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MATERIAL DIDÁTICO EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 2.861 DO DIA 13/09/2004 0800 283 8380 www.portalprominas .com.br 2 SUMÁRIO UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO ............................ ................................................. 3 UNIDADE 2 - ESPECIFICIDADES DO PÚBLICO DA EJA ..... .......................... 7 UNIDADE 3 - HISTÓRIA DA EJA ....................... ............................................. 10 UNIDADE 4 - ALFABETISMO FUNCIONAL, ANALFABETISMO, LETRAMENTO ........................................ ........................................................ 20 UNIDADE 5 - FUNDAMENTOS SÓCIO-HISTÓRICO E FILOSÓFIC OS DA EJA ............................................ ................................................................ 36 UNIDADE 6 - NOÇÕES BÁSICAS DE ANDRAGOGIA .......... ........................ 44 UNIDADE 7 - A AUTOESTIMA NA EJA.................... ...................................... 48 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 58 3 UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO Partindo do pressuposto que muitas vezes definimos a educação de adultos por aquilo que ela não é, utilizamos expressões como educação assistemática, não formal e extraescolar, expressões que valorizam mais o sistêmico, o formal e o escolar. A educação não formal, assim entendida, seria menos do que a educação formal, posto que a primeira é concebida como “complementar de”, “supletiva de”, que não tem valor em si mesma. Concordamos com Gadotti e Romão (2010) quando estes inferem que a educação de adultos pode acontecer em si mesmo e para tanto, o primeiro passo para concretizar esse entendimento é definir termos. Os termos educação de adultos, educação popular, educação não formal e educação comunitária são usados muitas vezes como sinônimos, mas não são. Os termos educação de adultos e educação não formal referem-se à mesma área disciplinar, teórica e prática da educação. No entanto, o termo educação de adultos tem sido popularizado especialmente por organizações internacionais como a UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, para referir-se a uma área especializada da educação. A educação não formal tem sido utilizada, especialmente nos Estados Unidos, para referir-se à educação de adultos que se desenvolve nos países do Terceiro Mundo, geralmente vinculada a projetos de educação comunitária. Nos Estados Unidos, no entanto, reserva-se o termo educação de adultos para a educação não formal aplicada ou administrada no nível local no país. Existe, no entanto, um grande número de paradigmas, isto é, uma combinação de teorias, lógicas de investigação e metodologias de ação – dentro da educação de adultos ou da educação não formal. Na América Latina, a educação de adultos tem sido, particularmente, a partir da segunda guerra mundial, de âmbito do Estado. Pelo contrário, a educação não formal está principalmente vinculada a organizações não governamentais, partidos políticos, igrejas, entre outros, geralmente 4 organizadas onde o Estado se omitiu e muitas vezes organizada em oposição à educação de adultos oficial. A educação popular, como uma concepção geral da educação, via de regra, se opõe à educação de adultos impulsionada pela educação estatal e tem ocupado os espaços que a educação de adultos oficial não levou muito a sério. Um dos princípios originários da educação popular tem sido a criação de uma nova epistemologia baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua prática cotidiana, problematizando esse senso comum, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular, teoria ainda não conhecida pelo povo, problematizando-a, incorporando-lhe um raciocínio mais rigoroso, científico e unitário (GADOTTI; ROMÃO, 2010). Tomando por base os pensamentos e estudos de Brandão (1984), podemos fazer uma separação mecânica: 1º - A educação de classe pode ser entendida como os processos não formais de reprodução dos diferentes modos de saber das classes populares; 2º - A educação popular pode ser compreendida como processo sistemático de participação na formação, fortalecimento e instrumentalização das práticas e dos movimentos populares, com o objetivo de apoiar a passagem do saber popular ao saber orgânico, ou seja, do saber da comunidade ao saber de classe na comunidade; 3° - A educação do sistema (oficial), isto é, os programas de capacitação de pessoas e grupos populares, sob o controle externo, visando produzir a passagem dos modos populares de saber tradicional para modelos de saber modernizado, segundo os valores dos polos dominantes da sociedade. Para Brandão, a educação do sistema conduz à reprodução do poder dominante. Contudo, depois das análises gramscianas1, a teoria que considerava o Estado como um comitê de direção da burguesia, tem sido contestada. O Estado é contraditório: é força e consenso. 1 Em linhas gerais, para Gramsci (italiano, cientista político, antifascista e autor de muitas ideias sobre teoria crítica e educacinonal), a reprodução social não está confinada à sociedade civil como um lugar privilegiado da política, mas estende-se também ao Estado e à institucionalidade política 5 Mesmo para cumprir sua função principal de acumulação do capital, o Estado capitalista, para legitimar-se, deve impulsionar mecanismos massivos de participação, especialmente através de eleições periódicas. Deve também prover o mínimo de saúde, educação, seguro-desemprego, moradia, entre outros, de que todos os cidadãos necessitam, e fazem jus, em virtude de sua participação na “respublica”. Essas duas funções – de acumulação e de legitimação – são inerentemente conflituosas, dando lugar a todo tipo de contradições sociais e políticas, e convertendo o próprio Estado numa arena de luta de projetos alternativos. Alguns devem estar se perguntando: o que isto tem a ver com educação de jovens e adultos? A EJA passa por uma classe completamente esquecida pelos poderes públicos e pela sociedade de maneira geral. Dela fazem parte pessoas comuns, simples, mas não menos importantes que as demais, que tem acesso às condições mínimas e máximas de sobrevivência. Tratar da EJA é tratar de movimentos sociais, de movimentos populares, de educação no campo, de exclusão e inclusão, de autoestima, de ética, de cidadania, de racismo, de identidade étnica, enfim, assuntos polêmicos, assuntos que muitos preferem esquecer, pois requerem reflexão, consciência, abnegação, renúncia de um lado e doação de outro. Requer enfrentar todo um sistema econômico que não dá espaço para o pobre, o menor, o sujeito simples. Nesse contexto, os movimentos sociais, bem como os partidos progressistas, têm identificado a educação pública como uma função fundamental do Estado capitalista democrático. E como ele financia e administra essa educação, ela está marcada pelas mesmas contradições sociais acima assinaladas. Lamentavelmente, a função educativa do Estado tem sido entendida, quase exclusivamente, como escolarização, deixando de lado as possibilidades da educação não formal, especialmente na educação básica (que inclui a alfabetização) de jovens e adultos (GADOTTI, 2010). Nos propomos ao longo deste curso lançar mais reflexões do que conceitos concretos e acabados. Esperamos que ao final consigam perceber a 6 importância de olhar para esse público esquecido por todos nós, mas que são parte da nação brasileira, têm direitos e deveres, pagam impostos, consomem, entre outros. Procurou-se utilizar, além de referências atualizadas, artigos com uma linguagem simples, no entanto, alguns assuntos merecem voltar a publicaçõesmais antigas justificando que existem certos autores os quais não se pode furtar ao seu conhecimento, como por exemplo, Paulo Freire. Como falar de EJA sem as ideias deste ícone? Impossível. Salientamos que este trabalho é uma compilação de artigos de vários autores e material do que entendemos ser o mais importante em termos de educação de jovens e adultos. Dúvidas podem surgir e pedimos desculpas por eventuais lacunas, mas tanto por isso, ao final da apostila estão diversas referências utilizadas onde poderão aprofundar algum conhecimento que chame a atenção ou tenha despertado dúvida. 7 UNIDADE 2 - ESPECIFICIDADES DO PÚBLICO DA EJA Quando nos propomos a tratar da educação de jovens e adultos, primeiramente devemos identificar três especificidades: etária, sociocultural e ético política. 1. Etária (Não Infância) A educação de jovens e adultos apresenta uma especificidade etária porque tem o olhar para jovens, adultos e idosos, que não tiveram acesso à escola, na faixa etária da chamada escolarização (dos 07 aos 14 anos) ou foram evadidos ou expulsos da escola. Não são crianças, mas pessoas jovens, adultas e idosas com experiência de vida e profissional. Existe uma complexidade nesta especificidade etária que precisa ser considerada. No âmbito das práticas pedagógicas há diferenças de interesses, de motivações e de atitudes face ao processo educacional entre os jovens, os adultos e os idosos. O jovem tem um olhar para o futuro. Na transição da infância para a fase adulta está ligado às inovações tecnológicas, aos modismos dos meios de comunicação, ou seja, às mudanças que ocorrem no mundo. O adulto está interessado na vida profissional, em ser inserido no mercado de trabalho, olhando para a sua situação de vida presente. O idoso busca ser cidadão, viver a sua vida em sociedade sendo respeitado como pessoa e pelo seu passado, pela sua história de vida. Almeja viver na sociedade com dignidade. 