração de mulheres é muito maior que a de homens. Mas, se a dimensão racial é inserida entre elas, a constatação é de que a proporção de negras também é muito menor (14,4%) que a de brancas (29,7%). Em muitas das atividades de nível médio é exigido contato direto com o público, o que dificulta o acesso das mulheres negras a essas ocupações (devido à exigência da “boa aparência”). Quando se trata das profissionais de nível superior, empresárias e administradoras, a presença da mulher negra é quase invisível: 2,5% para 8,8% de mulheres brancas. No que diz respeito às diferenças de rendimento médio, o Censo de 1980 apresenta os seguintes dados: um porcentual de 23,4% de homens brancos, 43% de mulheres brancas, 44,4% de homens negros e 68,9% de mulheres negras ganham até um salário mínimo. Um porcentual de 42,5% de homens brancos, 38,9% de mulheres brancas, 42,4% de homens negros e 26,7% de mulheres negras ganham de um a três salários mínimos. Um porcentual de 14,6% de homens brancos, 9,5% de mulheres brancas, 8% de homens negros e 3,1% de mulheres negras ganham de três a cinco salários mínimos. E, por fim, um porcentual de 8,5% de homens brancos, 2,4% de mulheres brancas, 1,4% de homens negros e 0,3% de mulheres negras têm rendimentos acima de dez salários mínimos (Hasenbalg e Valle Silva). Comparativamente às famílias brancas pobres, a situação das famílias negras não é de igualdade. Já a PNAD de 1976 demonstrava que, em termos de renda familiar de até três salários mínimos, por exemplo, a situação era a seguinte: cerca de 50% de famílias brancas para 75% de famílias negras. As diferenças eram e continuam expressivas quando se trata da taxa de atividade dessas famílias: a das negras é bem maior que a das brancas. Isso significa que o número de membros das famílias negras insertos na força de trabalho é muito maior que aquele das famílias brancas para a obtenção do mesmo rendimento familiar. Um dos efeitos desse trabalhar mais e ganhar menos implica a necessidade de trabalho de menores de idade. Por isso mesmo, a proporção de menores negros na força de trabalho é muito maior que a de menores brancos (e estamos falando daqueles que se encontram na faixa dos 10 aos 17 anos). Por aí se entende por que nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau1: não se trata, como pensam e dizem alguns, de uma “incapacidade congênita da raça” para as atividades intelectuais, mas do fato de os negros, desde muito cedo, terem de “ir à luta” para ajudar na sobrevivência da própria família. Em pesquisa que realizei com mulheres negras de baixa renda (Gonzalez, 1983), poucas das entrevistadas começaram a trabalhar já adultas. Migrantes, na grande maioria (principalmente vindas de Minas Gerais, do Nordeste ou do interior do estado do Rio de Janeiro), e muitas vezes já tendo “trabalhado na roça”, haviam começado a trabalhar por volta dos 8 ou 9 anos de idade para “ajudar em casa”. Desnecessário dizer que, nos centros urbanos, começavam a trabalhar “em casa de família”, além de tentar freqüentar alguma escola. Pouquíssimas conseguiram “fazer o primário”. Um dos depoimentos mais significativos, o de Maria, trata das dificuldades de uma menina negra e pobre, filha de pai desconhecido, tendo de enfrentar um ensino unidirecionado, voltado para valores que não os dela. Contando seus problemas de aprendizagem, ela não deixava de criticar o comportamento de professores (autoritariamente colonialistas) que, na verdade, só fazem reproduzir práticas que induzem nossas crianças a deixar de lado uma escola na qual os privilégios de raça, classe e sexo constituem o grande ideal a ser atingido, mediante o saber “por excelência”, emanado da cultura “por excelência”: a ocidental burguesa. Por isso mesmo, o texto de Muraro (1983) é bastante sintomático: se as transformações da sociedade brasileira nos últimos vinte anos favoreceram a mulher, não podemos deixar de ressaltar que essa forma de universalização abstrata encobre a realidade vivida – duramente – pela grande excluída da modernização conservadora imposta pelos donos do poder no Brasil pós-1964: a mulher negra. É por aí que se entende, por exemplo, uma das contradições do movimento de mulheres no Brasil. Apesar de suas reivindicações e conquistas, ele acaba por reproduzir aquilo que Hasenbalg (Gonzalez e Hasenbalg, 1982, p. 105) sintetizou com felicidade: “No registro que o Brasil tem de si mesmo o negro tende à condição de invisibilidade”. Apesar das poucas e honrosas exceções para entender a situação da mulher negra (e Muraro é uma delas), poderíamos dizer que a dependência cultural é uma das características do movimento de mulheres em nosso país. As intelectuais e ativistas tendem a reproduzir a postura do feminismo