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12 Coordenação Leonardo Garcia coleção SINOPSES para concursos LUCIANO L. FIGUEIREDO ROBERTO L. FIGUEIREDO DIREITO CIVIL Direitos Reais 2019 5.ªedição revista, atualizada e ampliada C a p í t u l o I Introdução aos Direitos Reais 1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS REAIS E O SEU CONCEITO Conforme estudado no volume dedicado à Parte Geral, o atual entendimento de um direito civil repersonificado, repersonalizado e despatrimonializado deve sempre ter como ponto de partida e chegada a legalidade constitucional1. Importante, nesse sentido, a lição de Luís Roberto Barroso, segundo a qual os ditames constitucionais servem para embasar as decisões políticas fundamentais, dar unidade ao ordenamento jurídico brasileiro e, finalmente, auxiliar o aplicador do direito quando da interpretação normativa2. Nessa toada, a constitucionalização do Direito Civil, ou a civilização da cons- tituição, impõe ao hermeneuta privatista uma significação uniforme das normas, enxergando o ordenamento jurídico como um corpo único, cuja cabeça é seu Texto Maior. Essa percepção não é diferente na seara dos Direito Reais. Nas pegadas do Direito Civil Constitucional é possível afirmar a existência de um direito real iluminado pelas garantias fundamentais, particularmente diante dos arts. 5º e 6º da Carta Republicana de 1988. Se todos são iguais perante a lei, na forma do inciso II, do art. 5º, da Constituição Federal, o direito de propriedade, garantido constitucionalmente (incisos XXII e XXIII) a todos, deve se efetivar de forma que “a intervenção estatal na esfera dominial privada” aconteça para que “o acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização da propriedade dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituam elementos de realização da função social da propriedade (STF, ADI 2.213-MC)”3. 1. Para aqueles que desejam se aprofundar no entendimento do Direito Civil Constitucional (cons- titucionalização do direito civil ou civilização da constituição) indica-se a leitura do volume dedi- cado à Parte Geral desta coleção (Vol. X), no qual há capítulo específico sobre este tema. 2. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. T. 2, Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 149. 3. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 16. 18 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo `` Como esse assunto foi cobrado em concurso? No tocante à função social da propriedade, o certame para o cargo de Procurador do Estado do Mato Grosso trouxe a seguinte questão: (FCC – 2011 – PGE-MT – Procurador) Considere os seguintes requisitos: I. Aproveitamento racional e adequado. II. Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis. III. Preservação do meio ambiente. IV. Observância da legislação trabalhista. V. Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos tra- balhadores. Cumpre a função social a propriedade rural que atende simultanea- mente aos requisitos: a) I, II, III, IV e V. b) I, II, III e IV, apenas. c) I, II, III e V, apenas. d) I, II, IV e V, apenas. e) I, III, IV e V, apenas. Gabarito: letra a. Três exemplos ilustram essa perspectiva. Observe-se que “a casa é asilo in- violável do indivíduo”, de forma que nenhuma pessoa pode nela penetrar sem o consentimento do morador, “salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (CF, art. 5º, XI). De igual sorte, quando a Carta Republicana permite que o Poder Público se utilize da propriedade particular em caso de iminente perigo público, assegurando-lhe indenização por isso (CF, art. 5º, XXV), é porque o Direito Civil Constitucional se mostra presente na tutela das garantias fundamentais e do interesse público. A própria inclusão do direito à moradia (CF, art. 6º) como um dos direitos e garantias fundamentais revela este diálogo civil-constitucional. A constitucionalização dos direitos reais pode ser ilustrada por consolidados posicionamentos das Casas Judiciais Brasileiras, como se infere da Súmula nº 364 do Superior Tribunal de Justiça, a qual veda a penhora do único imóvel da pessoa humana, justamente para lhe assegurar o fundamental e social direito à moradia, previsto no art. 6º da CF. Como já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema? No mesmo sentido jurídico, a Súmula nº 486 do Superior Tribunal de Justiça, editada no ano de 2012, e precedida por vários julgados do STJ, preceitua que o único imóvel residencial do devedor que esteja loca- do a terceiros é considerado impenhorável, pois consiste em bem de família, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família. 