Buscar

Guerreiras_de_natureza_mulher_negra,_religiosidade_e_ambiente_by

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 298 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 298 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 298 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G965
 
Guerreiras de natureza [recurso eletrônico] : mulher negra,
religiosidade e ambiente / organização Elisa Larkin Nascimento. -
São Paulo : Selo Negro, 2014. recurso digital : il. (Sankofa: matrizes
africanas da cultura brasileira ; 3)
 
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8455-004-3 (recurso eletrônico)
 
1. Negras - Brasil - História. 2. Negras - Brasil - Condições
sociais. 3. Discriminação racial - Brasil. 4. Discriminação de sexo
contra as mulheres - Brasil. 5. Cultos afro-brasileiros. 6. Negros -
Brasil - Religião. 7. Brasil - Civilização - Influências africanas. 8.
Livros eletrônicos. I. Nascimento, Elisa Larkin. II. Série.
 
14-14971 CDD: 305.48896081
CDU: 316.356.4(81)(=013)
13/08/2014 15/08/2014
 
 
Compre em lugar de fotocopiar.
Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores
e os convida a produzir mais sobre o tema;
incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar
outras obras sobre o assunto;
e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros
para a sua informação e o seu entretenimento.
Cada real que você dá pela fotocópia não autorizada de um livro
financia um crime
e ajuda a matar a produção intelectual de seu país.
GUERREIRAS DE NATUREZA
mulher negra, religiosidade e ambiente
Copyright © 2008 by autores
Direitos desta edição reservados por Summus Editorial
 
Editora executiva: Soraia Bini Cury
Assistentes editoriais: Bibiana Leme e Martha Lopes
Capa, projeto gráfico e diagramação: Gabrielly Silva
 
 
 
Selo Negro Edições
Departamento editorial
Rua Itapicuru, 613 – 7o andar
05006-000 – São Paulo – SP
Fone: (11) 3872-3322
Fax: (11) 3872-7476
http://www.selonegro.com.br
e-mail: selonegro@selonegro.com.br
Atendimento ao consumidor
Summus Editorial
Fone: (11) 3865-9890
Vendas por atacado
Fone: (11) 3873-8638
Fax: (11) 3873-7085
e-mail: vendas@summus.com.br
Versão digital criada pela Schäffer: www.studioschaffer.com
http://www.selonegro.com.br/
mailto:selonegro@selonegro.com.br
mailto:vendas@summus.com.br
http://www.studioschaffer.com/
Dedicamos este volume à memória
de três militantes do movimento
afro-brasileiro.
Arinda Serafim, atriz e empregada
doméstica, ajudou a fundar o Teatro
Experimental do Negro (1944) e a
Associação das Empregadas
Domésticas (1950).
Dra. Guiomar Ferreira de Mattos,
advogada, teve papel destacado na
organização do Conselho Nacional
das Mulheres Negras (1950) e da
Associação das Empregadas
Domésticas (1950).
Marietta Campos Damas, técnica
administrativa, foi um esteio da luta
afro-brasileira nas décadas de 1950
e 1960, esposa de Léon Damas, co-
fundador e poeta da Négritude.
Na pessoa dessas guerreiras,
saudamos todas as mulheres
africanas e afrodescendentes que
dedicam a vida à melhoria das
condições de seus povos.
Agradecemos à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a oportunidade de
realizar este trabalho. A PUC-SP abrigou o Instituto de Pesquisas e
Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) de 1981 até 1984, no conjunto de seus
programas voltados a reflexão e ação comunitárias. A Uerj cedeu o espaço
físico para a realização do curso Sankofa a partir de 1985 e, durante a
gestão do reitor Hésio Cordeiro, criou o Programa de Estudos e Debates
dos Povos Africanos e Afro-Americanos (Proafro), sob a direção do
professor doutor José Flávio Pessoa de Barros, diretor do Centro de
Ciências Sociais (CCS) da universidade. Inserimos o trabalho do Sankofa
no Setor de Ensino do Proafro no período de 1993 a 1995.
Agradecemos, ainda, ao RioArte, que sob a direção de dois iluminados
intelectuais de saudosa memória, o poeta Gerardo Mello Mourão e o
crítico Tertuliano dos Passos, ofereceu apoio à realização do curso entre
1985 e 1990. Hélio Portocarrero, na qualidade de presidente do RioArte,
manteve esse apoio durante a sua gestão.
Igualmente agradecemos aos professores Abdias Nascimento e Vanda
Maria de Souza Ferreira, titulares da Secretaria Extraordinária de Defesa e
Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro). Além de apoiar a
realização do curso Sankofa e de dois fóruns sobre a questão racial no
ensino, em 1991 e 1993, a Seafro ensejou a condução de seminários e
programas de capacitação de professores no interior do estado do Rio de
Janeiro, em municípios como Campos, Cabo Frio, Três Rios e outros,
como parte do projeto Sankofa.
Agradecemos, sobretudo, ao engajamento e à dedicação de nossos
professores, que colaboraram com o projeto ao longo de vários anos. Além
dos autores de textos incluídos neste volume, já participaram do corpo
docente do Sankofa vários escritores e intelectuais da área artística como
Djalma Corrêa, Estêvão Maya Maya, Eduardo de Oliveira, Maria de
Lourdes Teodoro, Rogério Andrade Barbosa e Júlio Emílio. Nas ciências
sociais, contamos com os professores Muniz Sodré, Joel Rufino dos
Santos, Juana Elbein dos Santos, João Baptista Borges Pereira, Neuza
Santos Souza, Adilson Pinto Monteiro, Rimes Soares e Eliane Santos de
Souza.
Os convidados africanos muito contribuíram com sua participação, a
começar por Kofi Awoonor, poeta, romancista, crítico literário e
historiador, embaixador de Gana no Brasil no período de 1976 a 1986. Seu
sucessor, Michael Hamenoo, também sankofou, ao lado dos colegas
Francisco Romão de Oliveira e Silva e Ismael Diogo da Silva, de Angola.
Este último era cônsul-geral de Angola no Rio de Janeiro quando
participou do curso do Ipeafro; hoje é também embaixador da República
de Angola no Brasil.
Quatro de nossos professores merecem menção especial, pois já se
juntaram aos ancestrais. O professor e crítico Ironides Rodrigues, que
proferiu aulas no Sankofa, trazia uma história de engajamento e reflexão
desde 1944, quando lecionava nos cursos de alfabetização e cultura geral
do Teatro Experimental do Negro (TEN). Lélia Gonzalez foi uma
destacada pensadora e ativista amefricana – termo cunhado por ela para
descrever os afrodescendentes em todas as Américas. A explicação e o
desenvolvimento do conceito de amefricanidade constituem a base da
produção teórica de Lélia, que era diretora do Departamento de Sociologia
e Política da PUC-Rio quando faleceu, em 1994. Perdemos ainda, no ano
seguinte, a historiadora, escritora e militante do movimento negro Beatriz
Nascimento, que fazia seu doutorado na Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Francisco Romão de
Oliveira e Silva participou do curso Sankofa no Rio de Janeiro na
qualidade de embaixador da República de Angola no Brasil. Quando
faleceu em Angola, no ano de 2004, exercia o cargo de vice-ministro das
Relações Exteriores.
À professora Telma Rosina Simone da Gama, do CCS/Uerj, nosso
comovido abraço pelo infalível incentivo e apoio.
Agradecemos a ajuda de Carlos Henrique Bemfica na pesquisa e
revisão dos manuscritos, bem como na atual fase dos trabalhos do Ipeafro.
Léa Regina Dias da Silva também merece nossos agradecimentos pelo
apoio ao Ipeafro nesses últimos anos.
O Ipeafro existe – e, portanto, também o curso Sankofa – graças à
inspiração e ao esforço monumental de Abdias Nascimento, que ao longo
da vida tanto criou e construiu para o avanço da causa afro-brasileira.
Elisa Larkin Nascimento
Rio de Janeiro, julho de 2007
SUMÁRIO
Apresentação à nova edição
Carlos Moore
Introdução à nova edição
Elisa Larkin Nascimento
Primeiras palavras
Mãe Beata de Yemonjá
Apresentação
Mirian Goldenberg
Introdução
Elisa Larkin Nascimento
1. Mulher negra
Lélia Gonzalez
2. Grandes mães, reais senhoras
Gizêlda Melo Nascimento
3. Religiões afro-brasileiras
Helena Theodoro
4. Mulher negra, cultura e identidade
Helena Theodoro
5. O candomblé
Sueli Carneiro e Cristiane Cury
6. O poder feminino no culto aos orixás
Sueli Carneiro e Cristiane Cury
7. Lições das vozes silenciadas: mulher, cultura afro-brasileira e desenvolvimento
sustentável
ElisaLarkin Nascimento
8. Natureza, morada dos orixás
Aderbal Moreira
9. A intolerância religiosa e os meandros da lei
Hédio Silva Jr.
10. A força cultural das florestas
Dandara
11. Bantos, índios, ancestralidade e meio ambiente
Nei Lopes
12. Sassanhe: o “cantar das folhas” e a construção do ser J osé Flávio Pessoa de Barros
José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão Teixeira
13. Como a Jurema nos disse: representações e drama social afro-indígena
José Flávio Pessoa de Barros e Clarice Novaes da Mota
Siglas e abreviações
Referências bibliográficas
APRESENTAÇÃO À NOVA EDIÇÃO
POR QUE AS MATRIZES AFRICANAS?
A reedição da coleção Sankofa acontece em um momento de singular
importância para os estudos brasileiros sobre a África e as diásporas
africanas. Hoje, os estudos africanos não atendem apenas a uma demanda
exclusiva do movimento social negro, mas de toda a sociedade, e tornam-
se indispensáveis para o conhecimento do mundo no qual vivemos e dos
mundos que nos precederam. Fruto do ativismo de educadores negros e
seus aliados, a Lei nº 10.639/2003 coloca a sociedade inteira diante da
obrigatoriedade de assumir o legado africano como uma precondição
essencial para desenvolver o conhecimento. Era precisamente isso –
assumir essa precondição e atender a essa demanda – que se almejava com
a produção da coleção Sankofa na década de 1980. Por que assumir o
legado africano como precondição essencial do conhecimento? Os temas
abordados nestes quatro volumes vêm nos mostrar: as histórias e as
culturas africana e afro-brasileira dizem respeito não apenas aos
descendentes africanos, mas à humanidade como um todo e ao Brasil
como nação.