europeu e norte-americano ao minimizar, ou até mesmo deixar de reconhecer, a especificidade da natureza da experiência do patriarcalismo por parte de mulheres negras, indígenas e de países antes colonizados. A participação da mulher negra Durante esse período, os primeiros grupos organizados de mulheres negras surgiram no interior do movimento negro. Isso se explica, em parte, pelo fato de os setores médios da população negra que conseguiram entrar no processo competitivo do mercado de trabalho das ocupações não manuais serem aqueles mais expostos às práticas discriminatórias de mão-de-obra (Oliveira, Porcaro e Araújo Costa, 1980). Assim, é no movimento negro que se encontra o espaço necessário para as discussões e o desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo, de suas práticas e articulações com a exploração de classe. Por outro lado, o movimento feminista ou de mulheres, que tem suas raízes nos setores mais avançados da classe média branca, geralmente “se esquece” da questão racial, como já dissemos anteriormente. Esse tipo de ato falho, a nosso ver, tem raízes históricas e culturais profundas. O desempenho das mulheres negras na formação do movimento negro no Rio de Janeiro, por exemplo, foi da maior importância. Aantropóloga Maria Berriel, da Universidade Federal Fluminense (UFF), relatou que seu envolvimento com a questão negra se iniciou em 1969: Foi sobretudo percebendo as dificuldades de alunos negros (por força da expansão do capitalismo, nós começamos a receber alunos negros na universidade); ocorreu que muitos dos nossos alunos estavam com dificuldades no mercado de trabalho. Então, resolvi fazer uma pesquisa para avaliar os artifícios e as estratégias que impediam o aproveitamento do negro na esfera ocupaciona1. Esses alunos não só – juntamente com alunos brancos – entraram numa faixa de atividade bastante atuante, como até fizeram uma dramatização: recortavam anúncios, apresentavam-se nos lugares e, em seguida, os alunos brancos os substituíam; e sentia-se todo o esquema de restrição montado claramente. […] E, dali, houve um contato com a Cândido Mendes, que passou a organizar congressos, ou melhor, encontros. [Secneb-84, Salvador, 1984. Depoimento gravado por mim; não foi revisado por sua autora.] Esses encontros ocorreram sobretudo por iniciativa da professora Maria Beatriz Nascimento que, desde 1972, encontrava-se à frente da Semana de Cultura Negra, realizada na UFF (semana que, ainda segundo Berriel, Maria Beatriz Nascimento “organizou insistentemente, aceitando os desafios que foram colocados gradativamente, na medida em que a semana ia sendo implantada”). Os históricos encontros na Cândido Mendes atraíram toda uma nova geração negra, que ali passou a se reunir para discutir o racismo e suas práticas como modo de exclusão da comunidade negra. Vivia-se, naqueles momentos, a euforia do “milagre brasileiro”, do “ninguém segura este país” etc. Mas a negadinha ali reunida (fins de 1973, início de 1974) sabia muito bem o que isso significava para nossa comunidade. E um fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio movimento negro) era justamente a atuação das mulheres negras que, ao que parece, antes mesmo da existência de organizações do movimento de mulheres, reuniam-se para discutir seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo – não só dos homens brancos, mas dos próprios negros. E não deixavam de reconhecer o caráter mais acentuado do machismo negro, uma vez que este se articula com mecanismos compensatórios que são efeito direto da opressão racial. Afinal, que mulher negra não passou pela experiência de ver o filho, o irmão, o companheiro, o namorado, o amigo etc. passar pela humilhação da suspeição policial, por exemplo? Nesse sentido, o feminismo negro tem uma diferença específica em relação ao feminismo ocidental: a solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. Por isso mesmo, após a reunião, aquelas mulheres – Beatriz, Marlene, Vera Mara, Joana, Alba, Judite, Stella, Lúcia, Norma, Zumba, Alzira, Lísia e várias outras (cerca de vinte) – juntavam-se aos companheiros para a reunião ampliada (que chamavam de “grupão”), onde expunham os resultados de sua discussão anterior a fim de que o conjunto também refletisse sobre a condição das mulheres negras. Em 1975, quando as feministas ocidentais se reuniram na Associação Brasileira de Imprensa para comemorar o Ano Internacional da Mulher, elas ali compareceram e apresentaram um documento em que caracterizavam a situação de opressão e exploração da mulher negra (apud Nascimento, A., 1978, p. 61-2). Todavia, em razão dos caminhos seguidos por diferentes tendências que se constituíram por meio do “grupão”, esse grupo pioneiro