19Cap. I • Introdução aos Direitos Reais Apenas para ilustrar, vejamos os seguintes julgados do Superior Tribu- nal de Justiça acerca desse entendimento: A orientação predominante nesta Corte é no sentido de que a im- penhorabilidade prevista na Lei n. 8.009/90 se estende ao único imóvel do devedor, ainda que este se ache locado a terceiros, por gerar frutos que possibilitam à família constituir moradia em outro bem alugado ou utilizar o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar. II. Recurso especial conheci- do e provido. (STJ, REsp 714.515/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 10.11.2009, DJe 07.12.2009). A aplicação da Súmula n. 486/STJ demanda que o Tribunal de origem (i) reconheça ser o imóvel residencial o único bem do devedor e (ii) que a renda proveniente do aluguel do referido bem seja utili- zada em prol da família. 2. Descabido o agravo regimental que não impugna todos os fundamentos da decisão agravada, a teor do dis- posto na Súmula n. 182/STJ. 3. Agravo regimental a que se nega pro- vimento. (STJ, AgRg no AREsp 215854/SP 2012/0165088-4, Rel. Ministro ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 04.10.2012, DJe 16.10.2012). Não há dúvida, os direitos reais são limitados e otimizados pelos valores cons- titucionais nas mais diversas perspectivas jurídicas. Mas afinal, o que seriam os direitos reais? Qual seria o seu conceito? Os direitos reais se caracterizam como sendo “as relações jurídicas estabeleci- das entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis, tendo como fundamento principal o conceito de propriedade, seja ela plena ou restrita”4. O direito das coisas é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes aos bens suscetíveis de apropriação pelo homem. Tais coisas são, ordinariamente, do mun- do físico, porque sobre elas é possível exercer o poder de domínio5. Com efeito, o “direito das coisas como o conjunto de normas que regem as rela- ções jurídicas concernentes aos bens materiais ou imateriais suscetíveis de apropria- ção pelo homem”6, daí porque, nas palavras de Washington de Barros Monteiro, o “direito real é a relação jurídica em virtude da qual o titular pode retirar da coisa, de modo exclusivo e contra todos, as utilidades que ela é capaz de produzir”7. De tal modo, pode-se extrair a noção de que os direitos reais regulam o fenô- meno da apropriação, bem como as demais relações entre os homens e as coisas, consoante a sua função social. Obviamente que o seu objeto diz respeito a bens economicamente relevantes, escassos. Afinal, à luz dos ensinamentos de Serpa 4. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 4. 5. BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos das Coisas. V. 1. p. 11. 6. DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Sa- raiva, 2009. p. 3. 7. Citado por Maria Helena Diniz. Op. Cit., p. 20. 20 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo Lopez8, o objeto do direito real haverá de satisfazer um interesse econômico, ser passível de gestão econômica autônoma e subordinaçãojurídica. Como é cediço, os chamados direitos reais disciplinam um conjunto de relações jurídicas extremamente relevantes para o direito privado, especialmente no plano econômico. Comprovando o dito, basta se atentar para o instituto da propriedade e a sua importância social, pois, como posto por Luiz Edson Fachin9, “a história do direito é, em boa medida, a história da garantia da propriedade”. É inimaginável o mundo em que vivemos sem a presença econômica da pro- priedade e a interferência desta na vida política e social. Em sendo a apropriação um fenômeno cosmopolita, os direitos reais significam o ramo civilista mais ho- mogêneo no direito ocidental, tendo sido amplamente influenciado pela clássica estrutura romanista. Para Orlando Gomes, o modelo civilista, herdado dos valores sociais do final do século XIX, experimentou crises e transformações, ensejando a necessidade de mudanças, particularmente no campo dos contratos, das famílias e da proprieda- de. Por conta disso, é possível afirmar que “não deve receber tutela possessória o imóvel que descumpra a função social”, sendo visível nessa afirmação a mudança paradigmática da propriedade diante dos novos valores constitucionais10. Assim, com o passar dos anos, muita coisa mudou no contexto brasileiro. A sociedade agrária foi urbanizada. Surgiram nas grandes cidades novos problemas que fogem à configuração tradicionalista da propriedade. A moradia se positivou como direito social e fundamental (CF, art. 6º). A função social da propriedade se tornou uma exigência, uma necessidade jurídica, uma garantia fundamental e um elemento do próprio conceito proprietário (CF, art. 5º, XXII e XXIII). `` Como já se pronunciaram o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal sobre o assunto? Além do arcabouço legal, a jurisprudência também consolidou o en- tendimento exposto anteriormente. De tal modo, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vêm aplicando essa ideia de função social para o deslinde de conflitos judiciais. Nesse sentido, vale transcrever trechos das ementas de tais decisões: [...] 