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FUNARI, P. P. A. (Org.) ; PELEGRINI, S. (Org.) ; RAMBELLI, G. (Org.) . Patrimônio cultural e ambiental: questões legais e conceituais. São Paulo: Annablume, 2009. v. 1. 246p . Pedro Paulo A. Funari Sandra Pelegrini Gilson Rambelli (organizadores) Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais. 2008 Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais. 2008 Dedicamos essas reflexões aos nossos filhos – geração futura – que vêm somar forças conosco na luta pelo respeito à diversidade cultural! E também para todos que partilham a preocupação com a defesa do patrimônio cultural da humanidade e se empenham na proposição de políticas de proteção dos bens culturais materiais e imateriais das mais diversas culturas e povos. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PARTE I - A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO. OS BENS CULTURAIS MATERIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: A REPATRIAÇÃO E A LEI DOMÉSTICA - Robert K. Paterson. O PATRIMÔNIO EM CUBA E NO BRASIL - Lourdes Domínguez e Pedro Paulo Funari. A IMPORTÂNCIA DO ANEXO DA CONVENÇÃO DA UNESCO SOBRE A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO ARQUEOLÓGICO - Pilar Luna Erreguerena. PATRIMÔNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO NO BRASIL: DISCREPÂNCIAS CONCEITUAIS, INCONGRUÊNCIA LEGAL - Gilson Rambelli. PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO, PÓS-COLONIALISMO E LEIS DE REPATRIAÇÃO - Lúcio Menezes Ferreira. PARTE II – A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL. A SALVAGUARDA E A SUSTENTABILIDADE DO PATRIMÔNIO IMATERIAL BRASILEIRO: IMPASSES E JURISPRUDÊNCIAS – Sandra C. A. Pelegrini. USOS LEGAIS DO PATRIMÔNIO: AS CARTAS INTERNACIONAIS E AS LEGISLAÇÕES NACIONAIS - Suzanna Sampaio. A UNESCO E O BRASIL: TRAJETÓRIA DE CONVERGÊNCIAS NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL - Jurema Machado. O PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO EUROPÉIA: ORIGENS E HERANÇAS. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS REIVINDICAÇÕES IDENTITÁRIAS - Glaydson J. da Silva PARTE III – O ESTATUTO JURÍDICO E A PROTEÇÃO AOS BENS NATURAIS O PATRIMÔNIO NATURAL NO BRASIL - Carlos Fernando de Moura Delphim. “MINHA TERRA TEM PALMEIRAS”: PAISAGEM, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE NACIONAL - Gilmar Arruda. AS NORMATIVAS REFERENTES AO MEIO AMBIENTE E OS CAMPOS DE AÇÃO DA ARQUEOLOGIA - Aline Vieira de Carvalho. O PATRIMÔNIO NATURAL SOB PROTEÇÃO. A CONSTRUÇÃO DE UM ORDENAMENTO JURÍDICO - Wagner Costa Ribeiro e Silvia Helena Zanirato. SOBRE OS AUTORES. INTRODUÇÃO O mundo passou por mudanças notáveis, nas últimas décadas. Desde o final do século XVIII, o passado foi erigido como patrimônio a partir do nascente conceito de estado nacional, fundado na homogeneidade. O patrimônio ligava-se à noção de compartilhamento de uma origem, um território e uma cultura. O século XX viria a alterar este quadro, com a introdução dos movimentos sociais e sua dissolução dos desgastados preceitos que não davam conta da diversidade social. Os modelos normativos de interpretação das sociedades foram, neste contexto, criticados, em benefício da valorização da diversidade humana e natural. Este volume insere-se nestas inquietações. A par da descoberta de novas centralidades e da expansão da noção de patrimônio, superamos os enfoques que reconheciam o patrimônio apenas no âmbito histórico, circunscrito a recortes cronológicos arbitrários, permeados por episódios militares e personagens emblemáticos. Assim, paulatinamente, passamos a contemplar as dimensões testemunhais dos bens culturais e a perceber sua ascendência sobre as identidades individuais e coletivas. Sob essa ótica, o patrimônio passou a ser reconhecido no âmbito das construções sócio-históricas culturalmente engendradas – pressupostos que ratificaram a ampliação das iniciativas legais, antes restritas apenas à proteção dos bens relacionados aos interesses dos segmentos sociais dominantes quase sempre circunscritos à preservação de prédios públicos e religiosos. Esse novo leque de possibilidades viabilizou a proteção de edificações inseridas nas atividades do cotidiano das populações como mercados públicos, terreiros de candomblé ou estações de trem, entre outros, incluindo-se também nesse rol as produções contemporâneas e bens culturais de natureza intangível, como expressões, conhecimentos, práticas, representações e ofícios tradicionais. Tal proposição acabou por valorizar a noção de conjunto de sítios mistos que envolvem os bens naturais, histórico- culturais e arqueológicos, bem como a superação de visões fragmentadas e autônomas do patrimônio. A despeito dessa forma de abordagem, continuam revelvantes as ponderações do consultor da Unesco Hugues de Varine Boham, prolatadas na década de 1970, ao assinalar que o patrimônio se apresenta dividido em três grandes grupos. O primeiro deles refere-se ao meio ambiente. O segundo engloba a produção intelectual humana armazenada ao longo da história. O último agrega os bens culturais resultantes do processo de sobrevivência humana. Por essa via, são reconhecidos três tipos de sítios patrimoniais: os naturais, os culturais e os mistos. Os sítios naturais são constituídos por formações físicas, biológicas ou geológicas excepcionais, habitats animais, vegetações e áreas científicas, históricas ou esteticamente valorizadas. Os sítios culturais englobam bens materiais e imateriais referentes às identidades, às ações e às memórias dos diferentes grupos da sociedade humana, manifestos através de distintas formas de expressão; criações científicas, artísticas e tecnológicas; objetos, documentos, edificações, paisagens culturais, conjuntos urbanos, sítios históricos, e arqueológicos de superfície ou subaquáticos. Os sítios mistos reúnem tanto os elementos naturais como os culturais. São inegáveis os avanços conceituais e metodológicos no campo da proteção aos bens patrimoniais alcançados no decorrer do século XX, ainda assim, inúmeros exemplares da cultura material e imaterial, da paisagem natural e cultural continuam sendo ameaçados por falhas nas estratégias de proteção e problemas que se agravam em função das dificuldades de fiscalização e da lentidão na tomada de decisões por parte das instâncias decisórias do poder constituído. Não raro, verdadeiros monumentos com inscrições e pinturas rupestres, testemunhos de diferentes sociedades pretéritas, são destruídos pela ação implacável do tempo, pela ambição desmedida de empresas de capital público e privado, e também, pelo incauto comportamento de turistas que deixam suas marcas por onde passam. A carência de prospecções prévias sobre o impacto arqueológico, ambiental e histórico de empreendimentos imobiliários ou extrativistas, somado a falta de informação por parte das populações residentes em áreas próximas dos sítios, também representam ameaças à conservação do meio circundante e da cultura material e imaterial. Diante da urgência da proteção dos bens patrimoniais da humanidade constatamos a imperiosa necessidade de propor uma análise introdutória às questões atinentes as esferas do Direito no âmbito do patrimônio cultural, arqueológico e ambiental. Desse modo, o objetivo do livro “Patrimônio Cultural e Ambiental: questões legais e conceituais” centra-se numa abordagem direta e inteligível sobre os impasses conceituais e jurídicos que envolvem os bens patrimoniais. Com o intuito de alcançar um público mais amplo, não restrito aos especialistas, ambicionamos introduzir o leitor num universo ainda pouco conhecido em nosso meio, mas cuja temática é extremamente atual. O leitor encontrará nesse volume, tanto as definições cruciais sobre cultura material e imaterial, como as referências essenciais às discussões contemporâneas sobreas temáticas da arqueologia pública e do ambiente relevantes em tempos de globalização econômica e de aquecimento global – fenômenos que, de uma forma ou de outra, ameaçam o equilíbrio do planeta, o patrimônio cultural e as múltiplas identidades da nossa civilização. Entendemos que o equacionamento de diversos saberes como os da História, do Direito, da Antropologia, da Arqueologia, da Geografia e da Ecologia nos possibilitaram explicitar as articulações entre os bens culturais e naturais das mais distintas comunidades, suas histórias, memórias, identidades e os meios dessa população se relacionar com o ambiente e com a paisagem cultural. Esse propósito não deixa dúvidas sobre a importância de enfrentarmos as questões supracitadas e se coloca como prerrogativa para o desenvolvimento de debates sobre a construção de discursos plurais, capazes de reconhecer o imperioso empenho no sentido de fomentarmos o respeito à natureza, à diversidade e às diferenças culturais. Logo, com o propósito de suscitarmos reflexões críticas sobre o fenômeno da patrimonização e as questões do ambiente estruturamos o presente volume em