acabou por se desfazer – e suas componentes continuaram a atuar nas várias organizações que se criaram. Os anos seguintes testemunharam o surgimento de outros grupos de mulheres negras (como Aqualtune, em 1979; Luiza Mahin, em 1980; e Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, em 1982) que, de um modo ou outro, foram reabsorvidos pelo movimento negro. Todas nós, sem jamais nos distanciar do movimento negro, continuamos nosso trabalho de militantes no interior das organizações mistas a que pertencíamos (André Rebouças, IPCN, Sociedade de Intercâmbio Brasil-África – Sinba, Movimento Negro Unificado – MNU, entre outras), sem desistir de discutir questões específicas com os companheiros que, muitas vezes, tentavam nos excluir das decisões, delegando-nos tarefas mais “femininas”. Desnecessário dizer que o movimento negro não deixava (nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias da ideologia dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos. Todavia, como nós mulheres e homens negros nos conhecemos muito bem, nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo solo: a experiência histórico-cultural comum. Assim se explica a competição de muitos militantes com suas companheiras de luta (o “esquecimento” a que nos referimos anteriormente). Mas, por outro lado, dessa forma também se explica o espaço que temos no interior do movimento negro. Vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, nós mulheres e nossos companheiros homossexuais conquistamos o direito de discutir, em Congresso, nossas especificidades. E isso num momento em que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que “dividissem a luta do operariado”. Enquanto isso, nossas experiências com o movimento de mulheres caracterizavam-se como bastante contraditórias: quando participávamos de seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas “agressivas” ou “não feministas” porque sempre insistíamos que o racismo e suas práticas devem ser levados em conta nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por exemplo, denunciávamos a opressão e exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração do trabalho doméstico assalariado permitiu a “liberação” de muitas mulheres que se engajaram nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era aquela da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto em um quanto em outro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo estado policial-militar). Todavia, não deixamos de encontrar solidariedade de setores mais avançados do movimento de mulheres que demonstraram interesse não só em divulgar nossas lutas como em colaborar conosco em outros níveis. Apesar dos aspectos positivos em nossos contatos com o movimento de mulheres, as contradições e ambigüidades permanecem, uma vez que, enquanto originário do movimento de mulheres ocidental, o movimento de mulheres brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural” daquele. Nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do movimento de mulheres não têm o menor escrúpulo em manipular o que chamam de “mulheres de base” ou “populares” como simples massa de manobra para a aprovação de suas propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos). Por outro lado, muitas “feministas” adotam posturas elitistas e discriminatórias em relação a essas mesmas mulheres populares. De acordo com o relato de companheiras do Nzinga, por ocasião da reunião em que seria nomeada a representante do movimento de mulheres no Comício das Diretas do dia 21 de março de 1984 no Rio, uma militante feminista branca, não aceitando a indicação de uma mulher negra e favelada, declarou com todas as letras que “mulher de bica d’água não pode representar as mulheres”. E ainda recentemente, participando de uma reflexão sobre a “sexualidade feminina”, convocada pelo PT para poder encaminhar as questões da mulher […] constatamos […] falações como “a mulher negra desperta mais cedo para a sexualidade”, “a empregada doméstica como veículo da descoberta de temas sexuais através de revistas, conversas etc.” ou ainda, o que é muito comum, “a questão da mulher negra é uma questão de classe e não de raça”. (Garcia,1984, p. 5) Por essas e outras é que se entende por que os grupos de mulheres negras se organizaram e se organizam no interior do movimento negro, e não no do movimento de mulheres. Aliás, as pouquíssimas negras que militam apenas no movimento de mulheres têm muita dificuldade em se aprofundar no que diz respeito à questão racial. Talvez porque achem que no Brasil não existe racismo (porque, como disse Millôr Fernandes, “o negro sabe onde é o seu lugar”). O grande encontro do movimento negro com o movimento de favelas ocorreu por causa da