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PRIMEIRAS PÁGINAS PRIMEIRAS PÁGINAS O TERCEIRO DE BOA-FÉ: PROTEÇÃO NA AQUISIÇÃO DE BENS MÓVEIS E IMÓVEIS Fábio Caldas de Araújo © desta edição [2020] Thomson Reuters Brasil Juliana Mayumi Ono Diretora responsável Av. Dr. Cardoso de Melo, 1855 – 13º andar - Vila Olímpia CEP 04548-005, São Paulo, SP, Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meioou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos,fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bemcomo a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados.Essas proibições aplicam- se também às características gráficas da obra e à sua editoração. Aviolação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), compena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). O autor goza da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhe a responsabilidade das ideias e dos conceitos emitidos em seu trabalho. Central de Relacionamento Thomson Reuters Selo Revista dos Tribunais (atendimento, em dias úteis, das 09h às 18h) Tel. 0800-702-2433 e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt@thomsonreuters.com e-mail para submissão dos originais: aval.livro@thomsonreuters.com Conheça mais sobre Thomson Reuters: www.thomsonreuters.com.br Acesse o nosso eComm www.livrariart.com.br Impresso no Brasil [05-2020] Profissional Fechamento desta edição [25.03.2020] ISBN 978-65-5065-399-6 mailto:sacrt@thomsonreuters.com mailto:aval.livro@thomsonreuters.com http://www.thomsonreuters.com/ http://www.livrariart.com/ EXPEDIENTE EXPEDIENTE Expediente Diretora de Conteúdo e Operações Editoriais Juliana Mayumi Ono Gerente de Conteúdo Milisa Cristine Romera Editorial: Aline Marchesi da Silva, Diego Garcia Mendonça, Karolina de Albuquerque Araújo e Quenia Becker Gerente de Conteúdo Tax: Vanessa Miranda de M. Pereira Direitos Autorais: Viviane M. C. Carmezim Assistente de Conteúdo Editorial: Juliana Menezes Drumond Analista de Projetos: Camilla Dantara Ventura Estagiários: Alan H. S. Moreira, Ana Amalia Strojnowski, Bárbara Baraldi e Bruna Mestriner Produção Editorial Coordenação Andréia R. Schneider Nunes Carvalhaes Especialistas Editoriais: Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos e Maria Angélica Leite Analista de Projetos: Larissa Gonçalves de Moura Analistas de Operações Editoriais: Alana Fagundes Valério, Caroline Vieira, Damares Regina Felício, Danielle Castro de Morais, Mariana Plastino Andrade, Mayara Macioni Pinto e Patrícia Melhado Navarra Analistas de Qualidade Editorial: Ana Paula Cavalcanti, Fernanda Lessa, Thaís Pereira e Victória Menezes Pereira Designer Editorial: Lucas Kfouri Estagiárias: Maria Carolina Ferreira, Sofia Mattos e Tainá Luz Carvalho Capa: Lucas Kfouri Equipe de Conteúdo Digital Coordenação Marcello Antonio Mastrorosa Pedro Analistas: Gabriel George Martins, Jonatan Souza, Maria Cristina Lopes Araujo e Rodrigo Araujo Gerente de Operações e Produção Gráfica Mauricio Alves Monte Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Jéssica Maria Ferreira Bueno Estagiária de Produção Gráfica: Ana Paula Evangelista FICHA CATALOGRÁFICA FICHA CATALOGRÁFICA Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Araújo, Fábio Caldas de O terceiro de boa-fé [livro eletrônico] : proteção na aquisição de bens móveis e imóveis / Fábio Caldas de Araújo. -- 1. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020. 6 Mb ; ePUB 1 ed. e-book baseada na 1 ed. impressa. Bibliografia ISBN 978-65-5065-399-6 1. Boa-fé (Direito) 2. Contratos 3. Direito imobiliário 4. Direito imobiliário - Brasil 5. Imóveis - Leis e legislação I. Título. 20-35404 CDU-347.44:347.141.8 Índices para catálogo sistemático: 1. Boa-fé : Contratos : Obrigações : Direito civil 347.44:347.141.8 2. Contratos de boa-fé : Obrigações : Direito civil347.44:347.141.8 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964 AGRADECIMENTOS AGRADECIMENTOS Agradecimentos Uma obra nunca é escrita sem sacrifício pessoal e daqueles que participam de sua vida. A família é a primeira a ser afetada pelo afastamento natural do convívio. A atividade da magistratura já é suficiente para provocar esse vácuo. Quando se agrega a atividade acadêmica, o vazio é ainda maior. No entanto, neste trabalho, eu tenho quatro agradecimentos especiais. O primeiro, ao amigo Luciano Campos de Albuquerque. Luciano é um magistrado excepcional e marcado pelo domínio ímpar do direito empresarial. Quando lembramos das lições básicas de filosofia e sobre a causa eficiente de Aristóteles, não há dúvida de que a causa primeira deste trabalho se deve ao amigo Luciano. Ele foi o responsável por me convidar para uma palestra em Lisboa como Diretor da Escola da Magistratura do Paraná no ano de 2012. Nesta viagem eu mencionei ao amigo o desejo de fazer o pós-doutoramento, mas com a orientação do maior civilista europeu da atualidade, ou seja, com o professor Menezes Cordeiro. Isto seria praticamente impossível pela dificuldade de contato e pelos compromissos gigantescos do eminente civilista na Alemanha e Portugal. Luciano prontamente se comprometeu a conversar com o Diretor, professor Vera-Cruz. Sem sua intercessão, este contato nunca teria acontecido e o trabalho seria inexistente. Meu sincero, obrigado. O segundo agradecimento é endereçado ao ilustre Professor Doutor Vera-Cruz. Sua generosidade e seu abraço nas escadarias da Universidade de Lisboa marcaram minha memória. Um grande jurista com domínio amplo do direito internacional, assim como do latim e grego antigo, cuja humildade, seriedade e amizade são inesquecíveis. Foi por meio de seu auxílio que escrevi uma carta que foi entregue diretamente ao Professor Doutor Menezes Cordeiro. Sem sua generosidade e acolhida, este trabalho também não existiria. O terceiro agradecimento é dirigido ao meu orientador que é o responsável pelo nascimento deste trabalho. Nada há para ser acrescentado em relação ao Professor Doutor Menezes Cordeiro. Minha admiração e desejo de conhecê-lo era proveniente da graduação quando tomei contato com sua monumental obra sobre a boa-fé. Indiscutivelmente o maior tratadista europeu marcado por uma genialidade singular e capacidade hercúlea de trabalho e seriedade em seus escritos. Apesar de toda a sua ocupação e compromissos infindáveis sua acolhida foi fraternal e com paciência ilimitada quanto aos questionamentos e orientações. Peço escusas por não estar à altura do que poderia ter produzido como seu orientando. Meu agradecimento é eterno. O quarto agradecimento é ao Professor Doutor Arruda Alvim que é meu pai acadêmico. Nada seria possível sem sua acolhida no ano de 1999. Esta história está descrita no belo prefácio elaborado pelo querido professor. Sua cultura, seriedade e profundidade são inigualáveis. Aprendi o direito alemão por meio do professor Alvim, bem como o gosto pela pesquisa séria e de raiz. E mais, aprendi a transitar pelo direito material e processual por sua influência, o que fez compreender a ideia de sistema e da unidade funcional do direito. Meu muito obrigado, por tudo, inclusive, pelo auxílio quanto a esta edição pela RT, com a gentil acolhida de Marcella Silva. PREFÁCIO PREFÁCIO Prefácio A presente obra nascerá como texto clássico e ocupará merecido lugar de destaque dentre as grandes obras contemporâneas sobre direito civil, mais especialmente, no âmbito do Direito das Coisas. O Professor Fábio Caldas de Araújo já escreveu um sem número de magníficos trabalhos.1 Ele é um civilista de escol, como é também um processualista de primeira grandeza. Alguns desses trabalhos, uma minoria na realidade, em coautoria com ilustres juristas. Em relação ao direito das coisas cabe mencionar a sua dissertação de Mestrado em que versou com mão demestre e cuidados de artesão, o assunto da Usucapião, de que resultou obra hoje na terceira edição. Ainda em relação ao direito das coisas a sua dissertação de doutoramento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi sobre o tema da Posse. Como sempre com mão de mestre e cuidados de artesão, esta obra mereceu uma apresentação, que se encontra estampada no início do livro, de autoria do Professor José Carlos Moreira Alves, sabidamente uma autoridade ímpar em Direito e muito particularmente em relação ao tema da Posse. Em ambos os exames obteve nota 10, distinção e louvor. A obra que é agora editada foi a dissertação de pós-doutoramento junto ao muito eminente Professor Menezes Cordeiro. Insere-se dentro da temática maior do Direito das Coisas. Aí aborda-se centralmente modificação importante trazida pela Lei 13.097 do ano de 2015, particularmente os seus arts. 54 e 55. Esta lei em uma das suas implicações enseja a possibilidade de modificar o princípio da continuidade do direito registral, pela valorização daquilo que está na matrícula, em que se aglutina toda a história relevante do bem objeto de registro. Valerá o que estiver na matrícula. Essa lei, ainda, explicitou e consagrou uma tendência, já delineada pela jurisprudência, que consistiu em valorizar a matrícula, em nome da segurança jurídica do adquirente de bem imóvel, que deverá ter-se conduzido com boa-fé. Deve-se referir expressiva frase de Philip Heck, na sua obra Philipp Heck. Grundriß des Sachenrechts [Compêndio de Direito das Coisas]. 