três grandes blocos. No primeiro deles, nos ocupamos da proteção à cultura material dos povos indígenas, das questões que envolvem os sítios arqueológicos e do patrimônio cultural subaquático, bem como da institucionalização da cultura material com fins políticos e empresariais. No segundo, tratamos das normativas internacionais e da legislação brasileira referente ao patrimônio cultural, avaliando de que maneira as políticas preservacionistas têm garantido a proteção e a sustentabilidade do patrimônio cultural. Por último, analisamos o estatuto jurídico relativo à proteção das reservas da bioesfera e ao manejo de parques ecológicos e sítios que apresentam vestígios da cultura material, a conceituação de distintas paisagens (naturais, culturais e arqueológicas) e o processo de tombamento dos bens naturais brasileiros. Para tanto, contamos com a colaboração de experientes profissionais que têm se dedicado à proteção dos nossos bens patrimoniais. Assim, cumpre-nos destacar a aquilatada colaboração de Robert K. Paterson - professor da Faculdade de Direito, da University of British Columbia (Vancouver, Canadá); de Lourdes Domínguez, da Oficina do Historiador (Havana – Cuba) e Pilar Luna Erreguerena – do Instituto Nacional de Antropologia e História (México). Devemos salientar o desprendimento de Carlos Fernando de Moura Delphim, profissional que atua no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS); Jurema Machado, coordenadora de Cultura da sede da Unesco em Brasília; Suzanna Sampaio, advogada especialista em Criminologia e Direito Penal pela USP, conselheira do IPHAN e Presidente de Honra do ICOMOS/BRASIL desde 2002. Não obstante, igualmente valiosas, foram as contribuições dos colegas que atuam como docentes e pesquisadores em diversas instituições do ensino superior no Brasil, como Aline Vieira de Carvalho, Lúcio Menezes Ferreira, Glaydson José da Silva, Gilmar Arruda e Wagner Costa Ribeiro. O caráter introdutório do presente volume nos impeliu ao trato de conceitos essenciais que regem as normativas internacionais sintetizadas em documentos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH), do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), entre outros. Além disso, procurarmos, na medida do possível, analisar a trajetória da legislação brasileira nessas esferas. Por fim, almejamos suscitar o interesse pelo patrimônio cultural e natural nas suas mais distintas dimensões. Em tempos de globalização torna-se fundamental difundir o conhecimento plural sobre os conceitos, as normativas, as convenções internacionais e as legislações, de modo a viabilizar iniciativas no sentido da preservação das tradições e dos saberes populares, da cultura material e imaterial, do patrimônio arqueológico e ambiental. Pelo acesso à informação, multiplicamos as ações em defesa desses patrimônios da humanidade e nos tornamos capazes de revisitar antigas práticas (cujo fundamento reside em visões etnocentristas) e de nos opormos às pressões que tendem a destruir a riqueza da diversidade cultural da humanidade. Sandra C. A. Pelegrini Pedro Paulo A Funari Gilson Rambelli PARTE I A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO. OS BENS CULTURAIS MATERIAIS DOS POVOS INDÍGENAS: A REPATRIAÇÃO E A LEI DOMÉSTICA. 1 Robert K. Paterson O destino da cultura material dos povos indígenas evoca dois diferentes cenários. Museus ocidentais e galerias de arte contêm vastas coleções de material etnográfico indígena expatriado, bem como de outros materiais, majoritariamente coletados no exterior durante o período colonial. Em muitos países, as populações indígenas apenas podem ter acesso às evidencias materiais de seu passado cultural ao visitar tais instituições. Em ambas as situações, os representantes indígenas têm buscado um maior acesso a estas coleções e, algumas vezes, têm reivindicado a posse dos objetos que elas contêm. Estes fenômenos serão analisados aqui de forma comparativa com o objetivo de se avaliar abordagens divergentes. O Significado de “Povos Indígenas” O atual interesse dos advogados pelo patrimônio cultural dos povos indígenas não tem precedente. Este desenvolvimento tem coincidido com um número maior de esforços para se definir o que se considera como sendo um povo indígena (SANDERS, 1999). Enquanto está claro que um povo indígena pode constituir uma minoria da população de um país, nem todas as minorias são necessariamente indígenas (como os Afro-descendentes nos Estados Unidos). Apesar de um certo nível de consenso, ainda não há uma definição estabelecida do que venha a ser um povo indígena. O propósito de se buscar o status de um grupo indígena é geralmente o de se afirmar direitos coletivos, e não individuais. Algumas definições se focalizam no apego à terra e na vulnerabilidade, enquanto outras olham para a descendência histórica da população mais antiga. Os Aborígines da Austrália e os Maori da Nova Zelândia têm sido aceitos como minorias indígenas, e os países nórdicos tem 1 Este artigo apareceu originalmente como Robert K. Paterson, “Claiming Possession of the Material Cultural Property of Indigenous Peoples” (2001) 16 Connecticut Journal of International Law, 238. Àqueles que desejarem citar este artigo deverão usar a referência do Connecticut Journal of International Law como a fonte original. O autor é grato aos editores do Connecticut Journal of International Law pela permissão de republicar o artigo neste volume. aceitado os Saami como indígenas. Em outras partes, alguns governos (como a China e a Índia) declararam que suas populações “tribais” não são populações indígenas. 2 O Significado de “Patrimônio Cultural” Ao mesmo tempo em que tem emergido o interesse por se definir o que se entende por grupos indígenas, tem havido mudanças no que se considera ser o significado do patrimônio cultural em relação a estes povos. Isto tem sido particularmente evidente desde que os membros vivos de tais grupos têm buscado um maior controle de e um maior envolvimento com suas próprias culturas. Em relação aos povos indígenas, a Sra. Erica-Irene Daes, Presidente do Grupo de Trabalho em Populações Indígenas, descreveu o patrimônio como: “Patrimônio” é tudo o que pertence à identidade própria de um povo e que é deles para compartilharem, se quiserem, com outros povos. Ele inclui todas aquelas coisas as quaiso direito internacional contemporâneo considera como sendo o resultado da produção criativa do pensamento e da capacidade manual do ser humano, tais como canções, musica, danças, literatura, obras de arte, pesquisa científica e conhecimento. Ele também inclui as heranças do passado e da natureza, como os vestígios humanos, as características naturais da paisagem e espécies de plantas e animais que surgem naturalmente e com as quais um povo esteve desde muito tempo conectado. 3 Enquanto os sistemas legais ocidentais tendem a considerar o patrimônio dentro dos termos dos direitos de propriedade e como uma categoria distinta, aparte de outros aspectos da sociedade, os povos indígenas geralmente vêem o patrimônio como um direito que é comunal e que se encontra interconectado dentro da sociedade como um todo. Esta percepção tem produzido desafios para os advogados de todas as partes que buscam modos de proteger o patrimônio indígena dentro de estruturas legais pré-existentes. 4 2 O Professor Sanders definiu os povos indígenas como “uma coletividade que descende da mais antiga população sobrevivente na parte do Estado onde o povo tradicionalmente viveu (seja ainda vivendo nesta área ou, como resultado de re-alocação involuntária, em outra parte do Estado) e a qual tem uma identidade própria associada com sua história”, id, na p. 9. 3 Cf. E-I Daes, “Protection of the Heritage of Indigenous People”, UN Office of the High Commissioner for Human Rights, Geneva (1997), prefácio na página iii. Esta definição claramente se estende para cobrir tanto os bens culturais tangíveis (móveis) quanto os intangíveis (imóveis). O presente artigo irá se concentrar no primeiro tipo. Para uma discussão sobre a diferença entre os termos “bem cultural” e “patrimônio cultural” (PROTT & O’KEEFE, 1992). 