campanha eleitoral de 1982, uma vez que, até aquele momento, ambos vinham atuando de maneira paralela. Os efeitos da chamada abertura política, concretizados na formação de novos partidos políticos, atraíram setores que até então haviam permanecido à margem do processo político-partidário. Os novos programas, de um ou de outro modo, integraram algumas das reivindicações dos movimentos sociais, e os partidos de oposição preocuparam-se em lançar candidatos populares. Foi nesse contexto que surgiram candidaturas originárias do movimento negro e do movimento de favelas. Tive a oportunidade de fazer a campanha em conjunto, sobretudo, com duas irmãs faveladas: Benedita da Silva e Jurema Batista. De um lado, a profunda consciência dos problemas e das necessidades concretas da comunidade; de outro, a consciência da discriminação racial e sexual como articulação da exploração de classe. A troca de saberes/experiências foi extremamente proveitosa para ambos os lados; e o ponto de entendimento comum foi justamente a questão da violência policial contra a população negra. No final da campanha nossas falas estavam inteiramente afinadas, apesar das diferenças individuais. A despeito da inexperiência nesse terreno, vivenciamos situações de extrema riqueza política e pessoal. Apesar dos resultados negativos para ambos os movimentos, e justamente por isso, exigiram de nós uma avaliação conjunta da atuação dos candidatos negros dos partidos de oposição no processo eleitoral. Daí em diante, os dois movimentos passaram a ter uma atuação mais unitária. Alguns exemplos são bastante significativos: a presença de faveladas no Encontro de Mulheres, promovido pelo Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (março de 1983); a cobertura e divulgação de eventos do movimento negro pelo jornal do movimento de favelas, O Favelão; a criação de uma vice-presidência comunitária na estrutura do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), e assim por diante. Nessa linha de trabalho – mediante a articulação do movimento de favelas, do movimento de mulheres e do movimento negro –, Benedita da Silva tomou a iniciativa de organizar o I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferia em julho de 1983. Pelo exposto, fica evidente que novas perspectivas se abriram para ambos os movimentos. É nesse contexto que se inscreve a criação do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, no dia 16 de junho de 1983, justamente na sede da Associação de Moradores do Morro dos Cabritos, por um grupo de mulheres originárias sobretudo do movimento de favelas (MF) e do movimento negro (MN): Jurema Batista (MF), Geralda Alcântara (MF), Miramar da Costa Correia (Movimento de Bairros – MB), Sonia C. da Silva (MF), Sandra Helena (MF), Bernadete Veiga de Souza (MF), Victoria Mary dos Santos (MN) e Lélia Gonzalez (MN). Em meados de julho daquele mesmo ano, a companheira Jurema Batista (fundadora e presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí) seguiu para Lima como delegada do Nzinga, para o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, ao lado de duas representantes do Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. A atuação dessas companheiras foi de tal ordem que conseguiram que fosse criado um comitê anti-racismo no Encontro. Pela primeira vez na história do feminismo negro brasileiro, uma favelada representava, no exterior, uma organização específica de mulheres negras. Somos um Coletivo: não aceitamos que a arbitrariedade de uma hierarquia autoritária determine nossas decisões, mas que elas sejam o resultado de discussões democráticas. Somos um Coletivo de Mulheres porque lutamos contra todas as formas de violência, ou seja, lutamos contra o sexismo e a discriminação sexual. Somos um Coletivo de Mulheres Negras: além do sexismo, lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira […]. Nosso objetivo é trabalhar com as mulheres negras de baixa renda (mais de 80% das trabalhadoras negras), que vivem principalmente nas favelas e nos bairros de periferia. E por quê? Porque são discriminadas pelo fato de serem mulheres, negras e pobres. Esse é um trecho de um panfleto distribuído no dia 25 de março de 1984 no Morro do Andaraí, onde o Nzinga organizou, em um só evento, a comemoração do 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e do 21 de março (Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial). No mesmo panfleto também dizíamos quem foi Nzinga e explicávamos o significado das duas datas. A escolha do nome de Nzinga está relacionada com a preocupação de resgatar um passado recalcado por uma “história” que só fala de nossos opressores. E a famosa rainha Jinga (Nzinga) teve importante papel na luta contra o opressor