No primeiro volume, vamos conhecer por que a noção da África como
berço único da humanidade, arcaica e moderna, é um dos dados que se
impõem com força cada vez maior nos estudos interdisciplinares sobre os
seres humanos e as redes sociais complexas que estes têm constituído ao
longo de seus quase três milhões de anos de existência. Entenderemos por
que é necessário conhecer a África para compreender a origem das
primeiras civilizações e a formação do mundo antigo e contemporâneo.
Teremos uma introdução à saga de resistência dos povos africanos ao
domínio colonial e ao sistema escravista mercantil, que implantou as
nações modernas das Américas, e exploraremos as implicações dessa
dinâmica nas relações entre Brasil e África. O segundo e o terceiro
volumes abordam aspectos básicos de como a matriz africana fundamenta
a cultura brasileira e da importância da luta anti-racista dos negros para a
história brasileira, inclusive na área da educação. Os dois livros mostram o
papel fundamental da mulher negra e da religiosidade de origem africana
na formação da cultura brasileira e nas perspectivas de sustentação do
meio ambiente. No quarto volume, conheceremos uma das contribuições
que os intelectuais africanos oferecem ao desenvolvimento do saber no
mundo contemporâneo.
Este conjunto de obras aparece em um momento no qual já foi
nitidamente desenhado o tipo de estruturas socioeconômicas planetárias
que pretendem ditar as normas em todos os âmbitos, especialmente no da
educação. O mundo globalizado que tomou forma a partir da queda do
projeto comunista e do fim da Guerra Fria é um mundo hegemônico não
somente do ponto de vista econômico e político, mas também (e
sobretudo) do ponto de vista ideológico. Embora se apresente como um
mundo antiideológico – aliás, como o mundo do fim das ideologias –, na
realidade ele massifica e difunde globalmente uma cultura ideológica que
se apresenta como inclusiva. Trata-se da imagem fracionada de uma
diversidade rasa e fácil, transmitida nos pulsos eletrônicos dos meios de
comunicação de massa, incapaz de remeter à riqueza e à profundidade das
diferentes culturas e experiências históricas. O recente revisionismo da
narrativa histórica sobre a África faz parte dessa visão hegemônica cujo
impacto contribui para manter a subalternização e a dominação dos povos
e descendentes africanos.
A coleção Sankofa realiza um trabalho no sentido contrário – o de
reafirmar e aprofundar as bases históricas de uma narrativa cujos
protagonistas são o próprio povo africano e sua produção intelectual e
científica – e oferece referenciais para uma formação intelectual capaz de
contemplar as verdadeiras dimensões de nossa diversidade, contribuindo
assim para a elaboração do pensamento contemporâneo.
Carlos Moore
Salvador, 2008
INTRODUÇÃO À NOVA EDIÇÃO
Após treze anos, voltamos a editar a coleção Sankofa (desta vez em quatro
volumes), no intuito de atender à demanda que aumentou bastante desde a
primeira edição. Continuam escassos, se comparados à amplitude dessa
demanda, os recursos disponíveis para subsidiar o ensino da história e da
cultura afro-brasileiras, apesar de estar em vigor, há quatro anos, a lei que
o torna obrigatório.
Tal demanda não é apenas quantitativa, mas principalmente
qualitativa. Precisamos de obras que abordem esses temas de um novo
ponto de vista. Carecemos de pesquisas e reflexões construídas sobre
novas bases epistemológicas. As informações reunidas nos volumes da
coleção Sankofa atendem a essa demanda específica, e temos certeza de
que serão de grande valor para uma população que está inserta em um
mundo cada vez mais globalizado e procura fundamentar uma nova
articulação de sua identidade. Refiro-me à população brasileira, e não
apenas aos negros brasileiros. Para estes, porém, a recuperação de
identidade ganha uma dimensão especial, pois a distorção, a escamoteação
e a falta de referências sobre a história e a cultura africanas desembocam
no desconhecimento de suas raízes, que são também as raízes do Brasil e
dos países da diáspora.
A falta de conhecimento sobre suas origens contribui para que muitos
afrodescendentes tenham baixa auto-estima, o que impede seu acesso
pleno às oportunidades e mina sua capacidade de lutar por direitos. Essa
situação levou o movimento social afro-brasileiro a exercer forte pressão
política. Esse movimento, que vem se articulando desde a Convenção
Nacional do Negro, realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos
de 1945 e 1946, quando intelectuais e ativistas negros advogaram medidas
afirmativas no contexto da Assembléia Constituinte de 1946, expandiu-se
bastante nas décadas de 1970 e 1980. No final do século XX, com a
terceira Conferência Mundial contra o Racismo, o movimento abriu nova
brecha com a modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003), que tornou obrigatória a
temática história e cultura afro-brasileiras.1
A primeira edição desta coleção marcou um momento rico nesse
processo, pois foi publicada pela Secretaria Extraordinária de Defesa e
Promoção das Populações Afro-brasileiras (Seafro), único órgão executivo
estadual de primeiro escalão voltado para a articulação e implementação
de políticas públicas de combate ao racismo.2 O projeto Sankofa incluía a
distribuição dos livros às bibliotecas públicas e às redes de ensino
municipais e estadual do Rio de Janeiro, bem como a realização de fóruns
e atividades de preparação de educadores para o ensino da história e da
cultura afro-brasileiras. Essas iniciativas aconteceram uma década antes
da promulgação da Lei nº 10.639, de 2003. Essa primeira versão da
coleção Sankofa, em dois volumes, reunia os textos de apoio para o curso
Sankofa, ministrado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros
(Ipeafro) no período de 1983 a 19953, bem como o resultado dos dois
fóruns que o Ipeafro realizou em conjunto com a Seafro, nos anos de 1991
e 1993. A segunda edição da coleção teve três volumes e trouxe novos
ensaios.4
A presente coleção baseia-se nesses três livros, atualizados e com
novos conteúdos, e agrega um quarto, a antologia de ensaios
Afrocentricidade – Uma abordagem epistemológica inovadora. O primeiro
volume, A matriz africana no mundo, introduz o leitor à história e às
civilizações africanas da antigüidade e ao legado do grande cientista
senegalês CheikhAnta Diop. Oferece também uma introdução à história
da resistência pan-africana e às relações do Brasil com a África, contando
com dois textos novos, um de Carlos Moore e outro de Anani Dzidzienyo.
O segundo volume, Cultura em movimento – Matrizes africanas e ativismo
negro no Brasil, focaliza a matriz africana no Brasil, o movimento social
afro-brasileiro e a questão prioritária da ação deste: a educação. Aborda a
Lei nº 10.639/2003, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, e traz informações atualizadas sobre esses temas. O
presente volume, Guerreiras de natureza – Mulher negra, religiosidade e
ambiente, é enriquecido com a apresentação de Mãe Beata de Yemonjá; o
ensaio de Aderbal Moreira sobre o culto aos orixás e a preservação da
natureza; e o ensaio de Hédio Silva Jr. sobre a ação jurídica contra a
intolerância religiosa. O movimento negro organizado vem
protagonizando uma série de iniciativas de defesa da religiosidade de
origem africana diante do ataque acirrado de novas seitas cristãs. Até
muito recentemente, o Estado brasileiro aliava-se à Igreja Católica oficial
na perseguição ao candomblé, com direito a batidas policiais nos terreiros
e à apreensão de objetos sagrados, que passavam a ser guardados nos
museus da polícia. Hoje, com a proliferação das igrejas evangélicas, essa
perseguição adquire outros contornos, obrigando o movimento social afro-
brasileiro a liderar atos públicos e ações judiciais, entre outras iniciativas.
Uma vitória marcante foi a instituição de 21 de janeiro como o Dia
Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, por meio da Lei nº 11.635,
de 27 de dezembro de 2007.
A coleção Sankofa ganha agora um quarto volume, Afrocentricidade:
uma abordagem epistemológica inovadora, que introduz ao público
brasileiro a proposta articulada pelo professor Molefi K. Asante com base
nos referenciais clássicos da tradição e do saber africanos e liga-se
estreitamente à obra do grande cientista senegalês Cheikh Anta Diop.
Com este trabalho, esperamos continuar a contribuir para a renovação
e o enriquecimento da reflexão e do conhecimento acerca da história e da
cultura afro-brasileiras.
Elisa Larkin Nascimento
Rio de Janeiro, setembro de 2007
NOTAS
1 | Ministério da Educação (MEC)/ Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (Secad). Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. Diretrizes curriculares
nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana. (Parecer CNE/CP 003/2004). In: MEC/Secad. Ações para a
educação das relações étnico-raciais. Brasília: MEC/Secad, 2006, p. 229-57. Também
disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-
Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf>.
2 | Leonel de Moura Brizola, então governador do Rio de Janeiro, criou a Seafro em 1991. Em
1995, o sucessor de Brizola a extinguiu. Vale lembrar que os conselhos estaduais e municipais
de defesa dos direitos dos negros são órgãos consultivos.
3 | Alguns desses textos, mais tarde, desdobraram-se em livros: Lopes (2003), Lopes (2006),
Nascimento, A. (2002c), Nascimento, E. L. (2003b).
4 | O Conselho Editorial da Uerj aprovou a coleção de três volumes, mas a EdUerj publicou
somente o primeiro (Nascimento, E. L., 1996).
http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf
PRIMEIRAS PALAVRAS
Fazer parte deste livro, ainda mais participando de sua apresentação,
muito me honra. Seu título literalmente me envolve e faz que me sinta
pertencente a ele, pois ser mulher no mundo contemporâneo é uma tripla
jornada – que dirá ser mulher afro-brasileira, religiosa e iyalorixá.