2. Sociocultural A educação de jovens e adultos apresenta uma especificidade sociocultural, na medida em que concentra suas atividades educativas predominantemente em determinados grupos de pessoas de uma determinada classe social e cultural, ou seja, jovens, adultos e idosos de uma classe 8 economicamente baixa. De modo geral, são trabalhadores assalariados, do mercado informal ou do campo, que lutam pela sobrevivência na cidade ou no interior, apresentando em relação à escola uma desconfiança, por não terem tido acesso à escola ou já terem sido evadidos. Pertencem a essa especificidade, jovens, adultos e idosos marginalizados pelo sistema econômico-social, vistos como analfabetos e muitas vezes considerados incapazes de aprender. Segundo Oliveira (1999, p. 59), o adulto, no âmbito da educação de jovens e adultos, não é o estudante universitário, o profissional qualificado que frequenta cursos de formação continuada ou de especialização (...) Ele é geralmente o migrante que chega às grandes metrópoles proveniente de áreas rurais empobrecidas, filho de trabalhadores rurais não qualificados e com baixo nível de instrução escolar (muito frequentemente analfabetos), ele próprio com uma passagem curta e não sistemática pela escola e trabalhando em ocupações urbanas não qualificadas, após experiência no trabalho rural na infância e na adolescência, que busca a escola tardiamente para alfabetizar-se ou cursar algumas séries do ensino supletivo. Não foge a essa classe, os jovens, adultos e idosos que moram nas periferias das grandes cidades, que embora tenham se criado ali, são tão marginalizados e excluídos que também pertencem ao grupo da EJA. 3. Ético política A educação de jovens e adultos também se caracteriza por uma especificidade ético política, porque está no centro da relação de poder existente entre os escolarizados e não escolarizados, entre os alfabetizados e os não alfabetizados. Relação de poder construída através de representações e práticas discriminatórias e excludentes. E também porque as pessoas rotuladas de burras, mobral, entre outros, manifestam um sofrimento ético- político de injustiça perante os escolarizados e um sentimento de inferioridade e de incompetência, inclusive com a perda da autoestima frente a sua família e ao seu grupo social (OLIVEIRA, 2004). 9 O sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes de cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade (SAWAIA, 1999, p.104). Assim, para compreendermos a Educação de Jovens e Adultos, precisamos saber as suas especificidades em relação a quem são os jovens, adultos e idosos atendidos por essa modalidade de educação. Devemos ter consciência de sua condição de pessoas humanas e de sua condição social: não crianças, excluídos e membros de determinados grupos e classes sociais. Torna-se, ainda necessário, considerar-se os jovens, os adultos e os idosos em suas situações concretas existenciais, sociais, econômicas e políticas (OLIVEIRA, 2004). 10 UNIDADE 3 - HISTÓRIA DA EJA Toda a história das ideias em torno da alfabetização de adultos no Brasil acompanha a história da educação como um todo que, por sua vez, acompanha a história dos modelos econômicos e políticos e, consequentemente, a história das relações de poder, dos grupos que estão no poder. Dessa forma a mobilização brasileira em favor da educação do povo, ao longo de nossa história parece ligar-se às tentativas de sedimentação ou de recomposição do poder político e das estruturas socioeconômicas, fora e dentro da ordem vigente (GADOTTI, 2010). A alfabetização de adultos tem sido alvo de lutas de interesses e movimentos distintos na história da educação. Identifica-se em cada período grupos econômicos, grupos políticos partidários, grupos de educadores e intelectuais, grupos ligados a diferentes movimentos sociais e organismos internacionais, num verdadeiro embate político e ideológico, em torno da reivindicação ou não de definição de políticas e ações para a área. Os jovens e adultos trabalhadores lutam para superar suas condições precárias de vida (moradia, saúde, alimentação, transporte, emprego, entre outras) que estão na raiz do problema do analfabetismo. O desemprego, os baixos salários e as péssimas condições de vida comprometem o processo de alfabetização dos jovens e dos adultos. Gadotti (2010) fala com propriedade com jovens e adultos, porque dentro de sua experiência concreta pode notar que aqueles que frequentam os programas de educação de adultos são majoritariamente os jovens trabalhadores. As discussões e definições em torno de propostas teóricas e das diferentes concepções de alfabetização acompanham essas lutas ideológicas e políticas de cada período, trazendo consequências pedagógicas sérias para o processo educativo dos sujeitos que buscam tardiamente a escolarização. Lançando o olhar para as políticas e ações desenvolvidas ao longo do processo histórico brasileiro, é possível buscar os referenciais teóricos que 11 norteiam a conceitualização, os objetivos e as formas de desenvolvimento do processo de alfabetização. Desde o Império já aconteciam iniciativas de experiências, através das escolas noturnas para adultos. A primeira Constituição Brasileira, de 1824, garantia uma “instrução primária e gratuita para todos os cidadãos”. Fato que não ocorreu por vários motivos: primeiro, porque só possuía cidadania uma pequena parcela da população, aquela das elites econômicas; em segundo lugar, porque coube a responsabilidade de oferta da educação básica às Províncias que, com poucos recursos, não podiam cumprir a lei, permanecendo sob-responsabilidade do governo imperial a educação das elites. Percebemos que o ensino sedava de forma desigual para diferentes grupos e em diferentes tempos. O pensamento da elite da época era de oferecer instrução para todos, influenciado por um pensamento moderno e liberal que preconizava que a educação livrava ou amenizava os sujeitos das ilusões, do entusiasmo e da superstição que poderiam ser origem de terríveis desordens, facilitando o desempenho do governo (GADOTTI, 2010). A partir da República iniciam-se inúmeras campanhas, normalmente de curta duração, descontínuas, sem grande sistematização e buscando sempre o apoio e a parceria das diferentes instâncias da sociedade civil. Isto reflete a falta de compromisso do poder público em definir uma política de educação institucional, de forma que as práticas para a área fossem desenvolvidas de maneira sistemática através da rede de ensino regular, como acontece com os demais níveis de escolarização. As primeiras iniciativas desse período se estendem até a revolução de 1930, onde os formuladores de políticas e responsáveis pelas ações tomam a alfabetização de adultos como aquisição de um sistema de código alfabético, tendo como único objetivo instrumentalizar a população com os rudimentos da leitura e da escrita. Na década de 1930, outra ideia vem alimentar a educação: a de preparar os sujeitos para as responsabilidades da cidadania. O País, sob a ditadura de Vargas, buscou, pela centralização das ações, a formação de um 12 estado moderno nacional: exemplos são a constituição das leis trabalhistas, normatização dos sindicatos e a expansão do sistema educativo. O processo de industrialização e a concentração populacional em centros urbanos também ocasionaram grandes transformações. A oferta do ensino básico gratuito acolhia vários setores, sendo o governo federal o que impulsionava a ampliação da educação e traçava as diretrizes educacionais para todo o país, com responsabilidade dos estados e municípios. Em 1938 foi criado o INEP – Instituto Nacional de Estados Pedagógicos – o que permitiu a instituição, em 1942, do Fundo Nacional do Ensino Primário, o qual deveria, com um programa de ampliação da educação primária, incluir o Ensino Supletivo para adultos e adolescentes. Após a Segunda Guerra, em 1945, a criação da UNESCO, divulgou e promoveu, em âmbito mundial, uma educação voltada para a paz dos povos e a educação de adultos como uma forma de contribuir com o desenvolvimento das nações atrasadas. Com uma concepção funcional do processo educativo, defendia a educação como forma de integração social, de forma passiva e instrumental, sem visão crítica. De qualquer forma, a criação da UNESCO e suas ações posteriores contribuíram decisivamente para a discussão e implementação de ações no que se refere ao analfabetismo, à educação de adultos e às desigualdades sociais mundiais, especialmente em países do Terceiro Mundo. Após a ditadura de Vargas, o país vivia a efervescência política da redemocratização. A educação ganhava novos impulsos sob a crença de que seria necessário educar o povo para que o país se desenvolvesse, assim como para participar politicamente através do voto, que se daria por meio da incorporação da enorme massa de analfabetos. Os educadores da época estavam tão empolgados, que este período ficou conhecido como o do “entusiasmo pela educação” (GADOTTI, 2010). Em 1947, houve a criação do SNEA – Serviço Nacional da Educação de Adultos – com o objetivo de orientar e coordenar os trabalhos do Ensino Supletivo, conseguindo gerar várias ações que permitiram a realização da 1ª Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos – CEAA, a qual 13 atendia aos apelos da UNESCO e junto com a ideia de redemocratização do país, a campanha cumpria os objetivos de preparar mão-de-obra, pois o país vivia um processo de crescente industrialização e urbanização; penetrar no campo e integrar os imigrantes dos Estados do Sul; visava