4 Este tem sido um desafio particular no caso do patrimônio cultural intangível dos povos indígenas. Cf. "Intellectual Property Needs and Expectations of Traditional Knowledge Holders", World Intellectual Property Organization (WIPO) As Categorias de Culturas Indígenas Para os propósitos desta discussão sobre questões de propriedade e proteção do patrimônio cultural indígena, duas situações distintas serão discutidas separadamente. A primeira compreende instâncias onde as culturas indígenas constituem uma minoria reconhecível em um país particular. Este é o caso em países como a Austrália, o Canadá, os Estados Unidos, a Nova Zelândia, a Indonésia, a Índia, a China e a Federação Russa. Em outro grupo de países, muitos dos quais alcançaram a independência na última metade do século XX, as culturas indígenas podem constituir toda ou uma proporção significativa da população total de um dado país. Esta é a situação em muitos estados na Oceania, na África, no Oriente Médio e em partes da Ásia; países como a Samoa Ocidental, Vanuatu, Fiji, Nigéria, Uganda, Turquia, Tailândia e Birmânia podem ser incluídos nesta categoria. A Repatriação de Bens Culturais Transnacionais Muitos países que foram ex-colônias dos poderes europeus são países em desenvolvimento e é freqüentemente uma característica de sua história que uma quantidade significativa de sua cultura material (incluindo os vestígios humanos) tenha sido tomada de seus territórios durante o período colonial. Este material é agora freqüentemente encontrado em museus estabelecidos e em coleções particulares na Europa, nos Estados Unidos e noutras partes (BARRINGER & FLYNN, 1998). Os bens culturais foram tomados em vastas quantidades, primeiramente por missionários, soldados e exploradores e depois por antropólogos, etnólogos e oficiais do governo. Este movimento enorme de bens culturais freqüentemente se pareceu com aquele que ocorreu entre as nações em guerra na Europa e noutras partes. Tais perdas ainda estão ocorrendo hoje devido à habilidade limitada de muitos destes países em proteger seus sítios culturais e em aprovar leis locais voltadas para o patrimônio cultural (LEYTEN, 1993). Em um país como a Nigéria, por exemplo, grandes quantidades de material cultural indígena foram removidas em tempos coloniais e podem agora ser vistas na Europa, na América do Norte e alhures (GREENFIELD, 1989, p. 141-148). Estes objetos, por causa de sua idade e qualidade artística, Draft Report on Fact-finding Missions on Intellectual Property and Traditional Knowledge (1998-1999). Visto em 3 de Julho de 2000. Disponível em: http://www.wipo.org/traditionalknowledge/report/contents.html . http://www.wipo.org/traditionalknowledge/report/contents.html freqüentemente recebem altos preços quando estão disponíveis para compra no mercado aberto. As prioridades do desenvolvimento e outras forças podem impedir a repatriação por compra. Ainda que coleções de museus locais devam existir, estas devem estar ameaçadas pela falta de recursos para se contratar curadores e conservadores habilidosos, assim como pela inabilidade para se comprar novos objetos (SHYLLON, 2000). Deve haver ainda sítios arcaicos e de outros tipos neste grupo de países que estão ameaçados por escavações não autorizadas e pela remoção dos artefatos culturais. A redescoberta de tais sítios ainda continua a ocorrer hoje em dia. Um bom exemplo é a bem conhecida situação dos sítios arqueológicos em Mali. 5 A coincidência de secas severas e da piora nas condições de vida neste país, junto a uma crescente consciência e interesse pela arte Mali da parte de colecionadores ocidentais, tem produzido uma situação crítica ao longo das últimas duas décadas. Tanto o saque casual quanto o organizado tem causado a degradação da superfície e a perda de dados valiosos sobre a origem e a idade dos objetos saqueados. O governo de Mali tem respondido a estas atividades de forma concreta ao aprovar leis sobre a escavação, comércio e exportação de artefatos culturais, assim como por se tornar um signatário à Convenção de 1970 da Unesco sobre os Meios de se Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência Ilícita da Propriedade dos Bens Culturais. 6 Em 1993, o governo dos Estados Unidos garantiu a aprovação de uma lei restringindo a importação de bens culturais vindos de Mali. 7 Existe um conjunto de barreiras aos esforços feitos pelos países desta categoria que desejam recuperar os objetos levados ao exterior – talvez há dois séculos atrás. Em muitos casos a localização dos objetos em coleções estrangeiras é desconhecida. Esta situação é formada quando os diretores e a equipe de funcionários de instituições estrangeiras podem não estar eles mesmos cônscios sobre o que possuem. Um alto nível de ambigüidade e de falta de informação freqüentemente cerca a aquisição original de material histórico cultural. A natureza singular e complexa dos primeiros contatos entre as culturas indígenas e as culturas imperiais européias faz com que estes eventos sejam difíceis de se interpretar em termos contemporâneos. Deverão ter sido sem dúvida casos de roubo e pilhagem completos neste contexto, mas outras situações documentadas tais como de dádivas, trocas e outros modos de comércio sugerem que títulos legítimos de propriedade podem ter sido conferidos para o material cultural em muitas instâncias. 5 Cf. 28 African Arts (1995), (Edição Especial intitulada “Protecting Mali’s Cultural Heritage). 6 828 UNTS 231 (No. 11806). 7 Cf. 58 Federal Register, 23 de Setembro de 1993, No. 183, p. 49428, na p. 49430. Para uma lista completa dos acordos bilaterais dos Estados Unidos sobre bens culturais, cf.: http://www.exchanges.state.gov/culprop/chart.html. http://www.exchanges.state.gov/culprop/chart.html Outra incerteza diz respeitoà qual lei ou quais leis devem ser aplicadas? Mesmo se se considera que a posse atual de um objeto não corresponde um título legítimo de propriedade, uma reivindicação para a restituição do objeto (replevin) ou para a sua recuperação (conversion) pode ser negada sob estatutos restritivos (BIBAS, 1996). Este problema se parece com aquele que surgiu em um número de casos americanos envolvendo obras de arte roubadas durante a Segunda Guerra Mundial (PATERSON, 1999). Em alguns destes casos julgou-se que o estatuto restritivo deveria funcionar apenas a partir do momento em que o paradeiro dos bens roubados tivesse sido determinado pelo seu dono original. Um tipo de teste de equilíbrio tem sido usado às vezes para se calcular o grau de consciência relativa dos dois lados em uma disputa, quando são conduzidas investigações para se descobrir o paradeiro de um objeto (no caso da vitima de um roubo) ou por causa do fato de ele ter sido furtado (no caso de um comprador bona fide). 8 Este é um exercício suficientemente especulativo no caso de obras de arte perdidas há 50 ou 75 anos atrás, mas ele pode não ser realista em relação aos eventos passados há um século ou mais. Outra abordagem tem sido em declarar que a limitação de períodos não deve ser nunca utilizada, com base em políticas públicas, no caso das reivindicações feitas por povos indígenas. 9 Enquanto certos acordos multilaterais têm definido direitos de recuperação em relação aos bens culturais roubados e ilegalmente exportados, estes acordos não operam retroativamente e, portanto, não podem ser usados em relação à tomada de bens culturais durante os períodos coloniais (SIDORSKY, 1996). Assim, o Artigo 7 da Convenção de 1970 da Unesco declara que a proibição sobre a importação de bens culturais roubados apenas se aplica às importações ocorridas depois da entrada em vigor da Convenção, em relação tanto ao país de exportação (estado origem) quanto ao país de importação (estado mercado). Em um caso, entretanto, uma estratégia jurídica engenhosa conseguiu de fato realizar uma rara repatriação internacional. Quando uma cabeça tatuada Maori (toi moko) foi consignada para um leilão em Londres, o presidente do Conselho Maori Neozelandês buscou por cartas de administração da Alta Corte da Nova Zelândia em relação à venda do defunto. A Corte da Nova Zelândia foi empática sobre o pedido a ela administrado: 8 Cf. Autocephalous Greek-Orthodox Church of Cyprus v. Goldberg Feldman Fine Arts, Inc. 917 F. 2d 278 (U.S.C.A. 7 th Circ.) 9 Cf. Oneida County v. Oneida Indian Nation, 470 U.S. 226, 240-244,1985. “Tem que haver pouco, se algum, dissenso da proposição de que a venda e a compra de vestígios humanos com fins ao lucro e à curiosidade é abominável aos Neozelandeses e, eu espero, para toda pessoa civilizada. Existe uma circunstância macabra na transação proposta, a qual tem alguns dos atributos da necrofilia. Isso sem dizer, é claro, que por razões arqueológicas e outras razões científicas os vestígios humanos não devam ser conservados para estudo e outras considerações. Eu não me esqueço, também, que por razões religiosas os vestígios humanos devem ser reverenciados e retidos para estes propósitos. É o propósito implícito desta situação, a qual, em minha opinião, suscita uma indignação adequada.” 10 A corte concluiu que o defunto era um Maori que tinha morrido na Nova Zelândia por volta de 1820. Ela então concedeu uma administração para constituir um representante pessoal com o objetivo de permitir que os procedimentos legais na Inglaterra impedissem a proposta de venda da cabeça. A real concessão administrativa foi para que se iniciassem os procedimentos legais e se concedesse ao defunto um sepultamento adequado, conforme as leis e costumes Maori (PATERSON, s/d). O resultado do Re Estate of Tupuna Maori representa um poderoso impedimento para qualquer um que tente vender os vestígios ancestrais Maori. Depois da decisão no caso, o Presidente do Conselho Maori Neozelandês buscou por uma injunção na Inglaterra para prevenir a venda da cabeça e ela foi retirada da venda e retornou à Nova Zelândia para o sepultamento. A inabilidade de se reivindicar um título de propriedade para os vestígios humanos sob a lei comum faz a estratégia no caso do Tupuna Maori ter aplicabilidade limitada (DOBSON, 1997). 