Sinto-me tocada especialmente por rememorar um passado não tão
distante de ações de luta do movimento negro carioca ao ler importantes
artigos de companheiros e companheiras. Esses textos, além de narrar
tantas questões que fazem parte deste nosso universo afro-brasileiro –
político, religioso ou de gênero –, falam da vida de tantas Marias, Beatas,
Lélias, Clementinas, Olgas, Aninhas e Menininhas que o preconceito
machista, racial e de gênero procura invisibilizar, seja tentando calar nossa
voz com estratégias que nos desmobilizam, fragmentando nossa
organização, seja com essa violência de várias formas velada, tão
tipicamente brasileira. Ver tais artigos me faz voltar à militância do
movimento negro e de mulheres no Rio de Janeiro na década de 1980,
quando fui iniciada nos movimentos sociais. Ao ser uma mulher de
candomblé e manter viva e preservada minha tradição religiosa,
considero-me uma guerreira quilombola, e o candomblé foi e é o
responsável pela manutenção de vários aspectos da cultura, da
religiosidade e do pensar o coletivo negro.
Por ser uma iyalorixá, mulher, mãe e filha de Yemonjá, tenho em mim
um legado muito necessário à vida humana, pois quando vim ao mundo já
sabia que me estava orientado o dever de cuidar e acolher todos que me
procurassem. Percebi que nossa história de mulher é vivida quase como
uma roda-viva, em que temos de nos obrigar a ser mantenedoras de vários
espaços da vida das pessoas. Minha mãe foi assim, minhas tias também, a
mulher que me iniciou no candomblé também viveu para servir e acolher.
Hoje em dia, quando observamos a grande quantidade de mulheres
negras que trabalham em diversos setores da sociedade, em espaços
profissionais do cuidar, percebemos que ainda nos olham como aquelas
que muito têm a oferecer e pouco a receber. Ainda hoje é negada a
humanização, inclusão e inserção social da mulher de forma igualitária
com o gênero masculino. Nossos direitos defendemos com lutas paralelas,
como se mulher não fosse da espécie humana e não tivesse necessidade de
conquistar e viver seus direitos.
Muito me orgulha ser vista como uma referência de mulher afro-
brasileira, pois o conhecimento e o saber são múltiplos – e só poderia
esperar de você, Elisa, tal sensibilidade. Nem todos sabem tudo, e é muito
bom beber novas águas em outras fontes.
As ações e o saber ancestral dos terreiros e suas mulheres ainda não
foram de todo esgotados, pois essa nascente jamais secará – enquanto
houver livros e pessoas com tais iniciativas, continuaremos vivas lutando
e guerreando não só por nós mulheres negras e guerreiras, mas também
pela sociedade mais ampla, que muito ganhará com tais reflexões e ações.
Gotas de água juntas se transformam em chuva.
Axé, Aiyaba omi bobo.1
Mãe Beata de Yeomjá
(Beatriz Moreira da Silva)
Rio de Janeiro, outubro de 2007
NOTA
1 | Força de todas as rainhas das águas.
APRESENTAÇÃO
Em um momento em que a universidade brasileira se abre para um debate
intenso sobre as questões de gênero e raça, em suas diferentes
perspectivas, é muito bem-vindo Guerreiras de natureza: mulher negra,
religiosidade e ambiente, organizado por Elisa Larkin Nascimento.
Reunindo artigos de pesquisadores renomados, este volume focaliza três
objetos de reflexão: a especificidade da situação vivida pelas mulheres
negras no Brasil; as religiões afro-brasileiras e suas mitologias; e algumas
propostas alternativas de tratamentos de saúde. Temas aparentemente
distantes mas que combinam uma análise crítica sobre a sociedade
brasileira e algumas reflexões sobre os caminhos possíveis para as
mudanças necessárias.
Coerente com o trabalho de resgate da tradição africana do curso
Sankofa, do qual os textos são originários, este volume permite entrar em
um mundo desconhecido por muitos brasileiros, mas fundamental para a
compreensão de nossa cultura. Em um primeiro momento, mergulhamos
na análise da terrível situação socioeconômica em que vivem as mulheres
negras brasileiras, em suas lutas para se impor no movimento de mulheres
e, também, para enfrentar o machismo dos homens negros. Dados
concretos sobre as ocupações, os salários e o analfabetismo permitem
compreender que a luta contra a discriminação está longe de terminar. É
interessante a análise sobre o conflito das mulheres negras com as
militantes feministasbrancas que só puderam lutar por sua liberação
porque contaram com o trabalho das empregadas domésticas (em sua
grande maioria negras). Os autores, ao denunciarem a sociedade brasileira
como racista e sexista, baseiam-se tanto em dados estatísticos como em
expressões usadas cotidianamente (“mulata”, “neguinha gostosa”,
“neguinha suja”, “moreninha” ou “crioula”). Num segundo momento, os
artigos analisam as religiões afro-brasileiras, particularmente o papel que
elas desempenham na vida das mulheres negras. Por fim, uma abordagem
do saber popular relacionado às plantas e ao seu poder curativo. Esses
artigos finais podem ser lidos sob a ótica do eterno debate natureza versus
cultura.
Guerreiras de natureza propicia ao leitor uma consciência maior da
desigualdade sexual e racial em nosso país, contribuindo assim para a
necessária mudança. Tornando nítidos problemas que são invisíveis para a
grande parte da população brasileira, a obra está cumprindo o papel que se
propõe: resgatar idéias e expressões capazes de refletir diversos momentos
na evolução recente do pensamento afro-brasileiro. É uma leitura
imprescindível não apenas para antropólogos, sociólogos, historiadores,
militantes, professores e estudantes, mas para todos aqueles que não
aceitam desigualdades e discriminações de qualquer natureza.
Mirian Goldenberg
Rio de Janeiro, junho de 2000
INTRODUÇÃO
Este livro germinou na confluência de dois eventos ocorridos em 1993, no
mês das iyabás, orixás femininas: o Seminário da Internacional Socialista
de Mulheres sobre o tema “Mulher e Desenvolvimento Sustentável”,
realizado em Washington, DC; e o Primeiro Simpósio de Fitoterapia,
realizado pelo Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj). Preparar uma contribuição sobre o tema do
protagonismo da mulher afro-brasileira e das comunidades-terreiros do
candomblé, que propiciam alternativas naturais de tratamento de saúde,
levou-nos a uma reflexão sobre a riqueza da convergência destes três
ambientes: a questão de gênero e a religiosidade afro-brasileira em relação
viva e íntima com a urgente dinâmica do meio ambiente.
O livro reúne trabalhos aparentemente díspares, tratando de várias
dimensões desse universo. Sua harmonia está na convergência dos temas,
que não exigem uma linha unitária de abordagem. Ao contrário: a nosso
ver, cada dimensão se enriquece e se completa em sua relação com as
outras, numa expressão singular do valor da diversidade. Todos os
trabalhos versam sobre assuntos abordados no contexto do curso de
extensão cultural e universitária Sankofa, que coordenei durante o período
de 1983 a 1995. Termo de origem akan (África ocidental, região da atual
República de Gana), sankofa significa a recuperação e valorização da rica
tradição cultural africana – com seu alto nível de conhecimento – e do alto
grau de desenvolvimento atingido pelas sociedades africanas. Seu símbolo
é a imagem de um pássaro com a cabeça voltada para trás, estilizada no
ideograma da escrita africana adinkra. Esse símbolo, válido em todo o
mundo africano, também remete ao conhecimento e à divulgação do papel
dos africanos e seus descendentes na construção das sociedades de todas as
Américas.
No Seminário da Internacional Socialista de Mulheres, apresentei a
tese, contida no ensaio de minha autoria incluído neste volume, de que as
mulheres afro-brasileiras, junto com as mulheres em todo o mundo e, mais
especificamente, as do sul do planeta, formam uma grande força no
desenvolvimento de novas alternativas para nosso relacionamento com o
ambiente. O saber popular sobre o valor medicinal das folhas,
desenvolvido no contexto da religiosidade afro-brasileira, constitui um
campo de desempenho crítico, contrapondo-se ao sistema industrial
farmacêutico da economia mundial globalizada cujos produtos ficam cada
vez mais inacessíveis aos povos. A tese ganha profundidade ao lado do
trabalho de José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão Teixeira, que
mergulham no estudo de uma expressão desse saber do candomblé sobre o
poder curativo das folhas.
Entretanto, o papel das mulheres negras como portadoras desse saber
precisa ser contextualizado historicamente nas sociedades em que atuam.
Os ensaios de Lélia Gonzalez, Helena Theodoro Lopes, Gizêlda Melo do
Nascimento e Sueli Carneiro em parceria com Cristiane Cury foram
escritos numa época em que essas reflexões se iniciavam. As mulheres
negras se empenhavam para integrar os problemas específicos da mulher
afro-brasileira no pensamento e na ação do movimento feminista – então
composto majoritariamente de intelectuais brancas de classe média. O
texto de Lélia Gonzalez foi escrito anos antes da reunião mundial de
Beijing em que as mulheres afro-brasileiras marcaram época com sua
delegação atuante e organizada. Assim, abrimos o volume abordando o
contexto histórico, social e econômico das mulheres negras no Brasil.
Gizêlda, Helena, Sueli e Cristiane desdobram essa análise, focalizando o
contexto cultural e o papel de liderança das mulheres negras na
comunidade e religiosidade afro-brasileiras.