1930, Tübingen: reedição da Scientia Aalen, 1970), onde questionando-se a respeito do porquê do extraordinário valor do registro no direito alemão, em que se chegou ao ponto de agregar-se ao rol dos princípios do direito das coisas, o afirmou que isso era assim Porque o registro não mente. Este trabalho, semelhantemente a outros trabalhos anteriores do autor, vem emoldurado num panorama amplo do direito contemporâneo – sem descarte de profunda análise história dos institutos – em que se estudam o consumo, a javascript:void(0) circulação de bens e a segurança jurídica. A concentração dos atos processuais e materiais, a boa-fé em seus diversos desdobramentos, também são densamente analisados. Trabalha-se ainda em relação ao regime jurídico dos direitos reais em vários dos seus aspectos; estuda-se também sobre a tutela da propriedade e a do terceiro de boa-fe, em vários dos seus aspectos com incursão na história do nosso direito, pesquisando-se os temas do possessório e do petitório, comparando-se principalmente com o sistema do direito português. Passa-se em seguida ao trato do problema da aquisição a non domino dos bens móveis e imóveis. Entre muitos outros pontos, em que se emolda a exposição, pode-se dizer que a bibliografia demonstra um cuidado muito grande na obtenção de todas as informações que se mostraram necessárias para a confecção desta monografia excepcional. Esta bibliografia é extraordinariamente rica, citados autores brasileiros, portugueses e alemães. Deve ser aqui naturalmente creditado ao Professor Menezes Cordeiro o reconhecimento dos méritos de um jurista excepcional e orientador de altíssima qualidade. O Professor Fábio Caldas de Araújo é um homem que progrediu tanto na área do direito, tendo em vista o máximo grau de exigência dele em relação a ele próprio, dentro do ambiente do seu raro talento. Não resisto em contar um acontecimento, ocorrido quando fui seu professor no curso de Mestrado da PUC/SP, no dia em que ele ia fazer a sua apresentação mensal. Veio falar comigo, tendo eu já lido o texto do seu trabalho que iria ser apresentado e discutido por mim e alunos. Disse-me: ‘estou muito preocupado com o tema da minha dissertação de Mestrado’. Aí eu respondi: ‘não fique preocupado; a sua dissertação de Mestrado está debaixo da minha mão com cerca de 180 páginas escritas como o seu trabalho mensal.’ Esse trabalho veio a se constituir na sua dissertação de Mestrado, hoje na sua terceira edição como livro, sempre aprimorado ao extremo. Nessa obra se encontra a melhor monografia de nossa literatura sobre Usucapião. Nesse trabalho trata-se amplamente do direito de propriedade e da função social da propriedade, numa obra que considera todos os assuntos que são províncias contíguas à Usucapião e que cercam a figura da Usucapião no quadro do Direito das Coisas. Este seu livro esmiúça todos os aspectos úteis para a plena e profunda compreensão do tema, sob a perspectiva do direito comparado, especialmente o direito português; aprofunda análise história desses temas, especialmente, o tema da boa-fé; elenca as diversas teorias que gravitam e procuram explicar direta e indiretamente o que pode ocorrer com a concentração na matrícula. É uma obra em que se aprende o tema eleito pelo ilustre autor, e, ao lado disso ou mais do que isso, em que se aprende a expor um tema na ciência do direito. Como docente devemos referir que é Professor Titular dos Cursos de Mestrado, Especialização e Graduação da Universidade Paranaense. Professor do Curso de Especialização da Universidade Estadual de Londrina e da Fundação do Ministério Público do Mato Grosso. É membro do Instituto Paranaense de Direito Processual Civil. A sua atividade docente junto aos seus alunos é extraordinariamente extensa e intensa, pelo número de trabalhos que acompanhou e acompanha. O ilustre autor está de parabéns, bem como a editora RT Thomson Reuters Brasil e também o eminente tratadista Professor Menezes Cordeiro. Arruda Alvim 1 Mandado de Segurança Individual e Coletivo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; [2. ed., 2012; 1. ed., 2009]; Curso de Processo Civil - Tomo III - Procedimentos Especiais. São Paulo: Malheiros, 2018; Código Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018; [1. ed., 2014]; Repercussões do direito estrangeiro no direito processual civil brasileiro e no Código de Processo Civil. Umuarama: Editora Unipar, 2018; Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017; [1. ed., 2016]; Curso de Processo Civil - Tomo I - Parte Geral. São Paulo: Malheiros, 2016; Usucapião. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015; [2. ed., 2013]; Intervenção de Terceiros. São Paulo: Malheiros, 2015; Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015; Intervenção de Terceiros. São Paulo: Malheiros, 2015; Lei de Registros Públicos Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014; Procedimentos Cautelares e Especiais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014; [4. ed., 2013; 3. ed., 2012; 2. ed., 2010; 1. ed., 2009]; Comentários ao Código Civil Brasileiro Vol. XI, t. III. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2013; Posse. Rio de Janeiro: Forense – Grupo Gen, 2007; A Posse e sua Aquisição Conservação e Perda. Rio de Janeiro: Forense, 2006; Usucapião no âmbito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ABREVIATURAS E SIGLAS USADAS ABREVIATURAS E SIGLAS USADAS Abreviaturas e siglas usadas a.C. antes de Cristo ac. acórdão AC apelação cível ACP ação civil pública Ag Agravo de instrumento AgRg Agravo regimental amp. ampliado(a) Ap apelação art. Artigo atual. atualizada aum. aumentado BGB Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão) Bull BVerf Bulletin (Boletim) Tribunal Constitucional Alemão Cap. capítulo c/c combinado com CCB Código Civil Brasileiro Ccom Código Comercial (L 556/1850) CDC Código de Defesa do Consumidor (L 8.078/90) CF Constituição Federal (CF de 5/10/1988) CCI Código Civil Italiano CCF Código Civil Francês CCP Código Civil Português CFP Constituição Federal Portuguesa civ. civil; cível CLT Consolidação das Leis do Trabalho (DL 5.452/43) CPB Código Penal Brasileiro CPCB Código de Processo Civil Brasileiro CPC/39 CPCP Código de Processo Civil de 1939 Código de Processo Civil Português CP Código Penal CPP Código de Processo Penal d.C. Depois de Cristo Dec. Decreto DL Decreto Lei Des. Desembargador Dig Digesto DJE Diário Oficial da Justiça do Estado DJU Diário Oficial da Justiça da UniãoDOU Diário Oficial da União EC Emenda constitucional ed. Edição e.g. exempli gratia ERE embargos de recurso extraordinário est. Estadual fed. Federal HC HGB Habeas Corpus Handelsgesetzbuch (Código Comercial Alemão) Inst. Institutas j. Julgado JSTJ Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça JTAMG Jurisprudência do Tribunal de Alçada de Minas Gerais JTARS Jurisprudência do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul Jurisp. Jurisprudência L. Lei Federal LC Lei Complementar Federal Liv. Livro LOM. Lei Orgânica do Município Min. Ministro MP Ministério Público MS Mandado de Segurança m.v. Maioria de votos CCB Código Civil Brasileiro n. Número OAB Ordem dos Advogados do Brasil ob. obra citada Ord. Ordenação p. Página par. ou parágrafo par. único parágrafo único pref. prefácio proc. processo; processual Prov. Provimento Rec. Recurso Resp. Recurso Especial RE Recurso Extraordinário Reimp. Reimpressão rel. Relator R. Réu RC RI Registro Civil Registro de Imóveis rev. Revista RDP Revista de Direito Privado RJTAMG Revista de Julgados do Tribunal de Alçada de Minas Gerais RJTJESP Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo RJTJRGS Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul RT Revista dos Tribunais RTJ Revista do Tribunal de Justiça ss. Seguintes STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça tir. Tiragem Tít. Título t. tomo trad. tradução; tradutor TACivRJ Tribunal de Alçada Civil do Rio de Janeiro TACivSP Tribunal de Alçada Civil de São Paulo TAMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais TAPR Tribunal de Alçada do Paraná TARGS Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul TFR Tribunal Federal de Recursos TJES Tribunal de Justiça do Espírito Santo TJMT Tribunal de Justiça do Mato Grosso TJPR Tribunal de Justiça do Paraná TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJSC Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo TRT Tribunal Regional do Trabalho TSE Tribunal Superior Eleitoral TST Tribunal Superior do Trabalho T. Turma un. Único v. Volume v.g. verbi gratia vs. volumes v.u. Votação unânime NOTA INTRODUTÓRIA NOTA INTRODUTÓRIA Nota introdutória O tema investigado assume o desafio de procurar identificar a posição do terceiro de boa-fé ante a proteção conferida pelo princípio da concentração na aquisição da propriedade imóvel e móvel no direito brasileiro (Lei 13.097/2015). A postura assumida na exposição da matéria tem cunho essencialmente dogmático, com análise das fontes normativas e da jurisprudência que assume papel de autêntica fonte do direito para a sedimentação das questões relevantes sobre o tema.1 Assume distinção o exame do direito alemão e francês pela influência no sistema luso-brasileiro quanto aos modos de transmissão da propriedade e da formação dos direitos reais.2 O tema é extremamente atual para o direito brasileiro que conta com uma alteração legal que muda todo cenário do tratamento da aquisição a non domino em relação aos bens imóveis. A Lei nº 13.097/2015, ainda desconhecida por grande parcela da doutrina brasileira, realizou uma alteração radical por meio dos arts. 54 e 55. O seu exame é fundamental para que se possa traçar os possíveis rumos de proteção da propriedade a non domino em relação ao terceiro de boa-fé. A boa-fé não representa mais um instituto unicamente atrelado ao direito material. A previsão do art. 5º revela sua projeção processual e seu tratamento adequado é essencial para a compreensão da dinâmica da relação processual como em situações relacionadas à sucessão processual, fraude à execução e da intervenção do terceiro no processo. O presente estudo exige o exame da relação jurídica em perspectiva progressiva, uma vez que a análise do terceiro de boa-fé pressupõe uma visão circular e dinâmica na esfera negocial. Esse exame leva em consideração um princípio elementar que é o da unidade do sistema jurídico (Einheit). A análise da proteção ao terceiro de boa-fé, em face da formação de um direito real, decorre de uma relação progressiva em que condutas são analisadas dentro de esferas jurídicas parcelares (relação pré-contratual, contratual, pós-contratual, consumação do título, modo de aquisição do direito real, sucessão do direito reais e extinção do direito real). Os desdobramentos das etapas que levam à formação do direito real influenciam no padrão de resposta fornecido pelo sistema jurídico quanto à concessão ou denegação da proteção ao terceiro. O estudo da posição do terceiro de boa-fé e a aquisição a non domino serão analisados em face dos bens móveis e imóveis. O foco é delimitado nos direitos reais, mas sem descurar o exame de aspectos conexos e interligados do direito obrigacional. O sistema brasileiro não conhece o princípio da abstração (Abstraktionsprinzip), mas passa a admitir a proteção pelo registro após a Lei nº 13.097/2015, o que torna mais complexa a tarefa de definir os contornos de conduta que caracterizam a boa-fé do terceiro adquirente.3 E mais, a necessidade de análise da dinâmica da transmissão (Übereignung) coloca em crise a locução usual de que no campo dos direitos reais a análise da boa-fé é essencialmente subjetiva. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) O exame da situação jurídica do terceiro não pode descurar de uma abordagem do direito constitucional. O direito civil passa por um processo inevitável de constitucionalização, uma vez que a pessoa se tornou o centro de imputação das Constituições modernas pela proteção dos direitos fundamentais.4 A doutrina de vanguarda do direito civil percebeu os problemas inerentes à adoção irrestrita da teoria da relação jurídica como fonte de sistematização e exercício de direitos subjetivos.5 A visão formal e conceptualista torna inexplicável a equação linear que a relação jurídica propõe como solução, especialmente sob a ótica do regime das invalidades. A posição do sujeito há de ser reforçada e readequada como imperativo de proteção. E como consequência, o exame da conduta do sujeito assume relevância invulgar pela possibilidade da boa-fé colmatar, corrigir e ao mesmo tempo servir de fonte interpretativa para o exame das relações jurídicas firmadas pelo interessado na busca da sedimentação de sua posição jurídica. A proteção constitucional quanto ao sujeito não soluciona, por si só, a tensão existente entre duas posições aparentemente legítimas e protegidas pelo sistema jurídico. De um lado será possível identificar o proprietário que detém o título dominial, do qual exsurge proteção especial oriunda do direito processual para a garantia do domínio e cujas raízes deitam no direito romano; no outro lado, o terceiro, que assume posição a posteriori e cuja proteção não pode ser ignorada pela importância de sua confiança na estabilidade do tráfico negocial (Rechtsverkehr). Nessa contraposição entre o titular do domínio, e o terceiro, aflora a necessidade da valoração da boa-fé aplicada aos direitos reais e sua função constitutiva e integradora. O regime de tratamento da propriedade imóvel e móvel deverá ser abordado, uma vez que os princípios que orientam a transmissão destes bens são diversos. No direito contemporâneo a visualização da propriedade se afasta do modelo romano. A desmaterialização da propriedade revela uma tendência de valorização da propriedade móvel em relação à imóvel.6 Esta noção rompe modelo clássico que fundava o poder econômico baseado na propriedade imóvel (res mancipi e nec mancipi).7 A circulação de bens e direitos exige uma visão atualizada quanto ao novo papel da propriedade móvel para o desenvolvimento do mercado, especialmente pelo papel desempenhado pelos valores mobiliários no período moderno. O direito registral não será objeto de apreciação específica, mas periférica. Sua importância reside no fato do direito brasileiro seguir o modelo romano para fins de transmissão, no qual se exige a demonstração do tituluse do modus adquirendi. O registro representa o principal modo de aquisição da propriedade moderna e sua presença é importante mesmo nos sistemas em que atua apenas com função declarativa. O direito brasileiro adotou o modelo registral alemão, mas de modo mitigado, pois o registro não confere presunção absoluta, apenas relativa. Este dado acrescenta mais um problema. A interligação entre o negócio jurídico formativo e o registro permite sua invalidação. Todavia, o novo regime inaugurado a partir do art. 54, parágrafo único da Lei nº 13.097/2015 diminui drasticamente a possibilidade de impugnação do registro. No direito brasileiro admite-se que a posição do terceiro seja examinada quanto a existência da causa negocial e de sua liceidade. Este dado acrescenta a javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) seriedade com que a posição do terceiro de boa-fé deve ser examinada e os critérios de avaliação da tensão entre a posição do verus dominus com o terceiro adquirente a non dominus. Por fim, a necessidade da visão unitária e integrada do sistema jurídico exigirá que algumas considerações sejam tecidas sobre a proteção processual do terceiro e os meios de defesa de sua situação jurídica no sistema brasileiro. O exame dos dispositivos processuais tem relevo para reforma processual portuguesa e brasileira de 2015 e com auxílio de diplomas estrangeiros, como o português e alemão. Alguns instrumentos como: os embargos de terceiro, as ações possessórias, as ações petitórias e a ação publiciana estão diretamente ligadas à posição do terceiro. O direito material e o processual necessitam desta visão interativa que confere operacionalidade prática ao instituto jurídico do terceiro de boa-fé. A força da boa-fé é grandiosa ao ponto de mostrar a necessidade de sua sistematização no campo processual para pontos de alta relevância. O uso abusivo do direito de ação e o estado de sujeição a que parte ré é obrigada a suportar, ante o monopólio da atividade jurisdicional do Estado Moderno, chama os estudiosos e aplicadores para uma reflexão séria sobre o papel da boa-fé no processo civil e a proteção processual do terceiro de boa-fé.8 O abuso do direito que nasce no direito civil projeta-se sobre os quadrantes do direito processual, por meio da construção da figura do abuso do direito de defesa.9 Neste ponto, a peculiar contribuição do Direito Português é poderosa, uma vez que a construção do instituto da má-fé é de origem lusitana.10 De nada adianta a previsão material da proteção ao terceiro de boa-fé, sem a existência de instrumentos processuais que possam garantir a posição jurídica ameaçada ou lesionada. 1 Sobre a inclusão da jurisprudência como fonte direta, vide nosso Curso de Processo Civil – Parte Geral, t. I, p. 276, Malheiros, 2016. 2 . Estes dois sistemas não devem ser examinados apenas sob a ótica da codificação que pode ser considerada tardia em relação a muitos pontos sobre o tema investigado. Como exemplo lembramos que a regra de aquisição da propriedade móvel pela posse de boa-fé tem origem nos costumes de Bourjon do século XIV, mas com influência do direito germânico pela regra Hand wahren Hand. Sobre a regra, Bethmann-Hollweg, Der Civilprozess des gemeinen Rechts in geschichtlicher Entwicklung, IV, § 8, p. 15. 3 . Schwab-Prütting, Sachenrecht, §4º, p. 14. 4 . Sobre a discussão é crucial o exame de Canaris, Direitos Fundamentais pp. 19 e ss. Neste diapasão merece menção a recente Lei nº 13.146/2015 do Brasil que incorpora a Convenção da Pessoa com Deficiência (Estatuto da pessoa com Deficiência) e revoga os incisos do clássico art. 3º do CCB que trata do regime da javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) incapacidade absoluta. Apenas os menores de 16 anos são incapazes absolutos. O aprofundamento no regime de proteção do incapaz demonstra a proteção ao direito fundamental da vida e do bem-estar das pessoas hipossuficientes. Esta lei abre um novo panorama no cenário de proteção, pois a hipossuficência não pode ser negada. Ao se estabelecer a capacidade plena, a priori, um cenário de incerteza se desenha no tráfico negocial e no meio social, o que ultrapassa a esfera individual. É fundamental acompanhar a evolução deste cenário com cautela no direito brasileiro e o novo papel da curatela e da ação de interdição na esfera processual. 5 . Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, t. I, p. 283. 6 . Anne Pélissier, Possession et Meubles Incorporels, p. 205 e ss. 7 . Para uma visão do direito romano quanto ao tratamento dos bens e das ações possessórias e petitória, Otto Karlowa, Römische Rechtsgeschichte, p. 310 e ss. 8 . Com absoluta precisão discorre Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, p. 37-38): “O reverso do direito de ação é, assim, a sujeição à ação. Tal sujeição recai sobre os diversos sujeitos de direito. Potencialmente, todas as pessoas podem, em cada momento, ser demandadas seja pelo que for e seja por quem for. E o Código de 2013 (referência ao novo CPC Português-inserção nossa), amplia, logicamente, a sujeição à ação. 9 . Figura que no novo Código de Processo Civil Brasileiro permite a concessão da tutela da evidência, nos termos do art. 311, I: “A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte (grifo nosso)”. 10 . Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, p. 45. 