1. A Corte de origem concluiu, em razão de circunstâncias fáticas específicas, que embora tenha sido irregular a alienação das terras pelo assentado original aos ora agravados, esses deram efetivo cum- primento ao princípio constitucional da função social da propriedade, com a sua devida exploração, além de terem demonstrado boa-fé, motivos pelos quais indeferiu 8. Citado por Maria Helena Diniz. Op. Cit., p. 23. 9. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 71. 10. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 8. 21Cap. I • Introdução aos Direitos Reais a reintegração de posse ao INCRA, assegurando-lhe, contudo, o direito à indenização. [...] 3. Agravo regimental não provido. (STF, AI 822429/ SC, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09.04.2014, publicado em 30.05.2014). (Grifos nossos) [...] O usufruto encerra relação jurídica em que o usufrutuário – titular exclusivo dos poderes de uso e fruição – está obrigado a exercer seu di- reito em consonância com a finalidade social a que se destina a proprie- dade. Inteligência dos arts. 1.228, § 1º, do CC e 5º, XXIII, da Constituição. 5 – No intuito de assegurar o cumprimento da função social da pro- priedade gravada, o Código Civil, sem prever prazo determinado, au- toriza a extinção do usufruto pelo não uso ou pela não fruição do bem sobre o qual ele recai. [...] 8 – A extinção do usufruto pelo não uso pode ser levada a efeito sempre que, diante das circunstâncias da hipótese concreta, se constatar o não atendimento da finalidade social do bem gravado. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1179259/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14.05.2013, DJe 24.05.2013). (Grifo nosso) O fenômeno constitucionalizador do direito civil contaminou a seara infraconsti- tucional. O legislador cível passou a positivar regras nitidamente harmoniosas com o plano normativo superior. Exemplifica-se com o § 2º do art. 1.228 do CC/02, ao im- por à propriedade uma função socioambiental, bem como os arts. 1.275, III e 1.276, do mesmo CC/02, ao conferirem a perda proprietária para hipóteses de abandono ou ausência de posse. Infere-se uma necessária visão utilitarista e autônoma da posse, para o fim evidente de viabilizar a dignidade humana (art. 1º, III, da CF) e consagrar os valores constitucionais (art. 3º, CF). A propriedade – clássico instituto civilista pertencente aos direitos reais –, ao ser constitucionalizada, foi funcionalizada, de maneira a harmonizar o patrimônio (ter) ao humano (ser). Viu-se uma clara publicização de regras aplicáveis à pro- priedade, que passou a ter normas cogentes, com nítida função social. Dentro dessa proposta é que os direitos reais devem ser estudados. Na perspec- tiva da eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais nas relações par- ticulares, de maneira que o Texto Constitucional possa ter seus valores irradiados (Teoria da Irradiação) aos institutos cíveis, concretizando a eticidade e a socialidade. `` Como o Superior Tribunal de Justiça tem apreciado essa situação? A jurisprudência tem se mostrado atenta a estes novos paradigmas. Um interessante exemplo está na Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, a qual relativiza o absoluto caráter erga omnes da hipoteca realizada para o fim de não prejudicar o direito fundamental de moradia, a tutela legítima da confiança e da boa-fé daquele que, não sendo construtora ou banco, encontra-se envolvido numa situação de pagamento de imó- vel hipotecado. Aduz a súmula que “a hipoteca firmada entre a constru- tora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. 22 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo As manifestações da sequela, da preferência e da oponibilidade erga omnes como típicas do direito real, reconhecendo tal caráter absoluto enquanto uma de- corrência do direto e imediato poder jurídico sobre a coisa. Todavia, este mesmo direito real há de ser funcionalizado, em prol da pessoa humana, de maneira que “perde o direito real de propriedade o sentido tradicional de absolutismo, o que se evidencia em vários campos”11. Mas o direito real seria uma relação jurídica estabelecida entre um sujeito e uma coisa ou entre pessoas? Esse é um relevante questionamento. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho12 fazem o registro da divergên- cia doutrinária entre a corrente realista e a corrente personalista do direito real, no que diz respeito à possibilidade, ou não, de se admitir a relação jurídica entre a pessoa e a coisa. No mesmo sentido, Flávio Tartuce13. Eis os posicionamentos: Posicionamento 1 (Corrente Personalista): os defensores da corrente perso- nalista não admitem a existência de uma relação jurídica entre um homem e uma coisa. Sustentam que qualquer relação jurídica exige a presença de, no mínimo, duas pessoas (hominis ad hominem). Por conta disso, imaginam o direito real como um sujeito passivo universal; ou melhor, uma obrigação negativa (de abstenção) universal imposta a todas as pessoas, que haverão de respeitar a propriedade (objeto) do seu titular (sujeito ativo). Nessa ótica, direito real seria a relação ju- rídica que impõe a todos um dever geral de abstenção, respeito à propriedade alheia. A teoria em comento é de Marcel Planiol, mas foi amplamente divulgada por Michas, Demogue, Ripert, Ferrara, Ortolan e Windscheid14. Nessa linha, consoante o posicionamento 1, se tenho uma propriedade, todos haverão de respeitá-la. No momento, porém, em que houver a sua invasão, contra este (invasor) que se colocará a minha pretensão. Posicionamento 2 (Corrente Clássica, Realista ou Impersonalista): já os adep- tos da corrente realista firmam a existência de relações jurídicasnas quais a fi- gura do sujeito passivo é desnecessária, como acontece nas relações envolvendo a propriedade. Nessas relações, segundo esta teoria, é equivocada a exigência de pessoalidade. Justo por isto, o direito real seria a relação da pessoa que se sujeita à coisa. A teoria é defendida por Gaudemet, Saleilles, Teixeira de Freitas e Orlando Gomes15. Como obtempera Orlando Gomes, a aceitação da teoria personalista levaria à extinção dos direitos reais, pois todos os direitos seriam pessoais (entre pessoas), o que não pode ser tolerado16. 11. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 11. 12. Novo Curso de Direito Civil. Vol. II. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008. p. 5. 13. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 5. 14. Citados no Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 8; e Flávio Tartuce, bem como na obra de Carlos Roberto Gonçalves, já citada, p. 27 e Maria Helena Diniz, igualmente já mencionada, p. 11. 15. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 8. 16. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 8. 23Cap. I • Introdução aos Direitos Reais O fato é que hoje, no Brasil, a legislação adota tratamento diverso entre os direitos pessoais e os reais, em um sistema dito dualista. Por conta disso, tende a doutrina a caminhar com um conceito dos direitos reais que referende a tese clássica, adequando-o à realidade do direito positivo nacional. `` Atenção! Direitos Reais e Direito das Coisas são sinônimos? A pergunta, de fato, remete a outro antecedente: bens e coisas são expressões sinônimas? Em um rigor técnico, apesar de grande diver- gência doutrinária, a resposta é negativa. Como bem recorda Carlos Roberto Gonçalves, o art. 202 do Código Civil português aduz que “coisa é tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas”. Coisa, portanto, é um bem corpóreo, que exista no mundo físi- co e seja tangível (Código Civil alemão, parágrafo 90 e Código Civil grego, art. 999). Ensina Clóvis Beviláqua que nem todo bem é uma coisa, pois há bens intangíveis, como a liberdade, a honra e a vida. Do dito, seguindo os ensinamentos de Menezes Cordeiro, parece-nos correta a afirmação segundo a qual bens é um gênero, que possui duas espécies: a) Bens corpóreos/materiais/tangíveis, quando serão chamados de coi- sa. É o caso de uma caneta, um carro, um imóvel. b) Bens incorpóreos/imateriais/intangíveis, a exemplo da honra, da li- berdade. Caminhamos, igualmente, com a doutrina de Orlando Gomes, ao informar que coisa sempre remete a uma noção de economicidade e materialida- de, o que não acontece com bem, o qual poderá ser desprovido de valor econômico. Assim, a expressão Direito das Coisas seria demasiadamente restrita, pois se referiria apenas ao fenômeno apropriador de bens cor- póreos e com economicidade. Não engloba os bens imateriais, os quais progridem em tratamento jurídico em uma sociedade de conhecimento. Por tudo isso, ainda em rigor técnico, não nos parece correto – haja vista o fenômeno da imaterialização proprietária, com