As culturas e os povos indígenas se destacam com eloqüência quando
consideramos a necessidade de articular formas de vida humana em
harmonia com a natureza. Dandara, Nei Lopes e José Flávio Pessoa de
Barros, em parceria com Clarice Novaes da Mota, abordam esses
intercâmbios entre as culturas africanas e indígenas no Brasil, explorando
minuciosamente o universo da parceria entre matrizes culturais não-
européias na convivência harmônica com o meio ambiente. O texto de
Aderbal Moreira, escrito uma década depois e aqui reproduzido do
panfleto que sua organização criou e dirigiu com intuito didático para o
povo de santo, explicita novos elementos e novas dimensões dessa
convivência no contexto religioso. É atualíssimo o depoimento de Hédio
Silva Jr. sobre a lei e sua experiência na defesa jurídica do direito do povo
de santo ao livre exercício de sua religiosidade.
Como critério editorial, procuramos respeitar as formas particulares de
grafia e expressão dos autores, ao mesmo tempo mantendo um padrão
básico de ortografia para dar unidade ao volume. No caso das transcrições
de textos da língua ioruba, seguimos rigorosamente o original de cada
autor. Quanto aos vocábulos de origem ioruba incorporados à língua
portuguesa, utilizamos a ortografia brasileira.
Finalizando, queremos render aqui uma homenagem a Lélia Gonzalez
e Beatriz Nascimento, duas mulheres afro-brasileiras que há pouco deram
seus passos de dança e se juntaram aos ancestrais (na expressão de Wole
Soyinka). Ficou a herança de duas mulheres guerreiras, na melhor tradição
das Candaces1 nubianas. Axé muntu2, irmãs!
Elisa Larkin Nascimento
Rio de Janeiro, 2000
NOTAS
1 | As Candaces são uma linhagem de rainhas-mães, soberanas e guerreiras, do Sudão antigo.
2 | Muntu é a palavra banta para axé, gente, força vital.
1
MULHER NEGRAa
Lélia Gonzalez
Situação da população negra
Da independência do Brasil aos dias atuais, todo um pensamento e uma
prática político-social, preocupados com a chamada questão nacional, têm
procurado excluir a população negra de seus projetos de construção da
nação brasileira. Assim, não foi por acaso que os imigrantes europeus se
concentraram em regiões que, do ponto de vista político e econômico,
detêm a hegemonia quanto à determinação dos destinos do país; sobretudo
a região Sudeste. Por isso mesmo, podemos afirmar que existe uma
divisão racial do espaço em nosso país (Gonzalez, 1979), uma espécie de
segregação, com acentuada polarização, extremamente desvantajosa para a
população negra: quase dois terços da população branca (64%)
concentram-se na região mais desenvolvida do país, enquanto a população
negra, quase na mesma proporção (69%), concentra-se no resto do país,
sobretudo em regiões mais pobres, como é o caso do Nordeste e de Minas
Gerais (Hasenbalg, 1979).
Caracterizando sumariamente a formação social brasileira, diríamos
que ela se estrutura em termos de acumulação capitalista dependente ou
periférica,com conflito de interesses de classes antagônicas e sistema
político de dominação rigoroso. Uma de suas contradições básicas é
justamente “a cristalização de desigualdades extremas entre ‘regiões’
brasileiras, onde se pode distinguir uma região dominante e outras regiões
dominadas, unidas num processo estruturalmente articulado, e a
conseqüente reprodução dos níveis de pobreza e miséria em que vivem
suas populações” (Faria, 1983, p. 46). Acontece que o modelo de
desenvolvimento econômico brasileiro marcou, nas duas últimas décadas,
a consolidação da sociedade capitalista em nosso país. Altas taxas de
crescimento da economia e acelerada urbanização, estimuladas pela
intervenção direta do Estado, resultaram num tipo de “integração” das
regiões subdesenvolvidas às exigências da industrialização do Sudeste.
Como sabemos, a lógica interna que determina a expansão do capitalismo
industrial em sua fase monopolista entrava o crescimento equilibrado das
forças produtivas nas regiões subdesenvolvidas. Estabelece-se, desse
modo, o que Nun (1978) caracterizou como desenvolvimento desigual e
combinado que, entre outros efeitos, remete à dependência neocolonial e a
um “colonialismo interno”.
Por isso mesmo, os aspectos positivos do desenvolvimento econômico
brasileiro (cuja fase culminante, de 1968 a 1973, ficou conhecida como
“milagre brasileiro”) foram neutralizados por determinados fatores que
confirmam o que disse antes. De acordo com Hasenbalg e Valle Silva
(1984), destacam-se entre esses fatores:
Deterioração das condições de vida dos estratos urbanos de baixa
renda. Não esqueçamos que o deslocamento de grandes contingentes
de mão-de-obra do campo para os centros urbanos determinou não o
crescimento populacional destes últimos, mas sua “inchação”, com a
conseqüente formação de bairros periféricos e favelas (na cidade do
Rio de Janeiro, por exemplo, existiam 757 mil favelados em 1970;
em 1980, esse número aumentou para 1,74 milhão, passando a
constituir aproximadamente 34% da população do município) onde se
pôde constatar: aumento da mortalidade infantil e dos acidentes de
trabalho, deterioração e crescimento insuficiente da infra-estrutura
urbana de transportes, problemas habitacionais e de saneamento
básico, altos índices de evasão escolar no primeiro grau, atendimento
médico-hospitalar insuficiente do sistema previdenciário etc.
Desnecessário dizer que esse subproletariado é constituído
majoritariamente por negros.
Concentração de renda. Apesar das mudanças na estrutura de classes
durante esses vinte anos (de 1964 a 1985, período do regime militar),
os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos (não esqueçamos
que, ainda em 1980, um terço da população economicamente ativa –
PEA – ganhava até um salário mínimo), sobretudo no que se refere ao
campo. Continuando sua análise, Hasenbalg e Valle Silva informam
que, em 1970, os 50% mais pobres participavam em 14,9% dos
rendimentos obtidos pela PEA; em 1980, essa participação baixou
para 12,6%; o 1% mais rico passou de 14,7% para 16,9%, superando
consideravelmente sua apropriação se comparada àquela recebida
pelos 50% mais pobres. No campo, entretanto, é que esses
percentuais se tornam gritantemente desiguais: o rendimento dos
50% mais pobres cai de 22,4% para 14,9%, enquanto o do 1% mais
rico elevou-se de 10,5% para 29,3%.
Pelo exposto, o desenvolvimento econômico brasileiro resultou num
modelo de modernização conservadora excludente, segundo esses
analistas. Poderíamos considerá-lo, também, com base na noção de
desenvolvimento desigual e combinado, em que a formação de uma massa
marginal, de um lado, assim como a dependência neocolonial e a
permanência de formas produtivas anteriores, de outro, constituem-se
como fatores que tipificam o sistema. Vale notar que a noção de massa
marginal diz respeito à força de trabalho que, como superpopulação
relativa, torna-se supérflua em face do processo de acumulação
hegemônico, representado pelas grandes empresas monopolistas. As
questões relativas ao desemprego e ao subemprego incidem justamente
sobre essa superpopulação.
É nesse sentido que o racismo, como articulação ideológica e conjunto
de práticas, denota sua eficácia estrutural na medida em que remete a uma
divisão racial do trabalho extremamente útil e compartilhado pelas
formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas.
Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é
um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de
recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de
estratificação social. Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro,
desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na condição de
massa marginal (em termos de capitalismo industrial monopolista) e de
exército de reserva (em termos de capitalismo industrial competitivo,
satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio).
Não é casual, portanto, o fato de a força de trabalho negra permanecer
confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração. A
sistemática discriminação sofrida no mercado remete a uma concentração
desproporcional de negros nos setores agrícola, de construção civil e
prestação de serviços. Segundo o Censo de 1980, esses setores absorvem
68% de negros e 52% de brancos. Como já dissemos anteriormente, um
terço (33%) da PEA em 1980 recebia até um salário mínimo; se
analisarmos essa porcentagem em termos de composição racial, teremos
24% dos brancos e 47% dos negros. Do outro lado do espectro de
rendimento, a proporção de pessoas com renda mensal superior a dez
salários mínimos era de 3,72%: entre os brancos, esse número era de
8,5%; entre os negros, de aproximadamente 1,5%. De acordo com os
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1982,
houve um aumento da proporção dos que ganham até um salário mínimo:
de 33% passaram para 36%, numa prova patente do empobrecimento do
país. Desnecessário dizer que os negros foram os que mais sofreram: de
44% passaram para cerca de 50%, enquanto os brancos foram de 24% para
28%. E é justamente no Nordeste (9 milhões de negros para 3,8 milhões de
brancos) que ficam evidenciadas as maiores desigualdades: de cada dez
negros integrados na PEA, seis ganham até um salário mínimo. A
distribuição de renda, como vemos, não deixa de constituir um dos
aspectos das desigualdades raciais em nosso país.
Outra dimensão dessas desigualdades se faz presente no acesso ao
sistema educacional e às oportunidades de escolarização. O Censo de 1980
revelava a existência de 35% de analfabetos na população maior de 5 anos.
Entre os brancos, a proporção era de 25%, enquanto entre os negros era de
48%, ou seja, quase o dobro. Os graus de desigualdade educacional
acentuam-se ainda mais quando se trata de acesso aos níveis mais
elevados de escolaridade. Em 1980, os brancos tinham 1,6 vezes mais
oportunidades de completar de cinco a oito anos de estudos; 2,5 vezes
mais de completar de nove a onze anos de estudo; e seis vezes mais de
completar doze anos ou mais de estudos (Hasenbalg e Valle Silva). Isso
significa que os negros já nascem com menos chance de chegar ao
segundo grau e praticamente nenhuma de atingir a universidade.
Situação da mulher negra
As transformações ocorridas na sociedade brasileira entre 1968 e 1980
tiveram um impacto considerável na força de trabalho feminina, sobretudo
nos anos 1970. Conforme assinala Rose Marie Muraro (1983, p. 14):
A primeira metade da década foi o auge do “milagre brasileiro”. […] A força de trabalho
feminina dobra de 1970 para 1976. Mais interessante ainda: em 1969 havia cem mil mulheres na
universidade para duzentos mil homens. Em 1975 este número tinha subido para cerca de
quinhentas mil mulheres (para quinhentos e oito mil homens), passando a proporção de 1:2, em
69, para 1:1 em 75. O número de mulheres na universidade havia quintuplicado em cinco anos!