português em Angola. O pássaro que usamos como símbolo tem que ver com a tradição nagô, segundo a qual a ancestralidade feminina é representada por pássaros. E nossas cores também são simbólicas: o amarelo está ligado a Oxum; o roxo, com o movimento internacional de mulheres. Para encerrar, gostaria de prestar homenagem a uma grande companheira do movimento negro (pertencíamos ao mesmo grupo, o Luiza Mahin, quando militávamos no MNU) que vem desenvolvendo um trabalho da maior importância com seus companheiros e companheiras de profissão. Refiro-me a Zezé Motta, que, coerente em sua militância de mulher negra, fundou o Centro de Documentação de Artistas Negros (Cidan), inclusive para desmascarar a história de que “não existem atores negros” (justificativa até para certos atores de respeito se pintarem de preto) e, fundamentalmente, para registrar de forma devida a história passada e presente dos artistas negros. Trata-se de um trabalho cujos efeitos só podem trazer benefícios para os negros que trabalham num setor profissional de caráter altamente discriminador do ponto de vista racial. Pelo exposto, evidencia-se que nossa preocupação quanto à participação das mulheres negras focalizou especialmente aquelas que atuam no movimento negro. O trabalho desenvolvido pelas mulheres negras nas associações de moradores, contudo, tanto de favelas quanto de bairros periféricos, registra uma história de lutas heróicas cuja análise não poderíamos fazer aqui por questões de espaço e de tempo. Conseqüentemente, terá de ser feito em outro texto, dada a riqueza de elementos a ser apresentados para nossa reflexão. Axé Ngunzo, Muntu! Apêndice - Carta-denúncia Numa sociedade onde a divisão racial e sexual do trabalho faz dos negros e das mulheres trabalhadores de segunda categoria no conjunto dos trabalhadores já por demais explorados (afinal, sobre quem recai o peso da recessão?); numa sociedade onde o racismo e o sexismo, como fortes sustentáculos da ideologia de dominação, fazem dos negros e das mulheres cidadãos de segunda classe, não é difícil visualizar a terrível carga de discriminação a que está sujeita a mulher negra. A dimensão racial impõe-nos uma inferiorização ainda maior, já que sofremos, como as outras mulheres, os efeitos da desigualdade sexual. Na verdade, ocupamos o pólo oposto ao da dominação, representado pela figura do homem branco e burguês. Por isso mesmo, constituímos o setor mais oprimido e explorado da sociedade brasileira. Apesar de um pequeno contingente da população feminina negra (aproximadamente 17% antes da atual recessão) fazer parte de alguns setores da classe média, é justamente daí que surgem as denúncias de situações em que a discriminação racial e sexual exerce sua violência. Por issomesmo, seu registro e divulgação pelos meios de comunicação de massa são um tanto quanto esporádicos e, daí, tão chocantes para a “opinião pública”. Quem não se recorda do acontecido com a repórter de televisão Glória Maria ou com a cantora Leci Brandão? Uma impedida de entrar num hotel; outra, no edifício onde morava uma amiga que ela fora visitar, acompanhada de sua mãe. Sofrendo os efeitos dos estereótipos racistas e sexistas da patriarcal “democracia” brasileira, essas mulheres negras de classe média a eles reagem, exigindo a aplicação da inócua lei Afonso Arinos, tanto numa iniciativa individual quanto na busca do apoio de instituições como a OAB, a Comissão de Direitos Humanos ou do Movimento Negro. Nesse último caso, fica mais ou menos evidente a consciência de que a violência e humilhação por elas sofridas não são uma exceção. Vejamos alguns exemplos significativos: a. No dia 31/1/84, Aglaete Nunes Martins (solteira, advogada) foi arrastada para fora de um ônibus por policiais da PM que efetuavam uma “blitz” naquele veículo e “delicadamente” conduzida até a 15ª- Delegacia (Gávea). Seu “delito” foi o de ter indagado a um dos policiais por que eles só revistavam cidadãos negros. b. No dia 21/1/84, um jornal local de televisão noticiou um caso de discriminação de uma mulher negra que fora levar sua filha para visitar uma amiguinha num edifício da rua Domingos Ferreira, em Copacabana. c. Vejamos o que aconteceu a Alzira Fidalgo (casada, funcionária pública e membro do Teatro Profissional do Negro), segundo seu próprio relato ao Exmo. Dr. Delegado da 10ª- Delegacia de Polícia (Botafogo): “Na sexta-feira passada, dia 23 de dezembro, às 15h30min, aproximadamente, fui acusada de ladra quando passava por uma das caixas das Lojas Brasileiras – filial Rio Sul – pela funcionária D. Rachel, [que] ordenou que parasse todo o movimento de caixas e me obrigou a revirar bolsas e pacotes para encontrar uma nota de compra de um brinquedo ‘Tamanduá Tatá’ que eu havia pago momentos antes na caixa nº 48, porém como a pressão em volta era grande demais, pois a essas alturas um grande número de pessoas já nos esperava, enquanto eu chorava de nervoso e vergonha, cheguei até a urinar nas calças; as notas estavam na bolsinha canguru que eu conduzia na cintura, mas no momento eu não lembrava, enquanto D. Rachel, se aproveitando do meu desespero, fazia ironias e acusações; a essas alturas eu senti que as pessoas em volta já acreditavam nas afirmações dela e tive medo de ser linchada antes de ir parar no Distrito; foi quando me lembrei de consultar a moça da caixa 48 que confirmou prontamente que aquelas compras eu já havia pago; em seguida me lembrei da bolsinha canguru e finalmente encontrei as notas […]”. d. No dia 8/6/83, Cíntia, adolescente negra, conversava com um coleguinha na entrada do prédio onde mora (rua Visconde de Morais, nº 167/702 – Ingá – Niterói). O síndico chegou e começou a dizer que ela era responsável por toda a sujeira do prédio etc. etc. Quando Cíntia avisou-lhe que relataria suas ofensas à sua mãe, Regina Coelli Benedito dos Santos (desquitada, professora de Física e Matemática), este revidou, ofendendo […] Regina (“negra safada, negra suja, ela tem mais é que sair daqui e morar na favela” etc.). Segundo esse “cavalheiro”, negro, homossexual e mulher sozinha não prestam e não podem residir nos mesmos locais em que vivem as “pessoas de bem”. Por isso, nós do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras viemos a público denunciar as práticas racistas e sexistas a que nossas irmãs e companheiras (Regina e Alzira são militantes negras) foram submetidas, solidarizando-nos com elas e prestando-lhes todo o nosso apoio. Todavia, não podemos silenciar quanto à violência cotidiana da exploração econômica e da opressão racial a que estão expostas milhares de Glórias, Marias, Lecis, Aglaetes, Alziras e Reginas da vida. Do fundo do poço do seu anonimato – nas favelas, na periferia, nas prisões, nos manicômios, na prostituição, na “cozinha da madame”, nas frentes de trabalho nordestinas – talvez nunca tenham ouvido falar de direito, de cidadania, mas têm consciência do que significa ser mulher, negra e pobre, ou seja, viver acuada, à espreita do próximo golpe a ser recebido, vigiando-se e “saindo de cena” para não ser mais ferida do que já é, quando se trata de diferentes agentes da exploração, da opressão e também da repressão. Significa jogar-se inteira no desenvolvimento das chamadas “estratégias de sobrevivência”, dia após dia, hora após hora, sem deixar, no entanto, de apostar na vida. As conhecidas histórias de Carolina Maria de Jesus, Marli Soares Pereira e Francisca Souza da Silva aí estão, como testemunhos comoventes do que significa ser mulher, negra e pobre. Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1984. Axé Muntu! Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras NOTAS a | Este texto foi elaborado para o curso do Ipeafro com base em trabalhos apresentados pela autora em conferências internacionais como African American Political Caucus (Morgan State University, Baltimore, 1984) e Latin American Studies Association (Pittsburgh, 1979) e publicado na revista do Ipeafro, Afrodiáspora, n. 6-7, 1986, p. 94-106. 1 | Atual ensino fundamental. 2 GRANDES MÃES, REAIS SENHORAS Gizêlda Melo Nascimento É sabido que o que não se discute não constitui um problema. Então, o Brasil é realmente o celeiro de uma “democracia racial”, modelo e exemplo a ser seguido por nações de constituição multirracial. E, se não constitui um problema, vivemos no paraíso. Gilberto Freyre deixou-nos o legado. E o mito exibe sua eficiência quando nenhum postulado, por mais legítimo que seja, ou estudo, por mais coerente que seja, conseguem derrubá-lo definitivamente. Debates espocam lá e cá – sobretudo nos movimentos militantes da causa negra – sem, entretanto, sensibilizar de forma sistematizada e organizada a sociedade em seu todo. Restringem-se essas discussões a espaços reduzidos, a um público pouco numeroso, não conseguindo mobilizar um contingente representativo. Sussurramos, apenas, nos becos e vielas de um espaço social discriminador; detentor, porém, de um discurso democrático irretocável, indiscutível. Transcorridos sessenta anos desde a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, o mito permanece atuante. Sua versão atualizada configura-se, hoje, na mulata tipo exportação, novo produto brasileiro na praça; antes eram exportados açúcar, ouro, café etc., hoje se exportam corpos: o novo ciclo de comercialização, a mais recente retificação da mulher de cor. É interessante notar que a obra de Freyre surgiu na mesma época em que se discutia no Brasil a implementação de um