11 A mera concessão de um título legítimo de testamento também não resolveria a questão das reivindicações que competem sobre a propriedade dos bens móveis. Entretanto, se o roubo de bens culturais ocorreu recentemente, então os procedimentos de recuperação podem ser efetivos. No caso inglês da Bumper Development Corporation, et al v. Commissioner of Police for the Metropolis um numero de requerentes indianos, incluindo um templo e seus ídolos, foram bem sucedidos em recuperar a posse de uma escultura de bronze que se provou ter sido roubada na Índia depois de 1976. 12 O réu foi um comprador bona fide que havia adquirido a escultura em Londres de um negociante. Sob a lei comum inglesa não havia a possibilidade de um tal comprador poder adquirir os direitos de propriedade em detrimento de um dono original. Em casos de roubo recente, os estatutos restritivos normalmente não se aplicam e a evidência dos direitos de propriedade por parte do reclamante é 10 Cf. Re Estate of Tupuna Maori (não noticiado) (Alta Corte da Nova Zelândia) (Wellington, 19 de Maio de 1988). 11 Cf. DOBSON v. North Tyneside Health Authority [1997] 1 W.L.R. 596 (Corte de Apelo), p. 600-601. 12 Cf. 1 W.L.R. 74 (Corte de Apelo), 1991. prontamente disponível. No caso de requisições históricas estas circunstâncias são geralmente revertidas. Mesmo em casos envolvendo bens culturais recentemente roubados uma requisição pode falhar quando a questão do direito de propriedade é governada pela lei de um país (como a Itália) onde um comprador bona fide de objetos de arte roubados pode adquirir em certas circunstâncias os direitos legítimos de propriedade em detrimento do dono original. 13 Objetos culturais que têm sido alocados em museus ocidentais por muitas gerações parecem seguros dentro dos muros destas instituições. As reivindicações legais para a recuperação de tal material são raras, e os retornos que ocorreram geralmente foram feitos como resultado de longas negociações. 14 A Repatriação de Bens Culturais na Lei Doméstica Uma situação diferente emerge quando as reivindicações sobre o patrimônio cultural são feitas por aqueles que representam as populações indígenas nos seus países de origem. Tais reivindicações são feitas usualmente contra instituições ou indivíduos locais e surgem dentro de um contexto puramente doméstico, o qual é desprovido da incerteza e da complexidade de uma reivindicação internacional. Não obstante, tais reivindicações são freqüentemente novidades e são baseadas numa jurisprudência emergente que diz respeito aos direitos indígenas no país em questão. Este é o cenário atual em países como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Nestes países as reivindicações sobre o patrimônio cultural indígena têm ocorrido contra o pano de fundo de uma batalha mais ampla destes povos para garantir seus direitos legais e políticos. Em muitos outros países, entretanto, as minorias indígenas não possuem meios constitucionais de obterem compensação e suas reivindicações podem não ter sido sempre claramente articuladas. Isto se assemelha à situação de países tais como a Índia, o Laos e a Indonésia. Nestes países as questões sobre bens culturais podem não estar sequer na agenda legal e política dos governos locais. É triste e irônico, mas provavelmente verdadeiro, que a coleta estrangeira entre as populações indígenas locais em tais lugares tenha sido freqüentemente uma formaefetiva de proteção para os bens culturais, dado a falta de recursos e práticas locais. Ainda mais irônico é o fato de que é às vezes a cultura material das culturas extintas (como os antigos Egípcios) que recebe mais atenção e proteção do que a das muitas populações indígenas vivas! 13 Para um bom exemplo desta situação veja o caso inglês de WINKWORTH, v. Christies, 1 Ch. 496, 1980. 14 Um exemplo recente de uma tal devolução negociada ocorreu em setembro de 2000 quando o Museu Etnográfico de Estocolmo concordou em devolver um mastro de totem para a Primeira Nação Haisla da Colúmbia Britânica. O mastro tinha sido enviado por navio para a Suécia em 1929 e uma delegação Haisla solicitou a sua devolução em 1991. O mastro chegou na Colúmbia Britânica em abril de 2006. É raro que colecionadores privados de bens culturais estejam sujeitos às reivindicações indígenas pela posse dos seus bens. A razão provável de uma ausência de tais reivindicações é a falta de evidência sobre as circunstâncias que cercaram a aquisição dos objetos de interesse dos antropólogos, colecionadores privados, missionários e museus. Enquanto a influência indevida ou a retirada forçada podem ter caracterizado muitas destas aquisições, isto pode não ser passível de prova. Muitos povos indígenas não guardam nenhum registro escrito e muitos criadores e testemunhas estarão logo mortos há muito tempo. Como discutido acima, estatutos restritivos podem apresentar uma barreira adicional às reivindicações, mesmo se o titulo de propriedade legítimo puder ser provado da parte de um requerente indígena. O segredo que cerca o comércio e a formação de coleções privadas de arte é a explicação usual para a ausência de processos envolvendo proprietários privados de objetos indígenas. Nenhuma jurisdição da lei comum tem experimentado reivindicações significativas em relação aos objetos mantidos privativamente. Um país, a Nova Zelândia, tem estabelecido um sistema para o registro de colecionadores e para a regulamentação das transações por colecionadores e museus envolvendo os artefatos Maori. 15 Sob o Antiquities Act Neozelandês, um sistema para o registro de coleções de objetos Maori anteriores a 1902 está em exercício. 16 Sob este sistema, um colecionador é considerado qualquer um, com exceção de um negociante ou de um museu, que possui um ou mais desses artefatos. Os colecionadores sofrem limitações em suas capacidades para dispor de qualquer parte de suas coleções (como por venda para colecionadores estrangeiros ou não registrados). O efeito dessas regras, junto com uma proibição paralela sobre a exportação de objetos Maori da Nova Zelândia, consiste na criação de um mercado altamente visível e insular para os artefatos Maori dentro do país. O esquema Neozelandês parece funcionar bem, provavelmente por causa do pequeno tamanho e do isolamento do país. Um largo mercado para os objetos Maori existe fora da Nova Zelândia e não é afetado pelas restrições do Antiquities Act sobre os colecionadores privados. É somente uma questão de especulação se o modelo Neozelandês seria efetivo em outros países. Muitos países têm controles sobre a exportação que se aplicam aos artefatos culturais produzidos pelas suas próprias culturas indígenas, mas poucos parecem ter ficado dispostos a ir tão longe na regulamentação de coleções privadas como ficou a Nova Zelândia. 17 15 Cf. Supra, n. 17, p. 114-119. 16 Antiquities Act, 1975 (Nova Zelândia). 17 Uma primeira decisão inglesa sobre a não obrigatoriedade do controle da exportação de bens culturais estrangeiros envolveu a exportação de uma antiguidade Maori da Nova Zelândia (ORTIZ & OTHERS, 1983; PATERSON, 1995). Naqueles países onde os direitos legais das populações indígenas têm sido o foco de um desenvolvimento recente, tem havido um número de estratégias bem-sucedidas para garantir o retorno dos objetos culturais de museus e outras instituições para os representantes indígenas. Para os propósitos da discussão estas estratégias podem ser classificadas dentro de três itens: legislação, negociação e alternativas para a repatriação e o retorno dos objetos. O exemplo mais abrangente de legislação que lida com a devolução de bens culturais para as populações indígenas minoritárias tem ocorrido nos Estados Unidos. Um estatuto federal de 1990 – o Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA) – estipula o retorno, para as tribos americanas e havaianas nativas, de certas classes de objetos culturais, assim como de vestígios humanos, conforme procedimentos prescritos. 