a ampla propriedade sobre conhecimento (softwares, know how, artes, ciência...) – denominar o ramo, ora em estudo, como Direito das Coisas. O mais correto, portan- to, é a denominação de Direito Reais, a qual é mais abrangente. Confessamos, porém, que há quem discorde dessa linha. Cristiano Cha- ves de Farias e Nelson Rosenvald Jr., por exemplo, advogam o oposto, ao informarem ser a expressão Direito das Coisas mais abrangente, no momento em que também remete à posse, vizinhança, obrigações propter rem. Apesar de tamanha divergência, as provas de concurso público e grande parte da doutrina utilizam as expressões “Direitos Reais” e “Direito das Coisas” indistintamente, como sinônimas. Sendo assim, mesmo diante da diferenciação já explicitada, esta obra, em atenção à operabilidade, tratará as expressões como sinônimas, o que já fica informado ao leitor. Destaca-se, ainda, a título de informação, que o direito positivo se refere ao tema como Direito das Coisas, sendo a expressão “Direitos Reais” advinda da doutrina e atribuída, pioneiramente, ao festejado Savigny. 24 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo 2. RELAÇÕES PATRIMONIAIS: DIREITOS REAIS X DIREITOS OBRIGACIONAIS É muito usual, nos manuais, a demonstração de diferenças entre os direitos reais e os obrigacionais. Inicialmente, recorda a doutrina que os direitos obrigacionais veiculam rela- ções pessoais, havendo uma relação de crédito e um dever correlato, traduzin- do uma relação intersubjetiva entre credor e devedor. Já os direitos reais dizem respeito a um poder jurídico, direto e imediato, de uma pessoa sobre uma coisa, submetendo-se ao respeito de todos. Aqui se verifica que, enquanto nos direitos reais há um jus in rem (direito sobre uma coisa, sendo imediato), nos obrigacionais há um jus ad rem (direito contra uma pessoa, sendo mediato). O objeto do direito real é a coisa, enquanto o do obrigacional é a prestação. Nessa toada, a satisfação de um direito real demanda apenas o seu titular, enquanto o obrigacional demanda a cooperação de outrem no cumprimento da prestação. Pontua Maria Helena Diniz que: “nos direitos pessoais há dualidade de sujeitos, pois temos o ativo (credor) e o passivo (devedor)”, enquanto “nos direitos reais há um só sujeito, pois disciplinam a relação entre o homem e a coisa”17. Prossegue a doutrinadora: “quando violados, os direitos pessoais atribuem ao seu titular ação pessoal, que se dirige apenas contra o indivíduo que figura na relação jurídica como sujeito passivo, ao passo que os direitos reais, no caso de sua violação, conferem ao titular ação real contra quem indistintamente detiver a coisa”18. Orlando Gomes, por exemplo, recorda que a violação aos direitos reais é sem- pre um fato positivo (uma ação), enquanto aos obrigacionais poderá ser uma ação ou uma omissão19. Malgrado a distinção inicial, costumam os manuais aproximar estes ramos do Direito Civil. Isto porque, da análise do conceito clássico dos direitos obrigacionais, somada a uma leitura dos reais, percebe-se que ambos possuem um viés patri- monial. Assim, há autores, a exemplo do italiano Pietro Perlingieri20, que tratam direitos obrigacionais e reais dentro de um grupo maior de diretos, nomeados de relações patrimoniais ou situações subjetivas patrimoniais. Não seria possível realizar uma precisa separação entre as situações creditórias e reais, merecendo os temas normatização una. Os defensores deste ideal se filiam a batizada teoria monista ou unitária. Ocorre que não foi esta a tese adotada pelo Direito Civil brasileiro. O vigente Có- digo Civil caminha segundo a teoria dualista ou binária, responsável por diferenciar 17. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 8. 18. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009. p. 8. 19. Op. Cit., p. 16. 20. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Constitucional. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Renovar, 2002. 