Vemos aí como se conjugam, então, os fatores econômicos reforçando os comportamentais e
vice-versa.
Isto pode explicar, ao menos emparte, que nestes primeiros cinco anos da década, mesmo sem
haver movimento organizado, tenha surgido interesse tão agudo para o problema da mulher. Foi
nesses cinco anos, mesmo, que se processou a maior transformação da condição da mulher na
história de nosso país.
Em outro texto, lemos: “Em definitivo, as mulheres não só tendem a
conseguir uma melhor distribuição na estrutura ocupacional como também
abandonam os setores de atividades que absorvem a força de trabalho
menos qualificada e mais mal remunerada para ingressar em proporções
crescentes na indústria e nos serviços modernos” (Hasenbalg e Valle Silva,
1984, p. 40).
Os trechos acima reproduzidos não se referem, de modo algum, à
mulher ou às mulheres negras. Por conseguinte, algumas questões
impõem-se à nossa reflexão. A primeira delas diz respeito à situação da
mulher negra no interior da população economicamente ativa, à sua
inserção na força de trabalho. Como os trabalhadores negros (92,4%), as
trabalhadoras negras concentram-se sobretudo nas ocupações manuais
(83%), o que significa que quatro quintos da força de trabalho negra têm
uma inserção ocupacional caracterizada por baixos níveis de rendimento e
escolaridade. As trabalhadoras negras encontram-se alocadas em
ocupações manuais rurais (agropecuária e extrativismo vegetal) e urbanas
(prestação de serviços), tanto como assalariadas quanto como autônomas e
não remuneradas. Já a proporção de mulheres brancas nas ocupações
manuais é bem menor: 61,5% (Araújo Costa, Garcia de Oliveira e Porcaro,
1983).
Enquanto isso, nas ocupações não manuais, a presença da trabalhadora
negra ocorre em proporções muito menores: 16,9%, comparados a 38,5%
no caso das trabalhadoras brancas. A análise dessas ocupações – divididas
em dois níveis, o médio e o superior – revela aspectos bastante
interessantes com relação às dificuldades de mobilidade social ascendente
para a mulher negra. Naquelas de nível médio (pessoal de escritório,
bancárias, caixas, professoras de primeiro grau, enfermeiras,
recepcionistas), a concentração de mulheres é muito maior que a de
homens. Mas, se a dimensão racial é inserida entre elas, a constatação é de
que a proporção de negras também é muito menor (14,4%) que a de
brancas (29,7%). Em muitas das atividades de nível médio é exigido
contato direto com o público, o que dificulta o acesso das mulheres negras
a essas ocupações (devido à exigência da “boa aparência”). Quando se
trata das profissionais de nível superior, empresárias e administradoras, a
presença da mulher negra é quase invisível: 2,5% para 8,8% de mulheres
brancas.
No que diz respeito às diferenças de rendimento médio, o Censo de
1980 apresenta os seguintes dados: um porcentual de 23,4% de homens
brancos, 43% de mulheres brancas, 44,4% de homens negros e 68,9% de
mulheres negras ganham até um salário mínimo. Um porcentual de 42,5%
de homens brancos, 38,9% de mulheres brancas, 42,4% de homens negros
e 26,7% de mulheres negras ganham de um a três salários mínimos. Um
porcentual de 14,6% de homens brancos, 9,5% de mulheres brancas, 8%
de homens negros e 3,1% de mulheres negras ganham de três a cinco
salários mínimos. E, por fim, um porcentual de 8,5% de homens brancos,
2,4% de mulheres brancas, 1,4% de homens negros e 0,3% de mulheres
negras têm rendimentos acima de dez salários mínimos (Hasenbalg e Valle
Silva).
Comparativamente às famílias brancas pobres, a situação das famílias
negras não é de igualdade. Já a PNAD de 1976 demonstrava que, em
termos de renda familiar de até três salários mínimos, por exemplo, a
situação era a seguinte: cerca de 50% de famílias brancas para 75% de
famílias negras. As diferenças eram e continuam expressivas quando se
trata da taxa de atividade dessas famílias: a das negras é bem maior que a
das brancas. Isso significa que o número de membros das famílias negras
insertos na força de trabalho é muito maior que aquele das famílias
brancas para a obtenção do mesmo rendimento familiar. Um dos efeitos
desse trabalhar mais e ganhar menos implica a necessidade de trabalho de
menores de idade. Por isso mesmo, a proporção de menores negros na
força de trabalho é muito maior que a de menores brancos (e estamos
falando daqueles que se encontram na faixa dos 10 aos 17 anos). Por aí se
entende por que nossas crianças mal conseguem cursar o primeiro grau1:
não se trata, como pensam e dizem alguns, de uma “incapacidade
congênita da raça” para as atividades intelectuais, mas do fato de os
negros, desde muito cedo, terem de “ir à luta” para ajudar na
sobrevivência da própria família.
Em pesquisa que realizei com mulheres negras de baixa renda
(Gonzalez, 1983), poucas das entrevistadas começaram a trabalhar já
adultas. Migrantes, na grande maioria (principalmente vindas de Minas
Gerais, do Nordeste ou do interior do estado do Rio de Janeiro), e muitas
vezes já tendo “trabalhado na roça”, haviam começado a trabalhar por
volta dos 8 ou 9 anos de idade para “ajudar em casa”. Desnecessário dizer
que, nos centros urbanos, começavam a trabalhar “em casa de família”,
além de tentar freqüentar alguma escola. Pouquíssimas conseguiram
“fazer o primário”. Um dos depoimentos mais significativos, o de Maria,
trata das dificuldades de uma menina negra e pobre, filha de pai
desconhecido, tendo de enfrentar um ensino unidirecionado, voltado para
valores que não os dela. Contando seus problemas de aprendizagem, ela
não deixava de criticar o comportamento de professores (autoritariamente
colonialistas) que, na verdade, só fazem reproduzir práticas que induzem
nossas crianças a deixar de lado uma escola na qual os privilégios de raça,
classe e sexo constituem o grande ideal a ser atingido, mediante o saber
“por excelência”, emanado da cultura “por excelência”: a ocidental
burguesa.
Por isso mesmo, o texto de Muraro (1983) é bastante sintomático: se
as transformações da sociedade brasileira nos últimos vinte anos
favoreceram a mulher, não podemos deixar de ressaltar que essa forma de
universalização abstrata encobre a realidade vivida – duramente – pela
grande excluída da modernização conservadora imposta pelos donos do
poder no Brasil pós-1964: a mulher negra. É por aí que se entende, por
exemplo, uma das contradições do movimento de mulheres no Brasil.
Apesar de suas reivindicações e conquistas, ele acaba por reproduzir
aquilo que Hasenbalg (Gonzalez e Hasenbalg, 1982, p. 105) sintetizou com
felicidade: “No registro que o Brasil tem de si mesmo o negro tende à
condição de invisibilidade”. Apesar das poucas e honrosas exceções para
entender a situação da mulher negra (e Muraro é uma delas), poderíamos
dizer que a dependência cultural é uma das características do movimento
de mulheres em nosso país. As intelectuais e ativistas tendem a reproduzir
a postura do feminismo europeu e norte-americano ao minimizar, ou até
mesmo deixar de reconhecer, a especificidade da natureza da experiência
do patriarcalismo por parte de mulheres negras, indígenas e de países
antes colonizados.
A participação da mulher negra
Durante esse período, os primeiros grupos organizados de mulheres negras
surgiram no interior do movimento negro. Isso se explica, em parte, pelo
fato de os setores médios da população negra que conseguiram entrar no
processo competitivo do mercado de trabalho das ocupações não manuais
serem aqueles mais expostos às práticas discriminatórias de mão-de-obra
(Oliveira, Porcaro e Araújo Costa, 1980). Assim, é no movimento negro
que se encontra o espaço necessário para as discussões e o
desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo, de
suas práticas e articulações com a exploração de classe. Por outro lado, o
movimento feminista ou de mulheres, que tem suas raízes nos setores
mais avançados da classe média branca, geralmente “se esquece” da
questão racial, como já dissemos anteriormente. Esse tipo de ato falho, a
nosso ver, tem raízes históricas e culturais profundas.
O desempenho das mulheres negras na formação do movimento negro
no Rio de Janeiro, por exemplo, foi da maior importância. Aantropóloga
Maria Berriel, da Universidade Federal Fluminense (UFF), relatou que seu
envolvimento com a questão negra se iniciou em 1969:
Foi sobretudo percebendo as dificuldades de alunos negros (por força da expansão do
capitalismo, nós começamos a receber alunos negros na universidade); ocorreu que muitos dos
nossos alunos estavam com dificuldades no mercado de trabalho. Então, resolvi fazer uma
pesquisa para avaliar os artifícios e as estratégias que impediam o aproveitamento do negro na
esfera ocupaciona1. Esses alunos não só – juntamente com alunos brancos – entraram numa
faixa de atividade bastante atuante, como até fizeram uma dramatização: recortavam anúncios,
apresentavam-se nos lugares e, em seguida, os alunos brancos os substituíam; e sentia-se todo o
esquema de restrição montado claramente. […] E, dali, houve um contato com a Cândido
Mendes, que passou a organizar congressos, ou melhor, encontros. [Secneb-84, Salvador, 1984.
Depoimento gravado por mim; não foi revisado por sua autora.]
Esses encontros ocorreram sobretudo por iniciativa da professora Maria
Beatriz Nascimento que, desde 1972, encontrava-se à frente da Semana de
Cultura Negra, realizada na UFF (semana que, ainda segundo Berriel,
Maria Beatriz Nascimento “organizou insistentemente, aceitando os
desafios que foram colocados gradativamente, na medida em que a semana
ia sendo implantada”).