ainda, melhorar as estatísticas brasileiras em relação ao analfabetismo. O início da Campanha se deu no Congresso, quando delegados de Estados e Territórios apresentaram teses que geraram sugestões para a elaboração de uma Lei Orgânica de Educação de Adultos. A campanha de Educação de Adultos pretendia, numa 1ª etapa, uma ação extensiva que previa a alfabetização do curso primário em dois períodos de sete meses. Depois seguiria uma etapa de ação em profundidade, voltada à capacitação profissional e ao desenvolvimento comunitário. Nos primeiros anos, a campanha conseguiu resultados significativos, articulando e ampliando os serviços já existentes e estendendo-a às diversas regiões do país. Num curto período de tempo, foram criados vários supletivos, mobilizando esforços das diversas esferas administrativas, de profissionais e voluntários. A campanha extinguiu-se antes do final da década de 1950, sobrevivendo à rede de Ensino Supletivo por meio dela implantada, assumida pelos estados e municípios. Assim, as iniciativas e ações que ocorrem nesse período, passam à margem das reflexões e discussões sobre o analfabetismo e acerca de um referencial teórico próprio para a educação de adultos no Brasil e para a consolidação de um novo paradigma pedagógico cuja referência principal foi o pernambucano Paulo Freire. Freire, trazendo este novo espírito da época, acabou por se tornar um marco teórico na Educação de Adultos, desenvolvendo uma metodologia própria de trabalho, que unia pela primeira vez a especificidade dessa Educação em relação a quem educar, para que e como educar , a partir do princípio de que a educação era um ato político, podendo servir tanto para a submissão como para a libertação do povo. O novo paradigma pedagógico baseava-se num novo entendimento de relação entre a problemática educacional e problemática social. Partindo das 14 concepções do adulto educando sobre o mundo, através da reflexão e da ação, afirmava a relação dialógica educando/educador: os sujeitos se educavam por meio da problematização das situações concretas de vida de cada grupo de trabalho, desenvolvendo suas visões críticas, ampliando suas visões de mundo, descobrindo a palavra cheia de vida e da sua experiência, inserida num contexto cultural que faz do homem sua própria humanidade ou desumanidade (GADOTTI, 2010). A grande preocupação de Freire (1983, p. 12) era “uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política”. O autor inverteu a lógica das décadas anteriores ao trabalhar com a concepção de que o adulto analfabeto não era causa do subdesenvolvimento do país, mas sua consequência, ou melhor, vítima de uma sociedade injusta e desigual, de um sistema que buscava reproduzir, pela educação, o poder das elites políticas, econômicas e sociais do país. Invertendo a visão do analfabeto como um sujeito sem cultura, sua metodologia consistia em trazer a discussão do que é cultura e fazer os sujeitos se reconhecerem como produtores de cultura a partir de suas próprias situações cotidianas, através das quais a alfabetização vem inserir-se como mais um instrumento para a leitura do mundo. Nessa sociedade em trânsito, Freire procurou mostrar o papel político que a educação pode vir a desempenhar, e desempenha sempre – na construção de uma outra sociedade, a “sociedade aberta”. Na sua concepção “a construção de uma nova sociedade não poderá ser conduzida pelas elites dominantes, incapazes de oferecer as bases de uma política de reformas, mas apenas pelas massas populares que são a única forma capaz de operar a mudança” (FREIRE, 1983, p.34). Para Freire, através da educação, seria possível ampliar a participação consistente das massas e levar à sua organização crescente. A educação popular foi sendo divulgada através de inúmeros agentes: intelectuais, artistas, estudantes, militantes da igreja, militantes políticos, enfim, de setores da população quese sentiam comprometidos politicamente com as classes populares e buscavam uma real transformação, construídas no respeito mútuo, 15 na solidariedade humana, na reflexão coletiva, no compromisso de cada um com a aprendizagem de todo o grupo. Com a ditadura militar que se instaurou após o golpe em 31 de março de 1964, os movimentos de conscientização popular são desativados e seus líderes punidos por serem considerados subversivos. Em 1967, a criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização – Fundação MOBRAL – foi considerada como primeira iniciativa importante na educação de jovens e adultos. A própria estrutura do MOBRAL vinculou-se até meados de 1969 ao Departamento Nacional de Educação, bem como promoveu atividades de alfabetização e programas articulados nos campos de saúde, recreação e civismo, mediante convênios com entidades públicas e privadas. Em 1970, o MOBRAL atuou a partir de convênios estabelecidos com as Secretarias de Educação e Comissões Municipais, através do Programa de Alfabetização e do Programa de Educação Integrada – PEI com versão compactada das 4ª séries iniciais do antigo ensino primário. Os convênios se estenderam a outras entidades públicas e privadas. Em 1985, após a redemocratização do país, o MOBRAL não apresentou condições políticas para sua sobrevivência, sendo extinto e substituído pela Fundação Educar. O projeto Educar criado pela Nova República funcionava em parceria com municípios e, apesar de sua orientação política e pedagógica de educação funcional, a descentralização de suas ações possibilitou uma maior diversidade de orientações e práticas pedagógicas. Também trabalhava com alfabetização e pós-alfabetização, refletindo outras concepções acerca do processo. Uma delas é a de que havia necessidade de uma continuidade da educação básica, a fim de não ver reduzido o trabalho de alfabetização com o retorno dos sujeitos ao analfabetismo ou agora transformados em analfabetos funcionais. Em março de 1990, com o governo Collor, a medida provisória nº 251 extinguiu a Fundação Educar. Nessa época o Ministério da Educação lançou o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania – PNAC, mas nunca chegou a se concretizar. 16 No governo de Itamar Franco (1992 – 1994), as formulações em relação ao Plano Decenal de Educação apontavam para a necessidade de examinar as diretrizes de uma política educacional para jovens e adultos. Nesta gestão, nada de inovador concretizou-se na prática educacional pelo descomprometimento da União. Atualmente, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) lei 9394/96, deixou muito a desejar em relação às discussões expressas na versão proposta pelo CONED (Congresso Nacional de Educação). No entanto, a Educação de Jovens e Adultos, ao ser tratada como parte do Ensino Fundamental, e ao deslocar o ensino supletivo como um qualificativo e não mais um substantivo, possibilita, pelo menos, uma nova leitura: a de que a educação de adultos traz uma especificidade própria, considerando tratar-se de educandos que são portadores de múltiplos conhecimentos. Inclusive desafia a escola para aproveitamento e reconhecimento destes saberes, construídos em espaços não escolares, e que, por isso mesmo, ela não pode ser considerada como uma simples reposição condensada do ensino regular, ideia comum em relação ao ensino de suplência (GADOTTI, 2010). O parecer nº 774/99 do CEED (Conselho Estadual de Educação-RS) esclarece que foi a nova lei que incorporou princípios fundamentais do antigo supletivo na Educação Básica quando: • Flexibiliza a organização de seus currículos; • Centra no aluno o processo de ensino-aprendizagem; • Reconhece que a construção do conhecimento ocorre de maneira diferenciada para cada educando e somente é significativa se considerar seus saberes e vivências. O parecer reafirma ainda que é atribuição da escola ensinar e, portanto, a elas serão autorizadas o desenvolvimento do ensino fundamental e/ou médio voltados para a educação de jovens e adultos. Em 1997, foi implantado no Governo de Fernando Henrique Cardoso, o Programa Comunidade Solidária pela primeira-dama da República, a 17 antropóloga Ruth Cardoso. Foi um dos cursos mais importantes para a alfabetização de adultos, que em parceria com empresas, universidades e prefeituras, buscava atender municípios do Norte e Nordeste com altíssimos índices de analfabetismo. Como sua proposta com o educando não ultrapassar cinco meses de trabalho em classes de alfabetização, dificilmente poderemos considerar esses cidadãos alfabetizados. Mas, se este esforço for articulado com os municípios para darem continuidade ao processo de alfabetização e escolarização, poder- se-á inclusive incorporá-lo ao ensino regular. Esses marcos históricos da educação de adultos no Brasil nos reporta ao conceito estabelecido por Luzuriaga (1973) que evidencia a contribuição de Pestalozzi (1746-1827, p. 175) conhecido como educador da humanidade, que afirmava que “a educação tem finalidade própria: a humanização do homem, o desenvolvimento de todas as manifestações da vida humana, levada à maior plenitude e perfeição”. Segundo Kant (1724 – 1804), somente pela educação o homem pode chegar a ser homem. Admitia que na educação reside o grande segredo da natureza humana. Portanto é através da arte que o homem pode expressar seus sentimentos, valores, deixar aflorar a natureza humana, criando, inventando numa produção única, verdadeira expressão do que sente e imagina. A arte é uma fonte que evidencia o conhecimento interior (ou o retrato) do ser humano. Podemos conhecer muito de cada um através da produção artística, na escolha das cores, tons, motivos, materiais, tudo denuncia a sensibilidade e a personalidade do artista, seu momento emocional e espiritual do momento. Já Paiva (1987, p. 47) considera como educação popular a instituição elementar: a educação de adultos é parte da educação popular, pois está difusão da escola (...) quando ganha autonomia, e prende-se que sua duração seja menos que aquela oferecida à população em idade escolar, ela passa a ser tratada como alfabetização e educação de base ou educação continuada como querem hoje alguns. 