18 O alcance da lei se estende para as agências federais dos Estados Unidos e para os museus que são financiados com verba federal, mas não para os colecionadores privados. Sob o NAGPRA, as agências e os museus devem preparar inventários de vestígios humanos dos nativos americanos e havaianos, assim como dos objetos funerários, objetos sagrados e dos objetos do patrimônio cultural que devem ser repatriados. Concessões federais de verba são colocadas à disposição dos museus e tribos indígenas para este propósito. O retorno imediato dos objetos para os descendentes ou os grupos com a afiliação cultural mais próxima é exigido segundo as solicitações. A repatriação não é exigida de objetos que se mostram serem indispensáveis à conclusão de estudos científicos específicos. Os museus podem reter o material até que reivindicações competidoras sejam resolvidas e são protegidos contra as reivindicações feitas pelas partes lesadas se os objetos são devolvidos de boa fé. Existe uma comissão de sete membros estabelecida para o propósito de resolver certas disputas sob a legislação. O NAGPRA representa uma tentativa bastante ambiciosa de se resolver dentro de um estatuto guarda-chuva muitos dos problemas associados com a repatriação, mas ele é ainda muito recente para ser considerado um sucesso completo. A prova de suficiente afiliação cultural para se reivindicar o material ou a necessidade de se resolver reivindicações competidoras pelo mesmo objeto são apenas duas instâncias que podem provar-se problemáticas sob o esquema do Ato. A solução dos Estados Unidos para a demanda de minorias indígenas pela devolução de seus bens culturais pelos museus e outras instituições não tem sido típica. Em muitos outros países onde uma 18 Public Law No. 101-601, 104 Stat. 3048, aprovada em 16 de Novembro de 1991 (CARTER, 1999; SYMPOSIUM, 1990; NAFZIGER apud BELL & PATERSON). situação similar está presente, o retorno de tais objetos tem ocorrido numa base ad hoc. Existe uma variedade de razões para estas soluções diferentes – políticas, legais, constitucionais e econômicas. O Ministro das Comunicações canadense anunciou, em 1990, um plano de legislação que concernia à proteção da propriedade e à administração de bens arqueológicos encontrados em terreno dentro de jurisdição federal. 19 O plano de lei federal deu posse ao governo nacional (a Coroa federal) de vários bens, como sepulturas, naufrágios e espécimes achados sobre ou sob a terra e perdidos e abandonados por mais de cinqüenta anos (HAUNTON, 1992). A lei estipulava consultas junto aos grupos culturais e religiosos aborígines no caso de objetos recentemente descobertos e estipulava a conclusão de acordos com povos aborígines em relação à propriedade e ao controle de recursos arqueológicos. Apesar das tentativas de se resolver várias preocupações aborígines sobre estas e outras questões do patrimônio, o plano de lei não foi seguido e não se tornou lei. O modelo legislativo representado pelo NAGPRA não tem sido imitado em outras partes. No Canadá, por exemplo, a preferência tem sido por negociar as devoluções dos objetos das Primeiras Nações dentro de uma base ad hoc.A estrutura para tais negociações foi um relatório que pode ser relacionado aos eventos que cercaram uma exposição no Museu Glenbow em Calgary, Alberta, em 1988, e intitulada “O Espírito Canta”. A Primeira Nação do Lago Lubicon se colocou contra a exibição pública de certas máscaras e organizou um boicote à exposição. Alguns grupos Mohawk buscaram então conseguir uma injunção provisória para prevenir a exibição de uma máscara Cara Falsa na exposição. A corte se negou a notificar-se de uma injunção provisória que aguardaria julgamento com base no fato de que, apesar de que a reivindicação por um bem cultural tribal fosse uma questão séria para ser julgada, por outro lado os requerentes não tinham declarado que um dano irreparável seria resultante da exibição continua da máscara (BANDS, 1988). O juiz baseou sua opinião na sua percepção de que a máscara em questão tinha estado em exibição em vários museus por vários anos e nenhuma objeção tinha sido feita a estas exibições. A Assembléia das Primeiras Nações no Canadá então concordou em co-patrocinar uma conferência nacional com a Associação de Museus Canadenses para discutir várias questões relacionadas à relação entre os museus e os povos aborígines. Esta conferência conduziu ao estabelecimento de uma força de tarefa nos museus e nos Primeiros Povos cuja missão era a de desenvolver uma estrutura para uma nova relação entre os museus canadenses e os povos aborígines. 19 Proposed Act Respecting the Protection of the Archeological Heritage of Canada (Ottawa, 1990). A Força de Tarefa sobre os Museus e os Primeiros Povos produziu seu relatório “Virando a Página: Forjando Novas Parcerias Entre Museus e Primeiros Povos” em 1991. 20 Seguindo o fracasso dos esforços para se obter financiamento governamental para se estabelecer um Conselho para Museus e Primeiros Povos, a implementação do relatório foi deixada ao cargo dos museus individuais e à Associação de Museus Canadenses, trabalhando com os grupos aborígines. Em contraste com os EUA, o Canadá não possui um sistema centralizado para administrar e monitorar as recomendações da força de tarefa. Estas recomendações não possuem força legal e sua observância e implementação depende da discrição dos museus individuais e das associações de museus. O relatório da força de tarefa continha recomendações detalhadas em relação à repatriação de bens culturais aborígines no Canadá. O relatório lida separadamente com os vestígios humanos e os objetos do “patrimônio cultural”. Vestígios humanos são separados em três categorias. A primeira é aquela das pessoas cuja evidência sugere que sejam lembradas pelo nome. Estes vestígios devem ser colocados à disposição segundo o pedido das famílias, herdeiros ou clãs. Vestígios humanos que são afiliados por nome a uma Primeira Nação devem ser relatados àquela Nação e devolvidos de modo tradicional em cooperação com o museu. Vestígios humanos e objetos associados de sepultamento que não estão afiliados segundo o sentido mencionado devem ser tratados e colocados à disposição depois de uma consulta entre os museus e os representantes dos povos aborígines. Para o tratamento, uso, apresentação e disposição daquilo que a força de tarefa descreve como os “objetos sagrados e cerimoniais e quaisquer outros objetos do patrimônio cultural”, o relatório da força de tarefa define um número de tratamentos alternativos. O relatório distingue entre os objetos considerados tendo sido “adquiridos ilegalmente” e aqueles “obtidos legalmente”. No primeiro caso, os objetos devem ser devolvidos, juntamente com uma transferência do título de propriedade, para os grupos culturais ou indivíduos originais. No segundo caso, de aquisição presumivelmente legítima, os museus devem negociar com as comunidades aborígines apropriadas dentro de uma base caso a caso, de acordo com a solicitação, a devolução de objetos sagrados e cerimoniais e outros objetos de especial importância, levando em consideração tanto preocupações morais quanto éticas, assim como as considerações de ordem legal. Um outro exemplo canadense de repatriação negociada é propiciado pelo Acordo Final Nisga’a de 1998, entre a Primeira Nação Nisga’a da Colúmbia Britânica e os governos do Canadá e da 20 Cf. Task Force Report on Museums and First Peoples (Turning the Page: Forging New Partnerships Between Museums and First Peoples), 1992. Colúmbia Britânica. 21 Se conjectura que o tratado servirá de precedente para as futuras negociações de tratados entre as Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e os governos desta província e o Canadá. O tratado Nisga’a garante um retorno de aproximadamente 2000 quilômetros quadrados de terra, estabelece um sistema de auto-governo Nisga’a e garante os direitos de caça e pesca. O Capítulo 17 do tratado, intitulado “Artefatos Culturais e Patrimônio”, lida com a repatriação dos artefatos culturais Nisga’a das duas coleções de museus da parte governamental do tratado: o Museu Canadense da Civilização (Gatineau, Quebec) e o Museu Real da Colúmbia Britânica (Victoria, Colúmbia Britânica). O tratado garante o retorno de partes das coleções Nisga’a de ambos museus. Quatro apêndices ao tratado listam os artefatos Nisga’a em cada coleção de museu e dividem a coleção de cada museu. A posse ou propriedade de uma parte da coleção de cada museu deve ser transferida para a nação Nisga’a (alcançando uma fração de 25 por cento da coleção dos museus canadenses até aproximadamente 40 por cento da coleção dos museus da Colúmbia Britânica). O compromisso salomônico pela repatriação, garantido pelo tratado Nisga’a, é consistente com a filosofia de parceria concernente os bens culturais aborígines em museus canadenses desenvolvido anteriormente pelo relatório da força de tarefa. O compromisso negociado tem também caracterizado os pedidos de repatriação em outras partes. Na Nova Zelândia, a casa de reuniões Maori Mataatua foi devolvida para os descendentes dos que a edificaram (o povo Ngati Awa) pelo Museu Otago em 1996. 22 A casa de reuniões tinha sido construída entre 1872 e 1875 e mandada para o exterior pelo governo Neozelandês em 1879 para exibição em várias exposições na Austrália e na Inglaterra. Depois de seu retorno à Nova Zelândia em 1925, ela foi depositada no Museu Otago como empréstimo permanente. Em 1983, o povo Ngati Awa solicitou a devolução da casa. Depois de longas discussões, um acordo foi alcançado para que a casa fosse devolvida. Os termos da devolução incluíam um pagamento feito pelo governo de $NZ 2.95 milhões para o Museu Otago, o qual será provavelmente utilizado para organizar a construção de outra casa similar. O caso do Museu Otago ilustra um padrão de compromisso de ambos os lados para se resolver pedidos de repatriação, mesmo na ausência de uma legislação guarda-chuva (tal como o NAGPRA) ou de princípios previamente acordados governando tais pedidos (tais como aqueles estabelecidos pela Associação de Museus Canadenses/força de tarefa da Assembléia das Primeiras Nações). 