25Cap. I • Introdução aos Direitos Reais os direitos reais e os obrigacionais, os tratando de maneira apartada e com regras próprias. Como o legislador nacional fez distinção relevante, acaba sendo usual a ocorrência de questionamentos acerca das diferenciações entre estes ramos do Direito Civil. É sobre isso que passamos a nos ocupar a partir de agora. A primeira diferença é que os direitos reais são taxativos, enquanto os obri- gacionais são exemplificativos. Para a maioria da doutrina, a exemplo de Washington de Barros Monteiro, Pon- tes de Miranda, Serpa Lopes, Orlando Gomes, Silvio Rodrigues, Arnold Wald, Arruda Alvim e Darcy Bessone21, os direitos reais se submetem a um rol numerus clausus, sendo típicos e estando expressos no art. 1.225 do CC. Dessa forma, são direitos reais:I – a propriedade; II – a superfície; III – as ser- vidões; IV – o usufruto; V – o uso; VI – a habitação; VII – o direito do promitente comprador do imóvel; VIII – o penhor; IX – a hipoteca; X – a anticrese; XI – a con- cessão de uso especial para fins de moradia; XII – a concessão de direito real de uso e XIII – a laje. Já os direitos obrigacionais são numerus apertus, exemplificativos, de modo que podem surgir pela criatividade humana, no exercício da autonomia privada, como contratos atípicos e inominados, desde que respeitada a teoria geral dos contratos (art. 425 do CC). `` Atenção! Quanto ao caráter taxativo dos direitos reais, há quem defenda que a autonomia privada, bem como o próprio princípio da operabilidade, relativizaria tal caráter. Nessa toada seria possível a criação de novas situações reais, com a sua localização em outras passagens do Código Civil, ou, até mesmo, em lei extravagante. É o que advoga, por exem- plo, André Osorio Gondinho. Passeando pelo Código Civil percebe-se que há outros artigos que podem ser significados como direitos reais. Exemplifica-se com o art. 516, responsável por regular o direito de retenção, como lembra Arnoldo Medeiros da Fonseca. Outro exemplo seria a retrovenda, explicitada nos arts. 505 e seguintes do Código Civil e recordada por Carlos Roberto Gonçalves. Somam-se a isso as criações humanas, respeitosas à teoria geral do Direito Civil, como o contrato de multipropriedade, no qual cada ad- quirente compra a fração ideal de um imóvel e recebe dividendos por sua exploração comercial, por uma rede hoteleira – tema que será aprofundado no capítulo de condomínio. Destarte, é curioso notar que diferentemente dos direitos argentino e português, o direito brasileiro não informa expressamente, em nenhuma passagem, a impossibilida- de de construção de novas modalidades de direitos reais. Justamente por isso que a noção de um caráter mais elástico ao rol de direitos reais vem ganhado, progressivamente, mais simpatizantes. 21. Todos lembrados pelos Carlos Roberto Gonçalves em sua obra (Op. cit., p. 36). 26 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo `` E na hora da prova? Ano: 2017 Banca: MPE-RS Órgão: MPE-RS Prova: Promotor de Justiça – Reaplicação Foi considerada correta a seguinte assertiva: as leis extravagantes po- dem criar novos direitos reais, sem a sua descrição expressa no dispo- sitivo civil que os prevê. A segunda diferença é que os direitos reais são absolutos (erga omnes), en- quanto os obrigacionais são relativos (subjetivos ou inter partes). O direito das coisas se submete ao princípio do absolutismo, pois possui eficá- cia contra todos – erga omnes. Exemplifica-se com o direito de propriedade, o qual há de ser respeitado por todos. Que fique claro! O caráter absoluto dos direitos reais não se coaduna com a noção de exercício ilimitado. Ao revés, como recordam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Jr.22, os direitos reais, há muito, foram funcionalizados, sendo ponderados para a promoção do ser humano. Já os direitos obrigacionais são subjetivos, relativos, inter partes, obrigando, em regra, apenas as partes envolvidas. Exemplifica-se com um contrato, o qual apenas poderá obrigar as partes envolvidas. Ousamos afirmar que a eticidade e a socialidade interferem a tal ponto no atu- al Direito Civil, que em alguns casos esta oponibilidade erga omnes também deverá incidir nos negócios jurídicos; leia-se: nas obrigações. `` Atenção! Adverte Flávio Tartuce que esta oponibilidade erga omnes, típica dos direitos reais, passa a acontecer, em determinados casos, nas relações obrigacionais, haja vista a eficácia externa da função social dos contra- tos, referida no Enunciado 21 do Conselho da Justiça Federal. Exemplifica o ilustre doutrinador com o art. 608 do CC, o qual penaliza o aliciador de pessoas obrigadas por contrato escrito a pagar o corres- pondente a dois anos da aludida prestação. De igual sorte, a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, já mencionada no início deste capí- tulo, também serve de exemplo. Ademais, o art. 8º da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91), no momento, em que afirma a necessidade de respeito da locação preexistente, registrada e com cláusula de vigência, pelo terceiro adquirente do imóvel. A terceira diferença reside no fato de que nos direitos reais existe a prerroga- tiva da sequela, enquanto nos obrigacionais há mera execução patrimonial. 22. Op. cit., p. 29.
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