18 Nesta situação, é possível observar dois modelos que vêm sendo confrontados na educação de adultos no Brasil. Um modelo escolar ou sistematizador que se elabora como processo, cujo objetivo é a transmissão de conhecimentos, opiniões e valores. Outro modelo sistematizador apresenta a autonomia, a libertação de algum segmento oprimido, onde acreditamos que o ensino da arte adquiriu seu espaço. Segundo Gadotti (2010), apesar desses modelos apresentarem-se como significativos, constituem-se como mecanismos discursivos ou ideológicos das políticas sociais, ressaltando o grande desafio pedagógico em termos de seriedade e criatividade que a educação de jovens e adultos impõe: como garantir a esse segmento social, que vem sendo marginalizado nas esferas socioeconômica e educacional, acesso à cult ura letrada que lhe possibilite uma participação mais ativa no mundo do trabalho, da política e da cultura? A demanda pela EJA (Educação de Jovens e Adultos) envolve hoje um público cada mais heterogêneo, tanto no que diz respeito à idade, como às suas expectativas. Conforme Souza (1998, p. 77), há uma aspiração de escolarização adiantada para ascender profissionalmente. (...) a procura não se dá apenas por adultos e jovens já inseridos no mercado de trabalho, mas dos que ainda esperam nele ingressar, ou que são atingidos pelo desemprego. Essa conotação detecta-se no modelo neoliberal, que assentou (ou aceitou) sociedades mais desiguais, constituindo-se como um desafio formar para a competência num mercado de trabalho cada vez mais restrito em que este reduz à problemática do emprego.A qualificação passa, então, a apresentar-se como um dos instrumentos de luta contra o desemprego e a marginalização. A educação de jovens e adultos justifica-se em grande medida como educação permanente, em virtude da crescente globalização da produção e dos mercados, da acelerada mudança tecnológica, dos crescentes desajustes do mercado de trabalho e da eventual redução da demanda por habilidades. Estas habilidades muitas vezes são despertadas através do ensino da arte. 19 Torna-se significativo referenciar a educação de adultos no contexto das políticas sociais, remetendo-nos às exigências educativas que a sociedade nos impõe no âmbito político. Na atualidade, problemas da vida moderna, sedentária, faz-se necessário um trabalho efetivo com a arte (KOROVISKI, 2006). A possibilidade dos diversos setores da sociedade negociarem coletivamente seus interesses está na essência da ideia de democracia. O ideal da democracia sempre contemplou uma educação escolar básica universalizada. Através dela pretende-se consolidar a identidade de uma nação e criar a possibilidade de que todos participem como cidadãos. Freire (1983 apud KOROVISKI, 2006) diz que ao ligar-se a uma das tendências da moderna concepção progressista, admite que é necessário tornar a educação acessível às camadas populares. Porém, a educação cumprirá caráter político e social na medida em que possa criar o espaço de discussão e problematização da realidade, com vistas à educação consciente, voltada para o exercício da cidadania por sujeitos comprometidos com a transformação da realidade, envolvendo jovens e adultos e a livre expressão por meio da arte. Um regime político democrático exige que as pessoas tenham domínio de instrumentos da cultura letrada, que assumam valores e atitudes democráticas: a consciência de direitos e deveres, a disposição para a participação, para o debate de ideias e o reconhecimento de posições diferentes das suas. O Brasil vem reconstruindo as instituições democráticas e nesse processo a educação tem um papel a cumprir com relação à consolidação da democracia em nosso país. A esse respeito Paiva (1994, p. 34) comenta que nenhum país nos nossos dias será capaz de enfrentar a nova configuração produtiva e a competição internacional sem uma revisão ampla do seu sistema de ensino como um todo e sem o estabelecimento de políticas abrangentes para jovens e adultos. 20 UNIDADE 4 - ALFABETISMO FUNCIONAL, ANALFABETISMO, LETRAMENTO Segundo Castell; Luke; MacLennan (1986 apud RIBEIRO, 1997), o termo alfabetismo funcional foi cunhado nos Estados Unidos na década de 1930 e utilizado pelo exército norte-americano durante a Segunda Guerra, indicando a capacidade de entender instruções escritas necessárias para a realização de tarefas militares. A partir de então, o termo passou a ser utilizado para designar a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho, muitas vezes colocado em contraposição a uma concepção mais tradicional e acadêmica, fortemente referida a práticas de leitura com fins estéticos e à erudição. Em alguns casos, o termo analfabetismo funcional foi utilizado também para designar um meio termo entre o analfabetismo absoluto e o domínio pleno e versátil da leitura e da escrita, ou um nível de habilidades restrito às tarefas mais rudimentares referentes à “sobrevivência” nas sociedades industriais. Há ainda um conjunto de fenômenos relacionados que podem ser associados ao termo analfabetismo funcional, por exemplo, o analfabetismo por regressão, que caracterizaria grupos que, tendo alguma vez aprendido a ler e escrever, devido ao não uso dessas habilidades, retornam à condição de analfabetos. Especialmente na França, o termo iletrisme foi utilizado para caracterizar populações que, apesar de terem realizado as aprendizagens correspondentes, não integram tais habilidades aos seus hábitos, ou seja, em sua vida diária não leem nem escrevem, independentemente do fato de serem capazes de fazê-lo ou não. Na literatura americana, o sentido mais corrente do termo é aquele que referencia o alfabetismo funcional às basic skills, ou competências funcionais. Kirsch e Julgeblut e Flecha et al. (1993 apud RIBEIRO, 1997) referem- se como fonte importante para essa abordagem da temática, o programa de pesquisa desenvolvido na Universidade do Texas desde 1973, sob a denominação Adult Performance Level Project (ALP). Através de metodologias 21 quantitativas e qualitativas, esse programa visa definir as competências funcionais necessárias ao desempenho satisfatório em contextos socioculturais determinados. Ao lado da leitura, da escrita e do cálculo, o programa considera como competências funcionais a linguagem oral, a informática, a resolução de problemas e as habilidades interpessoais aplicadas a contextos como a economia doméstica, a saúde, o trabalho, os recursos comunitários, as leis e o governo. Uma característica marcante desse enfoque é a tentativa de ir além de uma concepção acadêmica da alfabetização, que a limita ao desempenho de tarefas tipicamente escolares. Investigando o nível e o tipo de competências necessárias para que os indivíduos possam se desenvolver no seu contexto sociocultural, tal perspectiva abre, inclusive, a possibilidade de se questionar a adequação dos currículos escolares com relação às demandas da sociedade. Permite ainda que se amplie a compreensão sobre os problemas relativos ao analfabetismo, uma vez que o não domínio suficiente das habilidades pode ser associado não apenas a deficiências dos sistemas educativos, mas a questões mais amplas como as características do mercado de trabalho e dos meios de comunicação de massa ou a distribuição social das oportunidades de desenvolvimento cultural. Tal perspectiva de análise pode informar, portanto, tanto as políticas de educação formal quanto as de educação não formal de jovens e adultos e as políticas culturais de forma geral. Flecha et al (1993 apud RIBEIRO, 1997) comentam que, não por acaso, o conceito de analfabetismo funcional originou- se nos Estados Unidos, onde a vertente não escolar da educação de adultos, especialmente aquela voltada ao desenvolvimento comunitário, se desenvolveu com muita vitalidade teórica e prática. Anderson (1995 apud RIBEIRO, 1997) afirma que relacionada a essa orientação não escolarizante, outra característica do enfoque do alfabetismo como competência funcional é a consideração da natureza multidimensional do fenômeno. Nos Estados Unidos, correntes educacionais tecnicistas disseminaram pacotes instrucionais dedicados à alfabetização que se propõem a administrar o ensino de forma científica, graduando a complexidade das aprendizagens e oferecendo, como complemento, testes padronizados para 22 avaliação e controle do processo. Esses testes padronizados pressupõem uma concepção da leitura como um conjunto de sub-habilidades discretas que, somando-se umas às outras sequencialmente, compõem uma habilidade genérica de leitura, passível de ser aplicada a qualquer contexto. Para Scribner; Cole ; Heath ; Cook-Gumperz (1991 apud RIBEIRO, 1997), organizando sub-habilidades numa escala única de dificuldades e selecionado um ponto qualquer dessa escala como diferencial, os indivíduos poderiam, a partir dela, ser classificados genericamente como alfabetizados ou analfabetos. Na década de 1980, tal concepção do alfabetismo foi fortemente questionada por um amplo conjunto de estudos que evidenciaram a natureza sociocultural das práticas de leitura e escrita, enfocando