21 Cf. Nisga’a Final Agreement (1998) e o website do Ministério da Colúmbia Britânica para Assuntos Aborígines em http://www.aaf.gov.bc.ca/aaf/. (SANDERS, 1999). 22 Cf. Nota, 6 Intern. Jo. of Cultural Property, 404, 1997. http://www.aaf.gov.bc.ca/aaf/ Uma terceira via de se responder aos pedidos feitos aos museus para a devolução de artefatos culturais indígenas tem sido a concordância sobre algum resultado para além da devolução incondicional dos objetos concernidos. Este tipo de solução é às vezes usado em combinação com a devolução de um número limitado de objetos sujeitos ao pedido inicial. O papel da Força de Tarefa Canadense sobre Museus e Primeiros Povos foi bem além das questões ligadas à repatriaçãoe também faz referência à melhoria do acesso dos povos aborígines às coleções de museus, assim como a um aumento do envolvimento dos aborígines na administração de tais instituições e de suas coleções. O relatório da força de tarefa incluía recomendações específicas sobre a interpretação, acesso, repatriação e treinamento. Ele recomenda que os povos aborígines se envolvam na preparação de exposições e em outros projetos que incluam a cultura aborígine e que seja garantido pelos museus e galerias um aumento das oportunidades de emprego aos povos aborígines e que seja garantida a sua representação em organizações administrativas (como os quadros de diretores). O relatório sugere que os museus revelem mais informação sobre suas coleções aborígines e permitam o acesso do povo aborígine aos objetos e à documentação relevante. O relatório recomenda que o financiamento seja fornecido para o treinamento técnico e profissional do povo aborígine em conexão com iniciativas tais como os centros culturais. Ele insta os museus a reconhecerem a legitimidade das credenciais de indivíduos e grupos aborígines que possuem conhecimento de culturas particulares. Muitas destas sugestões tem sido desde então implementadas dentro de uma base ad hoc por museus que são membros da Associação de Museus Canadenses. Em relação à repatriação, o relatório da força de tarefa define três estratégias alternativas, em adição ao retorno físico dos objetos acompanhados pela transferência do título legal de propriedade. Ele sugere que os museus considerem o empréstimo de objetos sagrados e cerimoniais para o uso de comunidades aborígines e que os museus também permitam a replicação de materiais em suas coleções. Finalmente, o relatório encoraja os museus a se engajar na administração compartilhada de suas coleções de material aborígine ao envolver as Primeiras Nações canadenses em questões como a de definir o acesso, determinar as condições de armazenamento e reconhecendo os diferentes sistemas de propriedade das culturas aborígines. As alternativas desenvolvidas no relatório canadense para a concessão da posse total dos objetos serão úteis aos museus ao negociarem pedidos de repatriação distintos. Muitos pedidos de repatriação não são feitos dentro de um modo de confronto tipo “tudo ou nada”. Muitos se preocupam com o reconhecimento de que os papéis futuros dos museus com extensas coleções indígenas devem proceder dentro da base de um maior envolvimento dos representantes daquelas culturas representadas em tais coleções. Os pedidos de devolução são usualmente feitos com o propósito de tornar os museus ou centros culturais em centros de populações indígenas e fornecer educação e acesso para aqueles povos sobre suas próprias culturas. Esta forma de abordagem tem também sido recentemente endossada pelo Comitê de Direito do Patrimônio Cultural da Associação Internacional de Direito em seus “Princípios para a Co-operação em Mútua Proteção e Transferência de Material Cultural”, de 2006. 23 Conclusão A posse e a propriedade do material cultural de povos indígenas apresenta complexas questões políticas e legais sobre as quais a generalização se faz difícil. Esta dificuldade se deve muito aos perigos de se generalizar sobre culturas cujas diferenças freqüentemente sobrepujam suas similaridades. Quando questões de propriedade e posse de bens culturais emergem dentro das leis nacionais, diferentes resultados podem surgir por causa de significativas diferenças legais entre os países. No caso de povos colonizados, as reivindicações de repatriação são em geral internacionais por natureza e, portanto, sujeitas a ainda maiores complexidades legais. Os desenvolvimentos futuros nesta área provavelmente serão menores em termos de reivindicações confrontantes para a restituição e maiores em recursos para forjar novas relações entre povos indígenas e museus que envolvam a responsabilidade compartilhada pelas coleções e seus desenvolvimentos futuros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDS, Mohawk v. Glenbow-Alberta Institute, In: 3 C. N.L.R. 70 (Juizado da Rainha Alberta), 1988. BARRINGER, Tim & FLYNN, Tom (eds.). 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As línguas românicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo mesmo processo de generalização que afectou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjectivos e afectivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais económica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”. Como a própria definição de “propriedade” é política, “a propriedade cultural é sempre uma questão política, não teórica”, ressaltava Carandini (1979, p. 234). Há não muito tempo, Joachim Hermann (1989, p. 36) sugeriu que “uma consciência histórica é estreitamente relacionada com os monumentos arqueológicos e arquitectónicos e que tais monumentos constituem importantes marcos na transmissão do conhecimento, da compreensão e da consciência históricos”. Não há identidade sem memória, como diz uma canção catalã: “aqueles que perdem suas origens, perdem sua identidade também”(BALLART, 1997, p. 43). Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos actores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto, procurar encarar estes artefactos como socialmente construídos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahistóricos, inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração (POTTER, s.d.). Uma abordagem antropológica do próprio património cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado (HAAS, 1996). A experiência brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do património, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu António Augusto Arantes (1990, p. 4): “o património brasileiro preservado oficialmente mostra um país distante e estrangeiro, apenas acessível por um lado, não fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram de maneira simbólica”. Esses estratos são os excluídos do poder e, assim, da preservação do património. Tratamos, primeiro, de Havana, patrimônio cultural da Humanidade. Havana, cidade patrimonial A cidade de Havana tem uma extensa história. Tudo que se disse ou escreveu sobre ela também se estudou em relação a sua arquitetura única e viva referente a seus habitantes e a seu porto, o qual desempenhou um papel muito importante desde o início de sua existência em relação a tudo que lá se comercializou. Mas a verdade é que muito poucas referências foram feitas em relação à sua arqueologia. São poucos os que escreveram sobre as informações de seu solo antropogênico. A potencialidade arqueológica que se encontra em Havana Velha é incalculável, a ponto de pensarmos que várias gerações irão dispor de seu conhecimento, já que o grau de autenticidade de suas construções e dos espaços urbanos concebidos em épocas diferentes, assim como a imutabilidade de seu subsolo, faz desta cidade o sonho dos arqueólogos históricos (DOMÍNGUEZ, 1990). Desde os anos de 1960, é comum o debate entre arqueólogos especialistas em relação à autonomia da Arqueologia Histórica como disciplina científica. Alguns pensam que ela é uma ferramenta da História propriamente dita, enquanto outros a consideram uma técnica, e outro ainda, que ela é somente uma subárea da própria Arqueologia. Nós a consideramos uma ciência e, sobretudo, uma Ciência Social independente, por possuir um corpo conceitual próprio e um objeto de estudo muito bem definidos, o que é nada menos que o estudo dos rastros deixados pelo homem no decorrer de sua existência e que se sucedem na cultura material dos povos. Também desde os anos de 1960, o debate girou em torno do próprio nome da ciência: alguns a chamavam de Arqueologia Colonial (de fato, foi assim designada durante muito