projeto eugênico. As ferramentas deste, segundo estudos de Nancy Leys Stepan, incluíam o controle da natalidade, a segregação e a esterilização daqueles considerados ineptos. Não é preciso muito esforço para apontar os considerados ineptos do ponto de vista racial. Higiene, aqui, deve ser interpretada como a limpeza do sangue e o embranquecimento da população, pois quando se trata de melhorar uma raça (como se no Brasil houvesse raça pura) não se cogita avermelhá-la, amarelecê-la ou enegrecê- la; o branco é o parâmetro, a verdade única e indiscutível. A imponderabilidade do discurso dominante – e, repetimos, ainda atuante – faz que experimentemos a situação esquizofrênica de ser tecidos por um discurso que contraria nossa condição de fato. A “democracia racial” convive com a discriminação configurada na distribuição de espaços sociais; e sabemos quem ocupa que espaço. Não é necessário perguntar de que cor é a favela, qual é a cor da dor de ser pobre e discriminado nesta sociedade que tem festividades democráticas mas não consegue retirar dos esgotos todo o entulho de uma prática ainda escravagista. A voz do outro e a nossa vez A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso democrático racial, insere a mulher negra num contexto que denominaríamos aqui como espaço da falta. Sofrendo uma tripla discriminação – racial, social e sexual –,a mulher negra, numa sociedade racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no que se refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representativos do país. O silêncio em que vem envolvida sua figura e a ausência quase total de sua representação social evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em que está assentada nossa sociedade. A presença da mulher negra irrompe em situações esparsas e instantâneas nos meios de comunicação, em momentos-chave nos quais a omissão de sua presença comprometeria o mito da “democracia racial”. O carnaval é um exemplo. Nesses momentos, o que se percebe é a imagem estereotipada, sistematicamente deformada pela lente do “outro”. O rebaixamento e a anulação da representação da mulher negra, desde sua chegada em terras americanas e em especial em terras brasileiras, terão alguns avatares, a nosso ver, definidores de sua sujeição: estes passarão sempre pela isotopia do corpo ligado à sexualidade. Num primeiro momento do desterro, seu corpo é visto como um instrumento de trabalho – melhor diríamos como ferramenta, melhor ainda como besta de carga –, além de como um objeto que contém uma cavidade onde um senhor mais que civilizado, civilizador, vai penetrá-la com um, entre os inúmeros, instrumento de submissão. A satisfação sexual do senhor garantida, a mulher negra como cavalgadura da sociedade brasileira. Os estupros, prática natural e consentida, correndo às soltas nestas terras de homens mais que cristianizados, cristãos. Discurso para um lado, prática para o outro. Num segundo momento, a mulher negra sofre um segundo avatar: de cavalgadura a matriz de crias para a servidão, o acoplamento de um homem e uma mulher em que o grande beneficiado será o senhor. Fornicar e reproduzir passa a ser, então, um negócio vantajoso. Eis um dos projetos brasileiros para a estabilidade econômica do sistema: a reprodução perde sua função de perpetuação da espécie para tornar-se reduplicação de corpos anônimos. Chegamos, enfim, à “Abolição da Escravatura” e aportamos no início do século XX. O que fazer com essa “carga” recém-liberta? A ciência vem em nosso socorro, e seu discurso em voga será determinante para os caminhos políticos e sociais do país. A palavra de ordem é sanear. As idéias de saneamento social trazidas da Europa assumem outras feições nessas terras de transfigurações mágicas. Sanear recebe outras conotações, uma delas reverenciando o mito da democracia social que cai como uma luva para legitimar as primeiras discussões em torno das relações raciais no Brasil. Em terras brasileiras, sanear passa a significar embranquecer, tendo como argumento, claro, a suposição da superioridade “branca”. É o que se vê: a mulher negra travestida na imagem tão alienante quanto folclórica da mulata sensual (para deleite de olhares turísticos), devidamente eugenizada, orgulho de um país que decanta sua “democracia racial” em detrimento de a representatividade do negro ter desaparecido da esfera social brasileira. A mulata tipo exportação é a mula sobre a qual se cavalgam discursos mais que operantes, imperantes e imperiosos. Três avatares, três reificações. Corpos anônimos em intermináveis transformações, sempre pejorativas, manipulados ontem e hoje, quando alcançamos o terceiro milênio. Milenares servidões. Corpos indesejáveis, porém utilizáveis. De besta de carga