seu estudo a partir de contextos específicos. Tais estudos evidenciam uma grande variedade de práticas de alfabetismo, condicionadas tanto pela diversidade dos materiais de leitura quanto de propósitos a partir dos quaisos leitores abordam os textos. Grandes pesquisas sobre o alfabetismo/analfabetismo, realizadas nas últimas décadas, abandonam a tentativa de estabelecer uma escala única de habilidades em prol do estabelecimento de conjuntos de tarefas socialmente relevantes, nas quais usos de materiais impressos ou escritos podem estar implicados. Mais do que a definição de sub-habilidades que comporiam habilidades de leitura ou de escrita genéricas, esses estudos procuram investigar a capacidade dos indivíduos de aplicar essas habilidades para atingir metas específicas, socialmente significativas. Sobre o uso dos conceitos podemos dizer que a ampla disseminação do termo analfabetismo funcional em âmbito mundial deveu-se basicamente à ação da UNESCO, que adotou o termo na definição de alfabetização que propôs, em 1978, visando padronizar as estatísticas educacionais e influenciar as políticas educativas dos países-membros. A definição de alfabetização que a UNESCO propusera em 1958 fazia referência à capacidade de ler compreensivamente ou escrever um enunciado curto e simples relacionado à sua vida diária. Vinte anos depois, a mesma UNESCO proporia outra definição, qualificando a alfabetização de funcional quando suficiente para que os indivíduos possam inserir-se adequadamente 23 em seu meio, sendo capazes de desempenhar tarefas em que a leitura, a escrita e o cálculo são demandados para seu próprio desenvolvimento e para o desenvolvimento de sua comunidade. O qualitativo funcional insere a definição do alfabetismo na perspectiva do relativismo sociocultural. Tal definição já não visa limitar a competência ao seu nível mais simples (ler e escrever enunciados simples referidos à vida diária), mas abrigar graus e tipos diversos de habilidades, de acordo com as necessidades impostas pelos contextos econômicos, políticos ou socioculturais. O apelo do termo analfabetismo funcional nos fóruns internacionais pode ser atribuído a essa polissemia de sua definição. Para os países desenvolvidos, que já não enfrentavam problemas relativos ao analfabetismo absoluto, tendo universalizado a educação básica, o conceito pôde servir para problematizar tanto a qualidade e a adequação do ensino oferecido pela escola, quanto para postular o valor da educação não formal e da educação continuada. Na América Latina, onde ocorreu, nas décadas de 1970 e 1980, uma importante expansão dos sistemas de ensino elementar, o termo pôde servir também de referência para caracterizar a situação de uma grande parte da população que, apesar de ter tido acesso à escola, não conseguiu completar a educação básica, seja pela precariedade do ensino oferecido, seja pela precariedade das condições socioeconômicas a que se encontrava submetida. Reconhecendo a dificuldade de se estabelecer com precisão quais seriam as demandas referentes à alfabetização colocadas pelas mais distintas realidades nacionais e regionais, assim como os problemas envolvidos em estabelecer índices quantitativos que permitissem comparações válidas, a própria UNESCO sugeriu que se tomasse como indicador do nível de alfabetismo de países ou regiões um determinado número de anos de escolarização. A variância no número de anos de estudo considerado como suficiente em diferentes regiões atesta a maleabilidade do conceito; Castell, Luke e MacLennan (1986 apud RIBEIRO, 1997) reportam que, no Canadá, análises de dados censitários tomam nove anos de escolaridade formal como indicador do alfabetismo funcional; em documentos oficiais do governo espanhol, comentados por Flecha et al. (1993 apud Ribeiro, 1997), aparece a 24 referência a seis anos de escolaridade, enquanto nos países de Terceiro Mundo, o mais comum é identificar o alfabetismo funcional a apenas três ou quatro anos de estudo conforme diz Lodoño (1991 apud RIBEIRO, 1997). Certamente, essa variância no número de anos de escolaridade considerados como mínimo necessário não deriva, necessariamente, de diferentes graus de exigências impostos pelos diferentes contextos, mas, principalmente, das metas educacionais consideradas como factíveis para os países, de acordo com seu nível de desenvolvimento socioeconômico. Não podemos perder de vista que o papel desempenhado internacionalmente pela UNESCO é, principalmente, de influência política e não de caráter científico. A flexibilidade do conceito também deu margem a interpretações antagônicas do ponto de vista ideológico. Comentando documentos produzidos pelo Seminário Internacional de Persépolis, promovido pela UNESCO em 1975, Street (1984 apud RIBEIRO, 1997) identifica interpretações antagônicas que se abrigavam sob o mesma definição proposta pela UNESCO. Para uns, a funcionalidade da alfabetização dizia respeito, principalmente, à formação de mão-de-obra apta a adaptar-se às exigências da modernização econômica, para outros, a funcionalidade deveria ser interpretada como adequação das iniciativas de alfabetização aos interesses da população pobre, oprimida ou marginalizada, devendo, nesse sentido, visar à transformação das estruturas políticas e econômicas e não à adaptação dos indivíduos a elas. Soares (1992 apud RIBEIRO, 1997) identifica esse primeiro enfoque da natureza social da alfabetização como sua versão fraca, progressista ou liberal e a última como sua versão forte, radical ou revolucionária. Em Educación, Comunicación y Lenguaje, Isabel Infante (1983 apud RIBEIRO, 1997) analisa como esses diferentes enfoques teóricos se traduzem em diferentes práticas alfabetizadoras, tomando como exemplo duas iniciativas de grande influência em âmbito mundial. Analisa o Programa Experimental Mundial de Alfabetização, nitidamente filiado às teorias da modernização de corte economicista. 25 O Programa, promovido pela UNESCO, e aplicado em 11 países do Terceiro Mundo, foi planejado como experimento da hipotética correlação entre alfabetização e desenvolvimento. Por meio de uma alfabetização funcional, ligada às necessidades mais imediatas dos adultos analfabetos, esperava-se provocar mudanças atitudinais associadas à modernização. Destacando um rol de resultados mensurados em avaliação do programa, onde predomina uma lógica de tipo individualista de aproveitamento de recursos e adaptação ao mercado de trabalho, a autora demonstra em que medida o conceito de desenvolvimento é limitado a uma perspectiva economicista e capitalista. Como contraponto a esse enfoque, Infante 1983 apud RIBEIRO, 1997) analisa os programas de alfabetização de adultos de inspiração freireana, que concebem o desenvolvimento a partir de esferas microssociais, nas quais os próprios alfabetizandos, ampliando sua consciência por meio da aprendizagem da leitura e do diálogo, poderiam definir os caminhos do desenvolvimento que correspondiam a seus anseios. A ênfase nas demandas de natureza econômica, especialmente aos ditames do mercado de trabalho, é uma característica que ainda se pode identificar na fundamentação de estudos mais atuais de grande influência, como o de Kirsch e Julgeblut (1986 apud RIBEIRO, 1997). Isso não justifica, entretanto, que o enfoque do alfabetismo como competência funcional seja necessariamente limitado a uma perspectiva pragmatista ou economicista. Graff (1995 apud RIBEIRO, 1997) é outro estudioso que reúne suficientes evidências históricas de que não necessariamente os graus de alfabetismo da população estão correlacionados ao desenvolvimento ou à modernização econômica. Se tomarmos o caso do Brasil contemporâneo, é também inegável que uma grande parte dos postos de trabalho disponíveis exige nenhuma ou pouquíssimas habilidades de leitura e escrita. O fato de que, apesar disso, a alfabetização e a escolarização elementar venham se expandindo, tanto no Brasil como em escala mundial, atesta que a funcionalidade dessas competências excedea dimensão econômica e deve ser considerada, com igual ou maior ênfase, na sua relação com as dimensões políticas e culturais do desenvolvimento social. 