1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI 1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI 1 A Sociedade de Consumo no Século XXI 1.1. O consumo e a circulação de bens O consumo não pode ser definido como uma peculiaridade da sociedade moderna. A sobrevivência do ser humano sempre dependeu do consumo fundado na apropriação natural ou comercial de bens.1 O consumo se perfaz pela aquisição e fruição de bens. Os bens são tutelados pelo sistema jurídico, o qual disciplina os meios legais de pacificação sobre a sua disputa. De acordo com clássica lição de Carnelutti, os bens representam o motivo essencial das disputas judiciais, pois os bens são limitados e os interesses ilimitados, o que gera a necessidade de meios racionais para o regramento dos conflitos sociais.2 - 3 O que marca o período moderno é o consumo em massa e de modo globalizado. Muito embora o ato de consumir seja uma constante histórica, o consumo do homem moderno é diverso do da antiguidade. A preocupação, nos primórdios da civilização, para a maioria das pessoas, residia unicamente no ato de sobreviver.4 O ato de consumir estava intimamente ligado à subsistência do núcleo familiar. No período medieval as cidades desenvolvem-se ao redor dos feudos, como meio de proteção mútua e como meio de associação e cooperação.5 Os burgos nascem pela busca de um local estável em que as pessoas possam se estabelecer e viver com razoável segurança.6 Somente no período moderno, com o desenvolvimento social e econômico, é possível observar a formação de uma administração municipal e de uma classe burguesa que fornecerá um novo modelo social, econômico e jurídico.7 Neste período de transição do período medieval para o moderno, o crescimento do consumo e o acesso aos “novos mundos”, especialmente ante ao extraordinário desenvolvimento da navegação portuguesa, por meio da escola de Sagres, tornou possível o acesso à Índia pelo Ocidente, por meio do contorno ao Cabo da Boa Esperança, cuja tarefa foi empreendida por Vasco da Gama, no ano de 1499. Outro grande navegador português, Pedro Álvares Cabral, seria responsável por outro grande feito, a descoberta do Brasil, no ano de 1500. A expansão geográfica propiciou novos horizontes e fontes de abastecimento para o continente europeu. A descoberta do caminho das Índias pela rota ocidental abriu uma nova fonte para o comércio e consumo de especiarias. O monopólio de Gênovae Veneza é quebrado, pois ambas as cidades eram abastecidas pelos portos de Tripoli, Alexandria e Constantinopla.8 Esta última cidade já havia interrompido o abastecimento com sua tomada pelos Turcos Otomanos no ano de 1453. O volume comercial cresceria gradualmente pela descoberta de produtos até então desconhecidos e que conferiam um enriquecimento aos hábitos do homem da javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) baixa Idade Média. O forte consumo de especiarias por meio das cidades de Genova e Veneza já havia provocado uma transformação radical no comércio jurídico europeu, inclusive com importante reflexo jurídico por meio da criação dos títulos de crédito, como instrumento de garantia e execução contra o devedor.9 Neste período ainda é possível observar o início do desenvolvimento histórico das sociedades por ações e o fenômeno da atomização do direito de propriedade que iniciará uma mudança quanto ao enfoque de proteção irrestrita da propriedade imobiliária oriunda da tradição romano-canônica.10 O banco de São Jorge, em Génova, criado em 1407, e que operou até 1805, representaria o marco embrionário das sociedades por ações.11 A sociedade moderna, especialmente após a revolução industrial, passou a conhecer o consumo em escala. O impacto e crescimento comercial refletiria no sistema jurídico. Além do aperfeiçoamento dos títulos de crédito, as sociedades comerciais passaram a adotar modelos complexos que obrigam à regulação em leis extravagantes, alterando a topologia codificada que marcou a sedimentação do direito positivo no século XIX. Neste panorama deve ser agregada a recepção da boa-fé objetiva como elemento essencial para a segurança das relações jurídicas, cujo desenvolvimento se deve ao gênio alemão.12 Muito embora já recepcionada pelo BGB na Alemanha, em 1896, com seus antecedentes no HGB, é possível afirmar que o tema foi praticamente desconhecido da doutrina brasileira.13 Apenas no final do século XX, com a preocupação voltada para a reforma do CCB de 1916, que culminou com o diploma atual do ano de 2002, a doutrina alcançou maior profundidade quanto ao importantíssimo tema, especialmente com apoio na doutrina portuguesa.14 A boa-fé objetiva avultou no sistema brasileiro pelas peculiaridades que informam o sistema de proteção da propriedade imobiliária e mobiliária. O Brasil sofreu a influência predominante do direito francês por largo período no campo material e processual. É o que explica, de certo modo, as dificuldades de construção do sistema tabular em nosso regime jurídico, o qual seria vital, em vista da debilidade e desorganização na formação dos títulos dominiais. As dimensões continentais do território brasileiro exigiriam uma forma racional de organização do cadastro imobiliário e o regime tabular assumiria importância destacada no modelo brasileiro como elemento de auxílio na estabilidade da proteção e segurança das relações jurídicas. Por sua vez, percebe-se as dificuldades existentes no direito português para uma proteção efetiva do terceiro de boa-fé em relação aos bens móveis, em vista da inexistência de recepção da regra de Bourjon pela qual a posse vale título (en fait de meubles la possession vau titre). Isso não eliminou a possibilidade de proteção do terceiro, na aquisição da propriedade imóvel ou móvel sujeita a registro, no sistema lusitano, pela interessante figura do art. 291 do CCP e pela proteção específica do CRP por meio dos arts. 5º e 17. O direito brasileiro nunca contou com este sistema peculiar de proteção para os bens imóveis. O CCB previa uma proteção ao terceiro de boa-fé por meio da usucapião abreviada especial, conforme previsão insculpida pelo art. 1.242, parágrafo único. No ano de 2015, a legislação brasileira passou por uma modificação singular ao prever a possibilidade de proteção do terceiro de boa-fé por meio do registro, inclusive em javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) face da evicção, conforme dicção do art. 54, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015.15 1.2. A necessidade de segurança jurídica A sociedade moderna procura obter do sistema jurídico o que ele pode conferir de melhor: segurança jurídica.16 Nesta tarefa de buscar os valores que informam o ordenamento jurídico com o fim de obter a unidade do sistema, a proteção ao terceiro de boa-fé se revela fundamental. A procura dos valores fundamentais que informam a ordem jurídica no campo do direito material ou processual exige a leitura e compreensão da base em que se radica a Constituição. A Carta Magna informa os valores que devem orientar a formação dos textos infraconstitucionais e sua interpretação é renovada pela jurisprudência da Corte Constitucional que traça os parâmetros para a interpretação dos Direitos Fundamentais. A influência da Constituição é marcante e reflete um autêntico fenômeno de constitucionalização das normas do direito privado.17 Mesmo no campo do direito privado, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais não pode mais ser ignorada. A questão ganhou grande rendimento com o polêmico julgamento do caso Lüth.18 Pela primeira vez, a Corte Constitucional Alemã admitiu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com discussão sobre a possibilidade de sua irradiação em relação aos terceiros, nas relações privadas (Drittwirkung).19 Até então, a construção da proteção dos direitos fundamentais estava sedimentada na relação Estado-cidadão (Abwehrrecht des Bürgers gegen den Staat), que marcava a eficácia vertical dos direitos fundamentais.20 Por meio desta noção, a relação de superioridade do Estado em relação ao cidadão (princípio da supremacia do interesse público sobre o particular) seria resguardada pela proteção vertical e imediata dos direitos fundamentais. Não se está aqui a defender a aplicação da eficácia horizontal sobre o direito privado de modo imediato ao terceiro, mas unicamente apontando-se para a importância da questão e a necessidade de conformação do direito privado à ordem Constitucional.21 O direito brasileiro conheceu muito cedo a incidência horizontal dos direitos fundamentais em virtude do grande tempo de defasagem de nossa legislação infraconstitucional. Nosso primeiro CCB entrou em vigência no ano de 1916 e sofreu sua grande reforma apenas no século XXI, com a aprovação do CCB de 2002. A elaboração e promulgação tardia da primeira codificação brasileira poderia ter sido motivo de grande vantagem, pois, neste período, o mundo ocidental já contava com o monumental BGB, que foi promulgado em 1896, e que contou com prolongada vacatio legis, pois entrou em vigência apenas no ano de 1900.22 Como informa a melhor doutrina, o BGB é fruto de uma codificação tardia e representativa da terceira sistemática.23 A poderosa influência do BGB sobre o direito brasileiro, no que tange à proteção do terceiro, assume peculiar posição no regime da proteção da propriedade móvel pela boa-fé. Neste ponto peculiar há uma relação direta com a contribuição francesa pela regra de Bourjon, mas sem descurar da influência da Gewere, de onde provém a regra de garantia da javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) transmissão dos bens móveis (Hand muss Hand wahren), ou mesmo da boa-fé incentivada pelo direito inglês na realização de feiras públicas (open market). Esta conjunção informa um regime peculiar que irá influenciar o direito brasileiro, conforme leitura do art. 1.268 do CCB, no que tange à propriedade móvel. No regime da propriedade imóvel, as relações jurídicas são marcadas por maior estabilidade, o que de certa forma demonstra a importância do direito de propriedade no meio social. Não é lícito procurar estabelecer uma gradação