Os históricos encontros na Cândido Mendes atraíram toda uma nova
geração negra, que ali passou a se reunir para discutir o racismo e suas
práticas como modo de exclusão da comunidade negra. Vivia-se, naqueles
momentos, a euforia do “milagre brasileiro”, do “ninguém segura este
país” etc. Mas a negadinha ali reunida (fins de 1973, início de 1974) sabia
muito bem o que isso significava para nossa comunidade. E um fato da
maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio movimento
negro) era justamente a atuação das mulheres negras que, ao que parece,
antes mesmo da existência de organizações do movimento de mulheres,
reuniam-se para discutir seu cotidiano marcado, por um lado, pela
discriminação racial e, por outro, pelo machismo – não só dos homens
brancos, mas dos próprios negros. E não deixavam de reconhecer o caráter
mais acentuado do machismo negro, uma vez que este se articula com
mecanismos compensatórios que são efeito direto da opressão racial.
Afinal, que mulher negra não passou pela experiência de ver o filho, o
irmão, o companheiro, o namorado, o amigo etc. passar pela humilhação
da suspeição policial, por exemplo? Nesse sentido, o feminismo negro tem
uma diferença específica em relação ao feminismo ocidental: a
solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. Por isso
mesmo, após a reunião, aquelas mulheres – Beatriz, Marlene, Vera Mara,
Joana, Alba, Judite, Stella, Lúcia, Norma, Zumba, Alzira, Lísia e várias
outras (cerca de vinte) – juntavam-se aos companheiros para a reunião
ampliada (que chamavam de “grupão”), onde expunham os resultados de
sua discussão anterior a fim de que o conjunto também refletisse sobre a
condição das mulheres negras. Em 1975, quando as feministas ocidentais
se reuniram na Associação Brasileira de Imprensa para comemorar o Ano
Internacional da Mulher, elas ali compareceram e apresentaram um
documento em que caracterizavam a situação de opressão e exploração da
mulher negra (apud Nascimento, A., 1978, p. 61-2). Todavia, em razão dos
caminhos seguidos por diferentes tendências que se constituíram por meio
do “grupão”, esse grupo pioneiro acabou por se desfazer – e suas
componentes continuaram a atuar nas várias organizações que se criaram.
Os anos seguintes testemunharam o surgimento de outros grupos de
mulheres negras (como Aqualtune, em 1979; Luiza Mahin, em 1980; e
Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, em 1982) que, de um modo
ou outro, foram reabsorvidos pelo movimento negro. Todas nós, sem
jamais nos distanciar do movimento negro, continuamos nosso trabalho de
militantes no interior das organizações mistas a que pertencíamos (André
Rebouças, IPCN, Sociedade de Intercâmbio Brasil-África – Sinba,
Movimento Negro Unificado – MNU, entre outras), sem desistir de
discutir questões específicas com os companheiros que, muitas vezes,
tentavam nos excluir das decisões, delegando-nos tarefas mais
“femininas”. Desnecessário dizer que o movimento negro não deixava
(nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias da ideologia
dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos.
Todavia, como nós mulheres e homens negros nos conhecemos muito bem,
nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano
mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo
solo: a experiência histórico-cultural comum. Assim se explica a
competição de muitos militantes com suas companheiras de luta (o
“esquecimento” a que nos referimos anteriormente). Mas, por outro lado,
dessa forma também se explica o espaço que temos no interior do
movimento negro. Vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, nós
mulheres e nossos companheiros homossexuais conquistamos o direito de
discutir, em Congresso, nossas especificidades. E isso num momento em
que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que
“dividissem a luta do operariado”.
Enquanto isso, nossas experiências com o movimento de mulheres
caracterizavam-se como bastante contraditórias: quando participávamos
de seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas
“agressivas” ou “não feministas” porque sempre insistíamos que o
racismo e suas práticas devem ser levados em conta nas lutas feministas,
exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de
opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por exemplo,
denunciávamos a opressão e exploração das empregadas domésticas por
suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração
do trabalho doméstico assalariado permitiu a “liberação” de muitas
mulheres que se engajaram nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a
violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que
violência era aquela da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura
(como se a repressão, tanto em um quanto em outro caso, não fizesse parte
da estrutura do mesmo estado policial-militar). Todavia, não deixamos de
encontrar solidariedade de setores mais avançados do movimento de
mulheres que demonstraram interesse não só em divulgar nossas lutas
como em colaborar conosco em outros níveis.
Apesar dos aspectos positivos em nossos contatos com o movimento
de mulheres, as contradições e ambigüidades permanecem, uma vez que,
enquanto originário do movimento de mulheres ocidental, o movimento de
mulheres brasileiro não deixa de reproduzir o “imperialismo cultural”
daquele. Nesse sentido, não podemos esquecer que alguns setores do
movimento de mulheres não têm o menor escrúpulo em manipular o que
chamam de “mulheres de base” ou “populares” como simples massa de
manobra para a aprovação de suas propostas (determinadas pela direção
masculina de certos partidos políticos). Por outro lado, muitas
“feministas” adotam posturas elitistas e discriminatórias em relação a
essas mesmas mulheres populares. De acordo com o relato de
companheiras do Nzinga, por ocasião da reunião em que seria nomeada a
representante do movimento de mulheres no Comício das Diretas do dia
21 de março de 1984 no Rio, uma militante feminista branca, não
aceitando a indicação de uma mulher negra e favelada, declarou com todas
as letras que “mulher de bica d’água não pode representar as mulheres”.
E ainda recentemente, participando de uma reflexão sobre a “sexualidade feminina”, convocada
pelo PT para poder encaminhar as questões da mulher […] constatamos […] falações como “a
mulher negra desperta mais cedo para a sexualidade”, “a empregada doméstica como veículo da
descoberta de temas sexuais através de revistas, conversas etc.” ou ainda, o que é muito comum,
“a questão da mulher negra é uma questão de classe e não de raça”. (Garcia,1984, p. 5)
Por essas e outras é que se entende por que os grupos de mulheres negras
se organizaram e se organizam no interior do movimento negro, e não no
do movimento de mulheres. Aliás, as pouquíssimas negras que militam
apenas no movimento de mulheres têm muita dificuldade em se
aprofundar no que diz respeito à questão racial. Talvez porque achem que
no Brasil não existe racismo (porque, como disse Millôr Fernandes, “o
negro sabe onde é o seu lugar”).
O grande encontro do movimento negro com o movimento de favelas
ocorreu por causa da campanha eleitoral de 1982, uma vez que, até aquele
momento, ambos vinham atuando de maneira paralela. Os efeitos da
chamada abertura política, concretizados na formação de novos partidos
políticos, atraíram setores que até então haviam permanecido à margem do
processo político-partidário. Os novos programas, de um ou de outro
modo, integraram algumas das reivindicações dos movimentos sociais, e
os partidos de oposição preocuparam-se em lançar candidatos populares.
Foi nesse contexto que surgiram candidaturas originárias do movimento
negro e do movimento de favelas.
Tive a oportunidade de fazer a campanha em conjunto, sobretudo, com
duas irmãs faveladas: Benedita da Silva e Jurema Batista. De um lado, a
profunda consciência dos problemas e das necessidades concretas da
comunidade; de outro, a consciência da discriminação racial e sexual
como articulação da exploração de classe. A troca de saberes/experiências
foi extremamente proveitosa para ambos os lados; e o ponto de
entendimento comum foi justamente a questão da violência policial contra
a população negra. No final da campanha nossas falas estavam
inteiramente afinadas, apesar das diferenças individuais. A despeito da
inexperiência nesse terreno, vivenciamos situações de extrema riqueza
política e pessoal.
Apesar dos resultados negativos para ambos os movimentos, e
justamente por isso, exigiram de nós uma avaliação conjunta da atuação
dos candidatos negros dos partidos de oposição no processo eleitoral. Daí
em diante, os dois movimentos passaram a ter uma atuação mais unitária.
Alguns exemplos são bastante significativos: a presença de faveladas no
Encontro de Mulheres, promovido pelo Grupo de Mulheres Negras do Rio
de Janeiro (março de 1983); a cobertura e divulgação de eventos do
movimento negro pelo jornal do movimento de favelas, O Favelão; a
criação de uma vice-presidência comunitária na estrutura do Instituto de
Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), e assim por diante. Nessa linha de
trabalho – mediante a articulação do movimento de favelas, do movimento
de mulheres e do movimento negro –, Benedita da Silva tomou a iniciativa
de organizar o I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferia em julho de
1983. Pelo exposto, fica evidente que novas perspectivas se abriram para
ambos os movimentos.
É nesse contexto que se inscreve a criação do Nzinga – Coletivo de
Mulheres Negras, no dia 16 de junho de 1983, justamente na sede da
Associação de Moradores do Morro dos Cabritos, por um grupo de
mulheres originárias sobretudo do movimento de favelas (MF) e do
movimento negro (MN): Jurema Batista (MF), Geralda Alcântara (MF),
Miramar da Costa Correia (Movimento de Bairros – MB), Sonia C. da
Silva (MF), Sandra Helena (MF), Bernadete Veiga de Souza (MF), Victoria
Mary dos Santos (MN) e Lélia Gonzalez (MN). Em meados de julho
daquele mesmo ano, a companheira Jurema Batista (fundadora e
presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí) seguiu para
Lima como delegada do Nzinga, para o II Encontro Feminista da América
Latina e do Caribe, ao lado de duas representantes do Grupo de Mulheres
Negras do Rio de Janeiro. A atuação dessas companheiras foi de tal ordem
que conseguiram que fosse criado um comitê anti-racismo no Encontro.
Pela primeira vez na história do feminismo negro brasileiro, uma favelada
representava, no exterior, uma organização específica de mulheres negras.