tempo), outros de Arqueologia de níveis coloniais, Arqueologia da etapa colonial ou de lugares históricos, embora atualmente esta discussão não defina concretamente esta ciência (DOMÍNGUEZ, 1984; 1996). Sem a esperança de uma definição consenso, em Havana Velha se praticavam escavações nos imóveis mais antigos para se recuperar todo o tipo de informação, principalmente materiais, a fim de delimitar espaços que estavam ocupados com antecedentes e mudanças estruturais que originalmente constavam nos imóveis. Somente depois de 1968 que os trabalhos arqueológicos neste contexto havanês se realizaram junto ao processo de reestruturação e, principalmente, devido a uma executória oficial. É neste ano que se começa a efetuar as escavações arqueológicas nos prédios do atual Museu da Cidade (Museo de la Ciudad), outrora Prefeitura da Cidade de Havana (Alcaldía de la Ciudad de La Habana), e que havia sido o Palácio dos Capitães Generais (Palacio de los Capitanes Generales) durante o governo espanhol (DOMÍNGUEZ, 1983b). A partir dessas escavações pioneiras foi que Havana Velha tornou-se objeto de um estudo sistemático de seu subsolo, como parte do ambicioso plano de reabilitação do patrimônio edificado que nela ocorre. Este trabalho é realizado a partir de uma seleção com imóveis de alto valor patrimonial, complicando-se de tal forma que foi necessário fundamentar um pressuposto metodológico para abarcar de maneira ordenada e eficiente a crescente demanda de trabalhos arqueológicos, pois ficou estabelecido que toda a intenção de restauração implica em uma pesquisa arqueológica prévia (DOMÍNGUEZ & FUNARI, 2002). Em muitos casos, esta circunstância fez com que tanto o sentido como os objetivos da Arqueologia estivessem subordinados aos projetos de restauração, dependendo sempre, ou na maioria dos casos, dos prazos e das estratégias construtivas, bem como da valorização das obras no momento em que as necessidades arquitetônicas eram determinadas. Graças à determinação do Escritório do Historiador da Cidade de Havana (Oficina del Historiador de la Ciudad) foi possível concretizar um caminho conjunto de trabalho entre os planos de restauração e os interesses arqueológicos, o que, diga-se de passagem, foi conseguido muito poucas vezes em situações e espaços similares. Apesar das estimativas iniciais, não se perdeu de vista a formação de quem se encarregaria de conduzir estas tarefas de pesquisa, realizadas de forma empírica e com grande dose auto-formadora, levadas à prática através do fazer e do errar, do voltar a fazer e do continuar. Infelizmente, nem naquele momento e nem hoje, a Arqueologia contou com um reconhecimento para seu estudo acadêmico, de modo que o conhecimento acumulado pudesse ser transmitido no ensino médio e superior. No entanto, de certa forma essa carência pôde ser suprida. Graças ao empenho de alguns especialistas, novos arqueólogos foram se formando por diferentes caminhos, a exemplo dos cursos da Escola Oficina Gaspar Melchor de Jovellanos (Escuella Taller Gaspar Melchor de Jovellanos) pertencentes ao Escritório do Historiador (Oficina del Historiador), alémdos cursos oferecidos pelo Gabinete de Arqueologia também desta instituição, e outros cursos de pós-graduação que foram patrocinados no Centro de Antropologia e pelo Museu Montané. A Universidade de Oriente junto a Casa do Caribe (Casa del Caribe) também exerceram docência em arqueologia de modo conjunto dentro de seus planos de trabalho (DOMÍNGUEZ, 2000). Quando se investe em uma linha de pesquisa na Arqueologia Histórica, tal linha deve conter - da mesma forma que qualquer outra disciplina científica - uma alta precisão quanto à determinação e finalidade do trabalho, e que em nenhum momento se confunda a área de trabalho com o objetivo da ciência em si, o que é o mesmo que dizer em outras palavras, que não devemos escavar por escavar, sem que haja um objetivo definido de antemão e um propósito pré-estabelecido para poder conseguir um resultado de acordo com o raciocínio dessa ciência (FUNARI & MENEZES, 2003). Deve-se provar que o recurso arqueológico corresponde à operação empreendida, de modo a ampliar, complementar e retificar a documentação já existente e, assim, marcar o ritmo do que se vai executar adiante. Em Havana Velha se aplicou esta especialidade dando os passos necessários para seu desenvolvimento e, como resultado, obteve-se uma informação de primeira mão em resposta a uma estratégia concreta e definida. Até as escavações feitas em 1968 não se sabia o que havia debaixo da cidade. Então, ao surgirem incógnitas que guardavam zelosamente o subsolo antropogênico, tomou- se consciência de que deveria existir um estudo sistemático do que foi se sobrepondo ao longo do tempo e que cada sítio arqueológico deveria ser abordado a partir da metodologia mais apropriada (DOMÍNGUEZ, 1983a). Em nenhum momento, a Arqueologia Histórica em Havana Velha tratou de fazer história arquitetônica ou de estudar somente os materiais ou evidências que foram desenterrados desse subsolo, mas sim sempre tratou de unir áreas de interesse para um fim maior: a revitalização de Havana Velha para conhecer plenamente seu passado arqueológico mediante as técnicas mais modernas. Isto deve ocorrer cumprindo-se a premissa de que cada edificação será reabilitada segundo a época em que foi erguida ou em que sofreu transformações irreversíveis, cuja expressão tem perdurado no tempo. Esta concepção tange em especial os imóveis situados na zona intramuros, cuja história pode ser definida com o auxílio da Arqueologia e seus métodos, capazes de estudá-la com orientação sem ter que depender de documentação comum ou de evidências já catalogadas com antecedência (DOMÍNGUEZ, 2001). No decorrer desta operação pontual, existiram escavações e estudos que marcaram momentos muito precisos dentro da prática arqueológica em Havana Velha. Nos anos 60, a estratégia utilizada era a de resgatar os imóveis e ambientes físicos de qualquer tipo, os quais se encontravam ameaçados, porque era a única forma de encarar o desafio que a história nos delineava e, assim, a especialidade da Arqueologia Histórica se conformava como uma ciência nova, e sem deixar dúvidas em relação a sua debilidade teórica e metodológica. Sob esta óptica, foram executados os trabalhos arqueológicos da Paróquia Principal (Parroquial Mayor) e da Casa de la Obrapía (obras religiosas), os quais supriram uma necessidade importante na pesquisa de seu tempo e significaram uma contribuição inestimável para a tarefa de identificação e datação dos artefatos provenientes do subsolo de Havana. Não podemos esquecer que estes foram os primeiros trabalhos realizados em Havana, representando exemplos precisos no território, clássicos expoentes da Arqueologia Histórica particularista que, pela data em que foram feitos, podem ser considerados também um dos primeiros trabalhos feitos no Caribe. O início da Arqueologia Histórica em Havana Velha remonta a 1968, como dito anteriormente, quando foram feitas escavações na Casa de la Obrapía ou na Casa de Calvo de la Puerta. Em suas paredes foram encontradas as primeiras pinturas murais na cidade e, a partir dos estudos efetuados em seu estábulo, em especial o estudo dos expoentes materiais, foram extraídos os primeiros desta natureza pertencente ao século XVI. Os estudos realizados no edifício dos Capitães Generais (Capitanes Generales), hoje Museu da Cidade (Museo de la Ciudad) e onde inicialmente estava localizada a Paróquia Principal (Parroquial Mayor), podem ser considerados o primeiro caso de uma pesquisa arqueológica prévia em relação a um processo de restauração, mas também houve um interesse especial em resgatar as relíquias do subsolo, as quais poderiam ser as primeiras do contexto religioso achadas em Cuba através da utilização do estudo estratigráfico efetuado pela primeira vez. Posteriormente, foram efetuados alguns trabalhos que buscavam reconstruir modos de vida do passado como parte do estudo de grupos sociais estruturados em uma região determinada, sendo um exemplo o Convento de Santa Clara de Assis. Este tipo de arqueologia foi denominada de "traspatio" ("quintal"), embora tenham sido feitas indagações muito além dos detalhes construtivos em Santa Clara, chegando-se a um profundo estudo de toda uma comunidade religiosa. As escavações arqueológicas, em sua execução, podem ser divididas em quatro contextos principais: o civil, ou seja, os edifícios públicos, o doméstico ou aqueles para a moradia de famílias, o religioso, no qual podem estar as igrejas e os conventos, e por fim, as construções militares, em especial os castelos, os baluartes e as unidades de artilharia. Os contextos domésticos são mais trabalhados no âmbito de Havana intramuros, porque pela lógica, eles estão de acordo com o processo de valorização dos imóveis que abrigam a grande maioria dos Museus do Complexo Museístico de Havana Velha, declarada patrimônio da humanidade em 1982. Dentro desses