entre os direitos com o fim de estabelecer classificação quanto a maior ou menor importância. Atualmente,os direitos da personalidade ocupam uma posição de destaque pela tutela a temas sensíveis que estão relacionados diretamente à essência da pessoa e sua dignidade. No entanto, não é menos importante o regramento dos direitos reais, pois a subsistência do ser humano depende essencialmente da fruição de bens, o que justifica a importância do seu tratamento e proteção jurídica. Aliás, um dos pontos de maior polêmica reside em definir a relação de interação entre a pessoa e a coisa.24 Nos direitos reais e na sociedade civilizada esta interação é regrada por normas que disciplinam as formas de aquisição, conservação e extinção da propriedade. Ainda que fosse desejável que todas as relações de interação entre a pessoa e a coisa pudessem ser materializadas por títulos jurídicos, que garantissem segurança e transparência nas relações sociais, o modelo ideal ainda não foi concretizado. Este é o motivo pelo qual o sistema jurídico atual ainda necessita de proteção peculiar para a posse. A posse representa um fato social indelével e que acaba provocando a consolidação de diversas situações jurídicas, inclusive contrapostas ao direito de propriedade (usucapião), bem como a necessidade de proteção ao terceiro de boa-fé. A proteção possessória constrói modelos próprios na formulação de precedentes que apresentam uma interessante e polêmica linha de evolução que deverá ser examinada pelo confronto da função social da posse com o direito de propriedade. No Brasil, o STJ sedimentou proteção poderosa por meio da Súmula 84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro. É necessário investigar se a proteção possessória pode chegar ao extremo, ao ponto de abalar o direito de propriedade, ou seria uma nova forma de direito real jurisprudencial? Afinal, o titular de um compromisso de compra e venda que não registra seu bem imóvel e oculta propositadamente o seu patrimônio merece proteção efetiva do sistema jurídico? Não seria uma violação da cláusula geral da boa-fé? O confronto entre o compromitente comprador (possuidor direto) com o terceiro adquirente que confiou no registro merece solução pela prevalência da Súmula 84 do STJ? Ou deveria ser garantida a posição do comprador que confiou no registro de propriedade, nos termos do art. 1.245 do CCB? O mesmo questionamento pode ser transportado para o regime de aquisição da propriedade em hasta pública. O CPC/2015 tutela expressamente a aquisição do terceiro arrematante, nos termos do caput do art. 903: “Qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado ou a ação autônoma de que trata o § 4º deste artigo, assegurada a possibilidade de reparação pelos prejuízos sofridos” (grifo nosso). A solução processual é altamente javascript:void(0) elogiável e representa a valorização da boa-fé objetiva na seara processual, na medida em que fortalece a aquisição derivada oriunda da venda judicial. Entretanto, esta consolidação da propriedade ao terceiro arrematante de boa-fé ficaria imune à aplicação da Súmula 84 do STJ? O que dizer quando o terceiro se apresente e defenda sua posse de boa-fé confrontando o título de propriedade formado pela consolidação da arrematação. A questão é interessante porque revela um conflito entre situações legítimas de boa-fé: a boa-fé do arrematante versus a boa-fé do possuidor. A estas questões a doutrina e a jurisprudência brasileira não têm dedicado a atenção adequada. A proteção irrestrita da posse funda-se em uma visão de hipossuficiência do possuidor. A Súmula 84 do STJ acaba por mudar paradigma básico do sistema jurídico brasileiro ao transformar a posse de boa-fé em instituto de maior rendimento do que a propriedade. A posse, a princípio, estaria imune ao direito de sequela e à eficácia erga omnes do direito real. Seria lícito indagar se a proteção à tutela individual seria legítima ao ponto de abalar a estrutura estável conferida pela publicidade registral, ou mesmo a publicidade garantida pelo ato de alienação judicial? A análise desta questão exige a digressão sobre conceitos prévios que contribuirão para uma conclusão sobre as indagações supramencionadas. O direito de propriedade brasileiro, ao contrário de outros sistemas, é fortemente influenciado por questões sociais e conflitos possessórios coletivos que atingem a base de proteção da propriedade, o que provoca um grande impacto sobre a construção dos institutos jurídicos. A Súmula 84 do STJ reflete o fortalecimento da posse em um sistema jurídico marcado pela informalidade no regime de transmissão econômica dos bens. Fatores culturais e sociais influenciam nesta fórmula que acaba conferindo importância destacada para o contrato preliminar. Um exemplo desta afirmação reside na proteção conferida aos contratos de adesão firmados por particulares com incorporadoras. Além disso, a necessidade da moradia e a proteção constitucional ao patrimônio mínimo fortalecem a posição do compromitente possuidor ao ponto de sublimar a boa-fé subjetiva. Neste sentido deve ser mencionada a Súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. O precedente firmado é polêmico e de duvidoso acerto ao estabelecer uma hipótese ampla e irrestrita de defesa da posse, como será examinado na última parte deste trabalho. A análise comparativa entre o sistema brasileiro e português é interessante por permitir a compreensão de determinadas questões que o direito brasileiro solidificou com base na experiência estrangeira. Um exemplo claro desta afirmação reside nos dois pontos principais da exposição. O primeiro com relação à tutela conferida à posse de boa-fé dos bens móveis, no qual o direito brasileiro apresenta sensível modificação desde a promulgação do CCB de 2002. O direito brasileiro afastou-se do direito português buscando não só a proteção possessória do terceiro de boa-fé, mas a garantia do tráfico negocial. O segundo ponto, ao contrário, não é de afastamento, mas de convergência. Muito embora a jurisprudência portuguesa seja restritiva quanto à tutela do terceiro de boa-fé, desde a promulgação do Código Civil Português de 1966, pode-se concluir por uma lenta, mas crescente aproximação do direito português ao modelo germânico de proteção ao terceiro de boa-fé. A leitura do art. 291 do Código Civil Português e dos arts. 5º, I, e 17º do Código de Registo Português não permitem outra interpretação. Afastadas as discussões sobre o alcance e interpenetração entre a lei civil e registral, a realidade é uma só: admite-se a possibilidade de formação da propriedade a non domino ao terceiro de boa-fé, independentemente da usucapião. No direito brasileiro, até a promulgação da Lei nº 13.097/2015, esta conclusão seria inviável e contra legem. Com a previsão do art. 54, parágrafo único, o direito brasileiro ganha modernidade e a legislação civil alcança um patamar diferenciado. O grande desafio, desta mudança, ainda não absorvida pela jurisprudência e doutrina, reside em construir um modelo próprio quanto aos requisitos de sedimentação da aquisição a non domino pelo registro. 1 . Como pontua precisamente Menezes Cordeiro (Da Modernização do Direito Civil, I, p. 151), não seria possível observar a autonomia do direito comercial no direito romano porque, após a formação dos bonae fidei iudicia, “o Direito romano era, todo ele, comercial”. 2 . Sistema del Diritto Processuale Civile, t. I, p. 33. 3 . Na fase atual, a resolução de conflitos possui meios alternativos ou paralelos na solução de conflitos (ADR – alternative dispute resolution). Alguns denominam de sistema multiportas (multi- door system). A possibilidade de vias colaterais ou alternativas para a soluçãode conflitos é essencial para a desjudicialização excessiva dos conflitos. Apesar da previsão de outras “portas”, como a arbitragem, a mediação e a conciliação, denota-se o aumento gradual da utilização do poder judiciário. Isso também decorre da facilitação do “acesso à justiça”. Em 1995, regulamentava-se o Juizado Especial Cível e Criminal, pela Lei 9.099/95, atualmente, somente em microdemandas existem outros dois Juizados para facilitar o acesso do jurisdicionado: O Juizado Especial Federal (Lei 10.259/01) e o Juizado Especial Estadual das Fazendas Públicas (Lei 12.153/09). 4 . A comprovação da assertiva pode ser constatada pela descrição histórica do inventário de Zanobi, camponês de Capannale em 1406, conforme estudo de Philippe Ariès e George Duby (História da vida Privada, t. II, p. 189): “O defunto, proprietário de sua terra, estava bem equipado em material agrícola, toneis, animais de tiro e de curral (três porcos); suas provisões de trigo e de vinho teriam bastado até a próxima colheita; nenhuma dívida. Mas na peça exclusiva que o abrigava com sua família (uma mulher, três filhos), o único móvel marcante é uma cama, uma grande cama de 2,90 metros com todos os seus pertences e o cortejo de suas arcas, quanto ao resto, nem mesmo o estritamente necessário”. 5 . João Ameal, História da Europa, t. II, p. 98. 6 . Henri Pirenne, A Cidade Medieval, pp. 49-50. 7 . Sobre o desenvolvimento das cidades e comunas, é essencial a pesquisa da obra de Wilhelm Ebel, Der Bürgereid als Geltungsgrund und Gestaltungsprinzip des deutschen Mittelalterlichen Stadtrechts, pp. 08-90, Böhlaus, Weimar, 1958. A formação das comunas e burgos pode ser diferenciada pelo juramento. Quando o burgo se forma na propriedade do senhor feudal, realiza-se o juramento que forma a relação jurídica que vincula o suserano e o vassalo. Por outro lado, quando desvinculada de um senhor feudal, é possível observar a formação de uma associação de pessoas que firmam, pelo juramento, um propósito de vida em comum, sem relação de hierarquia, o que forma a comuna. 