Somos um Coletivo: não aceitamos que a arbitrariedade de uma hierarquia autoritária determine
nossas decisões, mas que elas sejam o resultado de discussões democráticas. Somos um Coletivo
de Mulheres porque lutamos contra todas as formas de violência, ou seja, lutamos contra o
sexismo e a discriminação sexual. Somos um Coletivo de Mulheres Negras: além do sexismo,
lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e
mais oprimido da sociedade brasileira […]. Nosso objetivo é trabalhar com as mulheres negras de
baixa renda (mais de 80% das trabalhadoras negras), que vivem principalmente nas favelas e nos
bairros de periferia. E por quê? Porque são discriminadas pelo fato de serem mulheres, negras e
pobres.
Esse é um trecho de um panfleto distribuído no dia 25 de março de 1984
no Morro do Andaraí, onde o Nzinga organizou, em um só evento, a
comemoração do 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e do 21 de
março (Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial). No
mesmo panfleto também dizíamos quem foi Nzinga e explicávamos o
significado das duas datas.
A escolha do nome de Nzinga está relacionada com a preocupação de
resgatar um passado recalcado por uma “história” que só fala de nossos
opressores. E a famosa rainha Jinga (Nzinga) teve importante papel na luta
contra o opressor português em Angola. O pássaro que usamos como
símbolo tem que ver com a tradição nagô, segundo a qual a ancestralidade
feminina é representada por pássaros. E nossas cores também são
simbólicas: o amarelo está ligado a Oxum; o roxo, com o movimento
internacional de mulheres.
Para encerrar, gostaria de prestar homenagem a uma grande
companheira do movimento negro (pertencíamos ao mesmo grupo, o
Luiza Mahin, quando militávamos no MNU) que vem desenvolvendo um
trabalho da maior importância com seus companheiros e companheiras de
profissão. Refiro-me a Zezé Motta, que, coerente em sua militância de
mulher negra, fundou o Centro de Documentação de Artistas Negros
(Cidan), inclusive para desmascarar a história de que “não existem atores
negros” (justificativa até para certos atores de respeito se pintarem de
preto) e, fundamentalmente, para registrar de forma devida a história
passada e presente dos artistas negros. Trata-se de um trabalho cujos
efeitos só podem trazer benefícios para os negros que trabalham num setor
profissional de caráter altamente discriminador do ponto de vista racial.
Pelo exposto, evidencia-se que nossa preocupação quanto à
participação das mulheres negras focalizou especialmente aquelas que
atuam no movimento negro. O trabalho desenvolvido pelas mulheres
negras nas associações de moradores, contudo, tanto de favelas quanto de
bairros periféricos, registra uma história de lutas heróicas cuja análise não
poderíamos fazer aqui por questões de espaço e de tempo.
Conseqüentemente, terá de ser feito em outro texto, dada a riqueza de
elementos a ser apresentados para nossa reflexão.
Axé Ngunzo, Muntu!
Apêndice - Carta-denúncia
Numa sociedade onde a divisão racial e sexual do trabalho faz dos negros e das mulheres
trabalhadores de segunda categoria no conjunto dos trabalhadores já por demais explorados
(afinal, sobre quem recai o peso da recessão?); numa sociedade onde o racismo e o sexismo,
como fortes sustentáculos da ideologia de dominação, fazem dos negros e das mulheres cidadãos
de segunda classe, não é difícil visualizar a terrível carga de discriminação a que está sujeita a
mulher negra.
A dimensão racial impõe-nos uma inferiorização ainda maior, já que sofremos, como as outras
mulheres, os efeitos da desigualdade sexual. Na verdade, ocupamos o pólo oposto ao da
dominação, representado pela figura do homem branco e burguês. Por isso mesmo, constituímos
o setor mais oprimido e explorado da sociedade brasileira.
Apesar de um pequeno contingente da população feminina negra (aproximadamente 17% antes
da atual recessão) fazer parte de alguns setores da classe média, é justamente daí que surgem as
denúncias de situações em que a discriminação racial e sexual exerce sua violência. Por issomesmo, seu registro e divulgação pelos meios de comunicação de massa são um tanto quanto
esporádicos e, daí, tão chocantes para a “opinião pública”. Quem não se recorda do acontecido
com a repórter de televisão Glória Maria ou com a cantora Leci Brandão? Uma impedida de
entrar num hotel; outra, no edifício onde morava uma amiga que ela fora visitar, acompanhada
de sua mãe.
Sofrendo os efeitos dos estereótipos racistas e sexistas da patriarcal “democracia” brasileira, essas
mulheres negras de classe média a eles reagem, exigindo a aplicação da inócua lei Afonso
Arinos, tanto numa iniciativa individual quanto na busca do apoio de instituições como a OAB, a
Comissão de Direitos Humanos ou do Movimento Negro. Nesse último caso, fica mais ou menos
evidente a consciência de que a violência e humilhação por elas sofridas não são uma exceção.
Vejamos alguns exemplos significativos:
a. No dia 31/1/84, Aglaete Nunes Martins (solteira, advogada) foi arrastada para fora de um
ônibus por policiais da PM que efetuavam uma “blitz” naquele veículo e “delicadamente”
conduzida até a 15ª- Delegacia (Gávea). Seu “delito” foi o de ter indagado a um dos
policiais por que eles só revistavam cidadãos negros.
b. No dia 21/1/84, um jornal local de televisão noticiou um caso de discriminação de uma
mulher negra que fora levar sua filha para visitar uma amiguinha num edifício da rua
Domingos Ferreira, em Copacabana.
c. Vejamos o que aconteceu a Alzira Fidalgo (casada, funcionária pública e membro do
Teatro Profissional do Negro), segundo seu próprio relato ao Exmo. Dr. Delegado da 10ª-
Delegacia de Polícia (Botafogo): “Na sexta-feira passada, dia 23 de dezembro, às
15h30min, aproximadamente, fui acusada de ladra quando passava por uma das caixas das
Lojas Brasileiras – filial Rio Sul – pela funcionária D. Rachel, [que] ordenou que parasse
todo o movimento de caixas e me obrigou a revirar bolsas e pacotes para encontrar uma
nota de compra de um brinquedo ‘Tamanduá Tatá’ que eu havia pago momentos antes na
caixa nº 48, porém como a pressão em volta era grande demais, pois a essas alturas um
grande número de pessoas já nos esperava, enquanto eu chorava de nervoso e vergonha,
cheguei até a urinar nas calças; as notas estavam na bolsinha canguru que eu conduzia na
cintura, mas no momento eu não lembrava, enquanto D. Rachel, se aproveitando do meu
desespero, fazia ironias e acusações; a essas alturas eu senti que as pessoas em volta já
acreditavam nas afirmações dela e tive medo de ser linchada antes de ir parar no Distrito;
foi quando me lembrei de consultar a moça da caixa 48 que confirmou prontamente que
aquelas compras eu já havia pago; em seguida me lembrei da bolsinha canguru e
finalmente encontrei as notas […]”.
d. No dia 8/6/83, Cíntia, adolescente negra, conversava com um coleguinha na entrada do
prédio onde mora (rua Visconde de Morais, nº 167/702 – Ingá – Niterói). O síndico
chegou e começou a dizer que ela era responsável por toda a sujeira do prédio etc. etc.
Quando Cíntia avisou-lhe que relataria suas ofensas à sua mãe, Regina Coelli Benedito dos
Santos (desquitada, professora de Física e Matemática), este revidou, ofendendo […]
Regina (“negra safada, negra suja, ela tem mais é que sair daqui e morar na favela” etc.).
Segundo esse “cavalheiro”, negro, homossexual e mulher sozinha não prestam e não podem
residir nos mesmos locais em que vivem as “pessoas de bem”.
Por isso, nós do Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras viemos a público denunciar as práticas
racistas e sexistas a que nossas irmãs e companheiras (Regina e Alzira são militantes negras)
foram submetidas, solidarizando-nos com elas e prestando-lhes todo o nosso apoio.
Todavia, não podemos silenciar quanto à violência cotidiana da exploração econômica e da
opressão racial a que estão expostas milhares de Glórias, Marias, Lecis, Aglaetes, Alziras e
Reginas da vida. Do fundo do poço do seu anonimato – nas favelas, na periferia, nas prisões, nos
manicômios, na prostituição, na “cozinha da madame”, nas frentes de trabalho nordestinas –
talvez nunca tenham ouvido falar de direito, de cidadania, mas têm consciência do que significa
ser mulher, negra e pobre, ou seja, viver acuada, à espreita do próximo golpe a ser recebido,
vigiando-se e “saindo de cena” para não ser mais ferida do que já é, quando se trata de diferentes
agentes da exploração, da opressão e também da repressão. Significa jogar-se inteira no
desenvolvimento das chamadas “estratégias de sobrevivência”, dia após dia, hora após hora, sem
deixar, no entanto, de apostar na vida. As conhecidas histórias de Carolina Maria de Jesus, Marli
Soares Pereira e Francisca Souza da Silva aí estão, como testemunhos comoventes do que
significa ser mulher, negra e pobre.
Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1984.
Axé Muntu!
Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras
NOTAS
a | Este texto foi elaborado para o curso do Ipeafro com base em trabalhos apresentados pela
autora em conferências internacionais como African American Political Caucus (Morgan State
University, Baltimore, 1984) e Latin American Studies Association (Pittsburgh, 1979) e
publicado na revista do Ipeafro, Afrodiáspora, n. 6-7, 1986, p. 94-106.
1 | Atual ensino fundamental.
2
GRANDES MÃES, REAIS SENHORAS
Gizêlda Melo Nascimento
É sabido que o que não se discute não constitui um problema. Então, o
Brasil é realmente o celeiro de uma “democracia racial”, modelo e
exemplo a ser seguido por nações de constituição multirracial. E, se não
constitui um problema, vivemos no paraíso. Gilberto Freyre deixou-nos o
legado. E o mito exibe sua eficiência quando nenhum postulado, por mais
legítimo que seja, ou estudo, por mais coerente que seja, conseguem
derrubá-lo definitivamente. Debates espocam lá e cá – sobretudo nos
movimentos militantes da causa negra – sem, entretanto, sensibilizar de
forma sistematizada e organizada a sociedade em seu todo. Restringem-se
essas discussões a espaços reduzidos, a um público pouco numeroso, não
conseguindo mobilizar um contingente representativo. Sussurramos,
apenas, nos becos e vielas de um espaço social discriminador; detentor,
porém, de um discurso democrático irretocável, indiscutível.