26 É indiscutível o fato de que a alfabetização é uma necessidade para todos os indivíduos que integram sociedades modernas, provendo-lhes meios de desempenhar várias atividades associadas ao trabalho ou ao âmbito doméstico, meios de melhorar o exercício efetivo de direitos e responsabilidades de cidadania. O valor do acesso à leitura e à escrita reside também no fato de serem meios para se aprender outras habilidades, ampliando a autonomia das pessoas com relação ao autoaprendizado e à educação continuada. Requerimentos sociais dessa magnitude invalidam a restrição da alfabetização aos rudimentos da leitura e da escrita. Não se podem conceber competências básicas como necessariamente simples ou rudimentares; o básico está relacionado ao fato de se tratar de competências que todas as pessoas, em princípio, deveriam dominar, sejam elas simples ou complexas (RIBEIRO, 1997). Não podemos nos furtar a encarar de frente que o analfabetismo é a expressão da pobreza, consequência inevitável de uma estrutura social injusta e seria ingênuo combatê-Io sem combater suas causas. • Como? Conhecendo as condições de vida do analfabeto, sejam elas as condições objetivas, como o salário, o emprego, a moradia, sejam as condições subjetivas, como a história de cada grupo, suas lutas, organização, conhecimento, habilidades, enfim, sua cultura. Mas, conhecendo-as na convivência com ele e não apenas “teoricamente”. Não pode ser um conhecimento apenas intelectual, formal. O sucesso de um programa de educação de jovens e adultos é facilitado quando o educador é do próprio meio. Um programa de educação de adultos, por essa razão, não pode ser avaliado apenas pelo seu rigor metodológico, mas pelo impacto gerado na qualidade de vida da população atingida. A educação de adultos está condicionada às possibilidades de uma transformação real das condições de vida do aluno-trabalhador. Os programas de educação de jovens e adultos estarão a meio caminho do fracasso se não levarem em conta essas premissas, sobretudo na formação do educador. O 27 analfabetismo não é doença ou “erva daninha”, como se costumava dizer entre os educadores de algumas décadas atrás. É a negação de um direito ao lado da negação de outros direitos. O analfabetismo não é uma questão pedagógica, mas uma questão essencialmente política. • Quem é o educador de jovens e adultos? Já dissemos que sendo o educador do próprio meio é muito mais fácil a educação de jovens e adultos. Contudo, nem sempre isso é possível. É preciso formar educadores provenientes de outros meios não apenas geográficos, mas também sociais (GADOTTI, 2010). No mínimo, esses educadores precisam respeitar as condições culturais do jovem e do adulto analfabeto. Eles precisam fazer o diagnóstico histórico-econômico do grupo ou comunidade onde irão trabalhar e estabelecer um canal de comunicação entre o saber técnico (erudito) e o saber popular. Ler sobre a educação de adultos não é suficiente. É preciso entender, conhecer profundamente, pelo contato direto, a lógica do conhecimento popular, sua estrutura de pensamento em função da qual a alfabetização ou a aquisição de novos conhecimentos têm sentido. Não se pode medir a qualidade da educação de adultos pelos palmos de saber sistematizado que foram assimilados pelos alunos. Ela deve ser medida pela possibilidade que os dominados tiveram de manifestar seu ponto de vista e pela solidariedade que tiver criado entre eles. A partir disso vê-se a importância da organização coletiva. É preciso criar o interesse e o entusiasmo pela participação: o educador popular é um animador cultural, um articulador, um organizador, um intelectual (no sentido gramsciano). O educador popular não pode ser nem ingênuo e nem espontaneísta. O espontaneísmo – princípio que consiste em ficar esperando que a mudança venha de cima, sem esforço, sem disciplina, sem trabalho – é sempre conservador. O educador popular, no contato direto com a cultura popular, descobrirá rapidamente a diferença entre espontaneísmo e a espontaneidade que é uma característica positiva da mentalidade popular. 28 Como dizia Marx, em seu famoso livro Crítica ao Programa de Gotha, supor que o Estado faça isso de forma massiva é uma ingenuidade. Mas isso é perfeitamente possível em pequenos grupos. Construímos o futuro a partir de um lugar, isto quer dizer que é a partir de uma referência local que é possível pensar o nacional, o regional e o internacional. Segundo Gadotti (2010) nós, latino-americanos, temos uma longa experiência de regimes autoritários tentando impor uma “identidade nacional”, sem levar em conta a mentalidade popular, muitas vezes baseando- se em pressupostos autoritários como o conceito de “segurança nacional”. Conhecemos o mundo, primeiro através dos nossos pais, através do nosso círculo imediato e só depois é que, progressivamente, alargamos nosso universo. O bairro, e logo em seguida, a cidade, são os principais meios educativos de que dispomos. A cidade é a nossa primeira instância educativa. É ela que nos insere num país e num mundo em constante evolução. Não se trata de negar o acesso à cultural geral elaborada, que se constitui num importante instrumento de luta para as minorias. Trata-se de não matar a cultura primeira do aluno. Trata-se de incorporar uma abordagem do ensino/aprendizagem que se baseia em valores e crenças democráticas e procura fortalecer o pluralismo cultural num mundo cada vez mais interdependente. Por isso que a educação de adultos deve ser sempre uma educação multicultural, uma educação que desenvolve o conhecimento e a integração na diversidade cultural. É uma educação para a compreensão mútua, contra a exclusão por motivos de raça, sexo, cultura ou outras formas de discriminação. A filosofia primeira, na qual o educador de jovens e adultos precisa ser formado, é a filosofia do diálogo. E o pluralismo é também uma filosofia do diálogo. Até a segunda guerra mundial, no plano internacional, a educação popular era concebida como a extensão da educação formal para todos, sobretudo, para os habitantes das periferias urbanas e zonas rurais. A partir da I Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, realizada na Dinamarca (1949), a educação de adultos foi concebida como uma espécie de educação moral. A escola não havia conseguido evitar a 29 barbárie da guerra. Ela não havia dado conta de formar o homem para a paz. Por isso se fazia necessária uma educação “paralela”, fora da escola, cujo objetivo seria contribuir para o respeito aos direitos humanos e para a construção de uma paz duradoura, que seria uma educação continuada para jovens e adultos, mesmo depois da escola. Depois da 2ª Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, realizada em Montreal (1963), aparecem dois enfoques distintos: a educação de adultos concebida como uma continuação da educação formal, como educação permanente, e de outro lado, a educação de base ou comunitária. Depois da 3ª Conferência Internacional sobre Educação de Adultos realizada em Tóquio (1972), a educação de adultos voltou a ser entendida como suplência da educação fundamental (escola formal). O objetivo da educação de adultos era reintroduzir jovens e adultos, sobretudo os analfabetos, no sistema formal de educação. Em 1985, foi realizada a 4ª Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, na cidade de Paris, que se caracterizou pela pluralidade de conceitos. Foram discutidos muitos temas, entre eles: alfabetização de adultos, pós-alfabetização, educação rural, educação familiar, educação da mulher, educação em saúde e nutrição, educação cooperativa, educação vocacional,educação técnica. Dessa forma, a Conferência de Paris “implodiu” o conceito de educação de adultos. A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien (Tailândia), em 1990, entendeu que a alfabetização de jovens e adultos seria uma primeira etapa da educação básica. Ela consagrou, assim, a ideia de que a alfabetização não pode ser separada da pós-alfabetização, isto é, separada das “necessidades básicas de aprendizagem”. No contexto latino-americano diversas concepções vão surgindo historicamente e se dividindo em múltiplas correntes e tendências que continuam até hoje. Até os anos de 1940 a educação de adultos era concebida como uma extensão da escola formal, principalmente para a zona rural. Era entendida como democratização da escola formal. 30 Na década de 1950, a educação de adultos era entendida principalmente como educação de base, como desenvolvimento comunitário. No final dos anos de 1950 duas são as tendências mais significativas na educação de adultos: a educação de adultos entendida como educação libertadora, como “conscientização” (Paulo Freire) e a educação de adultos entendida como educação funcional (profissional), isto é, o treinamento de mão-de-obra mais produtiva, útil ao projeto de desenvolvimento nacional dependente. Na década de 1970, essas duas correntes continuam. A primeira entendida basicamente como educação não formal, alternativa à escola, e a segunda, como suplência da educação formal. No Brasil se desenvolve nessa corrente o sistema MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), com princípios opostos aos de Paulo Freire. Segundo Paiva (1987), no Brasil, até a segunda guerra mundial, a educação de adultos foi integrada à educação chamada popular, isto é, uma educação para o povo, que significava difusão do ensino elementar. Depois da segunda guerra, seguindo tendências mundiais, a educação de adultos foi concebida basicamente como independente da educação elementar, muitas vezes com objetivos políticos populistas. A história da educação de adultos, propriamente dita, no Brasil, poderia ser dividida em três períodos: 1° - de 1946 a 1958, onde foram realizadas grandes campanhas nacionais de iniciativa oficial, chamadas de “cruzadas”, sobretudo para “erradicar o analfabetismo”, entendido como uma “chaga”, uma doença como a malária. Por isso se falava em “zonas negras de analfabetismo”. 2° - de 1958 a 1964. Em 1958 foi realizado o 2° Congresso Nacional de Educação de Adultos, que contou com a participação de Paulo Freire. Partiu daí a ideia de um programa permanente de enfrentamento do problema da alfabetização que desembocou no Plano Nacional de Alfabetização de Adultos, dirigido por Paulo Freire e extinto pelo Golpe de Estado de 1964, depois de um ano de funcionamento. A educação de adultos era entendida a partir de uma visão das causas do analfabetismo, como educação de base, articulada com as 31 “reformas de base”, defendidas pelo governo popular/populista de João Goulart. Os CPCs (Centros Populares de Cultura), extintos logo depois do golpe militar de 1964, e o MEB (Movimento de Educação de Base), apoiado pela Igreja e cuja duração foi até 1969, foram profundamente influenciados por essas ideias. 