8 . Para uma análise da história do comércio e da atividade comercial dos italianos, Goldschmidt, Universalgeschichte des Handelsrechts (História Universal do Direito Comercial), § 7º, p. 142 e ss. 9 . Foi na Idade Média, por meio dos estudos de Bártolo, que a problemática sobre a necessidade do título executivo para aparelhar a execução foi retomada. Condenando os princípios do sistema germano de execução, o qual se realizava sem fundamento, em qualquer prova ou pronunciamento judicial prévio, Bártolo enunciou a máxima non est incoandum ab executionis. Certo de que os costumes bárbaro-germânicos não condiziam com a melhor solução para resolver o problema da execução, causava repúdio a ideia de utilizar-se da penosa actio iudicati para dar seguimento ao processo de execução. Isso porque, mesmo o credor estando de posse de uma sentença condenatória, precisaria mover um novo processo com pleno contraditório. Como meio de acelerar o procedimento, Martino di Fano e, depois, Giovanni Fasolo desenvolveram duas formas possíveis de execução no período medievo. A primeira, de natureza sumária, exercer-se-ia com base no poder de ofício do Juiz em movimentar o juízo e denominou-se imploratio per officium judicis. A segunda continuava a privilegiar a actio iudicati, em face de sua previsão junto ao Direito Romano. A execução, por ofício do Juiz, influenciou os demais sistemas, levando a criação de um sistema ágil, onde a possibilidade de execução, sem a necessidade de novo processo de conhecimento, foi sintetizada pela fórmula: setentia habet parata executionem. Surge o conceito de execução aparelhada (executio parata), pois o juiz, em função de uma sentença condenatória (título executivo), obrigava o réu a cumprir o mandamento judicial, sem eliminar a possibilidade oposição do devedor. Vide, José Alberto dos Reis, Processo de Execução, v. I, p. 74. 10 . O sistema jurídico de tradição romana sempre valorizou a propriedade imobiliária como fonte de riqueza. Em Roma, a proteção à propriedade imobiliária poderia ser visualizada pelo regime jurídico solene de transmissão que exigia a mancipatio. Os bens de maior projeção econômica eram considerados res mancipi. Consideravam-se res mancipi: os terrenos itálicos, os escravos, animais de tiro e carga e as servidões prediais rústicas. Segundo Dernburg, esta classificação teve repercussão no período arcaico, pois no período Justinianeu ela deixou de existir: “Für das altrömische Recht war diese Unterscheidung von größter Wichtigkeit; dem Justinianischen Rechte sie nicht mehr an” (Para o período arcaico do direito romano, a diferenciação era de grande importância, mas não mais, no período de Justiniano – tradução livre), in Pandekten, t. I, § 67, p. 158. A transmissão de bens mancipi, pela traditio, gerou uma segunda espécie de propriedade, denominada de bonitária, ao lado da quiritária. 11 . Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, t. I – Parte Geral, pp. 60-61. 12 . Rudolf Mayer, Bona fides und lex mercatoria in der europäischen Rechtstradition, p. 36 e ss. 13 . Mesmo Pontes de Miranda, maior tratadista brasileiro, não realizou a percepção nítida quanto à distinção entre os regimes de incidência da boa-fé subjetiva (guter Glaube) e da boa-fé objetiva (Treu und Glauben). Sobre a boa-fé possessória, deve ser consultado, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, t. X, § 1078, p. 126. 14 . Menezes Cordeiro, A Boa-fé no Direitos Civil, passim. Esta obra representa um marco divisório do direito moderno quanto ao tema. Quem realizar a leitura integral deste denso trabalho tomará contato com a análise profunda e o desenvolvimento histórico minucioso sobre a boa-fé, com pesquisa inigualável nas fontes e que permite compreender temas até então obscuros, como a distinção entre bona fides e aequitas, bem como a importância de Aristóteles quanto à laicização do direito e o desapego dos conceitos metafísicos de Platão. Não há paralelo sobre o tema nesta profundidade, mesmo no direito alemão. 15 . O sistema registral brasileiro é regido pela Lei nº 6.015/73, com suas subsequentes alterações. As duas alterações mais importantes e significativas desde sua implantação, no que toca à proteção da boa-fé, reside na adoção do modelo espanhol do patrimônio de afetação pela Lei nº 10.931/2004 e na inserção do princípio da concentração por meio da Lei nº 13.097/2015. Por meio da primeira alteração, procurou-se imunizar a matrícula registral para que incorporadoras e construtoras não pudessem gravar os terrenos que seriam utilizados para a construção de edifícios, com o fim de não prejudicar terceiros que realizassem a aquisição de unidades por meio de contratos preliminares. A segunda alteração de impacto veio por meio da Lei nº 13.097/2015, que positivou o princípio da concentração em seu art. 54. No sistema brasileiro, até então, somente as ações reais e reipersecutórias poderiam ser objeto de registro com o fim de proteger terceiros de boa-fé. Todavia, com o fim de permitir proteção integral, toda e qualquer constrição judicial (arresto, sequestro, indisponibilidade) poderá (rectius, deverá) ser averbada para prevenir eventual insolvabilidade do devedor perante terceiros (art. 54, III e IV). E mais, o art. 54, parágrafo único, é de leitura cristalina: Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção , ao terceiro de boa-fé (grifo nosso) que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei n º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 , e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. 16 . Canaris, Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, § 1º, p. 18. 17 . Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 20. 18 . O caso Lüth narra leading case na década de cinquenta (1958), que inaugurou a aplicação das normas de direito fundamentalsobre o direito privado. Erich Lüth realizou protesto contra a exibição do filme Unsterbliche Geliebte (Amada Imortal), de Veit Harlan, por sua suposta vinculação ao nazismo. Este cineasta teria produzido, na decada de 1940, filme antisemita denominado Jud Süß (O Judeu Süß), que o levou a ser processado por crime de guerra. Todavia, Veit Harlan foi absolvido por ficar caracterizada a impossibilidade de conduta diversa, sob risco de morte, uma vez que seguiu ordens de Goebbels, famoso Ministro da Propaganda Nazista. Lüth foi alvo de ação judicial inibitória e foi condenado a uma obrigação de abstenção. Em seu recurso ao Tribunal Constitucional, a decisão do Landgericht foi reformada e garantiu o direito fundamental à opinião e a possibilidade de influenciar terceiros. A ponderação levou em consideração a primazia do direito de manifestação em face dos bens jurídicos expostos na manifestação de Lüth. 19 . Vide a excelente crítica de Canaris sobre a utilização da eficácia da irradiação na decisão histórica (Bverf, 7, 198-230). O ilustre civilista diferencia com propriedade a distinção entre a eficácia imediata e a vigência imediata dos direitos fundamentais, que provocam consequências absolutamente distintas e que não são observadas na nomenclatura jurídica. Isso é comum no Direito Brasileiro em que a expressão Drittwirkung é tomada como sinônima para ambas as situações em grande parte dos manuais e cursos de direito constitucional. 20 . Zippelius/Würtenberger, Deutsches Staatsrecht, § 17, p. 177, 21 . Sobre a eficácia imediata e mediata dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado, Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 54. 22 . O avanço do diploma alemão para a época pode ser visualizado na discussão do projeto do BGB, com a separação clara entre o regime público e privado, in Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerliches Gesetzbuches für das Deutsche Reich, t. I, pp. 2-14. 23 . Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral, t. I, p. 72. 24 . Sobre as possíveis teorias que explicam a relação jurídica real, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 213-260. Vide ainda o interessante trabalho de Rigaud, Le Droit Réel – Histoire et Theories, especialmente pp. 113 e ss. 2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS 2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS 2 A Boa-fé e os Direitos Reais 2.1. A boa-fé e sua incidência no direito privado e público A boa-fé é marcada por sua projeção sistêmica e por representar um vértice de influência sobre o campo do direito privado e público. É peculiar a influência cada vez maior da boa-fé nas relações jurídicas que são marcadas pelo direito público. A boa-fé revela um fator importantíssimo de reequilíbrio na relação público-privado, o que pode ser explicado pela necessidade de mudança do objeto de proteção do bem jurídico na relação de direito público. O fortalecimento do Estado no período moderno surge de uma lenta maturação com período marcante na guerra dos 30 (trinta) anos no século XVII, que fortaleceu a noção de soberania e território e preparou as bases para a separação efetiva dos poderes no século XVIII.1 O surgimento do Estado como ente jurídico marcado pela superioridade hierárquica na relação jurídica provocou a sedimentação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.2 A aplicação irrestrita e sem limites deste princípio gerou situações de extrema desigualdade e injustiça, especialmente no campo contratual e na responsabilidade civil. A supremacia do príncipe permitiria a resolução imotivada de relações jurídicas, ou a irresponsabilidade absoluta em situações de cometimento de ato ilícito (The King can do no wrong). O século XVII preparou a base de nascimento do Estado Moderno ao estabelecer limites para o Príncipe.3 A atuação do soberano deveria estar voltada para o bem estar geral e não particular. A formação do direito público propiciou a noção natural de