Transcorridos sessenta anos desde a publicação de Casa-grande &
senzala, de Gilberto Freyre, o mito permanece atuante. Sua versão
atualizada configura-se, hoje, na mulata tipo exportação, novo produto
brasileiro na praça; antes eram exportados açúcar, ouro, café etc., hoje se
exportam corpos: o novo ciclo de comercialização, a mais recente
retificação da mulher de cor.
É interessante notar que a obra de Freyre surgiu na mesma época em
que se discutia no Brasil a implementação de um projeto eugênico. As
ferramentas deste, segundo estudos de Nancy Leys Stepan, incluíam o
controle da natalidade, a segregação e a esterilização daqueles
considerados ineptos. Não é preciso muito esforço para apontar os
considerados ineptos do ponto de vista racial. Higiene, aqui, deve ser
interpretada como a limpeza do sangue e o embranquecimento da
população, pois quando se trata de melhorar uma raça (como se no Brasil
houvesse raça pura) não se cogita avermelhá-la, amarelecê-la ou enegrecê-
la; o branco é o parâmetro, a verdade única e indiscutível. A
imponderabilidade do discurso dominante – e, repetimos, ainda atuante –
faz que experimentemos a situação esquizofrênica de ser tecidos por um
discurso que contraria nossa condição de fato. A “democracia racial”
convive com a discriminação configurada na distribuição de espaços
sociais; e sabemos quem ocupa que espaço. Não é necessário perguntar de
que cor é a favela, qual é a cor da dor de ser pobre e discriminado nesta
sociedade que tem festividades democráticas mas não consegue retirar dos
esgotos todo o entulho de uma prática ainda escravagista.
A voz do outro e a nossa vez
A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso
democrático racial, insere a mulher negra num contexto que
denominaríamos aqui como espaço da falta. Sofrendo uma tripla
discriminação – racial, social e sexual –,a mulher negra, numa sociedade
racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no que se
refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representativos do
país. O silêncio em que vem envolvida sua figura e a ausência quase total
de sua representação social evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em que
está assentada nossa sociedade. A presença da mulher negra irrompe em
situações esparsas e instantâneas nos meios de comunicação, em
momentos-chave nos quais a omissão de sua presença comprometeria o
mito da “democracia racial”. O carnaval é um exemplo. Nesses momentos,
o que se percebe é a imagem estereotipada, sistematicamente deformada
pela lente do “outro”.
O rebaixamento e a anulação da representação da mulher negra, desde
sua chegada em terras americanas e em especial em terras brasileiras,
terão alguns avatares, a nosso ver, definidores de sua sujeição: estes
passarão sempre pela isotopia do corpo ligado à sexualidade. Num
primeiro momento do desterro, seu corpo é visto como um instrumento de
trabalho – melhor diríamos como ferramenta, melhor ainda como besta de
carga –, além de como um objeto que contém uma cavidade onde um
senhor mais que civilizado, civilizador, vai penetrá-la com um, entre os
inúmeros, instrumento de submissão. A satisfação sexual do senhor
garantida, a mulher negra como cavalgadura da sociedade brasileira. Os
estupros, prática natural e consentida, correndo às soltas nestas terras de
homens mais que cristianizados, cristãos. Discurso para um lado, prática
para o outro.
Num segundo momento, a mulher negra sofre um segundo avatar: de
cavalgadura a matriz de crias para a servidão, o acoplamento de um
homem e uma mulher em que o grande beneficiado será o senhor. Fornicar
e reproduzir passa a ser, então, um negócio vantajoso. Eis um dos projetos
brasileiros para a estabilidade econômica do sistema: a reprodução perde
sua função de perpetuação da espécie para tornar-se reduplicação de
corpos anônimos.
Chegamos, enfim, à “Abolição da Escravatura” e aportamos no início
do século XX. O que fazer com essa “carga” recém-liberta? A ciência vem
em nosso socorro, e seu discurso em voga será determinante para os
caminhos políticos e sociais do país. A palavra de ordem é sanear. As
idéias de saneamento social trazidas da Europa assumem outras feições
nessas terras de transfigurações mágicas. Sanear recebe outras conotações,
uma delas reverenciando o mito da democracia social que cai como uma
luva para legitimar as primeiras discussões em torno das relações raciais
no Brasil. Em terras brasileiras, sanear passa a significar embranquecer,
tendo como argumento, claro, a suposição da superioridade “branca”. É o
que se vê: a mulher negra travestida na imagem tão alienante quanto
folclórica da mulata sensual (para deleite de olhares turísticos),
devidamente eugenizada, orgulho de um país que decanta sua “democracia
racial” em detrimento de a representatividade do negro ter desaparecido da
esfera social brasileira. A mulata tipo exportação é a mula sobre a qual se
cavalgam discursos mais que operantes, imperantes e imperiosos.
Três avatares, três reificações. Corpos anônimos em intermináveis
transformações, sempre pejorativas, manipulados ontem e hoje, quando
alcançamos o terceiro milênio. Milenares servidões. Corpos indesejáveis,
porém utilizáveis. De besta de carga a cavidade agradável para o cio do
senhor, depois a reprodutor de crias e, por fim, a objeto “exótico” para a
delícia de olhos e de outras exigências dos turistas. O corpo da mulher
negra ao largo de si mesmo.
Essa breve explanação da representação da mulher negra ao longo do
processo histórico, retratando a forja a que foi submetido seu corpo como
mecanismo de introjeção de uma tripla inferioridade, reflete apenas um
lado da questão, aquele determinado pelo mando. Há, entretanto, vozes na
contracorrente formando, subterraneamente, um contradiscurso. Vozes
tecidas não nos palcos dos discursos brilhantes, mas sussurradas nos
bastidores do cenário brasileiro – espaço em que, mesmo encurralada
socialmente, essa mulher consegue manifestar-se e inscrever-se
individualmente como figura capaz de interferir na formação de
pensamentos e hábitos e determinar condutas. Mulheres tecendo-se na
contra-história ou na história dos desvios; momento em que seu corpo sai
da petrificação imposta e ganha movimento; momento em que a voz se
descongela e abre vias alternativas para veicular sua palavra, destoando do
mando do mestre; momento em que o corpo, não mais reificado, abre-se
para a criação, recuperando sua identidade e sua inteireza. Essa forma de
sobrevivência de sua representação produzirá particularidades que
influenciarão a formação familiar em que essas mulheres estiverem
insertas.
Mulheres-faróis em foco
Gostaria de citar Autran Dourado, mais precisamente o narrador de A
barca dos homens, quando, logo após a morte do personagem/protagonista
seguida do nascimento de uma criança num lugar denominado Beco das
Mulheres, comenta num ímpeto de impaciência: “Esta raça não acaba
nunca!” Trata-se da morte de um homem negro seguida do nascimento de
uma criança também negra. O grito novo saído do beco. A raça, embora
submetida a inúmeros processos camuflados de extermínio, insiste ainda
em incomodar; e resistirá sempre em becos, vielas, favelas, em qualquer
gueto social onde for jogada. O beco conotando o espaço de exclusão
social onde vidas e vozes fervilham e proliferam à margem da esfera
socialmente reconhecida; o beco conotando também um grande útero onde
vidas negras são inesgotavelmente concebidas apesar da corrente e contra
ela. As vias de sempre novos nascimentos. Espaço de vias e vidas
desviadas, alijadas pela cortante e (cor)reta linearidade histórica. Vozes
fora da rota da ocidentalizada sociedade brasileira.
A criança nascida receberá princípios e educação de várias mulheres,
suas iniciadoras. Essa é a formação natural da criança negra quando a
família vai além da fronteira da consangüinidade e a imagem da mulher se
fixa representando a orientadora e a responsável pela formação da família.
Nesse contexto, Freud e sua teoria sobre o “complexo de Édipo” merecem
uma revisão mais cuidadosa, uma vez que em muitos casos a criança
negra, por tradição e/ou imposição histórica, ou ainda por contingências da
vida, não vivencia a experiência da organização familiar triangular em que
a figura paterna, de forma efetiva ou simbólica, é o parâmetro para
estabelecer condutas e princípios, a mãe aparecendo apenas como reforço
ou duplo dessa imagem.
Édouard Glissant (1981, p. 98), escritor e sociólogo martiniquenho,
avaliando a formação das famílias negras de seu país, esclarece:
A criança martiniquenha não vivencia as relações parentais como realmente conflituais. A
rivalidade pai–mãe não se inscreveu nesse movimento contraditório que “compôs” a estrutura
familiar.1
Glissant, num jogo interessante de palavras e com referência à obra
clássica do século XX francês2, estabelece uma diferença fundamental
entre a literatura européia e a americana emergente. Para a primeira, o
maior objetivo é buscar o temps perdu [tempo perdido], enquanto para a
segunda a busca é do temps éperdu [numa tradução livre, o tempo triturado
ou esgarçado]. A diferença se estabelece porque, como literatura da
cultura dominante, a européia pode se dar ao luxo de mergulhar no tempo
de seu passado, “perdido” do ponto de vista da subjetividade. O tempo do
colonizado – no caso, dos povos indígenas, dos africanos escravizados e de
seus descendentes nas Américas –, ao contrário, não se perde. É triturado
ou esgarçado pelo processo colonial e pelo racismo, por meio do massacre
físico, da repressão e do genocídio, conceito que inclui a tendência de
destruir ou apagar os referenciais da matriz cultural de um povo. Essa
perda é objetiva e substancial, incidindo sobre a subjetividade de maneiras
profundamente distintas.
A avaliação de Glissant contextualiza o Brasil e toda a América,
sobretudo a latina, inclusive com referência ao conceito de família

Continue navegando

Outros materiais