imóveis objetos de estudo se encontram o Mercaderes l5, o antigo colégio Santo Ambrósio (San Ambrosio) e que hoje é o Museu da Casa dos Árabes (Museo de la Casa de los Arabes); a casa da família Sotolongo e que agora tem os prédios de Alojamento de Valência (Hostal Valencia). A Casa de Juana Carvajal, onde está a sede do Gabinete de Arqueologia, é uma das moradas mais belas da história e a Casa da Muralla no 60, onde atualmente se encontra a Empresa de Restauração de Monumentos. Todos esses trabalhos foram realizados nos anos de 1980. Dentro desse mesmo contexto doméstico em 1990 escavações pontuais foram realizadas, como por exemplo, na antiga casa de Mariano Carbó, hoje sede do museu do pintor Guayasamín, na casa que pertenceu a Gaspar Rivero de Vasconcellos, na casa de Santiago C, Burnhan a qual é atualmente sede do Museu ao Libertador Simón Bolívar (Museo al Libertador Simón Bolívar), e na casa dos Condes de Vila Nova (Condes de Villanueva). A Casa dos Condes de Santovenia (Casa de los Condes de Santovenia) foi objeto de um estudo arqueológico muito especial, sobretudo em relação à parte dietética, o que forneceu uma informação muito valiosa, além de ter representado a possibilidade de escavar uma zona primata da cidade. Em seu conteúdo foi resgatada uma cerâmica de origem espanhola que não foi encontrada em escavações anteriores, além de provas de que o nível do mar chegava até o lado norte da mansão. Os contextos religiosos têm inúmeros expoentes, entre os quais um exemplo representativo é o Convento de São Francisco de Assis (Convento de San Francisco de Asis) ou a Basílica Menor, onde em suas escavações e trabalhos arqueológicos estruturais as conchas recheadas com cerâmica envidraçada do primeiro terço do século XVIII chamou muita atenção. Podemos observar outros trabalhos arqueológicos em sítios religiosos na Capela de Loreto (Capilla del Loreto) na Catedral de Havana, na capela do Forte de São Carlos da Cabana (Fortaleza de San Carlos de la Cabaña), no Convento de Beléme na Igreja e no Hospital de Paula. A esfera militar foi objeto de estudo histórico durante muito tempo em nosso país, e o primeiro trabalho de restauração efetuado nestas transições se realizou no Morro de Santiago de Cuba, mas indiscutivelmente é Havana que tem expoentes maiores, dentre os quais se escavou a Guarita do Arsenal (La Garita de la Maestranza), onde foi encontrado o forno de cubilotes mais antigo de Cuba e moldes para a fundição de peças da Artilharia havanesa. Também foram feitos trabalhos na Cortina de Valdés, na Fortaleza do Morro (Fortaleza del Morro) ou Castelo dos Três Reis (Castillo de los Tres Reyes), onde se pôde evidenciar as bases do Baluarte de Santo Tomás. Também se escavou no Castelo da Ponta (Castillo de la Punta) e no mais antigo da América, o Castelo da Força Real (Castillo de la Real Fuerza), como também na fortaleza de São Carlos da Cabana (fortaleza de San Carlos de la Cabaña). A partir da criação do Gabinete de Arqueologia em 1987 se estabelece uma verdadeira linha de pesquisa em matéria de Arqueologia Histórica, pois se obtém uma inter-relação entre as buscas arqueológicas e o plano de restauração de Havana Velha. Com a valorização das grandes obras já dentro de um âmbito delimitado e vital, pensa-se nela como um Museu representativo das cidades caribenhas capaz de superar em diversidade de contextos cronológicos seus similares de Santo Domingo e Porto Rico. Santo Domingo constitui, na verdade, um expoente insuperável da cidade do século XVI, mas somente desse século, enquanto que em São João (San Juan) predominam os contornos de um século XIX simples e mestiço (DOMÍNGUEZ, 1991). Por sua vez, São Cristóvão (San Cristóbal) de Havana conserva um amplo espectro que engloba ininterruptamente expoentes dos séculos XVI até XIX, mostrando ao mundo atual elementos de quase todas as variantes arquitetônicas domésticas, civis, militares, eclesiásticas e comerciais. Além disso, há uma grande amostra do registro arqueológico artefatual para um incomparável e detalhado estudo na área caribenha, o que se expressa em padrões dispostos em qualquer fase da pesquisa. As indagações que até o momento surgiram em torno da freqüência relativa com que aparecem os diferentes grupos de artefatos (cerâmicas, vidrarias, metais, ossos, madeiras, pedras, entre outros) permitiram definir traços esclarecedores que ajudam a interpretar os pontos de destaque dos sítios sobre os quais a documentação e as informações são quase nulas. Através desse enfoque quantitativo se investigou com caráter individual a majólica do século XVI no Calvo de la Puerta (Casa de la Obrapía) e a porcelana oriental em Havana, estudos os quais serviram de base para reconhecer padrões que possibilitaram inferir a conduta humana. Por outro lado, a análise da cerâmica mexicana do século XVII proporciona um esclarecimento para desemaranhar as redes do comércio intercolonial em um período tão obscuro. É de vital importância reconhecer a colaboração que a Arqueologia Histórica proporcionou ao estudo histórico-social da Havana intramuros a partir de uma perspectiva regional que, ao considerar a parte antiga da cidade como âmbito tempo-especial onde se desenvolve um processo sociocultural concreto, a converte em um universo idôneo para a pesquisa. Com o auxílio da Arqueologia Histórica, diversos contextos físicos foram classificados e delimitados mediante a análise profunda das sucessões estratigráficas e através da seqüência dos materiais exumados. As escavações realizadas no Convento de São Francisco de Assis (Convento de San Francisco de Asís) e na Casa dos Condes de Sotovenia (Casa de los Condes de Santovenia) não foram tratados como imóveis particulares ou estudos de caso em si, mas sim como áreas que representam o desenvolvimento que ocorreu historicamente em um dado momento desta região. Seguindo esta mesma diretriz, pode-se considerar a cerâmica como referência para investigar a união de várias culturas e as culturas resultantes desta fusão em uma cidade como a nossa, arquétipo de tais combinações. O estudo da cerâmica de contato ou de transculturação - chamada "cerâmica de colonos (colono ware)" ou "crioula (criolla)" - permite saber até que data se deu esta simbiose, além de reunir evidências muito concretas sobre o comércio, tanto lícito, ou seja, o permitido pelas autoridades, como o comércio ilícito, ou de contrabando, constatadas ou não nas fontes documentais da época. Como disciplina científica, a Arqueologia Histórica em Havana Velha não se subordina à restauração, mas as duas se uniram e se complementaram e o resultado até o momento tem sido uma união muito valiosa que não está isenta de erros, mas a soma final é o mais importante, e isto é bem claro e de grande importância. Há trinta anos, podíamos mencionar entre os precursores nesta Havana - além de Eusebio Leal, alma e ação - os também arqueólogos Leandro Romero, Rodolfo Payarés, Ramón Dacal, Rafael Valdes- Pino, Eladio Elso, e a que subscrevem; e lembrar com gratidão o artista Ernesto Navarro. Eles lutaram e trabalharam com esmero e aplainaram o caminho pelos quais hoje prosseguem os mais jovens. O Brasil A preservação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considerado, no Brasil e no resto da América Latina (García 1995: 42), como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indígenas (cf. o exemplo maia, em ALFONSO & GARCÍA, s.d., p. 5), sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes exceções, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem e progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quaisquer que tenham sido os motivos econômicos, sociais ou geopolíticos, apenas foi possível porque havia um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu patrimônio, em benefício de uma cidade sem passado. Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança materializada seja São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimento não encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a ser uma cidadezinha até fins do século XIX, até tornar-se, nestes últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério sul. Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degradações ideológicas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar uma cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se pode falar, são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para comemorar os quatrocentos anos da cidade. Os principais prédios públicos, como o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que abriga a Assembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e a mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século XIX como um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente remodelada na década de 1970. Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Patrimônio da Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont (1998,
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