supremacia do interesse estatal que representaria a vontade e o bem estar geral com sedimentação das funções estatais no século XIX.4 Esta noção, apesar de ainda ser predominante no direito público, exige uma revisão de postura. No âmbito do direito público, o objeto da atividade administrativa deve estar pautado pela proteção e segurança dos direitos fundamentais. O compromisso do Estado com a realização dos direitos primários realça o seu papel ordenador (Ordnungsfunktion) e provedor da atividade essencial para o bem estar dos cidadãos (Gestaltungsfunktion).5 O interesse estatal deve estar voltado para a proteção dos direitos fundamentais e não para a salvaguarda do interesse público que reflete um conceito indeterminado e de contornos duvidosos.6 Esta noção é fundamental como novo vetor de orientação da atividade administrativa, na medida em que a supremacia do interesse público não pode servir de argumento para fragilizar a posição jurídica do administrado. A proteção conferida pelos direitos fundamentais visa a uma limitação da atividade estatal sobre o indivíduo (Abwehrrechte).7 A vinculação do Estado aos direitos fundamentais e o javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) direcionamento de sua atividade para sua proteção não elimina o seu poder de império (Hoheitsverwaltung). O Estado, no exercício da função administrativa, exerce poder de polícia e poder de imposição de seus atos (Zwangsgewalt), mas o controle de sua atividade, e os limites do seu exercício, são controlados pela cláusula de proteção aos direitos fundamentais. A supremacia da atividade estatal somente é legítima quando conforma a atividade estatal ao respeito e proteção aos direitos fundamentais. No campo do direito público, a força da boa-fé deve ser ressaltada no âmbito material e processual. A boa-fé ganha progressiva importância e força nas relações contratuais com a Administração Pública como meio de proteção e equilíbrio para evitar que o indivíduo possa ser prejudicado de modo indevido. Nos contratos administrativos, por exemplo, as nulidades que tenham causa na atividade equivocada ou de má-fé do agente público não poderá acarretar em prejuízo para o terceiro de boa-fé que confia na liceidade da atividade administrativa. Podemos citar como exemplo o art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, que regula, no Direito Brasileiro, o regime de nulidade do contrato administrativo: A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. Isso significa que o particular que estiver de boa-fé e não tenha contribuído de modo doloso para a contratação nula com o poder público terá direito à indenização. O ressarcimento é garantido pela primazia da boa-fé na relação jurídica contratual. Nesta situação podemos citar o Município ou Estado que destina verba para obra diversa que justificou o convênio firmado com a União Federal. O terceiro que vence a licitação e inicia a execução do contrato poderá estar de boa- fé e sem conhecimento efetivo sobre a origem dos recursos destinados ao seu pagamento. A nulidade da licitação não pode ser oposta ao particular que executou o serviço. A exceção de ilicitude não pode se servir de causa para o incumprimento do contrato.8 Outro exemplo refere-se à proibição da surpresa em relação aos ocupantes de função pública que tenham auferido remuneração de boa-fé. A existência de erro da Administração Pública, ou alteração no entendimento da Administração Pública, ou mesmo a modificação quanto ao entendimento da jurisprudência, não serão argumentos suficientes para alterar a posição jurídica estabilizada. Respeita-se a boa-fé e proíbe-se o venire contra factum proprium da Administração Pública.9 Os exemplos citados conformam a proteção pela boa-fé, o que reflete, em última análise, a uma proteção de direito fundamental individualque veda a retroatividade e a alteração de situação jurídica consumada (art. 5º, XXXVI, CFB e art. 18º, 3, da CFP). 2.1.1. A boa-fé no direito público: A seara processual No âmbito do direito público, ainda merece destaque as reformas dos ordenamentos português e brasileiro, representados pela alteração da legislação processual. A reforma do Direito Processual Civil Português tornou expressa a previsão da boa-fé no art. 8º: “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. A influência deste diploma sobre a reforma operada no recentíssimo Código Processual Civil javascript:void(0) javascript:void(0) Brasileiro é manifesta como se depreende da redação do art. 5º: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa- fé”.10 Em toda e qualquer relação jurídica, a boa-fé estará presente como elemento ético e indissociável de integração, interpretação e correção. Na seara processual, o tema da boa-fé no direito processual brasileiro é absolutamente incipiente. A boa-fé sempre foi tratada como elemento secundário e com repercussão prática apenas no campo da fixação da pena de litigância de má-fé. A sua incidência sempre foi tratada de modo acidental como meio de justificar a ausência de má-fé. A nova legislação procura estabelecer um novo patamar para a boa-fé na seara processual. Sua importância ultrapassa a mera análise de conduta de contraposição com a má-fé para fins de fixação de apuração de perdas e danos oriundos da relação processual (art. 79 do CPC). A boa-fé está prevista como elemento expresso de interpretação e integração do pedido formulado pelo autor em seu articulado inicial (art. 322, § 2º, CPC).11 Apesar da obrigatoriedade da postulação judicial ser certa e determinada para a delimitação do objeto litigioso, em muitas situações, a extensão do pedido poderá ser modulada pela interpretação judicial. A boa-fé assumirá papel de interpretação e de integração cujo reflexo será imediato quanto à projeção da sentença e do caso julgado. Não se pode olvidar que a projeção do que será estabilizado pela sentença encontra seu limite no pedido formulado pelo autor (Der Streitgegenstand). Acontece que o pedido, embora completo, não esgota a projeção dos efeitos da sentença e da coisa julgada. A real extensão do pedido é vinculada aos fatos que são expostos na causa de pedir, uma vez que todo pedido somente pode ser acolhido quando devidamente fundamentado (Die Begründung des Anspruchs).12 Ainda no campo processual, a boa-fé consiste em modelo de solução favorável ao terceiro que confia na inexistência de vinculação do bem adquirido a qualquer processo que envolva o alienante. A reforma processual brasileira sedimentou o ônus processual do credor/exequente em materializar os atos preventivos no registro tabular para permitir que o bem possa ser expropriado sem eventual postulação do terceiro de boa-fé (art. 844 do CPC).13 Esta alteração, que é voltada para os bens imóveis, vem acompanhada de solução própria para os bens móveis que será examinada oportunamente. O sistema processual brasileiro acaba por vedar a possibilidade de desfazimento da expropriação judicial de bens móveis que são submetidos à hasta pública, como medida de proteção à boa-fé processual.14 No sistema processual português a questão é simplificada pela modernidade do processo de comunicação eletrônica entre o juízo e o serviço registral. A leitura do art. 755 do Código de Processo civil Português informa que a materialização da penhora sobre os bens imóveis será realizada diretamente por comunicação eletrônica15 pelo agente da execução.16 Este simples panorama permite demonstrar a influência da boa-fé em todo o sistema jurídico que não se limita ao campo do direito privado, muito embora suas raízes e sua intensa construção devam ser hauridas no direito civil que propiciou campo de alto rendimento para o instituto.17 O exame do tema passa necessariamente por algumas considerações sobre o regime jurídico dos direitos reais, em cujo campo se situa o objeto de investigação. A boa-fé civil, no campo javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) possessório e dominial, será analisada como elemento integrante da exposição sobre a aquisição a non domino. 1 . A formação do Estado Moderno não se confunde com a Majestas populi Romani. O Estado Romano em sua fase final era representado pela figura do Imperador e pelo exercício absoluto do imperium por meio dos magistrados (Edicta, Rescripta, Decreta). Não existia qualquer traço de organização com funções independentes. Com o fim do Império Romano, o modelo romano tentou ser resgatado pelo Império Carolíngio, mas sem sucesso. O período medieval foi marcado pela multiplicação dos poderes locais baseada na territorialidade do feudo. O período da baixa Idade Média representaria o início da unificação e fortalecimento do poder do príncipe sobre o território da comunidade (Landeshoheit-Otto Mayer, Derecho Administrativo Alemán, p. 29). 2 . Renato Alessi, Principi di Diritto Ammnistrativo, v. I, p. 251. 3 . Em um primeiro momento, a figura do Príncipe foi essencial para a centralização de poderes e para a unificação territorial. O apoio da burguesia foi fundamental para a formação do Estado, pois o modelo medieval baseado no sistema de concessões e privilégios, entre o suserano e o vassalo, representava um empecilho para o desenvolvimento econômico do próprio comércio. Como informa Orlando de Carvalho (Direito das Coisas, p. 33): “Apoiada nos reis contra os terratenentes que dominam a propriedade tanto urbana como rústica, a burguesia citadina torna-se o primeiro motor de dissolução do feudalismo, cujas peias impedem o seu desenvolvimento completo e cujo domínio do solo impede a sua instalação”. 4 . Ernst Forsthoff, Lehrbuch des Verwaltungsrechts- Allgemeiner Teil, t. I, § 1º, p. 3. 5 . Alfred Katz, Staatsrecht, § 3º, p. 20 6 . Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, p. 171 e ss. 7 . “Grundrecht wirken im Verhältnis zwischen Staat und Individuum” (Grabenwater/Holoubek, Verfassungsrecht – Allgemeines Verwaltungsrecht, p. 164). 8 . Como esclarece Marçal Justen Filho, “O terceiro, desde que de boa-fé, não pode ser prejudicado pelo vício que desconhecia nem poderia conhecer” (Comentários À Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 482). 9 . Cf. STF, “Os valores percebidos em razão de decisão administrativa, dispensam a restituição quando auferidas de boa-fé, aliada à ocorrência de errônea interpretação da Lei, ao caráter alimentício das parcelas percebidas e ao pagamento por iniciativa da Administração Pública sem participação dos servidores” (MS 31.259 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, 1ª T., julgado em 24/11/2015, g.n.). 10 . Como ressalta Nelson Nery Jr., “a regra é universal” (Teoria Geral dos Recursos, p. 170), ao comentar sobre a necessidade da boa-fé no âmbito recursal civil para a incidência do princípio da fungibilidade. 11 . “A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa- fé.” 12 . Arthur Nikisch, Der Streitgegenstand im Zivilprozess, § 4º, p. 55 13 . O dispositivo resolve problema que perdurou por longo tempo quanto à responsabilidade do juízo ou do exequente quanto aos atos necessários para aperfeiçoar a medida constritiva. Atualmente, caberá ao juízo o deferimento da medida constritiva, mas sua implementação é de responsabilidade do exequente: “Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial”. 14 . Quanto ao ponto, abre-se uma contraposição entre o art. 447 e o art. 1.268, ambos do CCB. O primeiro revela a tradicional garantia da evicção que subsiste nos contratos onerosos, ainda que a aquisição tenhasido realizado em hasta pública. O segundo revela a regra pela qual a posse de boa-fé legitima a transmissão da propriedade móvel ao terceiro, desde que realizada em regime de publicidade. Esta contraposição hoje está fragilizada pelo regime imposto pelo art. 54, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015, que fortaleceu a posição do terceiro na alienação dos bens imóveis. 15 . No Brasil, desde a Lei Federal nº 11.977/2009, foi instituída a obrigatoriedade de integração eletrônica do sistema de registro de imóveis no prazo de 5 anos, o qual se esgotou em 2014 e não restou materializado. O Conselho Nacional de Justiça emitiu o Provimento nº 47 em junho de 2015 e regulamentou o art. 39 da referida Lei quanto ao modus operandi e estabeleceu prazo adicional de 360 (trezentos e sessenta) dias para a integração (art. 9º). As dimensões continentais do território brasileiro e o próprio atraso na implementação do processo eletrônico tornam duvidoso o cumprimento do prazo. Isso não elimina o processo irreversível de informatização do foro judicial e extrajudicial. A Lei nº 13.097/2015 alterou o art. 41 da Lei 11.977/09 e prevê o acesso eletrônico, sem qualquer custo, das informações registrais, aos poderes públicos. 16 . O sistema processual português, desde a reforma operada no ano de 2003, abandonou o modelo de exclusividade de controle e prática dos atos executivos pelo juiz e pelo oficial de justiça, respectivamente. O agente da execução será o responsável pela introdução e materialização dos atos executivos, incluindo a comunicação da penhora pelo art. 755 do CPCP. Como o agente atua por iniciativa do exequente/credor, é possível afirmar que não difere o modelo lusitano, do brasileiro, quanto à necessidade de iniciativa (princípio dispositivo) para o início dos atos executivos. Para uma visão geral sobre o agente da execução, Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, p. 85-87. 17 . Para um estudo completo sobre a análise e desenvolvimento das diversas fases da boa-fé no direito romano, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 17-147. O conceito da bona fides no âmbito possessório tem sua base histórica fincada no direito romano, inclusive quanto às repercussões que serão sentidas nas codificações modernas quanto à adoção da boa-fé subjetiva psicológica ou ética. Um belo extrato desta afirmação pode ser consultado no estudo de Bonfante, Essenza della bona fides e suo rapposto colla teorica dell'errore, pp. 85-91. 3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS 3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS 3 O Regime Jurídico dos Direitos Reais 3.1. Aspectos gerais da relação jurídica real A boa-fé pode ser analisada dentro de vários quadrantes que compõe o sistema civil, o que exigiria um aumento considerável do espectro deste trabalho.1 Optou-se pelo seu exame unicamente quanto às relações jurídicas que compõe a seara dos direitos reais. Essa separação não torna o exame, por si só, mais fácil, até o dificulta, na medida em que o enfoque particular exige a fixação dos princípios e regras aplicáveis ao regime jurídico dos direitos reais. É necessário extremar e identificar a relação jurídica real dentro do sistema civil. É necessária uma breve análise sobre a posição dos direitos reais no quadrante geral. Essa reflexão assume importância em vista da crise enfrentada pela teoria da relação jurídica. A criação genial da relação jurídica por Savigny, agregada à formatação sistêmica sugerida por Heise, influenciou abertamente o modelo alemão e o direito brasileiro.2 Nossa legislação adotou expressamente o tratamento sistemático de divisão dos livros do direito civil, com base na diferenciação da relação jurídica (parte geral, obrigacional, real, familiar e sucessões).3 Nosso modelo não seguiu a influência francesa ou austríaca que foram fiéis à separação proposta por Gaio em 160 a.C., ao estabelecer a divisão sistêmica do direito em três livros, em suas Instituições (Institutiones): a) pessoas (personae); b) coisas (res); e c) ações (actiones).4 O período atual é marcado por um esgotamento do modelo clássico que informa a divisão tradicional das matérias perante a legislação civil brasileira. Aliás, basta um exame na profusão de leis esparsas e de novos ramos do direito que não guardam posição simétrica com os livros previstos do Código Civil Brasileiro. Não há dúvida de que a divisão ainda é extremamente relevante e útil, mas a interpenetração entre os ramos, aliada à falência da Parte Geral, demonstram a necessidade do diálogo entre as fontes (Der Dialog der Quellen), uma vez que o modelo atual exige a adequada compreensão quanto à interpenetração das leis especiais.5 O modelo jurídico atual não se contenta mais com construções dogmáticas puras e formais para a solução e enfrentamento dos problemas do dia a dia. O modelo cartesiano oferecido pela lógica formal e que procura construir a teoria da decisão judicial apoiada em um silogismo jurídico não responde mais aos anseios do século XXI. O ato decisório e a formação dos precedentes, com força vinculante, não se resume mais à aplicação da norma positiva ao caso concreto.6 A multiplicidade normativa é insuficiente para regrar todas as novas situações fáticas que são descortinadas diariamente. A densidade dos problemas jurídicos, mesmo no âmbito privado, informa que o conflito intersubjetivo é capaz de irradiar ondas que propiciam a necessidade de nova perspectiva sobre questões que aparentemente estavam sedimentadas por princípios seculares. É o que se verifica de modo muito claro na seara dos direitos reais cujo campo sempre foi considerado o de maior estabilidade pela necessidade de regras claras e rígidas para a proteção da propriedade, bem como dos direitos reais desmembrados (direitos reais de gozo e garantia). Outro ponto a ser considerado é que ótica da legislação civil tradicional exige adaptação para dois pontos javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) cruciais: a) coletivização dos conflitos; e b) a desmaterialização da relação jurídica pela influência das novas realidades e do direito digital. A sociedade hodierna é marcada pela globalização e multiplicidade das relações jurídicas que desconhecem os conceitos de fronteira impostos pelo direito internacional clássico. A legislação civil atual é pensada para o ambiente coletivo, em vista da necessidade de disciplina das relações negociais que atingem um número indeterminado de pessoas. Na formação deste vínculo jurídico não está mais em jogo a igualdade na formação, pois sabe- se de antemão que a relação contratual, na maioria das vezes, é fruto de mera adesão, o que exige a criação de mecanismos específicos de proteção no direito material e processual. A Europa inicia a encampação do direito processual coletivo e a acomodação de conceitos bem desenvolvidos no direito anglo-saxão, como a defesa de interesses difusos.7 O comércio eletrônico representa uma fonte de desafios para o direito privado interno e internacional. As relações negociais passaram a depender como nunca da lealdade e confiança. O denominado e-commerce somente se sustentará na medida em que exista o respeito ao direito à informação e transparência no comércio virtual que respeitem a boa-fé do adquirente. Por esse motivo, é de fácil percepção que no âmbito do direito material e processual o conceptualismo e formalismo8 jurídico herdados de Puchta não refletem a noção de um sistema jurídico que possa propiciar a unidade da ordem jurídica.9 O século XX foi marcado por certa letargia quando comparado com as grandes transformações que marcaram o século XIX.10 O século XXI traz como desafios o rompimento de conceitos e a adequação da ordem jurídica para a realização efetiva dos direitos emergentes de uma nova ordem social. A aproximação do sistema jurídico da realidade vivenciada no meio social representa a tentativa de conferir unidade na ordem jurídica e no processo de intepretação e aplicação do direito. O processo de decisão atual não leva em consideração
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