a cavidade agradável para o cio do senhor, depois a reprodutor de crias e, por fim, a objeto “exótico” para a delícia de olhos e de outras exigências dos turistas. O corpo da mulher negra ao largo de si mesmo. Essa breve explanação da representação da mulher negra ao longo do processo histórico, retratando a forja a que foi submetido seu corpo como mecanismo de introjeção de uma tripla inferioridade, reflete apenas um lado da questão, aquele determinado pelo mando. Há, entretanto, vozes na contracorrente formando, subterraneamente, um contradiscurso. Vozes tecidas não nos palcos dos discursos brilhantes, mas sussurradas nos bastidores do cenário brasileiro – espaço em que, mesmo encurralada socialmente, essa mulher consegue manifestar-se e inscrever-se individualmente como figura capaz de interferir na formação de pensamentos e hábitos e determinar condutas. Mulheres tecendo-se na contra-história ou na história dos desvios; momento em que seu corpo sai da petrificação imposta e ganha movimento; momento em que a voz se descongela e abre vias alternativas para veicular sua palavra, destoando do mando do mestre; momento em que o corpo, não mais reificado, abre-se para a criação, recuperando sua identidade e sua inteireza. Essa forma de sobrevivência de sua representação produzirá particularidades que influenciarão a formação familiar em que essas mulheres estiverem insertas. Mulheres-faróis em foco Gostaria de citar Autran Dourado, mais precisamente o narrador de A barca dos homens, quando, logo após a morte do personagem/protagonista seguida do nascimento de uma criança num lugar denominado Beco das Mulheres, comenta num ímpeto de impaciência: “Esta raça não acaba nunca!” Trata-se da morte de um homem negro seguida do nascimento de uma criança também negra. O grito novo saído do beco. A raça, embora submetida a inúmeros processos camuflados de extermínio, insiste ainda em incomodar; e resistirá sempre em becos, vielas, favelas, em qualquer gueto social onde for jogada. O beco conotando o espaço de exclusão social onde vidas e vozes fervilham e proliferam à margem da esfera socialmente reconhecida; o beco conotando também um grande útero onde vidas negras são inesgotavelmente concebidas apesar da corrente e contra ela. As vias de sempre novos nascimentos. Espaço de vias e vidas desviadas, alijadas pela cortante e (cor)reta linearidade histórica. Vozes fora da rota da ocidentalizada sociedade brasileira. A criança nascida receberá princípios e educação de várias mulheres, suas iniciadoras. Essa é a formação natural da criança negra quando a família vai além da fronteira da consangüinidade e a imagem da mulher se fixa representando a orientadora e a responsável pela formação da família. Nesse contexto, Freud e sua teoria sobre o “complexo de Édipo” merecem uma revisão mais cuidadosa, uma vez que em muitos casos a criança negra, por tradição e/ou imposição histórica, ou ainda por contingências da vida, não vivencia a experiência da organização familiar triangular em que a figura paterna, de forma efetiva ou simbólica, é o parâmetro para estabelecer condutas e princípios, a mãe aparecendo apenas como reforço ou duplo dessa imagem. Édouard Glissant (1981, p. 98), escritor e sociólogo martiniquenho, avaliando a formação das famílias negras de seu país, esclarece: A criança martiniquenha não vivencia as relações parentais como realmente conflituais. A rivalidade pai–mãe não se inscreveu nesse movimento contraditório que “compôs” a estrutura familiar.1 Glissant, num jogo interessante de palavras e com referência à obra clássica do século XX francês2, estabelece uma diferença fundamental entre a literatura européia e a americana emergente. Para a primeira, o maior objetivo é buscar o temps perdu [tempo perdido], enquanto para a segunda a busca é do temps éperdu [numa tradução livre, o tempo triturado ou esgarçado]. A diferença se estabelece porque, como literatura da cultura dominante, a européia pode se dar ao luxo de mergulhar no tempo de seu passado, “perdido” do ponto de vista da subjetividade. O tempo do colonizado – no caso, dos povos indígenas, dos africanos escravizados e de seus descendentes nas Américas –, ao contrário, não se perde. É triturado ou esgarçado pelo processo colonial e pelo racismo, por meio do massacre físico, da repressão e do genocídio, conceito que inclui a tendência de destruir ou apagar os referenciais da matriz cultural de um povo. Essa perda é objetiva e substancial, incidindo sobre a subjetividade de maneiras profundamente distintas. A avaliação de Glissant contextualiza o Brasil e toda a América, sobretudo a latina, inclusive com referência ao conceito de família
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