3° - o governo militar insistia em campanhas como a “Cruzada do ABC” (Ação Básica Cristã) e posteriormente, com o MOBRAL. O MOBRAL foi concebido como um sistema que visava basicamente ao controle da população (sobretudo a rural). Em seguida, com a redemocratização (1985), a “Nova República”, sem consultar os seus 300 mil educadores extingue o MOBRAL e cria a Fundação Educar, com objetivos mais democráticos, mas sem os recursos de que o MOBRAL dispunha. A educação de jovens e adultos foi, assim, enterrada pela “Nova República” e o autodenominado "Brasil Novo" (1990) do primeiro presidente eleito depois de 1961, criou o PNAC (Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania), apresentado com grande pompa publicitária em 1990 e extinto no ano seguinte sem qualquer explicação para a sociedade civil que o havia apoiado (GADOTTI, 2010). Em 1989, com a finalidade de preparar o Ano Internacional da Alfabetização (1990), foi criada no Brasil a Comissão Nacional de Alfabetização, de início coordenada por Paulo Freire e depois por José Eustáquio Romão. Ela ainda continua, até hoje, com o objetivo de elaborar diretrizes para a formulação de políticas de alfabetização a longo prazo que nem sempre são assumidas pelo governo federal. Explica-se assim o histórico distanciamento entre sociedade civil e Estado no Brasil no que se refere aos problemas educacionais. Até hoje existe muita desconfiança em relação às iniciativas do Estado, mesmo quando seus dirigentes têm compromisso com o povo. Wanderley (1985, p. 58-79 apud Gadotti, 2010) distingue três orientações da educação popular no Brasil que podem ser encontradas em outros países da América Latina: 32 1. A educação popular com a orientação de integração, uma educação instrumental, entendida como popularização da educação oficial sob a hegemonia das classes dominantes, com o objetivo de consolidar o capitalismo dependente, integrando principalmente o campesinato. 2. A educação popular com a orientação nacional-desenvolvimentista visando à implantação de um capitalismo autônomo, nacional e popular. Seria uma versão brasileira da “educação funcional” (UNESCO). Pretendia-se distribuir os benefícios do progresso social e econômico sem questionar, contudo, a legitimidade social do modelo capitalista dependente. 3. A educação popular com a orientação de libertação com o objetivo de estimular as potencialidades do povo através da conscientização, da capacitação e de ampla participação social. A partir dessa orientação, certos grupos problematizaram, criticaram a ordem capitalista e começaram a exigir mudanças estruturais profundas. As perspectivas atuais da EJA e da educação popular Tomando como parâmetro a relação entre Estado e educação popular, podemos dividir a educação de adultos, enquanto concepção particular da educação popular, em duas grandes tendências teórico-práticas: 1. A tendência – que poderíamos chamar de maniqueísta – não admite o Estado como parceiro da educação popular. Opõe mecanicamente Estado e sociedade civil, o oficial e o alternativo, entre outros. Para essa tendência, o Estado visa sempre à manipulação e à cooptação ao passo que a educação popular visa sempre à participação e à emancipação. Por isso elas seriam inconciliáveis. 2. A tendência integracionista que propõe a colaboração entre Estado, igreja, empresariado, sociedade civil, entre outros. Essa tendência divide-se em duas vertentes. A vertente que defende a simples extensão da escola das elites para toda a população, conforme pontua Paiva (1970, p. 39) e outra que defende uma nova qualidade da escola pública, com caráter popular. 33 Concretamente, o que se nota hoje no Brasil, como observa Brandão, (1984, p. 196-197 apud GADOTTI, 2010, p. 38) é: 1° - uma retração do Estado e consequente ampliação dos setores da sociedade civil; 2° - uma ampliação e diferenciação de programas; 3° - acentuada ampliação dos trabalhos de educação dos menos qualificados; 4° - continuidade das experiências de educação popular de setores de vanguarda da Igreja; 5° - aumento de agências civis de trabalho pedagógico; 6° - aumento de iniciativas populares como educação sindical, educação política, entre outas. Com a retração do Estado, multiplicaram-se as iniciativas da sociedade civil, sobretudo após a extinção do MOBRAL, mas apareceu o problema da pulverização dessas iniciativas e da duplicação de esforços que até hoje não foi resolvida, apesar das várias tentativas dos centros de assessoria dos movimentos populares. A criação de uma Central de Movimentos Populares (hojeem construção) poderá ser um caminho de superação desse problema. Gadotti (2010) infere que hoje o governo está desarmado na teoria e na prática para enfrentar o problema da educação para todos os brasileiros. Assinou a “Declaração Mundial sobre Educação Para Todos” e o “Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem”, principais documentos da Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, Tailândia, 1990), mas não demonstra vontade política para honrar os compromissos assumidos. Além disso, enfrenta o problema da sua legitimidade diante da população pelos escândalos nos quais está envolvido. Por outro lado, sofremos todos da crise de paradigmas da educação em geral, crise exemplificada pelo fracasso da maioria dos programas de alfabetização dos países do Terceiro Mundo. 34 Segundo a UNESCO (1991, p. 59), o número de analfabetos no mundo tem aumentado: 742 milhões em 1970, 814 milhões em 1980 e 884 milhões em 1990. O Brasil engrossa essas estatísticas com uma gorda contribuição: ainda que a taxa de analfabetismo (em sentido restrito) tenha caído de 26% (1980) para 18,8% (1989), o número de analfabetos (com 15 ou mais anos de idade) aumentou de 1983 até hoje de 17.204.041 para 17.587.580 (IBGE, 1988 apud GADOTTI, 2010). Esse fracasso pode ser explicado também por problemas de concepção pedagógica. Alfabetizar não é uma coisa intrinsecamente neutra ou boa; depende do contexto. A alfabetização na cidade e no campo tem consequências diferentes para os alfabetizandos. A alfabetização por si só não liberta. É um fator somado a outros fatores. E o alfabetizando que aprende a ler e escrever, mas não tem como exercitar-se na leitura e na escrita, regride ao analfabetismo (GADOTTI, 2010). Existem também problemas metodológicos não resolvidos pela maioria dos programas implantados. Na verdade, ninguém alfabetiza ninguém. O alfabetizador não alfabetiza o aluno. Ele é o mediador entre o aprendiz e a escrita, entre o sujeito e o objeto deste processo de apropriação do conhecimento. Segundo Gadotti (2010), para exercer essa mediação, o professor precisa conhecer o sujeito e o objeto da alfabetização. Esta mediação consiste em estruturar atividades que permitam ao alfabetizando agir e pensar sobre a escrita e o mundo. Como dizia Piaget, é o sujeito que constrói o seu próprio conhecimento para se apropriar do conhecimento dos outros. O aluno adulto não pode ser tratado como uma criança cuja história de vida apenas começa. Ele quer ver a aplicação imediata do que está aprendendo. Ao mesmo tempo, apresenta-se temeroso, sente-se ameaçado, precisa ser estimulado, criar autoestima, pois a sua “ignorância” lhe traz tensão, angústia, complexo de inferioridade. Muitas vezes tem vergonha de falar de si, de sua moradia, de sua experiência frustrada da infância, principalmente em relação à escola. É 35 preciso que tudo isso seja verbalizado e analisado. O primeiro direito do alfabetizando é o direito de se expressar. Há muitos anos que a andragogia2 nos tem ensinado que a realidade do adulto é diferente da realidade da criança, mas ainda não incorporamos esse princípio nas nossas metodologias. Eliminar o analfabetismo em sua origem exige que o sistema público de ensino seja capaz de reter o contingente de alunos matriculados no ensino fundamental. É necessário oferecer escola pública para todos, adequada à realidade onde está inserida, para que seja de qualidade. Neste sentido, ela deve ser democrática pela gestão participativa, que integre a comunidade e os movimentos populares na construção e definição de sua identidade. Enfim, ela deve ser autônoma, isto é, cidadã (GADOTTI, 2010). 2 Veremos a Andragogia em maiores detalhes um pouco adiante. 36 UNIDADE 5 - FUNDAMENTOS SÓCIO-HISTÓRICO E FILOSÓFICOS DA EJA Por que educar o jovem e o adulto? A sociedade contemporânea regida pela lógica da racionalização dos recursos financeiros focaliza o olhar para a educação da criança e não para os adultos e os idosos. Há uma racionalização do tempo de trajetória escolar por idade, estabelecendo-se a faixa etária escolarizável para a educação básica dos 07 aos 14 anos. Esse olhar para a criança e não para o adulto está pautado em duas representações: 1) Uma visão essencialista de mundo que pressupõe a criança estar em processo de desenvolvimento físico, racional, moral e social, enquanto o adulto já está pronto em seu desenvolvimento bio-psico-social. 2) Uma visão pragmática de mundo, de caráter utilitarista, que considera a educação de adultos inútil, porque eles já viveram a vida toda sem serem alfabetizados. Desta forma, para Sawaia (1999), o tempo considerado para a aprendizagem é a infância que tem uma perspectiva de futuro (ser produtor na sociedade) e na fase adulta esse tempo de preparação para o futuro já passou. E, quem não teve acesso à escola ou não concluiu sua trajetória escolar nessa faixa etária, passa a ter dificuldades em iniciar ou prosseguir os seus estudos. A atenção do sistema educacional é para a criança considerada em processo de desenvolvimento bio-psico-social e com perspectiva de futuro. O adulto é secundarizado pelo sistema educacional porque é considerado como pronto em seu desenvolvimento bio-psico-social e sem perspectivas de futuro. Esse olhar essencialista e utilitarista da educação em relação ao adulto é questionado por Freire que analisa a educação a partir do significado de “sujeito” expresso através de aportes teóricos filosófico antropológicos, epistemológicos e éticos-políticos, como veremos adiante. 1) Aporte Filosófico-antropológico: 37 O ser humano é um “ser de busca”. É um ser “inconcluso”, inacabado e incompleto, que por perceber “que não sabe tudo”, busca o saber, o conhecimento e o seu aprimoramento enquanto humano. Por saber-se inacabado é que busca a perfeição. 2) Aporte Epistemológico: O ser humano é um “corpo consciente”, cuja consciência é “intencionada ao mundo; consciência de algo” (de si e do mundo), pressupondo que a consciência se constitui através da intenção à realidade objetiva, em uma dimensão dinâmica, na medida em está direcionada ao mundo para captá-lo, objetivá-lo e transformá-lo. O ser humano “está no mundo e com o mundo”. De acordo com Freire (1987, p. 64), A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca (...) É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. O ser humano é “sujeito gnosiológico”, porque em suas relações uns com os outros no mundo e com o mundo conhecem e comunicam-se sobre o objeto conhecido. Nesta relação comunicativa ensaiam a experiência de assumirem-se como seres sociais e históricos, como seres pensantes, comunicantes, transformadores, criadores e realizadores de sonhos. Enfim, assumirem-se como sujeitos implica na não negação ou exclusão do outro. Para Freire (1987, p. 46), “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a ‘outredade’ do ‘não-eu’ ou do ‘tu’, que me faz assumir a radicalidade de meu ‘eu’”. Ao afirmar que ninguém sabe tudo e tampouco ninguém é ignorante de tudo, colocando o conhecimento num processo dialético e de constante superação, Freire pressupõe uma relativização no processo de conhecimento. 38 O ser humano é um “sujeito que se comunica e dialoga com o outro”. Na visão de Freire o diálogo e a comunicação são fatores primordiais da relação humana e a condição para o ser humano formar-se como pessoa. Para Freire e Shör (1986), o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso progressohistórico do caminho para nos tornarmos seres humanos. O diálogo é o momento em que homens e mulheres se encontram para refletir sobre sua realidade, sobre o que sabem e o que não sabem, como sujeitos conscientes e comunicativos que são. Além da dimensão existencial, o diálogo em Freire apresenta um caráter ético-político, ao possibilitar ao outro, aos oprimidos a dizerem sua palavra expressando seu pensamento, suas opções e seu modo de ser (OLIVEIRA, 2004). Foi exatamente porque nos tornamos capazes de dizer o mundo, na medida em que o transformávamos, em que o reiventávamos, que terminamos por nos tornar ensinantes e aprendizes. Sujeitos de uma prática que se veio tornando política, gnosiológica, estética e ética (FREIRE, 1993b, p.19). 3) Aporte Ético-Político: O ser humano é um “ser de relações” (reflexivo, consequente, transcendente e temporal), que estabelece uma relação dialética homem- mundo. É um ser “concreto”, que existe no mundo e com o mundo, enquanto “corpo consciente”, cuja consciência é intencionada para fora de si, para um mundo que não é mero objeto de contemplação, mas tem a marca de sua ação. Nesta relação com o mundo, o ser humano é concebido como “ser de práxis” (reflexão-ação) e, assim como o mundo, é também compreendido como “histórico-cultural”, “na medida em que, ambos inacabados, se encontram numa relação permanente, na qual o homem, transformando o mundo, sofre os efeitos de sua própria transformação” (FREIRE, 1980, p.76). Para Freire (2000), mulheres e homens situados em um contexto histórico-social estabelecem relações dialéticas com os outros seres, sendo capazes de refletir sobre a sua própria realidade fazendo-a objeto de seus 39 conhecimentos bem como de transformá-la. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo à razão de que faz a História. Nela, por isso mesmo, deve deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de puro objeto. O ser humano é um “sujeito que pergunta e problematiza a realidade”. O perguntar faz parte do processo de existir humano, sendo fundamental para a sua compreensão e formação. A pergunta como parte do existir humano está vinculada à curiosidade, à problematização de homens e mulheres sobre si mesmo e sobre a realidade social, à sua formação humana, ética e política e à relação dialógica entre os seres humanos. O ser humano, portanto, problematiza a si mesmo. O ato de perguntar, instigado pela curiosidade eminentemente humana, faz parte da construção de sua autonomia como sujeito. Para Freire (1997, p. 35), a curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haverá criticidade sem a curiosidade que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando algo a ele que fazemos. Além do existencial, o ato de perguntar caracteriza-se como político, porque o perguntar é um ato democrático. Permite ao outro contestar, optar e dizer a sua palavra, não aceitando o saber feito, as respostas prontas, possibilitando-lhe ser sujeito e assumir o risco de sua intervenção. O ser humano é um “sujeito histórico-social, ético, político e cultural”. “Sujeito de escolhas (opções) e de decisões”. Freire pressupõe que homens e mulheres possuem capacidade de pensar, de conjeturar, de criticar, de comparar, de escolher, de decidir, de projetar e sonhar uma nova sociedade. Assim, o ser humano consciente de seus condicionamentos sociais, mas não fatalisticamente submetido aos destinos estabelecidos, abre o caminho à sua intervenção no mundo. A escolha e a decisão são atos ético- políticos do sujeito (OLIVEIRA, 2004). Que a nossa presença no mundo, implicando escolha e decisão, não seja uma presença neutra. A capacidade de observar, de comparar, de avaliar 40 para, decidindo, escolher, com o que, intervindo na vida da cidade, exercemos nossa cidadania, se erige então como uma competência fundamental. Se a minha não é uma presença neutra na história, devo assumir tão criticamente quanto possível sua politicidade. Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenho para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes (FREIRE, 2000, p. 33). Na visão de Freire, a consciência crítica torna-se um processo “libertador”, pois exercitando a práxis (reflexão-ação), os seres humanos se descobrem como pessoas e, deste modo, o mundo, os homens e as mulheres, a cultura e o trabalho assumem o seu verdadeiro significado. O processo de desvelamento crítico da realidade realizado entre mulheres e homens em sua relação de comunicação consiste na conscientização. Pelo exercício da práxis homens e mulheres se descobrem pessoas situadas no mundo, como seres produtores da cultura e sujeitos da história. A história para Freire (2000, p. 40) é um processo dialético humano, porque “não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos faz e que nos torna portanto históricos” e de possibilidade, na medida em que considera a mudança difícil, mas possível. A História é tempo de possibilidade e não de determinações. E se é tempo de possibilidades, a primeira consequência que vem à tona é a de que a História não apenas é mas também demanda liberdade. Lutar por ela é uma forma possível de, inserindo-nos na História possível, nos fazer igualmente possíveis (FREIRE, 1993b, p. 35). Neste processo histórico de formação do sujeito, o sonho e a esperança de modificação da sociedade fazem parte constitutiva. Para Freire (1993, p. 91), não há perspectiva de intervenção nem de mudança social sem um projeto, sem um sonho possível. Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação de forma histórico social de estar sendo de mulheres e de homens. (...) Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. 41 Desta forma, o “sujeito” Freireano está situado historicamente no mundo e com o mundo e, nesta relação com o mundo e com os outros seres humanos, conhece, forma-se como pessoa humana, problematiza e intervém na realidade social. A partir dessa compreensão de sujeito, Freire (2000, p.40) considera que: • A educação faz parte do existir humano. A educação passa a ter sentido para o ser humano, porque o seu existir é um “estar sendo”, constituído por projetos de vida. “A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação”. A educação passa a ter sentido ao ser humano porque o seu existir se caracteriza como possibilidade histórica de mudanças. Segundo Freire (2000, p. 121), “Somos ou nos tornamos educáveis porque, ao lado da constatação de experiências negadoras da liberdade, verificamos também ser possível a luta pela liberdade e pela autonomia contra a opressão e o arbítrio”. • A educação é um processo de humanização de homens e mulheres, na medida em que rejeita toda forma de manipulação humana e dimensiona os homens e as mulheres como os sujeitos da educação. • A educação é problematizadora da realidade social, ao estimular o diálogo, a curiosidade e o ato de perguntar. • A educação é uma ação de comunicação entre os sujeitos, ao possibilitar a articulação entre os saberes: erudito/científico e os experienciais, do senso comum e a convivência ética com a diferença. • A educação é uma ação pedagógica de coparticipação e corresponsabilidade, cabendo ao educador e ao educando buscarem, pesquisarem o conhecimento, para que a aula seja, de fato, um espaço democrático. • A educação é crítica,
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